Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
24/09.2YFLSB
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
ILICITUDE
TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
- A obrigação de indemnização do lesado com fundamento em responsabilidade pelo risco não tem como pressuposto necessário a pratica de um facto ilícito pelo lesante, não sendo de incluir no âmbito da remissão do art. 499º do C. Civil o concurso dos pressupostos ilicitude e culpa a que alude o art. 483º.
- As normas do Código da Estrada que proíbem o transporte de passageiros de modo a comprometer a sua segurança ou a da condução, ou fora dos assentos dirigem-se ao transportador, como detentor da direcção do veículo e do domínio da acção de transporte;
- Tais normas, directamente dirigidas à protecção da segurança das pessoas transportadas integram as “disposições legais destinadas a proteger interesses alheios”, variante da ilicitude que, a par da violação de direitos subjectivos do lesado, o art. 483º-1 elege como pressuposto da responsabilidade.
-Perante um tal escopo da norma que proíbe a conduta, ocorrido um acidente mortal causalmente ligado ao transporte de passageiro fora dos assentos, por adquirido se há-de ter estar-se perante um dano produzido no típico círculo de interesses privados que a norma visa tutelar, com a consequente qualificação, como ilícita, da actuação do condutor.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA intentou a acção declarativa, para efectivação de responsabilidade civil, contra “BB Seguros, S.A.”, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 22.100.000$00, bem como juros à taxa legal desde a data da citação.
Alegou para tanto e em síntese:
-Ser mãe de CC, que trabalhava como distribuidor de pão, num veículo ligeiro de carga, para a empresa “C... & V...”,;
-No dia 3 de Junho de 1997, após ter entregue o pão numa casa, o CC e o motorista do veículo foram informados de que a senhora da outra casa não estava;
-Devido a esta informação, o motorista arrancou rapidamente, não tendo dado tempo ao filho da A. para se acondicionar e segurar dentro da caixa do carro, cuja porta ia aberta, como usualmente, amarrada por um “barbante”;
-Devido ao arranque brusco do carro e às más condições de segurança, a vítima tombou na estrada, vindo a sofrer lesões traumáticas no crânio, que lhe causaram a morte.

A Ré contestou imputando o evento ao comportamento da própria vítima, causa única do acidente. Suscitou ainda, a falta de legitimidade da Autora para, por si só, demandar a indemnização pela perda do direito à vida da infeliz vítima.
Teve lugar a intervenção principal espontânea de DD, pai da vítima CC, e a provocada de “C... & V..., Ld.ª”, que contestou atribuindo o acidente ao procedimento do falecido.

Após completa tramitação, a acção foi julgada totalmente improcedente.

Mediante apelação da A. e Interveniente DD, a Relação revogou o decidido e condenou a sociedade “C... & V..., Lda.” a pagar-lhes a indemnização de 60.000,00€ e juros, a contar da data do trânsito em julgado do acórdão.


