Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | ISABEL SÃO MARCOS | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS CRIME DE TRATO SUCESSIVO REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 05/23/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / PARTES CIVIS / REPARAÇÃO DA VÍTIMA EM CASOS ESPECIAIS. DIREITO PENAL – INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS POR CRIME / RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME. | ||
Doutrina: | - Claus Roxin, La reparación en el sistema de los fines de la pena, De Los Delitos y De las Victimas, Ad Hoc, Argentina, p. 154 a 156; - Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral, Editorial Notícias, p. 227, 291 e ss.; - Helena Moniz, Crime de Trato Sucessivo, Julgar, Online, Abril 2018; - José Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, Universidade Católica Editora, 2005, p. 617 e ss.; - Manuel Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 17.ª edição, 2009, Almedina, p. 245; - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, p. 162. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 82.º-A. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 129.º. ESTATUTO DA VÍTIMA, APROVADO PELA LEI N.º 130/2015, DE 04-09: - ARTIGO 16.º, N.º 2. CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 494.º, 496.º, N.º 3 E 562.º. | ||
Referências Internacionais: | DIRECTIVA 2012/29/EU, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 25-10-2012. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 06-10-2011, PROCESSO N.º 88/09.9PESNT.L1.S1; - DE 12-09-2012, PROCESSO N.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1; - DE 22-01-2013, PROCESSO N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1; - DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 595/12.6TASLV.E1.S1; - DE 22-04-2015, PROCESSO N.º 45/13.0JASTB.L1.S1; - DE 28-10-2015, PROCESSO N.º 735/14.0JAPRT.S1; - DE 26-01-2017, PROCESSO N.º 276/15.9JALRA.E1.S1; - DE 04-05-2017, PROCESSO N.º 110/14.7JASTB.E1.S1; - DE 22-03-2018, PROCESSO N.º 467/16.5PALSB.L1.S1; - DE 02-05-2018, PROCESSO N.º 156/16.0PALSB.L1.S1. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - Quanto à problemática atinente à unificação num só crime de trato sucessivo (também denominado de prolongado, protelado, protraído, exaurido), no essencial correspondente ao crime habitual, de uma pluralidade de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cometidos durante determinado lapso de tempo contra a mesma vítima, depois de breve hesitação, a alguma jurisprudência do STJ que havia acolhido tal solução tem vindo a pronunciar-se em sentido negativo. II - In casu, em cada uma das situações fácticas dadas como provadas houve da parte do arguido e ora recorrente renovação do desígnio criminoso de sorte que, sem em relação aos desígnios anteriores os que lhes sucederam se representam autónomos, inexistindo razões para se falar em unidade de resolução. III - O arbitramento de uma certa quantia a favor da vítima do crime, nos termos do art. 82.º-A, do CPP, correspondendo a uma pretensão do legislador orientada no sentido de acudir e obviar a uma situação de urgência determinada pela desprotecção da vítima, não tem de equivaler ao montante indemnizatório que, caso tivesse sido deduzido pedido de indemnização civil, seria fixado em conformidade com os critérios decorrentes dos arts. 483.º e segs. e 562.º do CC e 129.º, do CP. IV - Quantitativo “reparatório” que, na falta de previsão, na norma do art. 82.º-A, do CPP, de critérios legais, deverá ser fixado atendendo aos conceitos da lei civil, maxime à luz da equidade e ponderando o grau de desprotecção da vítima do crime e da culpabilidade do agente, as suas condições pessoais, a sua situação económica e também da vítima, e demais circunstancialismo com relevância para o efeito, em conformidade com o previsto nas normas dos arts. 494.º e 496.º, n.º 3, do CC. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: |
*** I. Relatório 1. No Tribunal Judicial da Comarca De ..., Juízo Central Criminal de ..., Juiz 3, e no âmbito do processo comum colectivo n.º 134/17.2JAAVR, o arguido AA foi julgado e a final condenado, por acórdão de 27.09.2018, no que releva para o caso aqui em apreciação, em autoria material e concurso efectivo: A – Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, números 1 e 2, e 177.º, número 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão [factos 4) a 10)]; B - Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, números 1 e 2, e 177.º, número 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão [factos 11) a 16]; C - Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, números 1 e 2, e 177.º, número 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão [factos 17) a 18-B)], e D - Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, números 1 e 2, e 177.º, número 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão [factos 21) a 23-A)]. Em cúmulo jurídico foi o arguido AA condenado na pena conjunta de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. Nos termos do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e 16.º, número 2 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º130/2015, de 04.09, o arguido AA foi ainda condenado a pagar à vítima BB (representada pelos seus pais até à maioridade), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros). 2. Inconformado com esta decisão, o arguido e responsável civil interpôs recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido por despacho de 08.11.2018. São as seguintes as conclusões que o arguido e demandado extraiu da motivação apresentada[1]: “1 – O recurso limita-se ao reexame da matéria de direito do Acórdão, à medida da pena e ao pedido de indemnização civil. 