Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A1182
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESSUPOSTOS
DANO
RESSARCIMENTO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ200404270011821
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1500/03
Data: 10/22/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I- Um dos pressupostos da responsabilidade civil é o dano, a existência de um dano, existência e não mera hipótese (mesmo quanto a danos futuros, a lei não se contenta com meras hipóteses) - o dano como lesão dum interesse, o dano não é a ofensa mas a consequência nociva da ofensa.
II- Há que separar do objecto do prejuízo a causa da relevância jurídica do mesmo e esta, a causa da relevância jurídica é a frustração dum fim humano, entendendo-se ‘certo fim’ como ‘todos os fins lícitos que se podem alcançar mediante a utilização do bem em causa’.
III- O Direito do mesmo modo que não afasta a ideia de, em princípio, um dano corporal poder ser apenas em si reparável não aceita que todo ele seja em si ressarcível - diversamente, quando o dano se reflecte ou se repercute noutros interesses tutelados pelo Direito (v.g., capacidade de ganho e/ou de trabalho, imagem, prejuízo estético, foro psíquico e/ou psicológico, etc, etc), a sua ressarcibilidade não suscita dúvidas. O que importa ao presente caso é saber se em si este concreto dano biológico o é, despido pois do reflexo que noutro campo teve e já foi considerado (como dano não-patrimonial).
IV- A perda, por atrofia, do testículo direito constitui uma consequência nociva da ofensa, um mal causado à integridade física, bem que a lei protege, e, como tal, é dano biológico (dano corporal) ressarcível e ainda um dano não-patrimonial.
V- A perda, por atrofia, do testículo direito comportando, no concreto caso, uma redução da capacidade de produção de sémen (esperma) deve classificar-se não só como dano (dano funcional) como ainda se reconhecer que se trata de um dano funcional actual e relevante, dano que só por si, sem considerar portanto o seu reflexo noutros domínios, deve ser reparado - e, como a reparação natural não pode ter lugar, nem é susceptível de ser pecuniariamente avaliado, deve ser objecto de compensação (ser o dano só por si reparável não significa que se conhecer repercussão noutro domínio, v.g., na capacidade de ganho e/ou de trabalho deva ser considerado haver danos autónomos; aí ele não representará mais que a causa de um outro que surge no seu desenvolvimento ou como sua consequência).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


"A" propôs contra B acção a fim de por ele ser indemnizado pelos danos patrimoniais e não-patrimoniais sofridos em consequência do acidente de viação culposamente causado por C quando, em 95.05.01, pelas 22h e 45m, na EN 310, ao km 9,741, conduzia, no interesse e sob direcção de D, seu proprietário e sem beneficiar de seguro válido, o veículo ligeiro misto de matrícula CM, no sentido Póvoa de Lanhoso - Caldas das Taipas, embateu, por invadir a sua faixa de rodagem esquerda, face a manobra irregular de ultrapassagem, no motociclo, de matrícula ZX, que, em sentido contrário e pela sua mão de trânsito, circulava e no qual o autor seguia como passageiro.
Contestando, o réu excepcionou a sua ilegitimidade e impugnou recusando existir quer o nexo causal quer os danos na extensão e valoração indicadas pelo autor.
Provocou o autor a intervenção principal de D e de C, incidente que foi admitido.
Contestando, o interveniente D excepcionou a prescrição e impugnou, concluindo pela sua absolvição do pedido.
O interveniente Salazar não contestou.
Prosseguindo até final, a acção procedeu em parte por sentença que condenou o FGA e este interveniente a solidariamente pagarem ao autor a indemnização de 6.993.193$00, acrescendo juros de mora desde a citação e que do pedido absolveu o interveniente D.
Por falta de alegações, foi julgado deserto o recurso de apelação do FGA por despacho que veio a ser anulado por o STJ ter reconhecido, sob agravo, que ocorreu, conforme fora requerido, justo impedimento, o que as instâncias tinham recusado.
Apelando, o FGA defendeu, sem êxito, a revogação da sua condenação a indemnizar por danos patrimoniais futuros decorrentes de IPP (3.500.000$00) e em juros de mora desde a citação.
De novo inconformada, pediu revista, concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- não se provou que o autor tenha perdido capacidade aquisitiva em consequência da lesão sofrida nem da prova de uma IPP decorre automaticamente a perda de capacidade de ganho salarial;
- a concreta lesão não influencia a capacidade normal de exercício da profissão do lesado nem este alegou factos donde se possa concluir que e manutenção do seu status salarial se encontra em perigo nem é provável, atentas as características do caso e as regras de experiência comum, que venha a ocorrer tal;
- os juros de mora sobre a indemnização arbitrada devem contar-se a partir da data da prolação da sentença;
- violado o disposto nos arts. 496, 562, 805 e 566 CC.
Sem contraalegações.
Colhidos os vistos.

