Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6499/18.1T8GMR-B.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
PAGAMENTO
BENEFICIÁRIO
PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
SUSPENSÃO
PRAZO
MENOR
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Sumário :
I - Apesar do recurso constituir um meio de impugnação de decisões judiciais e não um meio de julgamento de questões novas, está salvaguardada a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, de matéria de conhecimento oficioso, pelo que o tribunal ad quem não só pode como deve apreciar toda e qualquer questão oficiosamente cognoscível, ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida.

II - A prescrição assenta num facto jurídico involuntário - o decurso do tempo - e a ideia comum que lhe preside é a de uma situação de facto que se traduz na falta de exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou porventura devendo actuar para a realização do direito, se abstém de o fazer.

III - Apesar de o prazo prescricional correr, em princípio, seguida ou continuamente, a lei prevê causas várias de suspensão, que assentam na ideia de que, não obstante as exigências de certeza e segurança, a atitude passiva do credor se justifica em consequência das especiais circunstâncias que envolvem a situação concreta, designadamente, uma causa que o impeça de exercer o direito ou que o coloque numa situação de extrema dificuldade em o exercer.

IV - Invocada a prescrição por aquele a quem aproveita, o tribunal pode e deve apreciar todas as circunstâncias que, emergindo dos factos adquiridos para o processo, sejam relevantes para a verificação, ou não verificação da excepção peremptória correspondente, incluindo os factos que a impeçam, como a suspensão ou a interrupção.

V - A prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou administre os seus bens e, ainda que o menor tenha representante legal ou administrador dos seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade.

VI - A eficácia da suspensão da prescrição é limitada às pessoas relativamente às quais se verifica.

VII - A omissão de pronúncia, enquanto causa de nulidade substancial da decisão, pressupõe uma abstenção não fundamentada de julgamento - e não uma fundamentação errada para não conhecer de certa questão.

Decisão Texto Integral:

Proc. 6499/18.1T8GMR-B.G1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório.


AA, por si e em representação da filha menor, BB, nascida no dia ... de Agosto de 2006, opôs-se por embargos, no dia 11 de Outubro de 2021 à execução para pagamento de quantia certa promovida pelo Novo Banco SA, pedindo, além da procedência da oposição, a intervenção principal provocada de BES-VIDA, Companhia de Seguros SA, devendo esta pagar à exequente o valor da quantia exequenda e reembolsar as executadas dos valores das prestações pagas por estas à exequente, desde a data do óbito do marido da 1.ª executada e até Fevereiro de 2014.


Fundamentaram estas pretensões no facto de, no requerimento executivo, constar que por escritura pública outorgada em 7 de Agosto de 2003, a exequente ter concedido à 1.ª executada e ao seu marido, CC, falecido no dia ... de Agosto de 2011, um financiamento, sob a forma de mútuo com hipoteca, no montante global de € 117 000,00, pelo prazo de 360 meses, destinado a habitação própria permanente, e outro de € 5 000,00, destinado a fazer face a compromissos anteriormente assumidos e à aquisição de equipamento para residência, financiamentos que aqueles se comprometeram a reembolsar com juros, tendo constituído, a favor da exequente, para assegurar o bom cumprimento das obrigações dos contratos de mútuo, duas hipotecas sobre a casa localizada em..., ..., obrigações que deixaram de cumprir, alegando a exequente que é credora do valor global de € 127 124,59, e de a 1.ª executada, e o marido, terem celebrado com BES-VIDA, dois contratos de seguro de vida, titulados pelas apólices n.ºs ...90 e ...91 dos quais é beneficiário a exequente, pelo capital dos empréstimos devido, apólices que accionaram e se encontravam em vigor à data do óbito, devendo a chamada proceder ao pagamento da quantia peticionada na execução, a liquidar à exequente, e reembolsar as executadas do valor das prestações que pagaram àquela desde a data do óbito do marido da 1.ª executada, até 7 de Fevereiro de 2014.


O exequente, na contestação - depois de alegar, designadamente que as apólices não foram accionadas, por se encontrarem canceladas por falta de pagamento registada em 30 de Julho de 2010, razão pela qual não foi paga pelo seguro, de que é beneficiária, qualquer quantia nos termos constantes dos contratos de mútuo celebrados, que deixaram de ser cumpridos, o primeiro em 7 de Abril de Abril de 2014 e, o segundo, em 7 de Fevereiro do mesmo ano, o que determinou o vencimento do total em dívida, tudo no valor global de € 127 124,51 – concluiu pela improcedência dos embargos e, sem prescindir, comprovando-se o cumprimento, a manutenção e o accionamento dos contratos de seguro, que deverá o segurador liquidar-lhe os montantes em dívida.


Após uma multiplicidade de vicissitudes processuais, por despacho de 28 de Fevereiro de 2023, a Sra. Juíza de Direito admitiu a intervenção principal provocada de Gamalife, Companhia de Seguros de Vida, SA, para, como executada, prosseguir os termos dos autos principais.


A interveniente deduziu embargos de executado, nos quais pediu a sua absolvição do pedido exequendo.


Fundamentou a oposição no facto de, por não figurar no título executivo como devedora, ser parte ilegítima, de não existir, quando a si, título executivo, de o direito de exigir o pagamento dos capitais seguros estar prescrito, por terem decorrido mais de cinco anos, desde a data do sinistro – o óbito do segurado CC – e o conhecimento, pelas executadas, daquele direito, de os capitais seguros serem inexigíveis, dado que as executadas não lhe participaram o óbito daquele segurado nem lhe enviaram os documentos indispensáveis para a instrução do processo de sinistro e de ter resolvido os contratos de seguro por falta de pagamento dos prémios relativos aos meses de Abril e Maio de 2010, resolução que comunicou às executadas por cartas datadas de 4 de Junho de 2010.


A exequente não contestou estes embargos.


As primitivas executadas, na sequência de notificação para exercerem o contraditório, alegaram, designadamente, que só com a citação para pagar a quantia exequenda passaram a ter conhecimento efectivo de que o segurador não havia pago ao banco beneficiário as quantias em dívida à data do óbito de CC, pelo que a excepção da prescrição deve improceder.


No despacho saneador decidiu-se que a embargante Gamalife, SA, é parte legítima e indeferiu-se a excepção da falta de título, invocada por aquela.


Finalmente, realizada a instrução, discussão e julgamento da causa, a Sra. Juíza de Direito, por sentença de 6 de Outubro de 2023, depois de concluir que não foram os contratos (de seguro) resolvidos e, como tal, se mantinham em vigor à data do óbito de CC, que com a renovação operada em 1 de Janeiro de 2010 passou a aplicar-se ao mesmo o RJCS, aprovado pela Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, sendo que o sinistro em causa ocorreu na vigência plena do referido diploma, que com o conhecimento do direito se iniciou o prazo o prazo de prescrição de prescrição de 5 anos, que assim, se completou, o mais tardar em 18 de Abril de 2023, e que atenta a verificação da prescrição do direito das embargantes AA e BB em exigir o pagamento do seguro – julgou improcedentes os embargos daquelas e procedentes os deduzidos pela chamada Gamalife, SA e determinou o prosseguimento da execução quanto às executadas AA e BB.


As executadas AA e BB interpuseram desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães – no qual pediram a sua revogação e substituição por outra que julgue os seus embargos procedentes – tendo rematado a sua alegação, designadamente com as conclusões seguintes:


1. ERRO DE JULGAMENTO – Da decidida prescrição do direito das embargantes em exigir o pagamento dos seguros. A Sentença enferma de erro de julgamento por desrespeitar o disposto no artigo 320º, n.º 1 do Código Civil;


2. CC faleceu no dia .../08/2011, tendo-lhe, sucedido como únicas e universais herdeiras as executadas AA, sua viúva e, BB, sua filha, esta nascida a... de Agosto de 2006. Sendo, portanto, ainda menor, apenas atingindo a sua maioridade a .../08/2024 (cf. Certidão do Assento de Nacimento junto com o Requerimento Executivo);


3. “A prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou administre seus bens, salvo se respeitar a actos para os quais o menor tenha capacidade; e, ainda que o menor tenha representante legal ou quem administre os seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade”;


4. Ainda que a menor tenha representante legal ou quem administre os seus bens, a prescrição contra ela não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade;


5. Independentemente das ponderações acerca da data do conhecimento do direito das embargantes, esta alegação é decisiva e determinante para a procedência dos embargos deduzidos pelas embargantes;


6. O óbito do progenitor da menor BB teve lugar no dia .../08/2011 e esta nasceu a .../08/2006, sendo por isso, ainda menor, pelo que não foi esgotado o prazo de prescrição previsto no artigo 121º do RJCS, que não se completa antes de decorrido um ano sobre a data em que esta complete a maioridade. O que ainda não sucedeu in casu;


7. Verifica-se erro de julgamento, na medida em que o Tribunal recorrido fez uma incorreta aplicação do direito. O decidido não corresponde à realidade normativa e traduz-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei;


8. A situação prevista no nº 1 do artigo 320º do CC, cuja aplicabilidade não foi considera na decisão recorrida, tem subjacente a necessidade de proteger os menores das consequências que para si resultariam de, por inércia ou negligência do seu representante legal, o direito que lhes assiste não ter sido atempadamente exercido;


9. Assim sendo, o decurso do prazo de prescrição, no que concerne aos direitos de que as embargantes se arrogam sobre a chamada Gamalife de pagamento da quantia exequenda, ainda não se completou, devendo, pois, esta última ser responsabilizada pelo seu pagamento.


A interveniente principal, única parte que respondeu ao recurso - depois de observar que as recorrentes não invocaram a suspensão da prescrição, que constitui questão nova, não apreciada e decidida na sentença recorrida, não se enquadrando no objecto do recurso – concluiu pela sua improcedência.


O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão unânime de 15 de Fevereiro de 2024, depois de desatender a arguição de nulidade da sentença, de negar provimento à impugnação da decisão da matéria de facto e de observar que em sede de direito as apelantes invocaram o disposto no art.º 320.º do Código Civil, mas que compulsado o requerimento ou articulado das apelantes apresentada em juízo em 8.5.2022, nele não encontramos invocada essa matéria que, por isso, não foi conhecida na sentença em crise, e que está vedado a este Tribunal de apelação apreciar esta questão nova – julgou improcedente o recurso de apelação.