2 – O arguido, AA, foi condenado, pela prática, em autoria material e em concurso real, dos seguintes crimes: - um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão [factos 4) a 10)]; - um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 anos e 9 meses de prisão [(factos 11) a 16)]; - um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão [(factos 17) a 18-B)]; e - um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão [(factos 21) a 23-A)]. Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. ERRO DE DIREITO/ERRO DE ENQUADRAMENTO JURÍDICO 3 – Nos presentes autos, verifica-se um erro de direito ou erro de enquadramento jurídico, dado que a matéria de facto apurada não é idónea a ensejar parte da qualificação jurídica operada. 4 – Dá-se aqui por reproduzida a facticidade que o tribunal a quo deu como assente e que se mostra descrita na motivação. 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. 5 – Acolhe-se, na totalidade, por se mostrar acertada, a exposição jurídica, feita no Acórdão, relativamente ao bem jurídico tutelado pelo ilícito, ao significado que deve ser atribuído à expressão ato sexual de relevo e à agravante emergente da alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º 6 – Todavia, dissente-se do Acórdão na parcela em que considera existirem, em concurso efectivo, quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. 7 – Nesse perímetro, o Tribunal a quo desenvolveu as excogitações que se mostram relatadas na motivação. 8 – A propósito da questão em tela nos presentes autos, a jurisprudência tem pugnado, em situações similares, pela verificação do crime de abuso sexual de crianças, na conformação de crime de trato sucessivo. 9 – Pelo seu acerto e clareza, transcreveram-se na motivação as considerações tecidas no contorno de alguns Acórdãos dos Tribunais Superiores, com as quais o arguido concorda inteiramente. 10 – Diante dos pertinentes escólios e ponderando a matéria de facto apurada, divisa-se uma translúcida unidade resolutiva criminosa por banda do arguido, ou seja, um destacado dolo inicial, que permite acolher todos os factos naturalísticos que sobrevieram, a partir do primeiro, de forma sucessiva, homogénea e com inteira proximidade temporal – pela sobredita razão, pode afirmar-se, terminantemente, que o argumentário do Tribunal a quo não tem solidez e se mostra, por isso, friável. Senão veja-se 11 – Os actos praticados pelo arguido dirigiram-se, sempre, ao mesmo bem jurídico e à mesma vítima, de tal modo que todos preenchem o tipo legal de crime de abuso sexual de crianças agravado. 12 – Verifica-se, também, uma conduta absolutamente homogénea e iterativa do arguido, bem como uma saliente conexão espacial e temporal entre os diversos actos. Nesta esfera, cabe sinalizar o seguinte: 3 episódios ocorreram na residência do arguido e o quarto sobrechegou na zona de ..., junto a uma igreja; e os 4 actos concretizaram-se entre as proximidades do Natal de 2016 e meados de Fevereiro de 2017. 13 – A predita homogeneidade conforma-se prevalecente, na medida em que indicia uma clara unidade de motivação subjectiva do agente e uma incontroversa execução continuada do ilícito. 14 – As quatro condutas individualizadas por banda do arguido interseriram-se no contorno de uma determinação inicial, no seguimento da qual o arguido passou a procurar a menor para com ela manter relações sexuais. 15 – As violações plúrimas ao tipo legal de crime inscrevem-se na prática, em trato sucessivo, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. 16 – Ao não operar tal subsunção e ao fazer uma interpretação diversa da indigitada, conferindo autonomia e punição destacada aos quatro actos, o Tribunal a quo violou o estabelecido nos artigos 30.º e 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. 17 – Em vista dos factos firmados pelo Tribunal, o arguido apenas podia ter sido condenado, pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal – existe, por conseguinte, um erro de direito ou de enquadramento jurídico. MEDIDA DA PENA 18 – Neste recorte, deve atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção de futuros crimes, não podendo a medida da pena ultrapassar a medida da culpa (cf. os artigo 40.º, n.º 2, e 71.º, ambos do Código Penal). De outro lado, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e o tribunal deve atender, na determinação concreta da pena, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. 19 – No âmbito das exigências de prevenção, incluem-se aqui as vertentes da prevenção geral, negativa e positiva, e da prevenção especial. 20 – A fixação da pena há de assim cumprir uma função repressiva, aferida pela intensidade ou grau de culpabilidade, e satisfazer finalidades preventivas, de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. 21 – Na determinação concreta da pena, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. 22 – Neste particular, o Tribunal a quo atendeu ao seguinte: “- ao grau médio da ilicitude dos factos […], tendo em conta a idade da vítima à data (12 anos), não muito distante do máximo tutelado pela norma incriminadora (“menor de 14 anos”), evidenciando ela estar já desperta para a relação com o sexo oposto (os registos das redes sociais são disso exemplo), havendo, no entanto, que distinguir as situações em função das circunstâncias em que ocorrerem e da multiplicidade ou unicidade dos actos praticados em cada ocasião, com repercussões negativas na vida da menor BB, ainda que não haja indicações de consequências particularmente graves (a mesma veio a ser institucionalizada depois dos actos - facto 64). - à elevada intensidade do dolo, na modalidade de directo, com que o arguido AA actuou, querendo levar a cabo tais condutas, o que conseguiu. - ao percurso de