Ao abrigo do disposto no art. 713-6, ex vi do art. 726, ambos do CPC, remete-se para o acórdão recorrido a descrição da matéria de facto, destacando-se apenas, por interessar ao objecto da revista, os seguintes factos -
a)- em consequência do embate, o autor sofreu lesões, com perda, por atrofia, do testículo direito e a capacidade de produzir sémen ficou reduzida;
b)- esta lesão determinou para o autor uma IPP de 18%;
c)- à data do acidente o autor trabalhava na Suíça como cozinheiro auferindo a quantia mensal de 192.000$00;
d)- o autor nasceu em 66.08.30.

Decidindo:
1.- No cômputo global indemnizatório, as instâncias atribuíram, à IPP a parcela de 3.500.000$00.
Rebatendo o defendido pelo recorrente a Relação escudou-se no maior esforço que irá o autor desenvolver para obter o mesmo resultado salarial.
Diversamente do acento colocado pela Relação, o autor apenas alegou, a propósito, ter visto reduzida a sua capacidade de produção de sémen, capacidade de erecção e diminuída a sua potência sexual (pet. in.- 42), apenas se tendo provado a redução da capacidade de produzir sémen.
De anterior acórdão que relatamos (de 01.09.27 in rec. 1.988/01) -
«Um dos pressupostos da responsabilidade civil é o dano, a existência de um dano, como afirmou o ac. STJ de 96.07.02, rec. 226/96, 1ª sec. «existência e não mera hipótese (mesmo quanto a danos futuros, a lei não se contenta com meras hipóteses - art. 564,2 CC)».
A. Varela refere (Das Obrigs. em Geral - I, p. 620) que o dano patrimonial é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado - ou diminui o valor de um património ou impede-o de aumentar. Aqui o dano é concebido como uma diferença de valor patrimonial, pelo que, quando não seja possível a reparação in natura, a indemnização se deve reduzir a cobrir essa diferença mediante uma soma em dinheiro, o que o direito não considera geralmente reparação perfeita (Gomes da Silva).
Castro Mendes, estudando o conceito de «dano» (Do Conceito Jurídico de Prejuízo in Jornal do Foro, 1953), manifestou a sua preferência pelo termo «prejuízos» e chama a atenção para as duas vias usadas para o definir, conduzindo uma a ‘prejuízo em si’ e a outra a ‘prejuízo reparável’.
O prejuízo em si é um mal, um evento nocivo, surge como o género, a categoria de que o prejuízo jurídico faz parte. A differentia specifica deste em relação ao género é a sua relevância jurídica e não a sua reparabilidade. O prejuízo jurídico é um mal causado a algo que a lei protege. Este ‘algo’ é o chamado ‘objecto do facto danoso’ e constitui a diferença específica do dano (p. 9).
O dano não pode ser concebido como uma diferença de valor patrimonial (a defeituosa tradução da definição de Paulus induziu a tal - damnum et damnatio ab ademptione et quase diminutione patrimonii dicta sunt), para o direito o dano não interessa apenas no seu aspecto de ‘diferença’, aspecto matemático ou abstracto; mas interessa toda a individualização do objecto efectivamente lesado, a qual será a base da reparação futura (p. 14 e 15). E porque o direito não tutela bens, mas interesses (hominis causa omne ius constitutum est, segundo Modestino) e o interesse, grosso modo, é a reacção ou posição da pessoa perante o bem, o dano não é a subtracção pura e simplesmente, mas a subtracção, enquanto priva o homem de uma utilidade, como escreveu von Tuhr (p. 16 e 17).
O dano como lesão dum interesse, o dano não é a ofensa mas a consequência nociva da ofensa.
Gomes da Silva com razão separa do objecto do prejuízo a causa da relevância jurídica do mesmo e esta, a causa da relevância jurídica é a frustração dum fim humano, entendendo-se ‘certo fim’ como ‘todos os fins lícitos que se podem alcançar mediante a utilização do bem em causa’ (in O dever de prestar e o dever de indemnizar, p. 123)».
A perda, por atrofia, do testículo direito constitui uma consequência nociva da ofensa, um mal causado à integridade física, bem que a lei protege, e, como tal, é dano biológico (dano corporal) ressarcível.
Não está em crise a compensação pelo dano não-patrimonial sofrido em consequência da perda, por atrofia, do testículo direito - as instâncias, e bem, consideraram-no. Apenas é posta em crise a vertente patrimonial com o fundamento considerado pela Relação (embora atribuindo indemnização por dano patrimonial a 1ª instância não justificou a sua existência).

