Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
| Descritores: | PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL CASO JULGADO MATERIAL CASO JULGADO FORMAL ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO CONTUMÁCIA ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL | ||
| Nº do Documento: | SJ200811120028683 | ||
| Data do Acordão: | 11/12/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | DECLARADO PRESCRITO O PROCEDIMENTO CRIMINAL | ||
| Sumário : | I - Traduzindo-se a prescrição do procedimento criminal na renúncia do Estado ao direito de punir, condicionada pelo decurso de um determinado lapso temporal, tem entendido o STJ que as normas sobre prescrição do procedimento criminal têm natureza substantiva – cf. Assento de 19-11-1975, BMJ 251.º/75. II - Tal natureza determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respectivas normas ao princípio da aplicação retroactiva do regime jurídico mais favorável ao agente de uma infracção, o que significa que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, bem como que deve ser aplicado sempre, mesmo retroactivamente, o regime da prescrição que eventualmente se mostre mais favorável ao arguido. III - O regime jurídico aplicável a uma qualquer infracção penal é constituído por um complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do procedimento, às causas de justificação, à prescrição do procedimento. Deste modo, tendo-se sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final qual dos regimes sucessivos é mais favorável ao agente. IV - Mas, estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime mais favorável constitui um procedimento metodológico complexo, dependendo da consideração de vários pressupostos, quer directamente materiais (o prazo da prescrição), quer da conjugação do tempo com os actos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a contagem do prazo da prescrição. Por isso, a apreciação é dinâmica e tem de ser efectuada em cada momento em que a questão possa ser suscitada – e depende da relevância dos factos determinantes em cada momento em que processualmente seja possível e admitida uma decisão em que um dos pressupostos seja precisamente a inexistência de prescrição do procedimento criminal. V - Só nessa medida será dado cumprimento à determinação constitucional de aplicação do regime concretamente mais favorável, que, no que respeita aos elementos de substância e não de forma (definição da tipicidade de crimes; molduras penais; e, pela essencialidade da sua natureza – também – material, a prescrição do procedimento criminal), foi mesmo reforçada com a nova redacção do art. 2.º, n.º 4, do CP, após a Lei 59/2007, de 04-09. VI - Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. VII - O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) – cf. Ac. do STJ de 23-01-2002, Proc. n.º 3924/01. VIII - O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental daquele em relação à finalidade a que está adstrito. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta. IX - Na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado – a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes –, deixa de subsistir a razão do caso julgado formal, que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental. X - Por isso, a prescrição do procedimento criminal não pode, na dimensão substancial, estar coberta por qualquer caso julgado formal quanto à estabilidade de determinado regime, dos vários que podem suceder-se no tempo, porque sempre pode interpor-se, posteriormente, algum elemento novo ou com susceptibilidade para produzir efeitos relevantes na conjugação dos pressupostos, que são essencialmente dinâmicos, da prescrição. XI - Tendo em consideração que: - o recorrente invocou anteriormente no processo a excepção da prescrição do procedimento criminal, não tendo obtido provimento; - a decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação, que, como fundamento, indicou a aplicou a jurisprudência, ao tempo fixada pelo STJ pelo acórdão n.º 10/2000, de 19-10 (in DR, Série I-A, de 10-11-2000), no sentido de que «No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal»; - o acórdão do STJ n.º 5/2008, de 09-04-2008 (in DR, Série I-A, n.º 92, de 13-05-2008), fixou jurisprudência no sentido de que «No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias, a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal»; - constituindo esta última a interpretação actual do STJ sobre a questão controvertida – com a força específica da jurisprudência uniformizada nos termos do art. 445.º, n.º 3, do CPP –, daqui decorre que o regime de prescrição do procedimento mais favorável será aquele, como o da norma extraída da versão originária das disposições conjugadas do art. 119.º, n.º l, al. a), do CP e do art. 336.º, n.