vida e condições pessoais do mesmo, com uma infância e juventude em meio familiar relativamente estável e equilibrado, com ingresso e percurso regular no mercado de trabalho, cuja actividade laboral foi mantendo, incluindo na altura dos factos, além de estar integrado familiarmente e não haver indicadores de rejeição no meio habitacional (factos melhor descritos em B)). - à sua conduta anterior e posterior aos factos é positiva, pois que, além da referida integração familiar e social, as duas condenações criminais remontam a 1999 e 2000, por ilícitos de reduzida gravidade (condução sem carta, que depois obteve), o que não assume relevância em termos de passado criminal (factos C)). Ponderando todos estes elementos e tendo em consideração as elevadas necessidades de prevenção, designadamente de ordem geral, que neste tipo de ilícitos se fazem sentir, atenta a sua elevada frequência e o forte alarme social que provocam, especialmente quando se trata de vítimas de idades mais reduzidas (embora aqui não seja o caso), sendo que o arguido AA não tira benefício da sua postura em audiência e perante os factos (não assumindo qualquer um dos de natureza ilícita), não podendo beneficiar de eventual arrependimento e não manifestando sinais de autocensura e juízo crítico […]” [os realces/negritos são da nossa autoria.] e correspondem a 23 – No precípuo, merecem acolhimento as referidas ponderações jurídicas feitas pelo Tribunal. 24 – Não obstante, interessa ainda adicionar o seguinte: a conduta da vítima também se conformou reprovável; pelo tocante à intensidade do dolo, não se diga, como se fez no Acórdão, que o arguido agiu com elevada intensidade – tratou-se, antes, de uma intensidade um pouco acentuada; por fim, em relação aos antecedentes criminais, apesar da quase irrelevância que lhes foi conferida, cumpre aqui manifestar que é, no mínimo, surpreendente que as condenações em pauta continuem a constar do certificado de registo criminal do arguido. Com efeito, em face do estabelecido no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, não se antolha por que razão as preditas decisões ainda não foram canceladas definitivamente do certificado de registo criminal do arguido. 25 – Sendo certo que ao crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, corresponde uma moldura abstracta de pena prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses, entende-se equitativa a fixação ao arguido da pena de 5 anos de prisão. 26 – Todavia, mesmo que se considerassem os crimes perspectivados pelo Tribunal a quo, atendendo à imagem global dos factos, a pena única a aplicar também não devia extrapassar os 5 anos de prisão. O Tribunal não devia, por conseguinte, ter feito uma dosimetria, notadamente, aritmética, mas, antes, ponderar a valência dos factos na sua globalidade. 27 – Porém, tal pena deve ser substituída por uma pena não detentiva – a suspensão da execução da pena, que se mostra prevista no artigo 50.º do CP. A suspensão da execução da pena obedece a um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu previsível comportamento futuro, e tem um conteúdo pedagógico e reeducativo, direccionado a afastar o delinquente da criminalidade. 28 – Na situação sub examine, apesar da gravidade dos factos, incumbe objectar o seguinte: os factos conformam uma situação episódica na vida do arguido; o arguido está inserido familiarmente e sempre manteve ocupação profissional; e a conduta do arguido posterior aos factos dos autos, sucedendo que, nesse particular, pelo menos formalmente, nada de ilícito cumpre registar (mesmo considerando, abusivamente, as condenações premencionadas, a conduta do arguido anterior aos factos também não é motivo de censura minimamente relevante). 29 – Atenta a justaposição de tais especificidades, mostra-se bastante a censura do facto e a ameaça da pena para afastar o arguido da delinquência e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção, geral e especial, do crime. Por tal motivo, a execução da pena de prisão aplicada deverá ser suspensa pelo período de 5 anos, com sujeição a regime de prova. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL 30 – O presente recurso abrange também o pedido de indemnização em que o arguido foi condenado. 31 – Na situação apreciada, apenas podem ser perspectivados danos não patrimoniais. 32 – Nestes danos não patrimoniais, não há uma indemnização verdadeira e própria, mas antes uma reparação, uma atribuição de uma soma em dinheiro que se julga adequada para compensar e reparar transtornos, incómodos e ofensas, mediante o proporcionar de certo número de satisfações que as atenuem ou façam, de alguma forma, esquecer. 33 – O montante de indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, de acordo com critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular do direito de indemnização, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. 34 – Neste particular, cumpre sobrelevar: a particularidade de a menor, à data dos factos, ter 12 anos de idade, ou seja, estar relativamente próxima dos 14 anos; a circunstância de a conduta da vítima ter sido reprovável, uma vez que também contribuiu e aceitou esse tipo de relações; e o facto de não haver indicações de que tenham sobrevindo à BB consequências particularmente graves. 35 – Noutro plano, compete atender à particularidade de o arguido estar desempregado desde 12 de Maio de 2017, altura em que foi dispensado com direito a subsídio de desemprego até Outubro de 2018. 36 – Aplicando as considerações aduzidas ao caso em avaliação e atentas as respectivas coordenadas, a indemnização fixada à vítima configura-se exorbitante, devendo ser reduzida, em face da sua gravidade e dimensão, para 3500 €”. 