As executadas, apelantes, interpuseram deste acórdão recurso ordinário de revista, tendo condensado a sua alegação nas conclusões seguintes:


1) O presente recurso é admissível, circunscrito, porém, à apreciação da questão da correção do acórdão recorrido quanto à decisão que tomou em não apreciar a suscitada pelas recorrentes aplicação in casu do disposto no artigo 320º, n.º 1 (2ª parte) do Código Civil.


2) O recurso de revista tem por fundamento a acusação de que a Relação agiu de forma indevida ao ter rejeitado o conhecimento desta questão, padecendo de uma ilegalidade cometida ex novo, não sendo uma situação de dupla conformidade decisória das instâncias.


3) Estando-se perante um recurso de revista que visa exercer censura sobre acórdão da Relação que rejeitou o conhecimento da questão suscitada pelas recorrentes - não verificação da prescrição do direito, atento o disposto no artigo 320, n.º 1 do CC - bem assim a violação das normas processuais (cf. artigos 674º, n.º 1, 615º, n.º 1, alínea d) do CPC), é o recurso admissível independentemente de ter sido confirmada a decisão da 1.ª instância porquanto não existe dupla conformidade decisória.


4) O acórdão recorrido está enfermo, por violação e errada aplicação da lei do processo (cf. artigos 5º, 608º, 615º e 674º do CPC) e, por violação da lei substantiva consistente no erro de interpretação e aplicação da norma (artigo 320º do CC.).


5) Atento o que dispõe o artigo 608º do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Sendo nula a decisão quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.


6) Prevê, ainda, o artigo 5º do CPC o seguinte: 1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. 3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.


7) A questão (não verificação da prescrição) suscitada pelas recorrentes perante o Tribunal recorrido não é uma questão nova, pois ela foi objeto de apreciação pelo tribunal da 1ª instância: “atenta a verificação da prescrição do direito das embargantes AA e BB em exigir o pagamento do seguro, devem os embargos intentados pelas mesmas improceder, procedendo, outrossim, os embargos deduzidos pela chamada Gamalife, SA.


8) Na apelação as embargantes sindicaram a decidida prescrição do direito das recorrentes em exigir o pagamento dos seguros e invocam a verificação do disposto no artigo 320º, n.º 1 (2ª parte) do CC. Assim, ainda que a menor tenha representante legal ou quem administre os seus bens, a prescrição contra ela não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade.


9) Independentemente das ponderações acerca da data do conhecimento do direito das embargantes, esta alegação era decisiva e determinante para a procedência dos embargos deduzidos pelas embargantes.


10) A decisão recorrida padece da aludida nulidade por não ter tomado conhecimento da questão alegada pelas embargantes quanto ao facto de a prescrição do direito da menor contra a recorrida seguradora ainda se não ter completado.


11) A prescrição extintiva consubstancia uma exceção perentória cujo conhecimento oficioso está vedado ao Tribunal. Porém, na Doutrina de VAZ SERRA: “embora reconhecendo que a interrupção do prazo prescricional se assume como facto impeditivo da paralisação do exercício do direito e, como tal, a respectiva alegação e prova incumba ao credor, entendeu, da mesma forma que o fez quanto às causas da suspensão da prescrição, que essa matéria cabe no poder de apreciação oficiosa do juiz porquanto se o processo «fornece ao juiz conhecimento de uma causa interruptiva da prescrição, deve atendê-la, pois, cumprindo-lhe decidir se há prescrição, cumpre-lhe apreciar se esta foi interrompida». Também o Ac. da Rel. de Coimbra de 30/11/2010.


12) Uma vez chamado a pronunciar-se sobre a procedência ou improcedência da exceção perentória da prescrição, por o respetivo beneficiário a ter invocado, no caso, a recorrida seguradora, o Tribunal não podia deixar de decidir se ocorre alguma causa de suspensão ou interrupção da mesma, por os respectivos elementos constarem do próprio processo.


Não foi oferecida resposta.


O Sr. Juiz Desembargador Relator, porém, com fundamento na irrecorribilidade do acórdão, em virtude do pressuposto negativo da admissibilidade da revista, comum ou normal, representado pela chamada dupla decisão conforme, indeferiu in limine, o requerimento de interposição do recurso.


As recorrentes reclamaram pare este Tribunal Supremo, contra a rejeição da revista, reclamação a que, por decisão do relator, transitada em julgado, foi concedido provimento.


Expedido o recurso rejeitado para este Tribunal, o relator, com fundamento na morte do Exmo. Advogado da recorrida, Gamalife, SA, declarou a suspensão da instância do recurso que, posteriormente, com fundamento na notificação das partes contrárias da constituição, por aquela parte, de novo advogado, julgou cessada.


2. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e enunciação da questão concreta controversa.


Na delimitação do objecto do recurso há, desde logo, que considerar esta circunstância peculiar: a de a recorrida Gamalife, SA, apesar de não constar nos títulos executivos como devedora ter adquirido a qualidade de executada por força da sua intervenção principal provocada, requerida pelas executadas recorrentes.


No tocante à intervenção de terceiros, como parte principal, no processo executivo, há que considerar, além do regime geral, algumas especialidades da acção executiva. A intervenção principal litisconsorcial é sempre admissível para sanar a ilegitimidade decorrente da preterição de um litisconsórcio necessário (art.ºs 311.º, 316.º e 261,º, n.º 1, do CPC). No processo executivo é também admissível a intervenção principal provocada de um litisconsorte voluntário, v.g. de um co-devedor solidário do executado, e, bem assim a intervenção espontânea de um litisconsorte necessário ou voluntário (art.ºs 311.º e 317.º, n.º 1, do CPC). Note-se, porém, que a intervenção principal de um terceiro como exequente ou como executado, quando realizada através do regime geral, está restringida, em regra, a sujeitos que constam do título executivo. Em face destes enunciados é evidente que a intervenção, da recorrida, Gamalife, SA, seguradora, na execução, como parte passiva ou executada, não cumpre o estabelecido nas regras gerais relativas à intervenção principal provocada, dado que patentemente não pode ser considerado litisconsorte de qualquer das partes na execução, nem consta do título que serve de suporte à acção executiva como devedor. O Tribunal da 1.ª instância, admitiu, porém, a intervenção principal provocada, como executada, da recorrida Gamalife, SA, e, mais do que isso, julgou improcedentes, no despacho saneador e na sentença final, os fundamentos de oposição à execução alegados por aquela nos embargos de executado que deduziu – com excepção do relativo à prescrição da sua obrigação de prestar, resultante dos contratos de seguro. Como aquelas decisões de improcedência transitaram em julgado, por não terem sido objecto de oportuna impugnação, as questões correspondentes consideram-se irrepetível e definitivamente decididas (art.ºs 619.º n.º 1, e 620.º, n.º 1, do CPC).


Assim, como o âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, são duas as questões colocada à atenção deste Tribunal Supremo: as de saber se o acórdão impugnado se encontra ferido com o vício da nulidade substancial, resultante de uma omissão de pronúncia por não ter conhecido da questão da suspensão da prescrição, assente na menoridade da recorrente BB, da obrigação de prestar que para a interveniente, Gamalife, SA, emerge dos contratos de seguro – prescrição que determinou a procedência dos embargos que esta opôs à execução - e se a prescrição desta obrigação foi, realmente, atingida por aquela causa, unilateral, de suspensão (art.º 635.º nºs 2, 1.ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC). Realmente, apesar de nas conclusões da sua alegação do recurso de revista, as recorrentes se referirem também à interrupção da prescrição, o objecto do recurso, tal como surge individualizado ou recortado naquelas conclusões, é constituído – apenas - pela questão da suspensão da prescrição que beneficia a executada menor e, desde logo, pela abstenção da sua apreciação – como, aliás, já sucedia com o recurso de apelação. Problema cuja resolução vincula, evidentemente, ao exame leve, mas minimamente estruturado, da causa de nulidade do acórdão resultante de uma omissão de pronúncia e dos fundamentos da prescrição e, claro, da sua suspensão a favor de menores.


A propósito deste objecto, o acórdão impugnado na revista proferiu uma não-decisão. Efectivamente, aquele acórdão, aderindo ao ponto de vista sustentado pela recorrida Gamalife, SA, na resposta ao recurso de apelação, deliberou não conhecer de tal objecto com fundamento na circunstância de se tratar de uma questão nova. Mas, ao contrário do que inculca aquele acórdão, a novidade da questão nem sempre é sinónimo de inadmissibilidade da sua alegação na instância de recurso e, consequentemente, do seu conhecimento pelo tribunal ad quem.


Considerados a partir da finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida. No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa acção foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação1.


No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre téria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não hajam sido formulados: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas2.


Excluída está, portanto, a possibilidade de formulação de pedidos novos ou de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Mas em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade da alegação e da apreciação, em qualquer grau de recurso, de matéria de conhecimento oficioso3, como sucede, por exemplo, com o abuso do direito4. Portanto, a circunstância de a questão ser nova só é impeditiva do seu conhecimento caso se conclua que não é oficiosamente cognoscível e, consequentemente, que, por não ter sido oportunamente alegada, foi irremissivelmente atingida pela preclusão. Do que decorre que o fundamento utilizado pelo acórdão contestado na revista só deve ter-se por correcto e a sua recusa em conhecer da questão da suspensão da prescrição da prestação do segurador por virtude da menoridade da executada BB só pode considerar-se justificada, caso se demonstre que aquela questão não é de conhecimento oficioso – demonstração a que aquele acórdão não procedeu de todo, não tendo tido presente que, como melhor se detalhará, tanto a doutrina como a jurisprudência se repartem, a propósito da questão do carácter oficioso do conhecimento da suspensão da prescrição, por duas orientações: uma que sustenta que a suspensão da prescrição, uma vez alegada esta última, pode ser conhecida de ofício, pelo tribunal; outra que advoga que o tribunal só pode conhecer da suspensão se o interessado, para tanto legitimado, a tiver oportunamente alegado. Constatação que, evidentemente, torna irrecusável o tratamento, no julgamento da revista, também da questão correspondente.


3. Fundamentos.


3.1. Fundamentos de facto.


As instâncias estabilizaram a matéria de facto nos termos seguintes:


a) Factos provados.