º l, do CPP, que não considere a declaração de contumácia como causa ou acto processual que tenha por efeito produzir qualquer consequência (suspensão ou interrupção) sobre o prazo de prescrição do procedimento criminal; - posteriormente à fixação de jurisprudência pelo STJ foi publicado o acórdão do TC n.º 183/2008 (DR, Série I-A, de 22-04-2008), que declarou, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs l e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º l, alínea a), do Código Penal e do artigo 336.º, n.º l, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia»; - a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de uma norma, ou de uma específica dimensão normativa, tem efeitos ex tunc, determinando a repristinação da norma anterior ou da dimensão normativa expurgada da contrariedade constitucional que a afectava – art. 282.º, n.º 2, da CRP; - nos termos do art. 282.º, n.º 3, da CRP respeitam-se os casos julgados, salvo «decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social for de conteúdo menos favorável ao arguido». Mas, casos julgados que, pela força externa de estabilidade que lhes está inerente para garantia da certeza, segurança e paz jurídica, não podem deixar de ser apenas os casos julgados materiais que definam, erga omnes, o direito do caso – em processo penal, as decisões condenatórias ou absolutórias; - actualmente, em caso de declaração de inconstitucionalidade, o caso julgado em matéria penal ficou ainda mais relativizado em situações que possam ser favoráveis ao arguido – o art. 449.º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção da Lei 48/2007, de 29-08, indica como um dos fundamentos do recurso de revisão de sentença (ou despacho) transitada em julgado a declaração pelo TC da «inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação»; - podendo ser objecto de recurso de revisão a própria sentença condenatória, não tem sentido funcional, processual ou material, e constituiria mesmo uma aporia intra-sistemática, deixar intacto um caso julgado formal que não impeça uma decisão de fundo sobre a existência de crime, susceptível, imediatamente, de ser objecto de um recurso extraordinário de revisão relativamente a um dos pressupostos de que depende o procedimento pelo crime; - no caso, o complexo normativo de conteúdo menos favorável ao arguido, e que não considerou a prescrição, serviu também, no conjunto necessário ‘pressupostos-processo-crime’, de base à definição da responsabilidade penal e à condenação, que não teria existido se, com a interpretação expurgada da inconstitucionalidade, fosse considerado extinto o procedimento; é de concluir ser aplicável o regime da prescrição do procedimento criminal dos arts. 117.º, 118.º e 120.º do CP/82, na redacção originária. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA foi condenado por acórdão de 19 de Janeiro de 2008, na pena de 5 anos e 6 meses pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada – artigos 22.°, 23.° e 131º do Código Penal, por factos ocorridos em 18 de Abril de 1988. Recorreu para o tribunal da Relação do Porto, que considerou pertencer a competência ao Supremo Tribunal, visto o recurso ser restrito a questões de direito. O recorrente, entretanto, invocando o acórdão de fixação de Jurisprudência de 6/02/08, «que versa sobre a contumácia e prescrição do procedimento criminal», afastando a jurisprudência fixada em Assento n° 10/2000 de 10 de Novembro, e «pese embora nos autos já ter havido recurso fundamentado quanto à prescrição do procedimento criminal», pede que seja «objecto de análise quanto à prescrição do procedimento criminal que […] se encontrava já extinto pelo decurso dos 15 anos, cuja prescrição se operou muito antes da leitura do acórdão condenatório […]». 2. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto suscita também a questão prévia da prescrição do procedimento criminal. «Trata-se – refere – de um crime de homicídio tentado a que, face à respectiva moldura penal, corresponde um prazo de extinção do procedimento criminal de 15 anos». «A declaração de contumácia, única causa de suspensão possível no caso, foi tida pelo Acórdão n.° 5/2008 de 09.04.08 – Rec. N.° 2569/07/3ª, publicado no DR, I série-A, de 13.05.08, como não constituindo causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias». «Não existe outra causa de suspensão ou interrupção do procedimento criminal, sendo certo que à data da primeira notificação pessoal do arguido (2.05.06) já tinham decorrido mais de 15 anos». A existência de decisão anterior sobre o mesmo tema de sentido contrário não impede a sua reapreciação à luz do novo sentido jurisprudencial sobre os efeitos da contumácia». «Assim sendo, considerando que o acórdão recorrido já foi proferido em momento em que se encontrava prescrito o procedimento criminal contra o arguido», requer que se julgue o mesmo extinto – art. 117°, n° l, alínea a) do CP. 3. Cumpre decidir a questão prévia suscitada – artigo 417º, nº 6, alínea c) do CPP. Os