Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3754
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: SJ200512210037542
Data do Acordão: 12/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1863/05
Data: 07/06/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I. É válido o contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal, subordinado à condição suspensiva do, entre os promitentes, decretamento do divórcio.

II. A proibição do "venire contra factum proprium" está contida no segmento do art. 334º do CC que se reporta aos limites impostos pela boa fé.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. a) "A" intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário, impetrando a condenação da ré, sua ex mulher, B, a pagar-lhe 5.749.750$00 e juros sobre tal "quantum" a partir da citação alegando, em síntese, ter ficado prejudicado no predito montante, em consequência de acordo celebrado entre a demandada e os pais desta a que alude no art. 9º da petição inicial, aquele acontecido "no sentido de prejudicar" o demandante.

b) Contestou B, consoante ressalta de fls. 14 a 16, por impugnação, concluindo no sentido da improcedência da acção e da justeza da condenação do autor como litigante de má fé.

c) Cumprido que foi o demais legal, sentenciada a improcedência da acção, com consequente absolvição do réu do pedido, sem êxito apelou A, já que o TRL, por acórdão de 05-07-06, confirmou inteiramente a sentença recorrida.

d) É de tal acórdão que o autor traz revista, na alegação apresentada tendo tirado as seguintes conclusões:

1ª. A Meritíssima Juiz do Tribunal "a quo" diz : "...a questão submetida a julgamento não era de solução fácil ou linear..,’

2ª. O apelante apresentou factos no Tribunal "a quo" onde se via claramente que a apelada lhe deve 5.749.740$00 = 28.677,14 euros resultante do acordo celebrado entre ambos em 20 de Janeiro de 2000.

3ª. Esse acordo teve por base, entre outras coisas, o reforço de capital de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos) que o apelante e a apelada entregaram ao pai desta em 18 de Dezembro de 1999.

4ª. No depoimento de parte proferido pelo apelante ouvido a pedido da apelada resultou que:

" Testemunha - (...).dois meses depois os pais pedem se nós arranjamos mais dinheiro para eles legalizarem esse andar e essas obras, como nós tínhamos o acordo de compra e venda e tínhamos de dar mais cinco mil contos até ao fim desse ano, eu na minha boa fé mais dois mil contos para dar aos pais, e em vez de estarmos a dever cinco mil contos, passamos a dever mil e quinhentos contos, não seria, mas pronto, isso foi depois, dois meses depois, portanto, eu tinha que receber os dez mil contos mais aqueles dois mil contos que eu emprestei dois meses depois, e não era nove mil duzentos e cinquenta contos como eles disseram que eu ia receber. Depois de eu dar esses dois mil contos, dois meses depois tivemos de fazer novo acordo para anular o primeiro.

Inst. Mma. Juiz - Olhe, depois do divórcio, pergunta-se aqui se foi negociada a rescisão do contrato promessa?

Testemunha - Se foi rescindido. Esse contrato foi com a B, não comigo.

Inst. Mma. Juiz - E o senhor sabe se a B fez essa negociação com os pais?

Testemunha - Eu soube quando o Sr. Dr. me escreveu uma carta a dizer que eu tinha lá nove mil duzentos e cinquenta contos para receber, e foi aí que eu fiquei a saber que tinham rescindido do contrato. Desculpe, cheguei a ver essa carta de rescisão do contrato, dois dias depois de lhe dar dois mil contos, e nessa data, dois dias depois de eu dar dois mil contos, eu não tinha conhecimento disso, senão não lhe dava dois mil contos, sem que ficassem salvaguardados.

Inst. Mma.Juiz - Mas depois dessa rescisão o Sr. teve conhecimento, é isso?

Testemunha - Tive conhecimento na data da carta que recebi do Sr. Dr. para eu ir receber nove mil duzentos e cinquenta contos, nem sequer foram os dez mil contos que estavam no acordo, não tinham nada que me descontar a mim os setecentos e cinquenta contos, porque o acordo era eu receber dez mil contos.

5ª. Apesar do acordo celebrado em 12 de Janeiro de 2000, entre o apelante e a apelada, ter revogado tacitamente o anterior acordo celebrado entre as mesmas partes em 17/09/990 douto acórdão da Relação de Lisboa omitiu o referido acordo e concluiu pela validade do acordo de 17/09/99.