3. Ao motivado e assim concluído pelo recorrente, respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido que concluiu no sentido da improcedência do recurso 4. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral-Adjunto, na oportunidade conferida pelo número 1 do artigo 416.º do Código de Processo Penal, também se pronunciou no sentido da improcedência do recurso. 5. Tendo sido dado cumprimento ao disposto no número 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, o arguido nada acrescentou. 6. Por não ter sido requerida audiência, foi o julgamento do recurso remetido para a conferência [artigo 419.º, número 3, alínea c) do Código de Processo Penal]. Colhidos os “vistos”, realizou-se a conferência, de onde foi tirado o presente acórdão. *** II. Dos Fundamentos II.1 – De Facto A matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido é a seguinte: A) 3) Na sequência deste reencontro, a mulher do arguido convidou a menor BB para ir passar alguns dias à sua casa, com ela, o arguido e os dois filhos de ambos, também menores de idade. ** II.2 – De Direito Face à motivação e às conclusões formuladas pelo recorrente [que, salvo as questões de conhecimento oficioso, são, como se sabe, as que definem e delimitam o objecto do recurso (número 1 do artigo 412.º do Código de Processo Penal)], constata-se que as questões que nas mesmas se colocam são as seguintes: A – Qualificação jurídica dos factos que, no entender do recorrente e ao invés do considerado pelo tribunal recorrido, configuram tão-só um crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, números 1, e 2, e 177.º, número 1, alínea b), todos do Código Penal; B – Medida judicial da pena que, no entender do recorrente, na procedência da questão anterior não deverá exceder cinco (5) anos de prisão e ser suspensa na respectiva execução, o mesmo havendo suceder ainda que se considere que é de manter a qualificação jurídica efectuada pelo tribunal recorrido; C - Montante fixado a título de reparação da vítima pelos prejuízos não patrimoniais sofridos e que, na opinião do recorrente, sendo exorbitante, deverá ser reduzido para € 3.500 (três mil e quinhentos euros). ** 2.1 - Da qualificação jurídica dos factos 2.1.1 Relativamente a esta questão sustenta, como visto, o recorrente que os factos tidos pelo tribunal recorrido como configurativos de quatro (4) crimes de abuso sexual de crianças agravado integram tão-só um crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças agravado. E isto, em suma, porque se os actos ilícitos praticados, dirigindo-se sempre contra o mesmo bem jurídico e a mesma vítima, inscreveram-se no quadro de uma “conduta absolutamente homogénea e interactiva do arguido …”e de “uma saliente conexão espacial e temporal …”, os quatro episódios ilícitos “interseriram-se no contorno de uma determinação inicial, no seguimento da qual o arguido passou a procurar a menor, para com ela manter relações sexuais”. Homogeneidade de conduta que, segundo o recorrente, indicia uma “clara unidade de motivação subjectiva do agente e uma incontroversa execução continuada do ilícito”. Ora, quanto a esta problemática atinente à unificação num só crime de trato sucessivo (também denominado de prolongado, protelado, protraído, exaurido), no essencial correspondente ao crime habitual[3], de uma pluralidade de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cometidos durante determinado lapso de tempo contra a mesma vítima, cabe anotar que, depois de breve hesitação, a alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[4] que havia acolhido tal solução tem vindo a pronunciar-se em sentido negativo. Desde logo porque, pressupondo o denominado crime de “trato sucessivo” [para além da reiteração de uma actividade ilícita, que poderá consumar-se em um ou mais actos, dos quais um só deles basta para preencher o respectivo tipo legal (como, no exemplo mais comum, acontece com o crime de tráfico de estupefacientes), desenvolvida de forma essencialmente homogénea e durante um certo lapso temporal] unidade de resolução (que não única resolução), vem entendendo a jurisprudência deste Supremo Tribunal que, tratando-se de crimes de abuso sexual de crianças, a aludida unidade resolutiva não se verifica. E não se verifica porque, para tanto, seria indispensável a ocorrência, entre o mais, de uma conexão temporal que permitisse admitir que o agente executou toda a actividade criminosa no quadro de um dolo inicial que, por não ter sido renovado, é comum a todos os actos ilícitos. Situação que, por regra e de acordo com os dados da experiência, maxime emocional, não acontece num caso com as especificidades do que se encontra em apreciação. E depois porque a prática reiterada de actos ilícitos integradores dos mencionados crimes de abuso sexual de crianças, não derivando decididamente de uma situação exógena ao agente e facilitadora do seu sucumbir criminoso, mas antes só podendo ter sido provocada, buscada, e delineada pelo mesmo agente, nunca terá como efeito a diminuição da sua culpa, mas antes a sua agravação … para mais quando, como na situação em análise, esteja em causa a fragilidade da vítima, uma jovem de doze anos idade, prima do arguido (que, contando então 37 anos de idade, era casado e pai de dois filhos menores), a quem se impunha o especial dever de a proteger, e nunca atentar contra a sua liberdade e autodeterminação sexual. E ainda porque − se com a alteração introduzida ao artigo 30.º do Código Penal pela Lei n.º 40/2010, de 03.09 (que lhe aditou o referido número 3) teve o legislador em vista apartar a possibilidade de a pluralidade de crimes contra bens eminentemente pessoais ser punida como um só crime continuado – mal se compreenderia que, por via de uma ficção do julgador quanto à existência de um dolo inicial único não renovado abrangendo todas as actuações ilícitas sucessivamente tidas pelo agente, se viabilizasse a sua punição por apenas um crime de trato sucessivo, assim se defraudando o propósito do legislador[5]. 