factos foram praticados em 18 de Abril de 1988. A contumácia foi declarada em 30 de Janeiro de 1989 (fls. 30). O recorrente foi constituído arguido em 2 de Maio de 2006. Apresentou-se e prestou termo de identidade e residência em 2/05/2006. A contumácia foi declarada cessada por decisão de 19/09/2006. O recorrente foi notificado da acusação em 25/01/2007 (despacho de fls. 369). O recorrente foi condenado por acórdão de 19 de Janeiro de 2008. O procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido quinze anos, quando se trate de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a dez anos – artigo 118º, nº 1, alínea a) do CP. O recorrente foi acusado, e acabou por ser condenado, por um crime de homicídio, na forma tentada, punível com pena de prisão de máximo superior a dez anos – artigos 131º, 23º, nº 2 e 73º, nº 1, alínea b) do CP. O prazo de prescrição do procedimento criminal é, assim, de quinze anos para o crime por que o recorrente foi acusado. A prescrição do procedimento criminal, que corre a partir da data da prática do crime (artigo 118º, nº 1 do CP), suspende-se ou interrompe-se, no entanto, nas condições referidas nos artigos 120º e 121º do CP (na redacção actualmente vigente, introduzida pelo Decreto-Lei nº 65/98, de 2 de Setembro). O prazo suspende-se, entre outras situações, a partir da notificação da acusação (artigo 120º, nº 1, alínea b) do CP), ou vigorar a declaração de contumácia (alínea c)), sendo que no caso da alínea b) a suspensão não pode ultrapassar três anos – artigo 120º nº 2 do CP. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão – artigo 120º, nº 3 do CP. Por seu lado, a prescrição interrompe-se com a constituição de arguido – artigo 121º, nº 1, alínea a) do CP; com a notificação da acusação ou da decisão instrutória que pronunciar o arguido – alínea b); ou com a declaração de contumácia – alínea c). Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição – artigo 121º, nº 2 do CP. Mas, de qualquer modo, a prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvando o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade – artigo 212º, nº 3 do CP. Isto é, no que mais releva, a declaração de contumácia passou a constituir um dos actos que interrompem a prescrição, e do mesmo passo, que suspendem o prazo de prescrição, porquanto o processo suspende-se durante o tempo em que vigorar a declaração de contumácia. Porém, na redacção originária do artigo 119º do Código Penal de 1982, a declaração de contumácia não estava directamente prevista como acto processual com consequências ou efeitos no prazo de prescrição do procedimento criminal. A não previsão de consequências da declaração de contumácia sobre o prazo de prescrição do procedimento criminal, quando a figura foi instituída pelo CPP de 1987, que parecia revelar, em matéria de prescrição, algum desfasamento legislativo entre os dois diplomas, produziu a oportunidade para o surgimento de divergências jurisprudenciais sobre os efeitos da contumácia, e a ulterior uniformização pelo Assento do STJ nº 10/2000, de 19 de Outubro. Esta circunstância introduz a necessidade de analisar o caso concreto perante a sucessão de regimes e respectivas consequências. 4. Por seu lado, a prescrição do procedimento criminal constitui uma categoria que, exclusiva ou ao menos predominantemente, se situa na dimensão material e não processual. Procedimento criminal – o modo de afirmação instrumental do jus puniendi do Estado – significa, em geral, tudo quanto cabe nas condições de início e de desencadeamento da acção penal, enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal. O Estado, porém, não guarda para si, ilimitadamente no tempo, a actuação do seu direito de punir. Decorrido que seja certo lapso de tempo sobre o facto criminoso, maior ou menor consoante as situações previamente definidas na lei, não poderá ser desencadeada ou prosseguir a acção penal por esses factos passados porque o procedimento criminal prescreve. A prescrição do procedimento criminal está disciplinada nos artigos 117° e segs. do Código Penal. Este instituto (prescrição do procedimento criminal) tem vindo a ser historicamente justificado, nos sistemas onde é acolhido por razões, umas processuais, outras de natureza substancial e material e ainda outras – sem grande relevância – de carácter empírico. Assim, para além de certos limites temporais, haveria que considerar os efeitos negativos sobre a produção das provas, especialmente tratando-se de prova testemunhal, não só no esquecimento sobre os factos, mas principalmente pelo perigo de deturpação inconsciente na transmissão do testemunho Ainda, não haveria possibilidade de movimentar todos os processos, por mais antigos que fossem; por isso, a certeza imporia um limite para o passado que não fosse o acaso a determinar quais os casos antigos que poderiam vir a ser movimentados. O pequeno valor destas razões processuais