1) Do requerimento executivo:


a) No seguimento da Deliberação do Banco de Portugal adoptada em 03 de Agosto de 2014, o Novo Banco, S.A., sucedeu nos direitos e obrigações do Banco Espírito Santo, S.A., incluído as resultantes dos contratos infra referidos.


b) Por escritura pública outorgada no dia 07 de Agosto de 2008, o Exequente Novo Banco, S.A., concedeu, no exercício da sua actividade bancária, a CC e a AA, ora Executada, um financiamento sob a forma de mútuo com hipoteca, no montante global de € 117.000,00 (cento e dezassete mil euros), pelo prazo de 360 meses, destinado à aquisição de habitação própria permanente, nos termos e condições constantes do contrato de mútuo com hipoteca composto de Escritura Pública e respectivo Documento Complementar, junto ao requerimento executivo sob o número 3 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


c) Em contrapartida, CC e a Executada AA comprometeram-se a reembolsar o Banco Exequente da quantia mutuada, acrescida dos juros que fossem devidos, contabilizados nos termos fixados na Escritura Pública.


d) No mesmo dia, por escritura pública, o Exequente, concedeu, no exercício da sua actividade bancária, a CC e à ora Executada AA , um financiamento sob a forma de mútuo com hipoteca, no montante global de € 5.000,00 (cinco mil euros), pelo prazo de 300 meses, destinado a fazer face a compromissos financeiros anteriormente assumidos e à aquisição de equipamento para a sua residência, nos termos e condições constantes do contrato de mútuo com hipoteca composto de Escritura Pública e respectivo Documento Complementar, junto ao requerimento executivo sob o número 4 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


e) Em contrapartida, CC e a Executada AA comprometeram-se a reembolsar o Banco Exequente da quantia mutuada, acrescida dos juros que fossem devidos, contabilizados nos termos fixados na Escritura Pública.


f) Para garantia do bom cumprimento das obrigações emergentes dos contratos de mútuo referidos em b) e d), em concreto das importâncias mutuadas, acrescidas dos juros que fossem devidos e ainda das despesas judiciais e extrajudiciais que o Banco ora Exequente tivesse de fazer no caso de ir a Juízo para manter e assegurar o seu crédito e acessórios, CC e a Executada constituíram, a favor do Banco Exequente, duas hipotecas voluntárias sobre o Prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão e andar, com logradouro, sito no Lote n.º 4, na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ... descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...08 ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...83.


g) Desde 07 de Abril de 2014 que as obrigações dos mutuários no que concerne ao pagamento das prestações ao Banco Exequente, decorrentes do contrato referido em b), deixaram de ser cumpridas.


h) Desde 07 de Fevereiro de 2014, que as obrigações dos mutuários no que concerne ao pagamento das prestações ao Banco Exequente, decorrentes do contrato referido em d), deixaram de ser cumpridas.


i) CC faleceu no dia ... de Agosto de 2011, tendo-lhe, sucedido como únicas e universais herdeiras as executadas AA, sua viúva e BB, sua filha.


Da petição de embargos das executadas AA e BB:


j) Nos termos dos contratos referidos em b) e d) os mutuários obrigaram-se a efectuar seguro de vida, pelo valor mínimo do montante do empréstimo, cujo beneficiário seria o “BES”, o qual deveria cobrir morte, invalidez total e definitiva.


k) A 1ª executada e seu marido, na qualidade de segurados celebraram, em 3/7/2008 com BES-VIDA, Companhia de Seguros S.A. (NIPC: ...56), com sede na Av. ... ..., um Contrato de Seguro de Vida, associado ao crédito à habitação, referido b) supra, titulado pela apólice nº ...90, tendo sido acordado que os prémios emergentes desse contrato teriam periodicidade mensal e que o pagamento dos mesmos seria efectuado por débito na conta de depósitos à ordem de que eram titulares com o nº ...7.23 do BES, nos termos e condições do documento junto à petição de embargos com o número 1 e cujo teor se dá por reproduzido.


l) A 1ª executada e seu marido, na qualidade de segurados celebraram, ainda, em 3/7/2008, com BES-VIDA, Companhia de Seguros S.A. (NIPC: ...56), com sede na Av. ... ..., um Contrato de Seguro de Vida, associado ao crédito à habitação, referido em d), titulado pela apólice nº ...91, tendo sido acordado que os prémios emergentes desse contrato teriam periodicidade mensal e que o pagamento dos mesmos seria efectuado por débito na conta de depósitos à ordem de que eram titulares com o nº ...7.23 do BES nos termos e condições do documento junto à petição de embargos com o número 2 e cujo teor se dá por reproduzido.


m) Nesses contratos, foi acordado, ainda, que o beneficiário dos seguros seria o BES pelo capital dos empréstimos em dívida.


n) No seguimento dos contratos celebrados entre a 1ª executada e seu marido e BES VIDA, esta última emitiu as Condições Particulares do Seguro de Vida associado ao Crédito à Habitação dos tomadores, no qual figuram como segurados a 1ª executada e seu marido, CC.


o) A 1ª executada e seu marido, na qualidade de segurados celebraram também com BES - Companhia de Seguros S.A. (NIPC: ...92), com sede na Av. ... ..., um Contrato de Seguro de BES Casa, associado ao crédito à habitação, titulado pela apólice nº ...01 nos termos e condições do documento junto à petição de embargos com o número 3 e cujo teor se dá por reproduzido.


p) No seguimento do óbito do marido, a 1ª executada contratou os serviços jurídicos de um advogado, a quem conferiu mandato com vista a este diligenciar pelo pagamento do empréstimo através dos seguros contratados.


q) Em 19/08/2011 a 1ª executada regressou à ... para junto da filha e para se apresentar ao trabalho.


Da contestação aos embargos:


r) A falta de pagamento enunciada em g) e h) foi comunicada à executada por carta datada de 22/1/2015.


Da petição de embargos da GAMALIFE, S.A.:


s) Em 03/07/2008 a executada AA e seu falecido marido CC preencheram e subscreveram o questionário clínico apresentado para a subscrição dos seguros de vida.


t) No questionário clínico a executada AA e seu falecido marido CC prestaram por escrito declarações sobre o seu estado de saúde na data da celebração dos seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91.


u) Os seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91 continham cobertura principal de morte e cobertura complementar de invalidez absoluta e definitiva dos segurados, ou seja, a executada AA e o seu falecido marido CC.


v) Na proposta dos seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91 a executada AA e o seu falecido marido CC declararam:


“Os segurados autorizam expressamente a BES VIDA a inquirir junto de qualquer entidade que os tenha tratado e/ou examinado, a pedir todos os elementos clínicos e/ou médicos e/ou hospitalares necessários sobre o seu estado de saúde, relacionados com intervenções cirúrgicas, internamentos hospitalares, consultas médicas e exames complementares de diagnóstico, para efeito de aceitação ou recusa da celebração do contrato de seguro do ramo vida, ou para efeito de apuramento da existência de falsas declarações sobre o estado de saúde dos segurados susceptíveis de influenciarem a decisão de aceitação do contrato de seguro do ramo vida e de gerarem a anulabilidade deste. Os segurados declaram expressamente que esta autorização foi prestada por forma inteiramente livre e com integral informação sobre os fins a que se destina.”


w) Consta do artigo 15.1 das condições gerais dos seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91 que “ O pagamento das importâncias seguras será efectuado nos escritórios da seguradora na localidade da emissão deste contrato, após entrega pelo tomador de seguro ou beneficiários do certificado individual, documento de identificação do segurado/pessoa segura (ou dos segurados no caso do seguro ser sobre duas vidas), documentos comprovativos da qualidade de beneficiário e certificado de óbito do segurado/pessoa segura. Se a morte for devida a acidente poderão ser solicitados outros documentos elucidativos do acidente, nomeadamente, policiais, judicias ou hospitalares. A seguradora poderá também exigir atestado médico, indicando as causas e evolução da doença que ocasionou o falecimento”.


x) Consta do artigo 9.1 das condições gerais dos seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91 que “O não pagamento do prémio dentro de 30 dias posteriores ao seu vencimento concede à seguradora nos termos legais, a faculdade de após pré-aviso por carta com pelo menos 8 dias de antecedência, e dirigida simultaneamente ao segurado/pessoa segura e tomador de seguro proceder à anulação da apólice e/ou dos respectivos certificados individuais.


y) Com referência ao seguro de vida titulado pela apólice nº ...90 a executada AA e o seu falecido marido CC não pagaram os prémios de seguro relativos a Abril e Maio de 2010 no valor de 24,91€ cada um.


z) Com referência ao seguro de vida titulado pela apólice nº ...91 a executada AA e o seu falecido marido CC não pagaram os prémios de seguro relativos a Abril e Maio de 2010 no valor de 1,06€ cada um.


aa) A conta bancária da executada AA e do seu falecido marido CC por eles indicada para pagamento dos prémios de seguro não se encontrava provisionada para o pagamento dos referidos prémios de seguro nas respetivas datas de vencimento.


ab) A falta de pagamento dos prémios de seguro manteve-se após 4/6/2010.


ac) As executadas AA não fizeram chegar à embargante:


- o certificado de óbito relativo ao segurado CC;


- o atestado médico com indicação das causas e evolução da doença que ocasionou o falecimento do segurado CC.


Do requerimento das executadas AA e BB de 8/5/2023:


ad) O domicílio dos segurados, à data da celebração dos contratos de seguro era ....


Do requerimento das executadas AA e BB de 9/6/2023:


ae) Entre 07/08/2011 e 19/08/2011, a 1ª executada deslocou-se pessoalmente à sucursal em ..., do Banco Espírito Santo, S.A., onde havia contratado os seguros de vida com BES VIDA com vista a acionar os direitos emergentes do contrato de seguro de vida por óbito de seu marido.


af) Na ocasião referida em ae) a 1ª executada entregou no do balcão do Banco Espírito Santo, S.A a certidão de óbito e os documentos de identificação da própria e da BB.


Apurou-se, ainda, que:


ag) Em 2015 a BES-VIDA, Companhia de Seguros S.A. (NIPC: ...56), com sede na Av. ... ..., passou a denominar-se G..., S.A. (NIPC: ...56), com sede na Avenida ....


ah) Em 2020 a seguradora G..., S.A. foi adquirida por GamaLife - Companhia de Seguros de Vida, S.A. (NIPC: ...56), com sede na Rua ....


b) Factos não provados.


Com relevância para a decisão a proferir, não se demonstrou que:


Da petição de embargos das executadas AA e BB:


A 1ª executada e marido mantinham a contra referida em l) aprovisionada para fazer face ao pagamento quer das prestações mensais decorrentes de ambos os financiamentos bancários, bem assim como do pagamento dos seguros associados (Seguro Vida e Seguro BES Casa).