2.1.2 Posto isto e revertendo ao caso sub juditio, temos por claro que em cada uma das situações fácticas dadas como provadas [provocadas, desenvolvidas e executadas pelo arguido, mediante o aproveitamento de circunstâncias várias, tais como: i) estando a família a dormir, introduzir-se na divisão da casa onde pernoitava a menor e, depois de fechar a porta à chave, manter com ela relações de sexo vaginal, anal, e oral – 1.º episódio; ii) com a autorização da mãe da menor ir buscá-la à escola e convencê-la a acompanhá-lo e, sob o falso pretexto de que necessitava de adquirir uma prenda para o seu cônjuge, conduzi-la ao campo e, numa barraca ali existente, manter com ela relações de sexo vaginal e anal – 2.º episódio; iii) indo buscar o pai da menor, que os acompanhou, para executar uma obra na garagem da sua própria residência, levar a menor para um quarto, sob o pretexto de carecer do seu auxílio para o limpar, e aí manter com ela relações de sexo vaginal – 3.º episódio; iv) sob o pretexto de carecer da sua ajuda para arrumar a dita garagem, convencer a menor a acompanhá-lo e com ela manter aí relações de sexo vaginal – 4.º episódio; em ocasiões diferentes (uma em Novembro ou Dezembro de 2016, duas em Janeiro de 2017 e outra em Fevereiro de 2017), em moldes não exactamente iguais e que importaram graus vários de lesividade do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora] houve, como é bom de ver, da parte do arguido e ora recorrente renovação do desígnio criminoso de sorte que, se em relação aos desígnios anteriores os que lhes sucederam se representam autónomos, inexistem razões para se falar em unidade de resolução. Ora se assim sucede, não constituindo os aludidos ilícitos uma parcela do todo criminoso nem tão pouco uma fracção em que porventura se houvesse desdobrado o complexo ilícito em causa, integrador dos quatro (4) crimes de abuso sexual de crianças agravado, deverão os mesmos ilícitos ser punidos autonomamente, como bem se decidiu no acórdão sob impugnação. Improcede, pois, o recurso neste segmento. ** 2.2 – Das Consequências Jurídicas dos Crimes 2.2.1 – Da Pena Partindo do pressuposto de que aquela sua pretensão (relativa à subsunção da sua conduta ao apelidado “crime de trato sucessivo”) havia de merecer acolhimento, sustenta o recorrente que a pena a aplicar-lhe pelo mencionado “crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo”, deverá situar-se em cinco (5) anos de prisão, sendo que, quando assim se não entenda, em igual medida há-de fixar-se a pena conjunta a aplicar-lhe pelos referenciados quatro (4) crimes de abuso sexual de crianças agravado. E isto considerando o condicionalismo em que ocorreram os factos ilícitos por cuja prática o recorrente foi condenado, designadamente o reportado à alegada reprovabilidade de que é merecedora a conduta da vítima e o invocado dolo pouco acentuado com que agiu. E conquanto as críticas tecidas pelo recorrente à decisão ora sob impugnação não se dirijam concreta e especificamente à medida das penas parcelares, sempre importa ajuizar da sua correcção posto que, integrando o concurso, elas contribuem para a determinação da moldura abstracta, em cujo âmbito há-de ser fixada a pena conjunta. 2.2.1.1 – Das Penas Parcelares A. Como se sabe, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade são, como bem decorre do disposto no artigo 40.º, número 1, do Código Penal, as finalidades visadas pelas penas que, servindo finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, têm por escopo, com a prevenção geral positiva ou de integração, alcançar a tutela dos bens jurídicos, o que vale por dizer a confiança dos cidadãos na validade da norma jurídica e bem assim restabelecer a paz jurídica afectada com a prática do crime. Assim, se é certo que uma e outra das aludidas finalidades (a tutela dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) prosseguidas com a aplicação das penas e das medidas de segurança concorrem para um único objectivo, que mais não é que o de evitar a lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos, consubstanciado na prática de crimes definidos nos respectivos tipos legais, não menos verdade resulta que a função de cada qual é, porém, delimitada por exigências próprias, de sorte que à primeira sempre cabe a primazia de, no quadro de valores traçado pela moderna política criminal, transposto para o artigo 40.º do Código Penal, definir a medida da tutela dos bens jurídicos. Medida da tutela dos bens jurídicos que é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo, ainda suportável pela necessidade comunitária de reafirmar a validade da norma jurídica violada com a prática do crime. Daí que, como refere Figueiredo Dias[6], seja entre esses dois limites, máximo e mínimo que, tanto quanto possível, devem satisfazer-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, incumbindo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade. Certo sendo que se a medida da pena não pode em circunstância alguma exceder a medida da culpa, o limite a partir do qual aquela não pode ultrapassar esta serve de barreira intransponível às considerações preventivas. De outro modo, se é verdade que, como estabelece o artigo 71.º, número 1, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, resulta igualmente certo que as circunstâncias referidas no número 2 do citado preceito são, para além de outras (posto que a enumeração ali gizada é meramente exemplificativa), todas as que, não tendo já sido valoradas no tipo legal de crime, importa levar em linha de conta na fixação concreta da pena, no âmbito da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral e limitadas no seu máximo pela medida da culpa, de sorte que a pena constitui sempre o resultado da avaliação de todos esses factores. Sendo que, entre os mesmos factores a que a lei (artigo 71.