6ª. No caso presente, estava em vigor, e vinculava apelante e apelada o referido acordo de 12 de Janeiro de 2000, em que é atribuído ao imóvel o valor de 30.000.000$00, cabendo a cada 15.000.000$00.

7ª. A disposição do imóvel pela apelada foi ilegal, porque apenas de per si não tinha legitimidade para a sua disposição a sua disposição ao seu pai, como fez através do contrato que chamou de. "Acordo" em 20 de Dezembro de 1999, nos termos do art. 1682º A do Código Civil.

8ª. A apelada coma sua conduta violou também o art. 410º nº2 e o art. 220º, ambos do Cód. Civil, uma vez que faltou a assinatura do apelante para que esse "Acordo"/ disposição fosse válido quanto a ele.

9ª. O referido contrato celebrado apenas pela apelada com o seu pai é nulo e anulável por força do art. 220º e art. 1687º do Código Civil.

10ª. Ao apelante apenas lhe foi entregue parte do preço acordado, 9.250.750$00, faltando a diferença, cuja quantia foi pedida na PI, e se reclama.

11ª. Como resultado da Lei, as consequências de nulidade e a anulabilidade é a restituição de tudo o que tenham recebido (art. 289º do Código Civil).

12ª. Como as partes "acordaram" que o imóvel dos autos valia 30.000.000$00 e cabia a cada um 15.000.000$00, tendo a apelada dado apenas 9.250.750$00, deve ser condenada a pagar a diferença de 5.749.850$00 ou 28.275,45 euros, mais juros a partir da citação por analogia nos termos do art. 289º do Código Civil.

13ª. Como consequência de prova testemunhal levada aos autos deveria ter sido dado como provado que o contrato - Acordo - válido celebrado entre as partes era, o de 20 de Janeiro de 2000 e era o que estava em vigor.

14ª. A falta de forma neste tipo de contrato é nula nos termos do art. 410º nº 2, art 220º e art. 1687º, todos do Código Civil.

15ª. Ao não entender desta forma e decidindo como decidiu, o douto acórdão da Relação, na esteira do Tribunal de lª instância, violou por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art.s 1682-A, 1687º, 410º nº 2, 220º e 289º, todos do Código Civil.

16ª. Deverá pois ser dado provimento ao presente recurso de revista, revogando-se o douto acórdão recorrido e decidindo-se pela procedência da acção e do respectivo pedido com as consequências legais inerentes.

e) Contra-alegou a ré, propugnando o demérito da pretensão recursória.

f) Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Eis como se configura a materialidade fáctica dada como assente no acórdão recorrido:

1. O autor e a ré contraíram matrimónio em 12/09/97-(A).

2. Viveram na condição de casados desde 12 de Setembro de 1997 a 2 de Maio de 2000-(B).

3. Em 6/03/01, o autor recebeu a quantia de 9.250.750$00 de C - (C).

4. Foi celebrado um contrato-promessa entre a ré e os pais da ré do imóvel em questão - (D).

5. Nesse contrato-promessa intervieram as duas irmãs da ora ré, autorizando o negócio - (E)

6. Em 31/03/98, os pais da ré prometeram vender à ré, então casada com o autor, e esta prometeu comprar-lhes, a fracção autónoma do r/c do lote 381, da Rua do Poço, Casal da Silveira, Famões, Loures, com direito a arrecadação, pelo preço de 20.000.000$00, dos quais 6.500.000$00 foram entregues naquela data- (lº e 2º).

7. Entretanto, autor e ré separaram-se de facto e, em 12/01/00, subscreveram um escrito, nos termos do qual a ré afirmou transmitir ao autor a posição contratual que tinha do contrato-promessa acima mencionado, pagando-lhe este a quantia de 15.000.000$00, sendo 5.000.000$00 até 12/03/2000 e 10.000.000$00 no dia da escritura - (3º e 4º).

8. Por carta de 05/03/2001, foi transmitido ao autor que a ré tinha rescindido o contrato-promessa celebrado com os pais - (5º).

9. Aquando da celebração do contrato-promessa, a construção prometida vender e comprar era clandestina e não tinha licença de habitabilidade - (6º).