2.- Advirta-se desde já que a eventual procedência da conclusão do recorrente não impõe a revogação do acórdão, como se verá.
Fundamentando a decisão de facto, a 1ª instância faz apelo ao relatório médico junto a fls. 109 e segs. A sua leitura revela-se totalmente inócua em termos de a referenciar à capacidade laboral de cozinheiro - actual e/ou futura (v.g., através da exigência de um maior esforço físico na execução da profissão, o que, se, em regra, ocorre como consequência de um dano corporal já não é tão medianamente evidente quando esse dano corporal tem a expressão e extensão deste concreto) - a IPP antes permitindo relacioná-la à redução que foi dada como provada (se, no geral, se poderia ver na tabela de incapacidades o reporte ao exercício de profissão nem sempre isso surgia como evidente se a relação fosse estabelecida com qualquer actividade laboral e, menos ainda, com a concretamente exercida, independentemente de se poder considerar a hipótese de reconversão desta).
Nem uma palavra sobre o nexo causal entre a lesão em si e a capacidade de trabalho e, como se disse, ele não é in casu evidente, através da experiência comum e da normalidade da vida, no que assiste razão ao recorrente quanto às suas duas primeiras conclusões.
Em termos de reflexo quer na capacidade de ganho quer na capacidade de trabalho não há elementos que autorizem uma conclusão afirmativa seja em termos actuais seja de futuro.
Todavia, a questão não se esgota tão linearmente.
O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264 (CPC- 664).
Alegado e demonstrado um dano corporal. Importa saber se em si é ressarcível, para o que não releva (trata-se de questão de direito) o fundamento invocado pelo autor (valoriza a indemnização de uma forma incongruente - «encontra-se privado de um importante órgão reprodutor, de que resulta, em termos permanentes, numa incapacidade de 18%. Atentos os seus rendimentos de trabalho, resulta numa perda da sua capacidade de ganho anual de 483.840$00» (pet. in.- 31 e 32).
O direito não tutela bens, mas interesses; o dano é a subtracção, enquanto priva o homem de uma utilidade (segundo von Tuhr).
O Direito do mesmo modo que não afasta a ideia de, em princípio, um dano corporal poder ser apenas em si reparável não aceita que todo ele seja em si ressarcível - diversamente, quando o dano se reflecte ou se repercute noutros interesses tutelados pelo Direito (v.g., capacidade de ganho e/ou de trabalho, imagem, prejuízo estético, foro psíquico e/ou psicológico, etc, etc), a sua ressarcibilidade não suscita dúvidas. O que importa ao presente caso é saber se em si este concreto dano biológico o é, despido pois do reflexo que noutro campo teve e já foi considerado (como dano não-patrimonial).
Conquanto se discorde que à «disfunção psicossexual correspondente a perturbação de inibição da excitação sexual e inibição do orgasmo integra incapacidade funcional do corpo» (do ac. do STJ de 99.10.28 in CJSTJ VII/3/68) se atribua, como reflexo automático, uma diminuição da capacidade de trabalho (como se o referiu antes, e, in casu, apenas estamos perante uma redução da capacidade de produzir sémen, e não de uma inibição), o concreto dano, pondo em causa «uma alteração funcional da pessoa que afecta a sua integridade física, impedindo-a de exercer determinada actividade corporal ou sujeitando-a a exercitá-la de modo imperfeito, deficiente ou doloroso» (loc. e op. cits), tem relevo jurídico na vertente de dano patrimonial (enquanto dano funcional), dano que não é futuro e é ressarcível.
Na realidade, trata-se de uma das duas glândulas reprodutoras do homem, de um órgão a que incumbe a importante função de segregar o elemento primordial do esperma, os espermatozóides.
A perda, por atrofia, do testículo direito comportando, no concreto caso, uma redução da capacidade de produção de sémen (esperma) deve classificar-se não só como dano (dano funcional) como ainda se reconhecer que se trata de um dano funcional actual e relevante, dano que só por si, sem considerar portanto o seu reflexo noutros domínios, deve ser reparado - e, como a reparação natural não pode ter lugar, nem é susceptível de ser pecuniariamente avaliado, deve ser objecto de compensação (não se extrapole a conclusão - ser o dano só por si reparável não significa que se conhecer repercussão noutro domínio, v.g., na capacidade de ganho e/ou de trabalho deva ser considerado haver danos autónomos; aí ele não representará mais que a causa de um outro que surge no seu desenvolvimento ou como sua consequência).