º, número 2, do Código Penal) manda atender, destacam-se: i) os factores relativos quer à execução do facto (e respeitantes ao tipo de ilícito, à gravidade das suas consequências, e bem assim ao grau de violação dos deveres impostos ao agente) quer ao tipo de culpa (e atinentes à intensidade do dolo ou da negligência, aos sentimentos manifestados pelo agente no cometimento do crime e aos fins ou motivos que o determinaram); ii) os factores relativos à personalidade do agente (as suas condições pessoais e situação económica, a sua sensibilidade à pena e a susceptibilidade de ser por ela influenciado); iii) os factores que, respeitantes à conduta do agente, se tenham manifestado antes e depois da prática do facto ilícito típico. B. Reservando tudo quanto se acabou de reparar, vejamos pois se adequadas satisfazer as necessidades de prevenção e proporcionais à culpa do arguido AA se mostram, no âmbito da respectiva moldura abstracta, as penas parcelares ao mesmo aplicadas pelos quatro (4) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos artigos 171.º, números 1, e 2, e 177.º, número 1, alínea b), todos do Código Penal. Ora, no caso em apreciação, há que convir que, ao invés do pretendido pelo recorrente, elevada representa-se a ilicitude dos factos da sua responsabilidade e configurativos dos mencionados crimes, considerando a idade da ofendida BB e a específica natureza das práticas sexuais que com ela o arguido manteve ao longo de cerca de três meses e as mais das vezes na sua própria casa, encontrando-se numa dessas ocasiões a família a descansar e noutra o pai da menor a trabalhar. Como acentuada se revela a intensidade do dolo (directo) e da culpa com que actuou o arguido que, imune aos sentimentos de respeito e cuidado que a sua condição de parente da ofendida e a idade desta lhe haviam de despertar, reiteradamente incorreu na prática mencionado crime, movido pelo propósito de, a todo o custo, satisfazer a sua lascívia. A isto acrescem as consabidas necessidades de prevenção, sobretudo geral mas também especial. As primeiras a imporem a reintegração da norma jurídica violada e dos interesses jurídicos por ela visados, o que vale por dizer o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas menores na esfera sexual, e bem assim a exigirem particular firmeza das instâncias formais de controlo no sentido de desincentivar as práticas criminosas de tal jaez. E as segundas, as de prevenção especial, ditadas pela postura que, assumida pelo arguido aquando e depois dos factos ilícitos cometidos, revela da sua parte falta de sentido crítico pela conduta havida, de interiorização da culpa e bem assim de arrependimento, indo ao ponto de atribuir à ofendida, uma criança de 12 anos de idade, responsabilidade pela mesma conduta! A par disto, há que não perder de vista as condições pessoais do arguido, nomeadamente as atinentes i) à sua inserção familiar e à inexistência no meio social de sinais de rejeição ou de referências negativas em relação à sua pessoa; ii) à sua modesta condição social e situação económica; iii) aos hábitos de trabalho que possui; iv) à sua idade (contava à data da prática dos factos ilícitos dos autos 37 anos de idade e actualmente 40). Fazendo, então, o balanço de tudo isto e do mais que para trás se disse, conclui-se que, no âmbito da respectiva moldura abstracta prevista para os referenciados crimes de abuso sexual de crianças agravado (4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão), as penas parcelares de prisão de cinco (5) anos, de quatro (4) anos e nove (9) meses, de quatro (4) anos e seis (6) meses, e de quatro (4) anos e seis (6) meses aplicadas ao arguido AA, revelando-se proporcionais à sua culpa e adequadas a garantir a protecção do bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras em causa, não merecem qualquer censura, sendo pois de as manter. 2.2.1.2 – Da Pena Conjunta A. No que concerne à pena conjunta, estabelece o artigo 77.º do Código Penal, no seu número 1, que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Depois, quanto ao modo de pôr em prática os mencionados critérios definidos no número 1 do artigo 77.º do Código Penal, como diz Figueiredo Dias[7]: «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)». Por seu turno, dispõe o número 2 do artigo 77.º do Código Penal que “[a] pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. O que quer dizer que a medida concreta da pena do concurso (dentro da moldura abstracta aplicável, que é calculada a partir das penas impostas pelos diversos crimes que integram o mesmo concurso) é determinada, tal qual sucede com a medida das penas parcelares, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, número 1, do Código Penal), que é o critério geral, e a que acresce, tratando-se de concurso (quer do artigo 77.º quer do artigo 78.º do Código Penal), o critério específico, consistente, como visto, na necessidade de ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente. Porém, como adverte Figueiredo Dias[8], tratando-se de determinar a medida da pena do concurso, os factores de determinação da medida das penas parcelares, por via do princípio da proibição da dupla valoração, funcionam ora apenas como guia, a menos que se refiram, não a um dos concretos e específicos factos ilícitos singulares mas, ao conjunto deles. B. No caso sub juditio, a moldura abstracta do concurso de penas em que vai condenado o arguido AA é de cinco (5) anos – a mais elevada das penas singulares - a dezoito (18) anos e nove (9) meses de prisão – a soma de todas as concretas penas singulares aplicadas ao mesmo. Recuperando tudo quanto imediatamente antes se aduziu, com especial enfoque para o grau de ilicitude dos factos no seu conjunto e para a personalidade do arguido neles projectada, entende-se que, no âmbito da correspondente moldura penal abstracta do concurso, a pena conjunta de sete (7) anos e seis (6) meses de prisão imposta ao arguido AA, revelando-se adequada à sua culpa e proporcional às exigências de prevenção geral e especial, cumpre de forma satisfatória as finalidades da punição. Daí que em tal medida – sete (7) anos e seis (6) meses de prisão – se fixe a pena conjunta em que se condena o mesmo arguido. Por via do que se acabou de referir, escusado será dizer que, por falta de preenchimento do requisito formal atinente à medida da pena aplicada (primeiro segmento do número 1 do artigo 50.º do Código Penal), fica desde logo prejudicado o conhecimento da questão relativa à pretendida suspensão na respectiva execução. Em consequência, improcede, também neste segmento, o recurso do arguido AA. ** 2.3 – Do montante fixado a favor da ofendida, a título de reparação, pelos prejuízos não patrimoniais sofridos Como antes se reparou, nos termos do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e 16.º, número 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04.09[9], foi o arguido AA condenado a pagar a quantia de € 10.000 (dez mil euros) à ofendida BB, a título de “indemnização” pelos danos não patrimoniais sofridos em resultado da conduta ilícita por ele havida contra a sua pessoa. Quantitativo que, como também já aqui se disse, considerando exorbitante, entende o recorrente dever ser reduzido para € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros). E isto atendendo, em suma, à natureza da prestação pecuniária em causa, à reprovabilidade do comportamento da ofendida que, na perspectiva do recorrente, contribuiu para o relacionamento sexual havido entre ambos, ao facto de não haver indicação de que à mesma tenham daí advindo consequências particularmente graves, e à circunstância de o recorrente se encontrar desempregado desde 12.05.2017. Apuremos então da razão recorrente, ou falta dela, neste conspecto. 2.3.1 A “reparação”, prevista no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, aditado ao mesmo diploma pela Lei n.º 58/98, de 25.08 – que, recuperando[10] uma medida estabelecida no Código de Processo Penal de 1929 (artigo 34.º) e abandonada com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, veio permitir que o tribunal fixasse oficiosamente, como efeito penal da condenação, uma “reparação” pecuniária pelos prejuízos sofridos pela vítima do crime – não se trata, de facto e como o próprio nome indica, de uma verdadeira e própria indemnização, pese embora se imponha, na sua aplicação, convocar os conceitos da lei civil. É, de resto, o que decorre de forma clara, desde logo da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na origem da citada Lei n.º 58/98, de 25.08 e, depois, do local de inserção da referida norma do artigo 82.º-A no Código de Processo Penal, isto é no Título VI, do Livro I, que tem por epígrafe “Das partes civis”. Com efeito – diferentemente do que sucede com a indemnização civil (artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil e 129.º do Código Penal) fundada na prática de crime e deduzida no processo penal ou em separado (artigos 71.º e 72.º do Código de Processo Penal de 1987) – a “reparação” da vítima do crime praticado pelos prejuízos sofridos, prevista no mencionado artigo 82.º-A do último dos diplomas, possuindo a natureza de uma “compensação”, é arbitrada oficiosamente pelo tribunal quando, não tendo sido deduzido pedido cível no processo penal ou em separado (1.º segmento do preceito legal), particulares exigências de protecção da vítima o imponham. Compensação pecuniária [entendida por alguns[11] como uma forma de sanção autónoma, consequente do crime praticado e, como tal, ainda adequada a garantir a ressocialização do agente que, por via dela, poderá apreender de jeito porventura mais conseguido a repercussão que o facto ilícito da sua responsabilidade teve na vítima e bem assim interiorizar mais claramente o valor da norma penal infringida e a necessidade de restabelecer a ordem jurídica violada] que, como já referido, não se confundindo com a indemnização civil, remete todavia para o conceito de prejuízo, mas já não para a quantia a arbitrar. Na verdade, como flui do disposto no número 3 do indicado artigo 82.º-A no Código de Processo Penal, a quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta na acção que porventura venha a conhecer do pedido de cível de indemnização. O que quer dizer que o arbitramento de uma certa quantia a favor da vítima do crime, correspondendo a uma pretensão do legislador orientada no sentido de acudir e obviar a uma situação de urgência determinada pela desprotecção da vítima (em sentido estrito e também abrangente, como se tem considerado[12]), não tem de equivaler ao montante indemnizatório que, caso tivesse sido deduzido pedido de indemnização civil, seria fixado em conformidade com os critérios decorrentes do estatuído nas já aludidas normas dos artigos 483.º e seguintes e 562,º e seguintes do Código Civil e 129.º do Código Penal. Quantitativo “reparatório” que, na falta de previsão, na norma do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, de critérios legais, deverá ser fixado atendendo, como já aqui se disse, aos conceitos da lei civil, maxime à luz da equidade (número 3 do artigo 496.