Da petição de embargos da GAMALIFE, S.A.:


2) A embargante aceitou celebrar os seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91 com base nas declarações sobre o seu estado de saúde da executada AA e do seu falecido marido CC constantes dos questionários clínicos.


3) Os documentos referidos em ac) destinavam-se a apurar da existência de falsas declarações do segurado CC sobre o seu estado de saúde no momento da celebração dos seguros de vida titulados pelas apólices nºs ...90 e ...91 e consequente pagamento dos capitais seguros.


4) A embargante Seguradora enviou para o domicílio da executada AA e do seu falecido marido CC, cartas datadas de 04/06/2010 dirigidas a ambos em que lhes concedeu aviso prévio de 30 dias para efectuação do pagamento dos indicados prémios de seguro, sob pena de resolução do seguro de vida


Do requerimento das executadas AA e BB de 9/6/2023:


5) Na ocasião referida em ae) a 1ª executada entregou as apólices de seguro e participou à seguradora o óbito do CC com vista ao pagamento dos capitais seguros relativos aos seguros de vida titulados pelas apólices n.º ...90 e n.º ...91.


6) Só com a citação das executadas para a execução passaram estas ter conhecimento de que os capitais em dívida não se encontravam pagos pela seguradora.


3.2. Fundamentos de direito.


3.2.1. Fundamentos da prescrição e da sua suspensão.


É incontroverso, face aos factos adquiridos para o processo que entre a recorrente AA e o seu falecido cônjuge e o antecessor do exequente, recorrido, foram concluídos dois contratos que realizam uma função de troca – e de troca de dinheiro por dinheiro: o contrato de mútuo oneroso, que é o contrato pelo qual o mutuante entrega, ou se obriga a entregar, ao mutuário, uma determinada quantia em dinheiro, obrigando-se o mutuário a restituir tanto do mesmo género e qualidade e a pagar a renumeração convencionada: os juros (art.ºs 1142.º e 1145.º, n.º 1, do Código Civil)5. Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.


Apesar da segurança que disponibiliza o património do devedor – e os diversos instrumentos ordenados para proteger preventivamente o direito de crédito em função da evolução desse património – a verdade é que essa massa de bens pode não ser – ou pode deixar de ser – tranquilizadora para o credor. E pode sê-lo objectivamente – mas o credor não confiar no devedor ou temer uma crise patrimonial deste.


Para proteger e garantir a satisfação do seu crédito, o credor pode recorrer, designadamente, a soluções externas ao vínculo obrigacional e, que, portanto, lhe disponibilizam uma tutela mais forte do que a que é oferecida pelo património do devedor. Não raro, a constituição pelo devedor, sobre bem integrado no seu património, não é considerada suficiente pelo credor que, mesmo nesse caso, exige do devedor uma solução externa que lhe disponibilize um meio ágil de satisfação do seu crédito, para além do património deste, que constitui a garantia geral, e, portanto, que esconjure o perigo ou lhe diminua o risco do não cumprimento do devedor ou de não conseguir, à custa do património deste, a realização coactiva, especifica ou por equivalente, da prestação. Esta atitude defensiva do credor cria uma garantia, através da qual pretende tornar efectiva a satisfação do seu crédito, aumentar a probabilidade da efectiva realização da prestação correspondente.


Esse resultado pode ser conseguido, por exemplo, através da adjunção de um novo devedor que possa responder pelo devedor primitivo pelo cumprimento da obrigação ou pelas consequências do seu não cumprimento. Ainda que a garantia disponibilizada pelo novo devedor seja meramente pessoal, ocorre um alargamento da massa de bens responsáveis e, correspondentemente, um reforça quantitativo da probabilidade de satisfação do crédito. É claro que o valor económico da garantia, quando esta seja meramente pessoal, está na dependência directa da capacidade de cumprimento do terceiro, dador da garantia. Isto explica que seja comum que o credor exija que esse terceiro goze de reconhecida solvabilidade económica.


Seja a garantia meramente pessoal ou real, sempre que ela provenha de terceiro, o credor passa a beneficiar de uma posição jurídica adicional, de um novo meio orientado para a satisfação do seu crédito. A garantia não é, porém, um meio de satisfação do crédito, dado que, evidentemente, a sua constituição não envolve a satisfação do crédito6. Esta situação dá, ou pode dar lugar, muitas vezes, a situações de sobregarantia ou de sobrecobertura, portanto, de desproporção, desrazoável ou injustificada entre o valor do crédito garantido e o valor dos bens ou dos patrimónios dados em garantia.


Assim, por exemplo, no tocante à concessão de crédito para aquisição ou realização de obras em casa própria, a lei determina que o empréstimo será garantido por hipoteca da habitação adquirida, construída ou objecto das obras financiadas, incluindo o terreno (art.º 23.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de Novembro). Mas logo esclarece que em reforço daquela garantia real, poderá ser constituído seguro de vida, do mutuário e do cônjuge de valor não inferior ao montante do empréstimo ou outras garantias consideradas adequadas ao risco do empréstimo pela instituição de crédito mutuante (art..º 23.º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro). Neste contexto legislativo, não é de estranhar a sistemática prática bancária de conceder crédito bancário para compra de habitação própria – e mesmo para a aquisição de bens de consumo – subordinada à exigência de contracção de um seguro de vida do mutuário. Para explicar esta prática generalizada não será decerto estultícia fazer notar o facto de o banco e o segurador pertencerem ao mesmo grupo ou conglomerado financeiro - o que faz criar a suspeita de que muitas vezes a concessão de crédito é mero pretexto para inculcar outros produtos, designadamente, o seguro.


Ora, no caso é indiscutível que entre a recorrente AA e o seu falecido cônjuge e a antecessora da interveniente e embargante, Gamalife, SA, foram concluídos em 3 de Julho de 20087, dois contratos de - e dois contratos de seguro de vida8.


Diz-se contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro, a que assume esse risco e percebe a remuneração – prémio – diz-se segurador; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida é o segurado – que pode ou não coincidir com o tomador do seguro (art.ºs 426.º e 427.º do Código Civil, 1.º, 16.º, n.º 1, e 24.º n.º 1, da LCS, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril)9.


Enquanto o segurador e o tomador do seguro assumem, por definição, a posição de partes num contrato de seguro, outras pessoas podem ocupar a posição de parte ou de terceiro nesse mesmo contrato. Entre estas avulta, evidentemente, a figura do segurado – o sujeito que se situa dentro da esfera de protecção directa e não meramente reflexa do seguro, de quem pode afirmar-se que está coberto pelo seguro. O segurado é, portanto, aquele por conta de quem o tomador celebra o seguro. Nos casos subjectivamente mais simples, o segurado será o próprio tomador do seguro, o tomador-segurado; nos demais casos, estar-se-á face a um ou mais terceiros-segurados. Numa palavra: segurado não é quem contrata o seguro, mas sim quem por ele fica coberto.


O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. O universo de factos possíveis, previstos no contrato de seguro, cuja verificação determinará a realização da prestação por parte do segurador, representa a cobertura-objecto do contrato; o estado de vinculação do segurador, durante o período convencionado no contrato, conducente à constituição de uma obrigação da prestar, em caso de ocorrência daqueles factos, representa a cobertura-garantia.


A delimitação daquele universo de factos – que compõem a cobertura-objecto – é feita, em regra, segundo a técnica da definição primária da chamada cobertura de base e da subsequente descrição de sucessivos níveis de exclusões. Estas exclusões não são, em princípio, cláusulas de exclusão da responsabilidade – mas regras que definem o âmbito de cobertura do seguro. Essa delimitação pode ser feira positiva e negativamente, e dentro da delimitação negativa, através de exclusões objectivas – v.g., guerra – ou subjectivas, como por exemplo, o sinistro deliberadamente provocado. O que não é lícito é, através das exclusões, desvirtuar o objecto do contrato, i.e., modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado.


Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador, dado que assumiu a cobertura do risco, deve proceder à liquidação desse sinistro, ou seja, realizar a prestação contratualizada em caso de verificação, total ou parcial, do evento compreendido no risco coberto pelo contrato. Tratando-se de seguro de prestação convencionada, o segurador deve prestar o valor previamente fixado no contrato.


O contrato de seguro releva, largamente, da autonomia privada. De harmonia com o Código Comercial, o contrato de seguro regulava-se pelas estipulações, gerais e especiais, da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência pelas disposições do Código Comercial (art.º 426.º); de acordo com a LCS, o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, com os limites indicados na lei (art.º 11.º).


O conteúdo do contrato – da apólice – é muito complexo dado que deve conter toda uma série de elementos, entre os quais, o objecto do seguro, a sua natureza e valor, o risco contra que se faz o seguro, a quantia segurada e o prémio do seguro (art.ºs 426.º § 1º do Código Comercial, e 37.º da LCS).


Portanto, é, em regra, o contrato que recorta – em razão da actuação pelas partes da sua autonomia privada – a sua exacta posição jurídica, as precisas prestações a que reciprocamente se vincularam.


Já se observou que seguro é o contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico, da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro, dos meios adequados à supressão ou à minimização das consequências negativas, reais ou potenciais, da verificação de um determinado facto. O prémio – que é a fundamental obrigação a que o tomador do seguro se obriga pelo contrato de seguro – consiste no reverso ou contrapartida da cobertura do risco: se a obrigação fundamental do segurador consiste no dever de liquidar o sinistro, a obrigação fundamental do tomador do seguro resolve-se no dever de pagar o prémio convencionado (art.º 51.º da LCS). O sinistro equivale à verificação, total ou parcial, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador (art.º 99.º da LCS). O sinistro reporta-se, pois, à ocorrência daquele facto ou conjunto de factos que, desencadeando a garantia contratual de cobertura de risco, origina, para o segurador o dever de realizar a prestação convencionada.


Participado o sinistro – pelo tomador, segurado ou beneficiário, conforme o caso – e apurada a obrigação do segurador, tem lugar a liquidação do sinistro. Essa liquidação resolve-se, o seguro de pessoas, na realização de uma prestação de valor predeterminado ou de uma prestação indemnizatória (art.º 175.º. n.º 2, da LCS). Se a prestação tiver natureza indemnizatória, na fixação do seu montante, assume especial relevo o chamado princípio indemnizatório (artº 128.º e ss. da LCS). Prestação que, no tocante à sua forma, pode consistir numa prestação única ou em várias fraccionadas, em dinheiro ou em espécie, nos termos do contrato.