Agora é a Interveniente condenada a pedir revista, visando a absolvição total do pedido, a limitação legal do montante da indemnização a 19.951,92€ e a repartição das custas pelas Partes, na proporção do respectivo decaimento.
Para tanto, argumenta nas conclusões da alegação:
A) A decisão do Tribunal a quo é proferida, não obstante estarmos perante a ausência de um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;
B) Com efeito, in casu, verifica-se que não se encontra preenchido o pressuposto da ilicitude, contido nas disposições que regulam responsabilidade por factos ilícitos, aplicável in casu à responsabilidade civil pelo risco - artigo 499º do Código Civil;
C) Ora, o próprio douto aresto aqui recorrido conclui pela ausência da ilicitude quando refere: «Não havendo, in casu, um facto ilícito, existia norma reflexa protectora de interesses alheios, ou seja, dos transportados, com implicações em termos de responsabilidade pelo risco.»;
D) Pois, não havendo facto ilícito não pode haver responsabilidade fundada na ilicitude e, na ausência advir desta, não pode qualquer responsabilidade pelo risco, nem mesmo perante a existência de uma norma pretensamente «protectora de interesses alheios»;
E) Com efeito, estes interesses reflexamente protegidos não geram responsabilidade civil, pelo que, à data dos factos dos autos, atento o quadro normativo que os regulavam, faltava o pressuposto ilicitude para que houvesse lugar a responsabilidade civil.
F) Além do que, não basta que essa norma aproveite ao particular, é preciso que ela tenha também em vista a protecção dele.
G) Sucede, que no domínio dos acidentes de viação, provada a culpa do lesado e não se provando a culpa do condutor, fica excluída a responsabilidade objectiva, o que se verificou in casu, uma vez que o Tribunal de primeira instância concluiu que a «responsabilidade pela prática da infracção recai sobre o próprio agente; isto é, o passageiro.»;
H) Ademais, o douto aresto viola os limites de indemnização cominados no artigo 508º do Código Civil, na versão desta norma em vigor à data do inditoso sinistro dos autos artigo 12º do Código Civil e artigo 24º da Lei de Organização Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na versão em vigor à data dos factos aprovada pela Lei n.º 38/87;
I) Ao fixar o montante da indemnização no equivalente ao dobro da alçada do Tribunal da Relação, a decisão recorrida não pode fixar o montante da indemnização em valor superior a 19.951,92€, dando, assim, cumprimento ao que dispõe o artigo 508° do Código Civil.
J) Acresce, que as custas do processo devam ser repartidas pelos Autores e pelos Réus na proporção do respectivo decaimento, revogando-se a parte do Acórdão recorrido que condenou a Ré a pagar integralmente as custas devidas na acção.

Os Recorridos responderam, pronunciando-se no sentido da ilicitude e culpa exclusiva do condutor do veículo, acrescentando que os limites da responsabilidade pelo risco sempre serão os do seguro obrigatório em vigor à data do acidente.





2. - Vem definitivamente fixado o quadro factual que segue:

1- CC faleceu em 3-06-1997, com 18 anos de idade.
2- A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, relativamente ao veículo de matrícula UH-00-00, estava, em 3-06-1997, transferida para a demandada seguradora, mediante a apólice nº 90/000000.
3- CC trabalhava para a empresa “C... & V..., Ld.ª”.
4- Como distribuidor de pão.
5- O seu trabalho consistia em sair de manhã da empresa pelas 6h00, para distribuir pão pelos clientes, até depois das 9h00.
6- Saía com o motorista num veículo ligeiro de carga, com caixa, pertencente à 2ª Ré.
8- O CC ia atrás, na parte destinada à carga.
9- Por vezes, o distribuidor do pão, o falecido CC, para fazer aquele serviço, deslocava-se no interior da caixa, na parte de trás, junto da mercadoria. Na caixa do veículo não havia banco, mas apenas um varão metálico onde o falecido se podia segurar.
10- O veículo de matrícula UH-00-00, onde seguia o falecido, na parte dianteira, tinha um banco com três lugares, um para o motorista e dois para acompanhantes.
12- Um dos lugares da frente vinha ocupado com caixas de bolos, para virem melhor acondicionados. No dia em que ocorreu o sinistro, apenas levavam pão.
13- A porta da caixa do carro - que é a porta de trás - ia sempre aberta, para ser mais rápida a distribuição
14- Após ter entregue o pão numa casa, o falecido CC fez-se transportar na caixa isotérmica da carrinha.
15- Quando o falecido seguia na parte de trás da carrinha a porta ia aberta, amarrada por um barbante.
16- Com o andamento da carrinha, o CC tombou na estrada, vindo a sofrer, em resultado dessa queda, lesões traumáticas no crânio que foram causa directa e necessária da sua morte.
17- Com a morte do CC a autora ficou em estado de choque e esteve uma semana na cama.
18- O falecido ganhava cerca de 60.000$00.
19- Era saudável e cheio de vida, como é próprio da idade.
20- CC ajudava os pais, contribuindo com quantias monetárias para o sustento da família.
21- A Autora é auxiliar de acção educativa numa escola e o Réu é coveiro, não possuindo outros rendimentos a não ser os do trabalho.
22- A morte do filho privou-os de receber aquelas quantias.
23- A Autora, nos dias de hoje, ainda sofre com a morte do filho.
24- Após a morte do filho, a Autora ficou com a sua saúde abalada.
25- Desde a morte do filho, a autora passou a frequentar médicos e a tomar medicamentos.
26- O falecido caiu do veículo pela porta que se encontrava aberta.
27- A entidade empregadora do falecido havia-lhe dado ordens para que circulasse sentado nos bancos da cabine, ao lado do motorista, quando procedia à distribuição do pão.
28- Um dos sócios da Ré interveniente proibira outros trabalhadores de seguirem na parte de trás da carrinha aquando da distribuição do pão.
29- O falecido CC tinha ordens expressas da sua entidade empregadora para não viajar no interior da caixa do veículo automóvel que o transportava.
30- O próprio motorista que transportava o CC lhe havia dado ordens para seguir na parte dianteira da carrinha.
31- Por vezes, o CC fazia-se transportar com as pernas penduradas fora da caixa da carrinha.