º do Código Civil) e ponderando o grau de desprotecção da vítima do crime e da culpabilidade do agente, as suas condições pessoais, a sua situação económica e também da vítima, e demais circunstancialismo com relevância para o efeito, em conformidade com o prescrito nas citadas normas dos artigos 494.º e 496.º, número 3 do Código Civil, como bem se considerou no acórdão sob impugnação. Entendimento que, como se viu, não é posto em causa pelo recorrente que se insurge apenas quanto ao quantitativo de €10.000,00 que, fixado pelo tribunal recorrido, a título de reparação pelos prejuízos não patrimoniais sofridos pela ofendida BB, diz ser exorbitante. 2.3.2 Posto isto e retornando ao caso em apreciação, resulta que, de harmonia com a matéria de facto provada, com o objectivo de satisfazer a sua lascívia e desejos sexuais, o que conseguiu, o arguido e ora recorrente (que aquando dos factos contava 37 anos de idade, era casado e pai de dois filhos menores) manteve em quatro ocasiões distintas relações de sexo vaginal e/ou anal e oral com a ofendida BB, sua prima e então com 12 anos de idade, valendo-se para tanto do seu ascendente familiar e etário e bem assim da inexperiência da mesma para a sujeitar às ditas práticas sexuais, sucedendo que, após a sua ocorrência e a denúncia delas efectuada, a menor veio a ser retirada do convívio dos progenitores e acolhida numa instituição. Mais resultou provado que ao cometer os indicados factos ilícitos o arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Assim − não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil por adesão ao processo penal ou em separado, havendo, conforme flui da acta de 30.05.2018 (confira-se folha 505 e seguintes), os progenitores da menor BB declarado que pretendiam que fosse atribuída àquela uma reparação, e o arguido notificado para a possibilidade de tal vir a acontecer – dúvidas não subsistem que se encontram reunidos os pressupostos necessários para, nos termos dos artigos 82.º-A do Código de Processo Penal e 16.º, número 2 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04.09, o tribunal, oficiosamente, atribuir uma reparação à ofendida pelos prejuízos não patrimoniais sofridos, como decidiu o tribunal recorrido. Prejuízos não patrimoniais que, como bem se considerou no acórdão sob impugnação, advieram dos aludidos actos ilícitos praticados pelo arguido e de que foi vítima a menor BB, pessoa patentemente vulnerável, tanto assim que, na sequência de tais eventos, houve de ser institucionalizada e, como tal, afastada do convívio dos pais. Depois, em relação ao quantitativo arbitrado − dez mil euros – atendeu acertadamente o tribunal recorrido, entre o mais, ao número e à natureza dos actos sexuais que o arguido manteve com a ofendida (uma adolescente de 12 anos de idade que se preparava para novas experiências ao nível do relacionamento com o sexo oposto) e ao facto de a mesma ter sido institucionalizada e, em consequência, afastada do convívio dos pais, o que implicou uma profunda mudança na sua curta vida. Para além destes aspectos, ponderou, e bem, o tribunal recorrido a condição económica do arguido [que, trabalhando aquando dos factos no estrangeiro onde auferia o salário de €2.000,00 a €3.000,00, perdeu o emprego, passando a usufruir do subsídio de desemprego no montante de €750,00 (que se previa deixar de receber a partir de Outubro de 2018)], a sua situação familiar (casado e pai de dois filhos em idade escolar) e as despesas fixas do respectivo agregado. Sopesando tudo isto e atendendo aos critérios de equidade, decidiu, então, o tribunal recorrido adequado fixar em €10.000,00 a “reparação” a arbitrar, na consideração de que, não apagando embora a dor e o sofrimento da ofendida BB, contribuiria ao menos para atenuá-los, permitindo-lhe satisfazer alguma necessidade ou desejo que de outo modo não lograria fazê-lo. Montante que, na opinião do recorrente, resulta exorbitante, por via das razões que aduz. Não lhe assiste, porém, razão. Desde logo porque claramente só ao arguido e ora recorrente cabe a responsabilidade pelos ilícitos de cariz sexual a que sujeitou a ofendida BB, então uma criança de doze anos de idade e sua parente. Depois porque fora de toda e qualquer dúvida é que as referidas práticas sexuais a que o arguido - então um homem de 37 anos de idade, casado e pai de dois filhos menores - constrangeu a ofendida foram indiscutivelmente portadoras para a mesma de inevitáveis e inapagáveis sentimentos de dor, mágoa e perda da inocência, acrescidos pela radical transformação verificada na sua vida e decorrente, como referido, do afastamento dos pais a que foi compelida por via da sua institucionalização. E ainda porque, pese embora os constrangimentos que, sob o ponto de vista económico, se registaram na vida do recorrente (que, tendo ficado desempregado, viu reduzidos os seus proventos), tal situação não se manterá indefinidamente, como é previsível. Por último porque, considerando a patente desprotecção da ofendida e as possibilidades do recorrente (confira-se pontos 56 a 58 dos factos provados), não se poderá dizer, bem pelo contrário, que é desproporcionado o valor de 10.000 euros arbitrado pelo tribunal recorrido a favor da menor BB, a título de reparação pelos prejuízos não patrimoniais que a mesma sofreu em resultado da conduta ilícita do arguido. Bem pelo contrário. De onde que, tudo ponderado, se repute adequada a dita reparação de €10.000 (dez mil euros) que, fixada pelo tribunal recorrido, se mantem. Improcede, pois, ainda neste segmento, o recurso do arguido. *** III. Decisão Termos em que, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, se acorda em julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se integralmente a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC. * Lisboa, 23 de Maio de 2019 Os Juízes Conselheiros Isabel São Marcos (relatora) ------------------ |