Relativamente ao momento da realização, pelo segurador, da sua prestação, a regra é a seguinte: constatado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro até ao limite do dano, quando se trate de seguro de danos: é a indemnização ou pagamento (art.º 102.º, n.º 1, da LCS). Note-se que, na lógica da lei, a vinculação do segurador ao dever de indemnizar está na dependência da constatação do sinistro: o segurador – declara terminantemente a lei – obriga-se a satisfazer a prestação contratual, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, podendo ainda ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro (art.º 102.º, n.ºs 1 e 2, da LCS). Esta previsão pode dar azo a dilações, demora a que acrescerá, além disso, o prazo de 30 dias para que a obrigação do segurador efectivamente se vença (art.º 104.º da LCS). O lesado prudente poderá evitar aquela dilação através da interpelação do segurador (art.º 805.º, n.º 1, do Código Civil)10. Rigorosamente, porém, na indemnização ou pagamento devida pelo segurador não se está perante uma responsabilidade civil, mas apenas perante uma prestação puramente contratual (art.ºs 102.º, n.º 1, e 108.º da LCS). Em rigor não estamos aqui, sempre, perante o instituto da responsabilidade civil – mas apenas em face do funcionamento de um contrato: o facto de muitas vezes estar em jogo a supressão de um dano, leva a que se fale em indemnização – a que a LCS chama pagamento – mas a verdade é que a prestação do segurador nem sempre se reveste de uma finalidade indemnizatória, pelo que a utilização da expressão indemnização não decide da verdadeira natureza da prestação – contratual – do segurador (art.º 102.º, n.º 1).


A prestação devida pelo segurador vence-se decorridos 30 dias sobre a constatação do sinistro e o conhecimento dos danos, embora se admita tratamento mais favorável (art.ºs 13.º e 104.º da LCS). Completado esse prazo sem que o segurador realize aquela prestação, este fica, nos termos gerais, constituído em mora11, que dá lugar, tratando-se de uma obrigação pecuniária, ao vencimento de juros à taxa legal (art.ºs 102.º., n.º 3 da LCS, 799.º, n.º 1, 804.º, n.ºs 1 e 2, e 806 nºs 1 e 2, do Código Civil, e 1.º da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril). Realmente, se a obrigação do segurador for pecuniária, o segurado não precisa de provar que teve prejuízos – mas em contrapartida, dado que a responsabilidade do segurador é uma responsabilidade ex-contractu, ao segurado não é lícito exigir do segurador indemnização superior à fixada no regime de indemnização à forfait, alegando que a mora lhe causou, no caso concreto, prejuízo mais elevado (art.º 806.º, n.º 3, a contrario, do Código Civil). Em qualquer caso, a ética manda que o segurador, enquanto comerciante diligente, não retarde artificial ou dilatoriamente o pagamento da indemnização. Mas deve notar-se que sobre o segurado ou tomador do seguro - conforme o caso - recai, também, o dever, ex-bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua ampliação, podendo o segurador, em última extremidade, não responder pelos danos que o segurado, poderia ter prevenido e não evitou (art.º 762.º, n.º 2, do Código Civil)12.


A alguns seguros, designadamente os seguros de vida, é assinalada pela doutrina e pela jurisprudência, ao contrato, a natureza de contrato a favor de terceiro13.


O contrato a favor de terceiro constitui uma situação jurídica complexa, decomponível em três relações: uma relação de cobertura ou de provisão; uma relação de atribuição ou de valuta; uma relação de execução (art.º 443.º, n.º 1, do Código Civil). A relação de cobertura compreende todos os elementos que levam o promitente a obrigar-se face ao terceiro, v.g., seguro; a relação de atribuição estabelece-se entre o promissário e o terceiro, que adquire o direito à prestação, independentemente de qualquer aceitação e mesmo de conhecimento (art.º 441.º, n.º 1, do Código Civil); a relação de execução é que liga o promitente ao terceiro, através da qual aquele executa a determinação do promissário. Por força do contrato, o promissário adquire o direito a exigir do promitente a prestação ao terceiro (art.º 444.º, n.º 2. do Código Civil).


Na espécie do recurso, a obrigação de restituição das quantias mutuadas e da remuneração acordada foi garantida, não apenas pelas hipotecas do imóvel dos mutuários, mas também por seguros de vida desses mesmos mutuários, designadamente, contra os riscos da sua morte e da sua invalidez, absoluta e definitiva.


Porém, estes seguros oferecem uma particularidade relevante: como linearmente decorre das respectivas apólices, trata-se de dois seguros de grupo e de dois seguros de grupo contributivos: o banco mutuário é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio; os mutuários do crédito concedido são o grupo segurável – i.e., as pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum; as pessoas seguradas são aquelas cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora depois da recepção das declarações de adesão ao grupo, quer dizer, do documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro – e que contribuem, no todo ou em parte, para o pagamento do prémio (art.ºs 1 b, g) e h) do Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, vigente a tempo da contracção dos seguros, 76.º, e 77.º, n.ºs 1 a 3, da LCS)14.


O banco é o tomador do seguro e, portanto, o beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro, e é para ele que reverte a prestação a que o segurador, por força do contrato, se vincula – excepto se, claro está, se o capital seguro exceder o valor que lhe é devido, caso em que o excesso deve reverter para o segurado ou, em caso de morte deste, para os seus herdeiros.


Face a este recorte estrutural, o seguro de grupo contributivo, não se constrói como um contrato a favor de terceiro: os segurados não o são porque aderem ao contrato concluído entre o segurador e o banco mutuante; este também não o é dado que é parte no contrato, aberto à adesão de todos os que contraírem junto do banco contratos de mútuo15. Decerto que o mutuante é o principal beneficiário do seguro, mas os segurados – ou os herdeiros destes no caso de verificação do risco da morte destes – também o são e, por virtude dessa qualidade, é indubitável que lhes assiste o direito de exigir do segurador a realização da prestação, ainda que a favor do mutuante visto que a satisfação por aquele do valor em dívida os liberará da sua obrigação de proceder ao seu pagamento. Como quer que seja, os seguros surgem, por força da sua associação ao contrato de mútuo, como reforço da hipoteca e, portanto, assume, também eles, a nítida função de garantia e a clara natureza de garantia pessoal atípica.


No caso do recurso, é patente que as recorrentes acham que quem está ou deve ser vinculado à obrigação de restituir à exequente os capitais mutuados em dívida e o acrescido – designadamente os juros – é o segurador, a interveniente principal e também executada, Gamalife, SA, por, no seu ver, se ter verificado o sinistro – a morte do co-mutuário, CC - convencionado nos contratos de seguro, vigentes na data da ocorrência daquele mesmo sinistro, razão pela qual provocaram a intervenção a seu lado, como executado, daquele mesmo segurador.


A prestação da garantia pessoal representada pelo seguro – que, no caso, como é da experiência comum, foi imposta pelo antecessor da exequente aos mutuários como condição de conclusão dos contratos mútuo, imposição que compreendeu igualmente o seu exacto conteúdo e o segurador, nitidamente ligado ao mutuante – visou, de um aspecto, assegurar a satisfação ao último dos créditos emergentes dos contratos de mútuo, e de outro, facilitar, em caso de verificação do sinistro, a sua realização, em face da comprovada capacidade financeira do segurador; nestas condições, deve entender-se que vontade usual das partes é a de que o credor procure primeiro a sua satisfação através da garantia disponibilizada pelo seguro. Mesmo à luz deste entendimento do problema – de que com a imposição da celebração do contrato de seguro, do seu conteúdo, v.g. âmbito da cobertura, e da indicação irrevogável do beneficiário, se quererá, em regra, que, verificado o sinistro, o mutuante se pague por esse meio - decerto que a contracção do seguro não extingue quaisquer outras garantias que o devedor – ou terceiro - tenha prestado nem sequer, evidentemente, o crédito garantido. Dado, porém, o contexto em que o contrato de seguro é concluído e a sua finalidade, é razoável entender que a vontade usual ou presumida das partes será a de que o credor procure pagar-se primeiro – verificado, evidentemente, o sinistro – à custa do segurador. Independentemente da exactidão desta última consideração, a verdade é que a exigência de que o mutuante procure, primeiro, a satisfação do seu crédito junto do segurador, não deixa sem tutela aquele credor, dado que ele sempre poderá afastar a excepção, demonstrando que, no caso concreto, não lhe é comprovadamente possível obter aquela satisfação junto do segurador, porque, por exemplo, o contrato de seguro é inválido, ou foi suprimido, v.g.,, por resolução, ou não se verificam as condições convencionadas para que aquele se constitua no dever prestar a que se vinculou pelo contrato, como, v.g., que se não verificou o sinistro ou que o sinistro verificado não se compreende no âmbito da cobertura do seguro ou dela deve considerar-se excluído. De resto, é ele que estará em melhores condições de o fazer, dado que foi ele que impôs a contracção do seguro, modelou o seu conteúdo, escolheu o segurador e é ele o beneficiário primeiro da prestação convencionada no contrato.


A arquitectura do seguro de grupo revela uma estrutura triangular. Por força dela, tanto o tomador do seguro e o beneficiário do seguro como o segurado podem demandar o segurador e exigir dele a prestação convencionada, nada impondo, portanto, que só o segurado possa – ou deva - demandar o segurador. Assim como nada impede que aquele convença o tomador ou o beneficiário do seguro de que o segurador se constituiu no dever de prestar. E é-lhe lícito fazê-lo na contestação à execução que lhe tenha sido movida pelo mutuante, dado que a oposição à execução mais não é que um processo declarativo instaurado pelo executado, contra o exequente, que corre por apenso à execução (art.º 732 n.º 1, proémio, do CPC).