3. - Mérito do recurso.

3. 1. - A Recorrente defende a sua absolvição do pedido lançando mão de três fundamentos:

- Não se encontrar preenchido o pressuposto da ilicitude, donde não poder haver responsabilidade, mesmo pelo risco;

- A culpa do lesado, não se provando culpa do condutor, excluir a responsabilidade pelo risco;

- O montante máximo da indemnização a título de risco ser o estabelecido pelas normas em vigor sobre a alçada da Relação ao tempo do acidente.




3. 2. – Quanto à primeira questão, a Recorrente situa o ponto de partida da sua argumentação na passagem do acórdão impugnado em que, depois de se invocar as normas dos nºs 3 e 4 do art. 55º do Código da Estrada aplicável - que proibiam o transporte de pessoas de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução e de passageiros fora dos assentos, mas para as quais a mesma lei não previa sanção (hoje contemplada e a recair sobre o transportador) -, havendo-as como “disposição legal destinada a proteger interesses alheios (art. 483º-1 C. Civil)”, se escreveu: «Não havendo, in casu, um facto ilícito, existia uma norma reflexa protectora de interesses alheios, ou seja, dos transportados, com implicações em termos de responsabilidade pelo risco».
Concluiu, depois, pela «responsabilidade conjunta pelo risco, quer do condutor do veículo, quer da sociedade proprietária do mesmo”.

Ora, se se aceitar estar-se perante a modalidade de responsabilidade objectiva ou pelo risco nenhuma censura merecerá fazer assentar a responsabilidade do lesante em facto não culposo e em conduta não ilícita do agente.
Na verdade, diferentemente do que acontece com a responsabilidade e fonte da obrigação de indemnizar por actos ilícitos, prevista no art. 483º e ss. do C. Civil (Secção V – Subsecção I), em que só são ressarcíveis os danos provenientes da facto ilícito e imputáveis a uma conduta culposa do lesante, a responsabilidade pelo risco (Subsecção II) não só não depende de culpa do agente como, porque encontra fundamento no risco próprio de certas actividades, pode “assentar sobre um facto natural (um acontecimento), um facto de terceiro ou até do próprio lesado”, não tendo, assim, como pressuposto necessário a ilicitude da conduta, vale dizer, um facto ilícito do lesante como pressuposto da responsabilidade (A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 660).

Consequentemente, não são de incluir no âmbito da remissão do art. 499º C. Civil o concurso dos pressupostos ilicitude e culpa, a que alude o art. 483º, como se colhe, quanto aos aqui pertinentes acidentes causados por veículos, dos pressupostos de responsabilidade exigidos pelo art. 503º-1 do mesmo diploma, norma que expressamente a faz depender apenas de os danos serem provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

Não assiste, assim, quanto a este ponto, qualquer razão à Recorrente já que para atribuição da indemnização ao lesado com fundamento em responsabilidade pelo risco não é necessária a ilicitude da conduta do lesante.



3. 2. 1. - Suscita, depois, a Recorrente a questão da existência de culpa da vítima, sendo-lhe imputável o acidente, o que exclui a responsabilidade pelo risco.

Invoca a Recorrente, a este propósito, ter-se já sentenciado na 1ª Instância que a morte do CC «… se deveu à sua própria conduta, temerária e irresponsável, à obstinação em não cumprir as ordens a que devia obediência, arriscando a sua própria vida», sendo de “concluir que o acidente se deu por culpa exclusiva do sinistrado. Já que o sinistrado não seguia no veículo sentado num dos assentos, contrariando inclusive as ordens e instruções da sua entidade patronal, conforme resulta dos factos provados sob os nºs 28) e 29)”.