leva a considerar as razões de natureza substancial como fundamentalmente justificadoras da ocorrência da prescrição –do procedimento criminal, nomeadamente as que se relacionam com os fins das penas: «a acção do tempo torna impossível ou inútil a realização destes fins», «o decurso do tempo apaga a exigência de justiça, a necessidade da retribuição penal para a satisfazer»; «passados anos o crime esqueceu, a reacção social, a inquietação, por ele provocada foram-se desvanecendo, até desaparecer; a pena perdeu o interesse e o significado» - cfr. Prof. BELEZA DOS SANTOS, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 77°, pp. 321 e segs. Também o decurso do tempo apaga a utilidade preventiva geral e preventiva especial das penas. Estes fundamentos da prescrição do procedimento criminal são comuns a todos os ordenamentos que reconhecem o instituto (cfr. v.g. JESCHECK, cit, pp. 1238 e segs.; CUELLO CALÓN, Derecho Penal, l, vol. II, pp. 758 e segs.; ROGER MERLE e ANDRÉ VlTU, Traité de Droit Criminel, II vol., pp. 50 e segs.; PIERRE BOUZAT e JEAN PINATEL, Traité de Droit Penal et de Criminologie, tomo II, pp. 1008 e segs.). Entre nós, hoje, pode considerar-se aceite a teoria jurídico-material da prescrição. Enquanto referida a procedimento, tem natureza processual. «Mas em matéria penal não há punibilidade sem procedibilidade, porque só a jurisdição tem o poder de punir. A prescrição do procedimento criminal é a extinção do poder judicial quanto à injunção da responsabilidade penal e por isso tem sempre por efeito a extinção da própria responsabilidade penal»- cfr. MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, “Curso de Processo Penal”, vol. II, p. 51-52. Por seu lado, o Supremo Tribunal, no assento de 19 de Novembro de 1975, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, N° 251, pp. 75 e segs. considerou já que «a lei sobre a prescrição é de natureza substantiva (…)» e «que se traduz na renúncia do Estado a um direito, ao jus puniendi, condicionada ao decurso de um certo lapso de tempo. Por isso, o reconhecimento da natureza substantiva da prescrição do procedimento criminal terá por efeito determinar a aplicação do principio da lei penal mais favorável, mesmo no caso de uma lei nova alongar os prazos de prescrição. cfr. EDUARDO CORREIA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 108°, pp. 361 e seg. Aceita-se, assim, que a prescrição do procedimento criminal, quer seja de natureza substantiva, quer se considere de natureza mista (substantiva e processual), sempre se há-de considerar ligada ao facto penal – independentemente ao autor do facto ou da pessoa do ofendido -, e á valoração da relação da vida que a norma incriminadora disciplina isto é, à dignidade punitiva do facto, de tal modo que se justifica inteiramente que valham para os seus momentos decisivos de aplicação os mesmos princípios que valem para aplicação das leis substancialmente tipificadoras penais. Nomeadamente, quando se sucedam normas, aplicar aquela (ou aquele regime) que concretamente se revelar mais favorável ao arguido. A prescrição do procedimento criminal, revertendo, todavia, ao decurso do tempo, está dependente da consideração e dos efeitos de momentos e actos processuais determinantes. É nesta dimensão que a prescrição do procedimento criminal, não na substância do decurso do tempo, mas nos tempos processuais relevantes, depende do processo e dos seus actos. Nesta medida, embora na substância não seja mutável, a conexão intrínseca processo-conteúdo material é, por natureza, contingente, dependendo da dinâmica dos actos do processo e dos efeitos induzidos que cada acto (dies a quo; dies ad quem; tempos de suspensão) produza em determinada situação concreta. Na correlação processo-tempo, a prescrição, com tempo material definido e fixado na lei, depende de pressupostos processualmente dinâmicos. E, acrescidamente, quando na complexa apreciação de pressupostos vários e respectivos efeitos se intrometam diversos regimes quanto à aplicação no tempo da lei penal. Sobre a aplicação da lei penal no tempo dispõe o n.° 4, parte final, do artigo 29° da Constituição: «aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido o que foi retomado no n° 4 do artigo 2° do Código Penal, que prescreve: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limita máximo da pena prevista na lei posterior». Traduzindo-se a prescrição do procedimento criminal na renúncia do Estado ao direito de punir, condicionada pelo decurso de um determinado lapso temporal, tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, como se referiu, que as normas sobre prescrição do procedimento criminal têm natureza substantiva. Tal natureza determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respectivas normas ao princípio da aplicação retroactiva do regime jurídico mais favorável ao agente de uma infracção. O princípio da aplicação do regime mais