Porém, no caso a exequente, sucessora do primitivo mutuante, accionou executivamente não o segurador – mas os mutuários, segurados, opção que justificou com a alegação de que os contratos de seguro se mostravam extintos, por resolução, promovida pelo segurador, por falta de pagamento dos prémios. Como decorre da sentença que julgou os embargos opostos pelo segurador – e que neste segmento, por não ter sido objecto de impugnação, constitui res judicata – uma tal justificação não é exacta ou verdadeira: os contratos de seguro, designadamente na data da verificação do sinistro, mantinham-se em vigor. Simplesmente, segundo aquela mesma sentença – e implicitamente, também de harmonia com o acórdão impugnado - a obrigação de prestar do segurador foi atingida pela prescrição por terem decorrido mais de cinco anos sobre a data em que as recorrentes tomaram conhecimento do direito de exigir daquele a realização, ainda que a favor do exequente, da prestação convencionada nos contratos de seguro, consequente à verificação do sinistro contratualmente previsto: a morte de um dos co-mutuários.


A fundamental obrigação de pagamento da indemnização do segurador, seja o seguro de danos ou de pessoas, prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular do direito a essa prestação teve dele conhecimento (art.º 121.º, n.º 2 da LCS). Adoptou-se, portanto, quanto ao início do prazo, o sistema subjectivo: tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos a seu direito.


A prescrição – de que o Código Civil não dá uma noção – assenta num facto jurídico involuntário: o decurso do tempo. A ideia comum que lhe preside é a de uma situação de facto que se traduz na falta de exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou porventura devendo actuar para a realização do direito, se abstém de o fazer16.


O instituto da prescrição visa, no essencial, tutelar o devedor, relevando-o da prova. À medida que o tempo passa, o devedor terá maior dificuldade em fazer a prova do cumprimento. Na falta da prescrição, qualquer pessoa poderia ser demandada novamente a todo o tempo por débitos que foi pagando ao longo da vida. A não ser a prescrição, o devedor ficaria numa posição permanentemente fragilizada, dado que nunca estaria seguro de ter deixado de o ser. Complementarmente, a prescrição serve ainda objectivos de ordem geral, atinentes à certeza e segurança jurídicas17. Fundando-se no princípio da não vinculação perpétua em que confluem razões várias e se debatem interesses contraditórios, cuja conciliação nem sempre é fácil, na prescrição, os direitos não são intrinsecamente a prazo e podem até tender para a infinitude, mas a ordem jurídica atribui à generalidade dos sujeitos passivos um meio de defesa contra a inércia prolongada dos titulares activos. Além da salvaguarda da posição dos titulares passivos há razões de ordem pública que subjazem a este regime, e que justificam a sua inderrogabilidade, já que também se protege, com este regime, a segurança no tráfico jurídico (art.º 300.º do Código Civil).


Verificada a prescrição, o seu beneficiário tem a faculdade de, licitamente, recusar a prestação a que estava adstrito (art.º 304.º, n.º 1, do Código Civil). Expirado o prazo da prescrição, o devedor, para que ela produza efeitos, tem o direito – potestativo – de a invocar, judicial ou extrajudicialmente, expressa ou tacitamente (art.º 304.º, n.º 2, do Código Civil). Invocada, pelo devedor, a prescrição produz este efeito fundamental: paralisação do direito do credor, visto que torna lícito ao devedor recusar o cumprimento, bem como opor-se, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art.º 303.º do Código Civil)


A prescrição não tem, portanto, uma eficácia extintiva, antes se limita a paralisar o direito do credor, dado que apenas confere o direito de a invocar: se este direito – potestativo - não for exercido, a obrigação mantém-se civil, não se produzindo quaisquer efeitos; se a prescrição for invocada, a obrigação converter-se-á em obrigação natural – como tal inexigível, mas com solutio retendi18.


O prazo prescricional corre, em princípio, seguida ou continuamente. A lei prevê, no entanto, causas várias de suspensão, que assentam na ideia de que, não obstante as exigências de certeza e segurança, a atitude passiva do credor se justifica em consequência das especiais circunstâncias que envolvem a situação concreta: fundamentando-se a prescrição também no propósito de sancionar a inércia do titular do direito, justifica-se que não corra enquanto se verificar uma causa que o impeça de exercer o direito ou que o coloque numa situação de extrema dificuldade em o exercer. Enquanto se verificar uma causa suspensiva, praescriptio dormiens, dado que o efeito da suspensão é não valer para a prescrição o tempo da suspensão, valendo, porém, o tempo anterior a esta, a que pode juntar-se o que decorrer depois de cessada a suspensão.


Uma causa – unilateral – da suspensão do prazo prescricional é a disposta a favor de menores: a prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou administre os seus bens e, ainda que o menor tenha representante legal ou administrador dos seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade (art.º 320.º, n.º 1, do Código Civil). No primeiro caso a suspensão justifica-se pela circunstância de o não exercício do direito pelo credor ser estranha qualquer inércia ou passividade, antes se explicando pela impossibilidade jurídica do seu exercício; no segundo, pela exigência de prevenir uma eventual negligência do representante legal do menor ou do administrador dos seus bens, que podem não ser solícitos na tutela, adequada, das posições jurídicas do representado ou administrado. Note-se, porém, que a eficácia da suspensão da prescrição, tal como sucede, de resto, com a interrupção, é limitada, em princípio, as pessoas atingidas pela causa suspensiva embora possa, indirectamente, afectar a situação jurídica de terceiros19.


Este regime não suscita particulares dificuldades no tocante à distribuição do ónus da prova – que, em princípio, deve observar os princípios da justiça distributiva – que obedece, mesmo na oposição à execução, às regras gerais.


Consabidamente, o nosso direito probatório material orienta-se pela chamada doutrina da construção da proposição jurídica ou teoria das normas – de harmonia com a qual a repartição desse ónus decorre das relações das normas entre si – e que, numa formulação simplificada, pode enunciar-se deste modo: cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribuiu um efeito favorável (art.º 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). A distribuição do ónus da prova é, por sua vez, determinante para estabelecer o ónus da alegação que vincula cada uma das partes: aquele ónus orienta a distribuição do ónus da alegação, dado que a parte apenas tem o ónus de alegar aquilo que terá o ónus de provar, pelo que o ónus da alegação e o ónus da prova são, em regra, coincidentes.


O princípio geral em matéria do ónus da prova apela, nitidamente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor. Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessem à existência actual do direito alegado – mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (art.º 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). Deste modo é, naturalmente, sobre o devedor que recai o encargo de provar a prescrição da obrigação, ou melhor, dos seus elementos estruturais: a não exigência do crédito pelo credor; o início e o decurso do lapso prescricional (art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil). Se o demandado conseguir provar estes dois elementos estruturais da prescrição – prescrição que sendo um facto que torna lícita a recusa do devedor em realizar a prestação objecto do direito de crédito alegado pelo autor, exequente ou pelo réu reconvinte é, ao mesmo tempo, fonte do direito potestativo invocado pelo demandado (devedor) de extinguir a relação obrigacional – passa a ser sobre o autor, exequente ou réu reconvinte que recai o ónus de provar o facto extintivo – v.g. a renúncia do devedor à prescrição ou a sua suspensão ou interrupção - do direito potestativo do direito invocado pelo demandado20.


É neste ambiente normativo, que se coloca o problema do carácter oficioso, ou não, do conhecimento da suspensão – e nos mesmos termos da interrupção - da prescrição e de cuja solução depende, em última extremidade, o sentido da decisão da revista.


3.2.2. Conhecimento ex-offício da suspensão da prescrição.


Vaz Serra é terminante na afirmação de que a suspensão da prescrição é de conhecimento oficioso: se, por exemplo, o credor exige a prestação do devedor e este alega a prescrição, mas esta esteve suspensa em virtude da menoridade do credor afigura-se dever o juiz conhecer oficiosamente da suspensão, a não ser que a falta de invocação desta pelo credor signifique renúncia ao seu crédito. Com efeito, a alegação da prescrição não tem base, desde que a prescrição esteve suspensa e não pode, portanto, o juiz considerar provada a prescrição21. A jurisprudência, tanto deste Supremo22 como das Relações não é acorde23.


A suspensão corresponde, decerto, a um facto impeditivo da prescrição e, portanto, o ónus da prova do facto com eficácia suspensiva onera o credor. Mas daqui não se segue, porém, como corolário que não possa ser recusado, que o tribunal esteja impedido de conhecer da questão caso, evidentemente, os factos indispensáveis estejam devidamente adquiridos para o processo. Ter o ónus da prova não é sinónimo de ter o exclusivo da prova; quer o tribunal quer os não onerados a podem produzir; ter o ónus da prova significa que é avisado ter a iniciativa da prova, com o escopo de evitar as consequências desfavoráveis da sua falta24.


Maneira que a circunstância de recair sobre o credor o ónus da prova dos factos relevantes da suspensão da prescrição não releva ou não é decisiva para a conclusão de que o tribunal pode ou não dela conhecer oficiosamente, quando não tenha sido invocada pelo credor. A solução do problema exige, assim, a ponderação de outros aspectos, sendo certo que da lei não resulta a inibição da apreciação oficiosa da existência de uma causa suspensiva da prescrição, quando esta última tenha sido expressamente alegada pelo devedor: tendo a suspensão a nítida natureza de excepção peremptória do direito potestativo de alegar a prescrição, não deixa de ser significativo que a lei, ao contrário do que sucede com a prescrição, não tenha imposto expressamente ao credor o ónus da invocação da sua suspensão.


Assim, alegada a prescrição por aquele a quem aproveita, o tribunal pode e deve apreciar – à sombra da sua liberdade de aplicação do direito – todas as circunstâncias que, emergindo dos factos adquiridos para o processo, sejam relevantes para a verificação, ou não verificação da excepção peremptória correspondente, incluindo os factos que a impeçam, como a suspensão ou a interrupção. Desde que constem do processo os factos necessários que permitam concluir pela existência de uma qualquer causa impeditiva da actuação da prescrição, ainda que não tenham sido alegados pelo credor e mesmo que este não tenha invocado essa causa impeditiva o tribunal pode, nesta eventualidade, aplicar a esses factos as normas adequadas para o efeito de retirar deles as devidas consequências no plano da procedência ou improcedência da excepção da prescrição de que, por ter sido objecto de expressa invocação, tem o dever de conhecer (art.ºs 5.º, n.ºs 1 a 3, e 608.º, n.º 2, do CPC)25. Se o processo evidencia uma causa suspensiva da prescrição, deve atendê-la, pois cumprindo-lhe decidir, por ter sido alegada, se há prescrição, cumpre-lhe apreciar se esta foi ou se encontra suspensa. Não depõe em sentido contrário – insiste-se – o efeito impeditivo da prescrição que decorre da suspensão – e, consequentemente a sua natureza de excepção peremptória do direito potestativo de alegação da prescrição - como é, de resto, confirmado pela existência de excepções peremptórias de conhecimento oficioso, seja por determinação expressa da lei, como sucede, v.g., com a caducidade referida a direitos indisponíveis – seja por inferência imposta pela supremacia dos valores imanentes estruturantes da ordem jurídica, como ocorre com o abuso do direito, quando tenha por efeito perimir ou impedir a pretensão a que foi oposto (art.ºs 333.º, n.º 1, e 334.º do Código Civil).