Na sentença teve-se por contra-ordenacional o comportamento da vítima, tida como responsável pelas aludidas contra-ordenações ao art. 55º C.E., imputando-se-lhe exclusivamente o evento.

No acórdão recorrido, diferentemente, considerou-se que a proibição de transporte de passageiros fora dos assentos se dirigia ao transportador, condutor ou dono do veículo, tendo o comando “relevo jurídico extracontratual, incluindo a responsabilidade pelo risco. Mais se considerou não estar ilidida a presunção de culpa do condutor do veículo e, finalmente, concluiu-se haver “responsabilidade conjunta pelo risco, quer do condutor do veículo, quer da sociedade proprietária do mesmo”.

Julgou, pois, a Relação, apesar da fundamentação convocada, exclusivamente com base no risco, fazendo recair a responsabilidade sobre Recorrente, sem ponderar qualquer concurso da vítima para a produção do evento danoso.



3. 2. 2. - Recuperando, como recuperam, as Partes, neste recurso, a questão da responsabilidade subjectiva, trazendo à discussão os seus pressupostos culpa e ilicitude importa, então, proceder à respectiva apreciação e retirar as pertinentes consequências.


Não se discute o incumprimento das normas do art. 55º do C. E., então em vigor (DL n.º 114/94, de 3/5), que, como já dito, proíbem o transporte de passageiros de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução, bem como fora dos assentos (n.ºs 3 e 4).
A proibição é claramente dirigida ao transportador, designadamente ao condutor do veículo, pois que é ele que, tendo a direcção do veículo, tem o domínio da acção de transporte.

Está-se perante disposições da legislação estradal destinadas a proteger a segurança das pessoas transportadas, em que deve incluir-se a integridade física e a própria vida, como expressa a própria norma, bem como, genericamente, a condução como actividade geradora de riscos.

Enquanto norma legal directamente dirigida à protecção da segurança dos ocupantes de veículos, não pode deixar de ser entendida como uma “disposição legal destinada a proteger interesses alheios”, a que se alude no art. 483º-1 C. Civil, cuja violação integra o pressuposto ilicitude aí previsto.
Na verdade, a violação desses preceitos legais não é senão uma forma ou variante da ilicitude, a par da violação dos direitos subjectivos do lesado e assim tratados no mencionado art. 483º.

Depois, e quanto aos concretos requisitos de relevância da violação para efeitos de responsabilidade e indemnização já se disse que, destinando-se a proteger a segurança/integridade física dos passageiros, não podem as normas aludidas deixar de haver-se, para além de protectoras de interesses gerais e colectivos atinentes à segurança do tráfico rodoviário, como também, em especial, directa e finalisticamente tutelares da segurança dos concretos passageiros transportados fora dos assentos e, consequentemente, dos respectivo interesse pessoal de preservação da integridade física.
Por isso, perante um tal escopo da norma, ocorrido um acidente mortal causalmente ligado ao transporte de passageiro fora dos assentos, por adquirido se há-de ter, também, estar-se perante um dano produzido no típico “círculo de interesses privados que a norma visa tutelar” (cfr. A. VARELA, ob. cit., 558).


Assim sendo, a actuação do condutor da viatura, que não impôs o cumprimento da disposição legal, permitindo que a vítima se fizesse transportar na caixa de carga, onde não havia bancos, ao pôr a viatura em circulação de forma que o CC dela caísse pela porta que se encontrava aberta é ilícita, porque violadora dos citados preceitos estradais e do dever de cuidado (omissão do comportamento devido) que o respectivo cumprimento impunha (cfr. PESSOA JORGE, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 67 e ss.).



3. 2. 3. - Passando ao requisito culpa, a imputação a tal título reclama, a um tempo, uma relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado e a possibilidade de formulação de um juízo de censura na imputação do facto.
O juízo de culpabilidade é apreciado pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso, ou seja, segundo um critério da culpa in abstracto, como se estabelece o nº 2 do art. 487º C. Civil.