3.- O recorrente pretende se negue a ressarcibilidade. Conclui-se diversamente.
Importa quantificar a indemnização.
No mais se contém o menos - no pedido de abolição da atribuída inclui-se que, a não vingar, outra menor seja concedida.
Trata-se de um dano patrimonial que apenas pode ser valorado e não avaliado.
A indemnização deste concreto dano apenas pode ser obtida através da equidade.
Face à extensão provada - tão só a redução de capacidade de produção de sémen - não é de manter o valor que, a outro título e fundamento, fora atribuído.
Atenta a idade do autor e a «medida qualitativa e quantitativa», perdoe-se a expressão, em termos de disfunção sexual não se justifica que se atribua mais que 2.500€, tem-se por adequado este valor como indemnização deste concreto dano patrimonial.

4.- Na sentença expressamente se refere que a indemnização atribuída tinha em conta a inflação ocorrida entre a data do acidente e a da citação, por outras palavras, a actualização reportava-se a este último e não ao da sentença. A Relação não procedeu a qualquer actualização (o que é diverso de ser ou poder ser diversamente quantificada, o que também aqui não ocorreu).
A indemnização moratória não podia, portanto, deixar de ser reportada a essa data.
A indemnização total (19.904€) vence juros de mora, à taxa sucessivamente em vigor, desde esse momento.

Termos em que se concede, em parte, a revista e se fixa a indemnização global a pagar ao autor em 19.904€, acrescida de juros de mora desde a citação, à taxa sucessivamente em vigor desde esse momento.
Custas pelo autor, na proporção de 1/5 não sendo os restantes 4/5 devidos por delas estar isento o recorrente.

Lisboa, 27 de Abril de 2004
Lopes Pinto
Pinto Monteiro
Lemos Triunfante