3.2.2. Nulidade substancial do acórdão recorrido.


O valor jurídico negativo da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia resulta da abstenção, injustificada, de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados. As questões que o tribunal não pode deixar de apreciar são não só aquelas que são colocadas pelas partes – mas também as de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, do CPC).


O tribunal deve, realmente, resolver tanto todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação como aquelas de que deva conhecer ex-offício, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução encontrada para outras (art.ºs 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal deve, pois, examinar toda a matéria de facto e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou dos pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. A nulidade que as recorrentes assacam ao acórdão impugnado resulta da infracção deste dever (art.º 615.º c), 1.ª parte, ex-vi art.º 666.º, n.º 1, do CPC).


Mas a propósito desta causa de nulidade da decisão há que ter presente o seguinte: não existe omissão de pronúncia, mas um error in iudicando, se o tribunal não aprecia uma qualquer questão com o argumento, por exemplo, de que ela não foi invocada ou de que não tem o dever de sobre ela se pronunciar: aquela omissão pressupõe uma abstenção não fundamentada de julgamento – e não uma fundamentação errada para não conhecer de certa questão. Efectivamente, uma coisa é o tribunal deixar de se pronunciar sobre uma questão, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção. E é precisamente isto que ocorre na espécie sujeita26.


Pelas razões indicadas, desde que a questão da suspensão da prescrição, por esta última ter sido invocada, é oficiosamente cognoscível, a Relação estava vinculada a dela conhecer, pelo que a razão que invocou para a não apreciar – a sua novidade - é errada, dado que, como se apontou, as questões de conhecimento oficioso constituem sempre objecto implícito do recurso não sendo, em caso algum, atingidas por qualquer preclusão. Um tal erro é, porém, um error in iudicando e não um error in procedendo, como é caracteristicamente aquele que subjaz à invalidade da decisão e o seu efeito é, portanto, não a anulação do acórdão impugnado, mas caso o fundamento do recurso se deva ter por procedente, a sua revogação e a sua substituição pela decisão correcta.


3.2.3. Concretização.


É incontroverso que, por força dos contratos de mútuo concluídos com a instituição financeira antecessora do banco exequente a recorrente e o seu cônjuge, CC, entretanto falecido, se vincularam, solidariamente, a restituir ao último, de modo fraccionado, as quantias mutuadas e, bem assim, a remuneração convencionada, i.e., os juros acordados, obrigação cuja satisfação coactiva, por virtude do não cumprimento de algumas das prestações de restituição acordadas, é objecto da execução (art.ºs 512.º e 513.º do Código Civil).


É também indiscutível que a recorrente e o seu cônjuge concluíram, com a antecessora da recorrida, Gamalife, SA, para garantia das obrigações de restituição das quantias mutuadas e de pagamento dos juros convencionados, pelo seu valor mínimo, dois contratos de seguros – e dois contratos de seguro de grupo contributivo, nos quais se convencionou, como cobertura principal, designadamente a morte dos mutuários, em que o banco mutuante figura na qualidade de tomador do seguro e, portanto, de beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro, e para quem deve reverter, verificado o sinistro, a prestação a que o segurador, por força dos contratos ficou adstrito. Sendo indubitável a verificação do sinistro – a morte do co-mutuário CC – na vigência dos contratos de seguro, não o é menos que segurador não cumpriu a prestação a que contratualmente se vinculou.


Também não oferece dúvida que, a executada BB, por virtude do óbito do co-mutuário CC, foi chamada, na qualidade de herdeira, à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do último, portanto, tanto na obrigação de restituição da quantia mutuada e de pagamento da remuneração convencionada que emerge dos contratos de mútuo, cuja satisfação coativa é pedida na execução - como no direito de exigir do segurador a realização da prestação pecuniária a que o último se obrigou (art.ºs 2024.º, 2025.º, n.º 1, 2026, 2027.º, 2030.º, n.ºs 1 e 2, 2032.º, n.º 1, 2131.º, n.º 1, a), e 2139.º, n.º 1, do Código Civil).


Esta prestação do segurador é, além de divisível, dada a sua natureza pecuniária, uma obrigação plural parciária activa – também denominada conjunta – dado que o devedor só pode exonerar-se pagando a cada credor a parcela que lhe caiba, sendo que as quotas dos segurados, que se sempre se presumiriam iguais, o são efectivamente, visto que os cônjuges participam injuntivamente, na proporção de metade, no passivo comum (art.ºs 534.º, 1.ª parte, e 1730.º, n.º 1, do Código Civil). No tocante aos herdeiros, as partes de cada um dos credores são fixadas proporcionalmente de harmonia com as respectivas quotas (art.º 534.º, 2.ª parte, do Código Civil). Assim, a executada BB, por virtude do óbito do co-mutuário CC, seu pai, e do seu chamamento, na qualidade de herdeira, à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do último, apenas assiste o direito de exigir do segurador a prestação correspondente à sua quota na herança do co-mutuário falecido (art.ºs 2024.º, 2025.º, n.º 1, 2026, 2027.º, 2030.º, nºs 1 e 1, 2032.º, n.º 1, 2131.º, n.º 1, a), e 2139.º, n.º 1, do Código Civil).


Para se subtrair ao cumprimento da sua obrigação, a recorrida, Gamalife, SA, segurador, opôs às executadas – e ao exequente - a excepção peremptória da prescrição, por terem decorrido mais de 5 anos sobre o sinistro e, portanto, sobre a data em que tomaram conhecimento do direito a exigir do segurador a respectiva prestação, que o Tribunal da 1.ª instância julgou procedente, com a consequente improcedência dos embargos opostos à execução pelas recorrentes e procedência dos que foram deduzidos, á mesma execução, pela recorrida, Gamalife, SA.


No recurso de apelação as recorrentes suscitaram a questão da suspensão da prescrição, mas a Relação, com fundamento em que se tratava de uma questão nova, recusou-se a apreciar a questão correspondente. Esta atitude da Relação é incorrecta. Realmente, desde que, pelas razões expostas, o tribunal deve, uma vez alegada a prescrição, conhecer oficiosamente da sua suspensão, apesar da novidade do problema, a questão constituía objecto admissível do recurso e deveria ter sido apreciada pela Relação, dado que o processo disponibilizava, para esse conhecimento, a indispensável base de facto: a menoridade da executada BB, invocada logo a petição inicial dos respectivos embargos. Efectivamente, de harmonia com a respectiva certidão de nascimento, junta logo com o requerimento executivo, aquela recorrente nasceu no dia ...de Agosto de 2006 e, portanto, só atingiu a maioridade legal, no dia 19 de Agosto de 2024 (art.ºs 122.º e 130.º do Código Civil). Como a prescrição, fundada na menoridade daquela recorrente, só se completa um ano depois do termo da incapacidade segue-se que, efectivamente, a obrigação do segurador não se encontra prescrita.


Simplesmente, a suspensão da prescrição que favorece o menor, é uma causa de suspensão, para além de unilateral, puramente subjectiva: ela só aproveita ao menor e não, designadamente no tocante às obrigações subjectivamente plurais, aos co-devedores. Quando um dos credores beneficia de uma causa de suspensão do prazo de prescrição e os outros não, isso significa que o devedor pode, perante os últimos, recusar licitamente o cumprimento, permanecendo, todavia, adstrito no tocante ao primeiro credor; neste caso, na prestação devida deve descontar-se a parcela correspondente aos créditos entretanto prescritos, contando – como é o caso – que a prestação devida a cada credor comungar da mesma natureza e for divisível (art.º 530.º, n.º 1, do Código Civil). O que significa que a suspensão da prescrição, considerada a divisibilidade da obrigação do segurador, dada a sua natureza pecuniária, só operou no tocante à quota-parte da executada BB na prestação desse mesmo segurador - e não também no tocante à quota-parte dessa mesma prestação de que era credora a recorrente AA. Dito doutro modo: a excepção peremptória da prescrição deve improceder – mas apenas relativamente à quota na prestação do segurador de que a executada menor é credora, pelo que a recorrida, executada e embargante, Gamalife, SA, se mantém vinculada, designadamente perante o exequente, ao dever de satisfazer a obrigação garantida - objecto do pedido executivo - na exacta medida da sua obrigação de prestar, emergente dos contratos de seguro, a que continua adstrita perante a recorrente BB.


Do que decorre a procedência dos embargos deduzidos pelas recorrentes e a improcedência dos opostos pela recorrida, Gamalife, SA – mas apenas no tocante à quota parte da executada BB na obrigação pecuniária cuja satisfação coactiva se visa com a execução, correspondente à quota daquela na prestação emergente dos contratos de seguro de que é devedora a executada interveniente.


O recurso deverá, pois, proceder – mas apenas parcialmente.


Do percurso argumentativo percorrido extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:


- Apesar do recurso constituir um meio de impugnação de decisões judiciais e não um meio de julgamento de questões novas, está salvaguardada a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, de matéria de conhecimento oficioso, pelo que o tribunal ad quem não só pode, como deve apreciar toda e qualquer questão oficiosamente cognoscível, ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida;


- A prescrição assenta num facto jurídico involuntário - o decurso do tempo – e a ideia comum que lhe preside é a de uma situação de facto que se traduz na falta de exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou porventura devendo actuar para a realização do direito, se abstém de o fazer;


- Apesar de o prazo prescricional correr, em princípio, seguida ou continuamente, a lei prevê causas várias de suspensão, que assentam na ideia de que, não obstante as exigências de certeza e segurança, a atitude passiva do credor se justifica em consequência das especiais circunstâncias que envolvem a situação concreta, designadamente, uma causa que o impeça de exercer o direito ou que o coloque numa situação de extrema dificuldade em o exercer;


- Invocada a prescrição por aquele a quem aproveita, o tribunal pode e deve apreciar todas as circunstâncias que, emergindo dos factos adquiridos para o processo, sejam relevantes para a verificação, ou não verificação da excepção peremptória correspondente, incluindo os factos que a impeçam, como a suspensão ou a interrupção;


- a prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou administre os seus bens e, ainda que o menor tenha representante legal ou administrador dos seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade;


- A eficácia da suspensão da prescrição é limitada às pessoas relativamente às quais se verifica;


- A omissão de pronúncia, enquanto causa de nulidade substancial da decisão, pressupõe uma abstenção não fundamentada de julgamento – e não uma fundamentação errada para não conhecer de certa questão.