favorável no tocante às normas sobre prescrição, significa que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, bem como deve ser aplicado sempre, mesmo retroactivamente, o regime da prescrição que eventualmente se mostre mais favorável ao agente da infracção. O regime jurídico aplicável a uma qualquer infracção penal é constituído por um complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do procedimento, às causas de justificação, a prescrição do procedimento. Deste modo, tendo-se sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final, qual dos regimes sucessivos é mais favorável ao agente. Mas, estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime mais favorável constitui um procedimento metodológico complexo, dependendo da consideração de vários pressupostos, quer directamente materiais (o prazo da prescrição), como da conjugação do tempo com os actos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a contagem do prazo da prescrição. Por isso, a apreciação é dinâmica e tem de ser efectuada em cada momento em que a questão possa ser suscitada – e depende da relevância dos factos determinantes em cada momento em que processualmente seja possível e admitida uma decisão em que um dos pressupostos seja precisamente a inexistência de prescrição do procedimento criminal. Só nessa medida será dado cumprimento à determinação constitucional de aplicação do regime concretamente mais favorável. Aplicação que, no que respeita aos elementos de substância e não de forma (definição da tipicidade de crimes; molduras penais; e, pela essencialidade da sua natureza (também) material, a prescrição do procedimento criminal) foi mesmo reforçada com a nova redacção do artigo 2º, nº 4 do CP, após a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro. 5. É certo que foi proferida no processo decisão, na sequência de requerimento do arguido para declaração da excepção, que julgou não verificada a prescrição do procedimento criminal. E a decisão, em recurso interlocutório, foi confirmada pelo tribunal da Relação. A decisão transitou e formou caso julgado. Há, assim, que decidir sobre a natureza e os efeitos da decisão, transitada, sobre a não verificação do pressuposto processual. O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição). «O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida». «O caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto» e «tem um valor impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria» - cfr. CAVALEIRO DE FERREIRA, loc. cit., p. 25. O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto á definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material – fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal. Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de 23 e Janeiro de 2002, proc.3924/01. O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito. Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta. O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade – a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber. Mas no contínuo dinâmico e instrumental, submetido a regras próprias, o procedimento pode sempre cessar por motivo que produza esse efeito – v. g., a prescrição. Mas, assim, na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado – a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes – deixa de subsistir a razão do caso julgado formal que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental. Por isso, a prescrição do procedimento criminal não pode, na dimensão substancial, estar coberta por qualquer caso julgado formal quanto à estabilidade de determinado regime dos vários que podem suceder-se no tempo, porque sempre pode interpor-se, posteriormente, algum elemento novo ou com susceptibilidade para produzir efeitos relevantes na conjugação dos pressupostos, que são essencialmente dinâmicos, da prescrição. 6. Porém, como se salientou, o recorrente invocou anteriormente no processo a excepção da prescrição do procedimento criminal, não tendo obtido provimento; a decisão foi confirmada por acórdão do tribunal da Relação, que, como fundamento, indicou a aplicou a jurisprudência, ao tempo fixada pelo Supremo Tribunal pelo acórdão de fixação nº 10/2000, de l9 de Outubro, publicado no Diário da República, lª série-A, de 10 de Novembro de 2000, no sentido de que «No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal». A questão nova, ou processualmente nova, que implica com o regime da prescrição, decorre do Acórdão nº 5/2008, de 9 de Abril de 2008 (Diário da República, I série-A, nº 92, de 13 de Maio, que fixou a seguinte jurisprudência: «No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias, a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.» Mas, sendo assim, e constituindo esta a interpretação actual do STJ sobre a questão controvertida – com a força específica da jurisprudência uniformizada nos termos do artigo 445º, nº 