10. Por escrito particular de 17/09/99, autor e ré tinham feito um acordo de partilha nos termos do qual acordaram que os direitos do autor no contrato-promessa ficariam para a ré, mediante o pagamento por esta de 10.000.000$00, em prestações mensais de 50.000$00, a iniciar em Outubro de 1999 até à escritura, altura em que pagaria o remanescente em dívida- (7ª a 9ª).

11. Em data não apurada, a ré e seu pai subscreveram um escrito particular, que dataram de 20/12/99, no qual a ré afirma pôr fim ao contrato-promessa acima mencionado - (10º).

12. Por carta de 05-03-01, foi transmitido ao autor que lhe iriam ser entregues 9.250.750$00, tendo em consideração o acordo de partilha, segundo o qual a ré ficaria com os direitos do contrato-promessa, mediante o pagamento de 10.000.000$00 ao autor, e tendo em consideração que faltava pagar pelas partes aos promitentes-vendedores a quantia de 1.498.500$00 - (15º).

13. Por esc. de 06/03/2001, o autor declarou ter recebido do pai da ré 9.250.750$00, que nos termos do acordo celebrado com a ré, em 17/09/99, tinha ficado de receber a quantia de 10.000.000$00; e que, com o valor agora recebido dava quitação total, em relação ao teor desse contrato, nada mais tendo a exigir - (16º).

III. Não se estando ante qualquer das hipóteses contempladas nos art.s 722º nº 2 e 729º nº 3 do CPC (diploma legal a que pertencem os normativos que se vierem a citar sem indicação de outra proveniência), visto, outrossim, o exarado no art. 729º nº 2, a factualidade que como definitivamente fixada se tem é a elencada em II, a qual por despiciendo isso ser, se não reescreve, não havendo, por mor do neste número já dissecado, que como provado, ora, dar, desde logo, o vazado nas conclusões 6ª,12ª - 1ª parte - e 13ª da alegação de A.

Tenha - se, nomeadamente, presente, a resposta restritiva que mereceu o nº 3º da base instrutória e a significância daquela.

Nem como provado se pode ter que o acordo citado na conclusão 3ª da supracitada peça processual "teve por base, entre outras coisas", o naquela explanado.

Trata-se de factualidade que o autor nem sequer articulou no momento, para tanto, processualmente, azado, a petição inicial -art. 467º nº 1 d).

Prosseguindo:

IV. 1. Inocorre dissídio quanto à qualificação dos acordos titulados pelos documentos juntos a fls. 8 ( datado de 12-01-00) e 24 (subscrito a 17-09-99) como contratos-promessa de partilha de bem comum do casal, obviamente que subordinados à condição suspensiva do decretamento do divórcio entre os promitentes.

São válidos, diga-se liminarmente, tais contratos, por via do enunciado nos Acs. deste Tribunal, de 23-03-99, 9-12-99 e 13-03-01, in CJ-Acs. STJ-Ano VII-tomo II, pág. 30 e pág. 132, e Ano IX-tomo I, pág. 161. respectivamente, noutro sentido se não pronunciando Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in "Curso de Direito da Família", vol. I-2ª Edição-Coimbra Editora 2001, págs. 444 e 445.

Isto expresso:

2. Dúvida não sofre que o autor fez assentar a bondade da procedência da acção na acontecida "precisão", por banda de B, do contrato-promessa a que se alude em II.

6. (sem que, anote-se tivesse logrado provar, de tal tendo o ónus, que tal "rescisão" aconteceu sem seu conhecimento, para o prejudicar, em conluio com os progenitores da ré, como brota da resposta restritiva ao nº 5 da base instrutória), "rescisão" essa, na sua tese, causal de dano por si sofrido, não integralmente ressarcido com o recebimento do montante citado em II. 13., ponderado o teor do contrato-promessa de partilha de bem comum do casal titulado pelo documento junto a fls. 8 (também não tendo provado A que subjacente a este último acordo esteve o vertido no art. 8º do articulado primeiro - vide respostas restritivas aos nºs 3 e 4 da base instrutória).

Pois bem:

3. Não por ser minimamente relevante, deixa-se consignado que a data do acordo invocado na conclusão 2ª da alegação do autor, essa, foi a de 12-01-00, tal como, tão só a respeito da questão da litigância de má fé, se deixou, na sentença apelada, enunciando que "a questão submetida a julgamento não era de solução fácil ou linear"!...