As recorrentes e a recorrida, Gamalife, SA sucumbem reciprocamente, no recurso. Essa sucumbência torna ambas as partes objectivamente responsáveis, na exacta medida do seu decaimento, pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.º 1, do CPC).


4. Decisão.


Pelos fundamentos expostos, concede-se parcialmente a revista, revoga-se, em parte, o acórdão impugnado e, consequentemente:


1. Julga-se improcedente a excepção peremptória da prescrição invocada pela executada, recorrida, Gamalife, Companhia de Seguros de Vida, SA, no tocante à quota parte da executada BB, na prestação a que a primeira se vinculou por força dos contratos de seguro de vida que concluiu com a executada AA e o falecido cônjuge desta, CC;


2. Declaram-se procedentes os embargos opostos à execução pelas recorrentes AA e BB, e improcedentes os deduzidos pela recorrida, Gamalife, Companhia de Seguros de Vida, SA, mas apenas no tocante à quantia correspondente à quota-parte referida em 1.


Custas do recurso pelas recorrentes e pela recorrida, Gamalife, SA, na proporção da respectiva sucumbência.


Lisboa, 2024.09.17


Henrique Antunes (Relator)


Manuel Aguiar Pereira


Maria Clara Sottomayor


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1. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, págs. 138 e ss., e Freitas do Amaral, Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss.↩︎
2. A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 29.09.2020 (909/18), 08.10.2020 (4281/12), 07.07.2016 (156/12), 22.02.2004 (05B175) e de 14.05.1993, CJ, STJ, 93, II, pág. 62.↩︎
3. Acs. do STJ de 11.01.2024 (3547/17) e de 23.03.1996, CJ, 96, II, pág. 86.↩︎
4. Ac. do STJ de 12.07.2018 (2069/14).↩︎
5. João Redinha, Contrato de Mútuo, Direito das Obrigações, 3º volume, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, 1991, págs. 187 a 190.↩︎
6. Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Coimbra, 2000, págs. 46 e 47.↩︎
7. No dia 1 de Janeiro de 2009 entrou em vigor o Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, rectificado pelas Declarações de Rectificação n.ºs 32-A/2008, de 13 de Junho e 39/2008, de 23 de Julho, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro só entrou em vigor do dia 1 de Janeiro de 2009 (art.ºs 1.º e 7.º daquele diploma legal). O mesmo diploma revogou expressamente, entre outras normas, as constantes dos art.ºs 425.º a 462.º do Código Comercial, aprovado por Carta de Lei de 28 de Junho de 1888 e dos art.ºs 1.º a 5.º e 8.º a 25.º do Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho (art.º 6.º). Todavia, de acordo com a norma de direito transitório, formal e material, de que se fez acompanhar, o novo regime jurídico do contrato de seguro é aplicável, com algumas especificidades, no tocante aos contratos de seguro renováveis celebrados anteriormente, que subsistam à data da sua entrada em vigor, logo a partir da primeira renovação posterior, não sendo, porém, aplicável aos sinistros ocorridos entre a data da sua entrada em vigor e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa (art.º 2.º, n.º 2, e 3.º, n.º 1). Nestas condições, dado que, no caso do recurso, os apontados contratos de seguro seguro, de harmonia com as respectivas apólices, foram concluídos em 2007 e eram anualmente renováveis em 1 de Janeiro de cada ano, e subsistiam em 1 de Janeiro de 2009, tendo-se renovado em data posterior, e o facto da morte de um dos mutuários ocorreu em 2011, é-lhes aplicável o regime jurídico contido na LCS, designadamente, quanto ao aspecto crucial do prazo de prescrição aplicável à obrigação de prestar do segurador. Trata-se, de resto, de ponto que na revista não é objecto de controversão. Cfr., quanto ao problema da aplicação no tempo do novo regime jurídico do contrato de Seguro, Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres, Arnaldo da Costa Oliveira, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado, José Vasques e José Alves de Brito, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Coimbra, 2009, págs. 25 e 26.↩︎
8. A LCS classifica os contratos de seguro à luz de uma divisão fundamental: os seguros de danos e os seguros de pessoas (art.ºs 123.º a 174.º e 175.º a 217.º). Os seguros de danos são os contratos de seguro que têm por finalidade a cobertura de riscos relativos a coisas, bens materiais, créditos e outros direitos patrimoniais (art.º 123.º da LCS); dizem-se seguros de pessoas, os contratos de seguro que têm por finalidade a cobertura de riscos relativos à vida, saúde e integridade física de uma pessoa ou grupo de pessoas (art.º 175.º da LCS).O seguro de vida, que constitui o tipo dominante do seguro de pessoas, cobre um risco relacionado com a morte ou sobrevivência de uma pessoa (art.º 183.º da LCS). No seguro de acidentes pessoais – cuja regulação é, na essência obtida por remissão para o regime do seguro de vida – o segurador cobre o risco de verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível (art.ºs 210 e 211.º da LCS).↩︎
9. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 546, José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 120.↩︎
10. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 700.↩︎
11. José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 718.↩︎
12. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, cit., págs. 699 e 701.↩︎
13. Diogo Leite de Campos, Contrato a Favor de Terceiro, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 76 a 80, José Vasques, cit., págs. 122 e 123 e Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros, Principia, Cascais, 2006, pág. 68; Acs. da RP de 21.04.82, CJ, II, pág. 48, do STJ de 30.03.1989, BMJ n.º 385, pág. 563 e de 26.09.1990, Acs. Doutrinais do STA, n.º 348, pág. 1630, da RL de 18.09.2007 e da RC de 13.01.2009 www.dgsi.pt.↩︎
14. Calvão da Silva, Apólice Vida Risco – Crédito Habitação: as pessoas com deficiência ou risco agravado de saúde e o princípio da igualdade na Lei nº 46/2006, RLJ, Ano 136, pág. 160, Paula Ribeiro Alves, Estudos de Direito dos Seguros, Intermediação de Seguros e Seguros de Grupo, Coimbra, 2007, págs. 243 e ss. e Acs. do STJ de 10.05.2007 e 22.01.2009 e da RC de 13.01.2009, www.dgsi.pt. A autora citada define o contrato de seguro de grupo como o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, a que aderem, como pessoas seguras, os membros dum determinado grupo ligado ao tomador. Cfr. ops. cit. pág. 345.↩︎
15. Acs. do STJ de 10.05.2007, de 22.01.2009, www.dgsi.pt. e de 13.04.1994, BMJ n.º 436, pág. 339, e Paula Ribeiro Alves Estudos de Direito dos Seguros, Intermediação de Seguros e Seguros de Grupo, Coimbra, 2007, pág. 329. No sentido de que no seguro de grupo se está não perante um único contrato, mas sim face a uma pluralidade de contratos – o celebrado entre o tomador e o segurador e o que se estabelece entre o segurador e cada um dos segurados, Maria Inês de Oliveira, Martins, o Seguro de Vida Enquanto tipo Contratual Legal, Coimbra Editora, 2010, pág. 83, e Nuno Trigo dos Reis, “ Os deveres de informação no contrato de seguro de grupo”, www,isp.pt/exeres/CO7A30.CA6F-4C81-975D-46002195D32E.html.↩︎
16. José Dias Marques, Prescrição Extintiva, Coimbra, 1953, pág. 4.↩︎
17. António Menezes Cordeiro, Da Prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais, O Direito, Ano 133º, 2001, IV (Outubro-Dezembro), págs. 788 e 789. Não parece, assim, que a prescrição tenha por fundamento o interesse do credor, incitando-o a exigir o cumprimento das obrigações, e sancionando-o pela negligência na actuação do seu crédito como sustenta, por exemplo, Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Reimpressão, Coimbra, 1992, págs. 445 e 446. Como nota Menezes Cordeiro – loc. cit. - o interesse do credor é, sempre, o dispor do máximo de pretensões, podendo ordenar no tempo, de harmonia, com as suas conveniências, o exercício dos seus direitos.↩︎
18. António Menezes Cordeiro, Da prescrição do pagamento dos denominados serviços públicos essenciais, cit., págs. 803 a 805 e Tratado de Direito Civil Português, I, T, IV, Almedina, Coimbra, 2007 (reimpressão), pág. 172. Diferentemente, sustentando que a prescrição não converte a obrigação civil numa obrigação natural, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 381.↩︎
19. Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ n.º 106, pág. 103.↩︎
20. Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ n.º 105, nota n.º 299, pág. 151.↩︎
21. Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ n.º 106, pág. 144. Diferentemente, para António Menezes Cordeiro – Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 193 - a suspensão não é um elemento de conhecimento oficioso: nos termos gerais terá de ser invocada e demonstrada pela pessoa a quem aproveita – Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 193. Filipa Morais Antunes - Prescrição e Caducidade, Coimbra, 2008, pág., 119 - limita-se a assinalar que a questão é controversa.↩︎
22. No sentido da exigência da alegação, cfr. o Ac. de 22.06.2019 (4668/17); em sentido inverso, cfr. o Ac. de 14.12.2006 (3579/06). Sustentando o conhecimento oficioso da suspensão da prescrição nas chamadas leis Covid 19, embora com o fundamento de que se relacionava com constrangimentos no funcionamento do sistema de justiça, cfr. o Ac. de 11.07.2023 (3702/20).↩︎
23. Sustentando a necessidade da alegação, cfr. os Acs. da RL de 13.10.2008 (15/08), da RE de 24.04.2021 (2127/19) e da RP de 29.09.2009 (520-C/98); diferentemente, Acs. da RC de 30.11.2010 (637/09) e de 29.06.2021 (1633/20), e da RL de 04.10.2011 (320-C/2001).↩︎
24. Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Vol. I, 2017, pág. 421.↩︎
25. Júlio Gomes, Comentário ao art.º 303.º do Código Civil, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.º edição revista e actualizada, UCP Editora, 2023, pág. 910.↩︎
26. Ac. do STJ de 02.07.2024 (2363/21).↩︎