3 do CPP – daqui decorre que o regime de prescrição do procedimento mais favorável será aquele, como o da norma extraída versão originária das disposições conjugadas do artigo 119°, n° l, alínea a), do Código Penal e do artigo 336°, n° l do Código de Processo Penal, que não considere a declaração de contumácia como causa ou acto processual que tenha por efeito produzir qualquer consequência (suspensão ou interrupção) sobre o prazo de prescrição do procedimento criminal. Também, posteriormente à fixação de jurisprudência pelo STJ, foi publicado o acórdão do Tribunal Constitucional nº 183/2008 (Diário do República, I série-A, de 22 de Abril de 2008), que declarou, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29°, n°s l e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119°, n° l, alínea a), do Código Penal e do artigo 336°, n° l, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia». Mais o que a alteração radical da jurisprudência fixada – que como interpretação jurisprudencial com especial força de vinculação integra o complexo normativo e, integrando-o, teria a virtualidade e a força específica para abranger situações ainda não definitivas por força da formação de caso julgado material – a referida declaração de inconstitucionalidade não pode deixar de incidir relevantemente nas circunstâncias do caso. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de uma norma, ou de uma específica dimensão normativa, tem efeitos ex tunc, determinando a repristinação da norma anterior ou da dimensão normativa expurgada da contrariedade constitucional que a afectava – artigo 282º, nº 2 da CRP. No caso, a dimensão normativa expurgada da inconstitucionalidade será encontrada no complexo normativo referido, interpretado no sentido de que a declaração de contumácia não constitui causa de suspensão ou interrupção da prescrição do procedimento criminal. Nos termos do artigo 282º, nº 3 da CRP, respeitam-se os casos julgados, salvo «decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social for de conteúdo menos favorável ao arguido». Mas, casos julgados que, pela força externa de estabilidade que lhes está inerente para garantia da certeza, segurança e paz jurídica, não podem deixar de ser apenas os casos julgados materiais que definam, erga omnes, o direito do caso: em processo penal, as decisões condenatórias ou absolutórias. Actualmente, em caso de declaração de inconstitucionalidade, o caso julgado em matéria penal ficou ainda mais relativizado. O artigo 449º, nº 1, alínea f) do CPP, na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, indica como um dos fundamentos do recurso de revisão de sentença (ou despacho) transitada em julgado, a declaração pelo Tribunal Constitucional da «inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação». O novo fundamento do recurso de revisão constitui um indicador relevante da relativização do caso julgado material em situações que possam ser favoráveis ao arguido. O sentido da norma transmite assim, por maioria de razão, fundamentos acrescidos para a atenuação da força e estabilidade intraprocessual e instrumental do caso julgado formal sobre pressupostos processuais. Podendo ser objecto de recurso de revisão a própria sentença condenatória, não tem sentido funcional, processual ou material, e constituiria mesmo uma aporia intrasistemática, deixar intacto um caso julgado formal que não impeça uma decisão de fundo sobre a existência de crime, susceptível, imediatamente, de ser objecto de um recurso extraordinário de revisão relativamente a um dos pressupostos de que depende o procedimento pelo crime. E, no caso, o complexo normativo de conteúdo menos favorável ao arguido, e que não considerou a prescrição, serviu também, no conjunto necessário pressupostos- processo-crime, de base à definição da responsabilidade penal e à condenação, que não teria existido se, com a interpretação expurgada da inconstitucionalidade, fosse considerado extinto o procedimento. È, assim, aplicável o regime da prescrição do procedimento criminal dos artigos 117º, 118º e 120º do CP/82, na redacção originária. Neste regime, o primeiro, dos actos praticados no processo, que interrompia a prescrição (artigo 120º, nº 1, alínea c)), foi a notificação da acusação, em 25 de Janeiro de 2007. Quando este acto foi praticado, estava esgotado o prazo de quinze anos em que, nos termos do artigo 117, nº 1, alínea a), do CP, prescrevia o procedimento pelo crime pelo qual o recorrente foi acusado e condenado. 7. Deste modo, por todos estes fundamentos, declara-se prescrito o procedimento criminal por terem decorrido quinze anos sobre a data dos factos, sem que tenha sido praticado qualquer acto processual que, de acordo com o regime mais favorável, tivesse como efeito interromper ou suspender o prazo de prescrição do procedimento criminal. Lisboa, 12 de Novembro 2008 Henriques Gaspar (Relator) Armindo Monteiro |