Paro que conste! . ., vistas as conclusões 1ª e 2ª.

Como certo, isso sim, temos, na linha, aliás, do decidido nas instâncias, que o decreto, que parcial fosse, da procedência desta acção, vista a sua arquitectura, consubstanciaria defeso olvidar do princípio da proibição do "venire contra factum proprium", manifestação da figura ao abuso de direito contida no segmento do artº 334º do CC que alude aos limites impostos pela boa fé.

Na verdade:

Não está provado que, após ter subscrito o acordo titulado pelo doc. junto a fls. 8, já divorciado, tendo conhecimento da "rescisão" do contrato-promessa a que se alude em II. 6., por parte de B, o autor declarou, não invocando falta ou vício de vontade algum (!...), ter recebido 9.250.750$00 (= 10.000.000$00 - 1/2 de 1.498.500$00 citada na carta junta a fls.9), reportando-se, com claridade total, ao acordo citado em II. 10, tal como o recebimento de tal valor, dava quitação total, em relação ao teor desse contrato, nada mais tendo a exigir?

Quem faz tal declaração, repete-se, aludindo a quantia que tinha a receber no âmbito do primeiro contrato, não está assumir, a significar, que para si vigorava, ainda, a 06-03-01,o acordo titulado pelo doc. junto a fls. 24, que este, em súmula, não tinha como revogado pelo que fls. 8 evidencia, a revogação, aqui se recorda, segundo Antunes Varela, consistindo na "destruição voluntária da relação contratual pelos autores do contrato", assentando " caracteristicamente, no acordo dos contraentes posteriores à celebração do contrato, com sinal oposto ao primitivo", projectando-se tão só para o futuro" (in "Das Obrigações em Geral"-2ª Edição-Almedina 78 -, vol II, pág. 240)?

Na esteira do "expressis verbis" dito na sentença apelada, confirmado pelo acórdão impugnado, respondemos afirmativamente a tal questão.

Não faz sentido algum dar "quitação total" em relação a contrato revogado!...

4. Como, neste contexto, com valimento, sem violação dos limites ditados pela boa fé, não podendo, simultaneamente, vigorar os dois contratos-promessa, atento o seu objecto, querer, agora, com a propositura desta acção, fazer-se valer do "segundo" acordo, para "ampliar o reembolso", obter, enfim, ganho de causa, em flagrante contradição, pelo dilucidado, com comportamento anteriormente assumido, o demandante, aos pais da ré, não tendo alegado ter feito quaisquer pagamentos após 6 de Março de 2001 e (ou) "investimentos com obras no imóvel" após tal data art. 12º da p.i.)?

Não se antolha, sendo, consequentemente, patente o insucesso da pretensão recursória.

5. Em qualquer circunstância, apesar do prescrito no art. 660º nº2 - 1ª parte-, "in fine", sempre acrescentaremos:

Da, nas conclusões da alegação do recorrente, invocada nulidade e anulabilidade do acordo datado de 20-12-99, referido em II.

11:

Na invalidade de tal acordo não fundou, mas manifestamente, o autor a procedência da acção.

De todo o modo, fosse aquela realidade, nela jamais encontraria justo arrimo pretensão indemnizatória de A, sopesado o prescrito no art. 289º do CC.

Há, efectivamente, que não confundir tal acordo e a decorrência da sua invalidade com o contrato-promessa de partilha de bem comum do casal celebrado entre autor e ré, contrato esse que o recorrente alega ter revogado, tacitamente, o celebrado a 17-09-99

É peregrina, no mínimo, a tese do autor, também quanto a este conspecto, uma vez que, tanto a declaração de nulidade, como a anulação, do acordo supracitado, conduziria, ao cabo e ao resto, isso é evidente, à inocorrência do dano cujo ressarcimento é pedido, perscrutada a fonte deste!...

IV. CONCLUSÃO:

Não colhendo o, em prol da concessão da revista, vazado nas conclusões da alegação de A, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se, assim, o acórdão sob recurso.

Custas pelo recorrente (art. 446º n.s 1 e 2).

Lisboa, 21 de Dezembro de 2005

Pereira da Silva,

Rodrigues dos Santos,

Moitinho de Almeida.