Do elenco factual provado resulta que, além da predita conduta contravencional, o condutor pôs a carrinha em circulação, com a vítima na caixa de carga, sem se certificar, sequer, que a porta estava fechada, sendo certo até que, de forma “temerária e irresponsável”, condutor e vítima executavam a tarefa de distribuição do pão com a porta de trás sempre aberta, aí se fazendo transportar o falecido, contra as ordens da entidade empregadora.

Violador das regras de condução, a fazer presumir a culpa em concreto, e imprudente e inconsiderado, revela-se também fortemente censurável, logo culposo o comportamento de do motorista da viatura e da vítima.



3. 2. 4. - Aqui chegados, temos então que o acidente e o dano resultaram do concurso de actuações ilícitas e culposas de ambos os intervenientes.

Segundo o art. 570º C. Civil, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Daí a necessidade de graduação das culpas.

Sendo ambas as condutas culposas, questiona-se se, para efeitos indemnizatórios, devem distinguir-se.

Trata-se de proceder à valoração do concurso do facto “culposo” do lesado, como acção livre e consciente representativa dum «acto constitutivo de responsabilidade pessoal», da sua auto-responsabilização, confrontado com o comportamento do motorista, tudo com vista à determinação da medida da sua gravidade.

Temos por certo, por um lado, que alguém que se faz transportar na caixa isotérmica duma carrinha de distribuição de pão, cuja porta de trás ia sempre aberta amarrada por um barbante, para ser mais rápida a distribuição, assume uma posição de autocolocação em perigo, mediante a assunção dos riscos próprios dessa circulação objectivamente contravencional, temerária e com especial aptidão para a produção de acidentes como o que está em apreciação.

Quando tal suceda, a contribuição autodanosa do lesado, por via da assunção voluntária dum risco, traduzido no perigo típico da circulação na viatura em tais condições, parece-nos óbvia.

Do outro lado, e concorrentemente, perfila-se o condutor, também criador imediato do perigo, com conhecimento da exposição voluntária do lesado ao mesmo e da possibilidade de ocorrer o facto danoso.


A tudo acresce, a habitualidade dessas condutas, em cooperante tolerância (pelo menos) do condutor, como denunciado pela matéria de facto apurada, mau grado as instruções em contrário da entidade patronal dos intervenientes.


Tem-se assim por adequado, perante o quadro disponível, em função da conculpabilidade e contribuição para o facto danoso, fixar a respectiva repartição e responsabilidade em metade para o condutor e outro tanto para a vítima, proporção que a indemnização reflectirá.



3. 2. 5. - Não sofre contestação alguma a existência de uma relação de comissão entre o condutor do veículo e a Ré-recorrente, tendo esta na qualidade de comitente, e respondendo, como resulta dos arts. 503º-1 e 3 e 507º C. Civil, nos termos correspondentes à responsabilidade culposa do comissário.



3. 2. 6. - Não vem também questionado o valor fixado aos danos pela Relação em 75.500,00€, o qual, por isso, é de manter.
Desta quantia, a Ré deverá pagar aos AA. 50%, a título de indemnização pela totalidade dos danos reclamados.



3. 3. - Afastada a responsabilidade pelo risco, fica prejudicada a questão do conhecimento dos limites aplicáveis ao montante indemnizatório – art. 660º-2 CPC.



3. 4. - Também, face ao que ficou decidido em sede substantiva, a questão da repartição das custas na condenação (nas custas da acção) constante do acórdão recorrido se tornou supervenientemente inútil, em virtude da sua necessária revisão em função do decidido neste recurso de revista, com repercussão nas decisões das Instâncias, como no lugar próprio se deixará exarado.





4. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:
- Conceder parcialmente a revista, embora por fundamentos diferentes dos peticionados;
- Revogar, também em parte, a decisão impugnada;
- Fixar, reduzindo-a, a indemnização a pagar por “C... & V..., Lda.” a AA e DD, em 37.750,00€ (trinta e sete mil, setecentos e cinquenta euros);
- Colocar a responsabilidade pelas custas devidas neste recurso e nas Instâncias a cargo de ambas as Partes, na proporção do respectivo vencimento.


Lisboa, 7 Maio 2009

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias