Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2929
Nº Convencional: JSTJ00001965
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: COMPRA E VENDA
ARRENDAMENTO RURAL
QUALIFICAÇÃO
Nº do Documento: SJ200207290029297
Data do Acordão: 07/29/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2443/02
Data: 05/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROCED CAUT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 1022.
DL 385/88 DE 1988/10/25 ARTIGO 1 N1.
Sumário : Não constitui arrendamento rural o contrato em que o dono de um prédio rústico cede o direito de, ali, apascentar um rebanho, mediante remuneração, com mera intenção, conhecida da outra parte, de vender a pastagem.
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
I
Razão do agravo
1. A, instaurou procedimento cautelar comum, contra a B, requerendo que esta seja intimada, na pessoa do seu legal representante, a abster-se de qualquer conduta que possa vir a afectar o gozo pela requerente de certo imóvel, que identifica, nomeadamente arrancando, destruindo ou de qualquer modo danificando vedações e construções destinadas ao abrigo de animais, palheiro e recolha de alfaias agrícolas.
Alegou , em síntese:

1.2 A requerida é dona de um prédio misto sito no Carro Quebrado, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente, descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob o n° 1999, dessa freguesia, estando a parte rústica inscrita na matriz sob o art° 2° da secção L, e as partes urbanas inscritas na matriz, sob os arts. 4362 a 4371.
No início de 1989, a anterior proprietária, "C", cedeu à requerente o gozo da parte rústica do prédio mencionado, pela retribuição anual de 300.000$00.
A requerente tem vindo desde então a explorar a parte rústica do prédio, fazendo-o continuadamente.
A retribuição anual ultimamente fixada é de 385.000$00.
No documento assinado pela RDP e pela requerente consta a menção .. "compra e venda de pastagens ".
A exploração agrícola e pecuária do prédio em causa foi efectuada pela requerente nas condições de uma normal utilização.
Os donos do prédio nunca semearam ou cultivaram o que quer que fosse na parte rústica do mesmo.
Apesar da designação nele constante, o contrato celebrado pela requerente é de arrendamento rural.
A requerida recusa-se a reconhecer à requerente a plenitude dos seus direitos de arrendatária rural.
Na parte rústica do prédio incluem-se os telheiros, "cobertos" e arrecadações destinadas a abrigo de animais, palheiro e recolha de alfaias. A requerente procedeu à vedação total desse prédio, para contenção do gado nos limites do mesmo.
No dia 14/7/99, compareceram no prédio diversos indivíduos, que comunicaram à requerente virem do administrador da requerida, com a incumbência de avisar a requerente, que iriam proceder brevemente ao derrube das vedações e de todas as construções existentes na parte rústica para abrigo de animais, palheiro e recolha de alfaias.

A destruição das vedações porá em causa a sobrevivência do gado, já que os animais se escaparão, correndo sério risco de sofrerem lesões irreparáveis.
2. Após várias vicissitudes que não releva para aqui reportar, a requerida deduziu oposição à concessão da providência, alegando que não existe qualquer arrendamento rural, pois o que ocorreu foi a venda anual das pastagens - ou da erva do prédio - a interessados para tal.
2.1 A venda do pasto permitia uma pequena contrapartida, bem como evitar trabalhos de limpeza e desmatagem.
O contrato visava exclusivamente a venda de pastagens e era de duração anual. E limitava o direito da requerente a apascentar um rebanho não superior a 200 cabeças de gado ovino, permanentemente vigiado por pastor.
Nunca foi reconhecido à requerente o direito à exploração agrícola do prédio, nem à construção de telheiros ou arrecadações.
Em 25/10/95, a anterior dona do terreno, D, comunicou à requerida por carta registada com aviso de recepção, a denúncia do contrato de venda das pastagens, com efeitos em 31/12/95 - o que a requerente aceitou. E por isso nunca mais, a partir dessa data, pagou qualquer quantia aos donos do imóvel.
Assim, a requerente não possui qualquer título que a legitime ocupar o prédio.

3. Foi proferida decisão que indeferiu a requerida providência, por insuficiência de prova da existência do direito alegadamente ameaçado.
A requerente agravou. E a Relação de Lisboa decidiu assim, na parte que releva conhecer:
«Não constam dos autos os elementos de prova que serviram à decisão da matéria de facto.
«Mas é indubitável que tal matéria de facto está inquinada pela existência de prova de factos que se contradizem mutuamente. Muito em especial os factos constantes dos nºs 4 e 43, embora outros factos com eles ligados e a que acima fizemos referência, pareçam também excluir-se uns aos outros».
«Assim não podemos evitar de lançar mão do disposto no artigo 712°, n° 4 do C.P .C. já que a contradição que atinge a matéria de facto incide exactamente sobre a questão fundamental, a saber, a caracterização do contrato celebrado pela requerente com a Radiodifusão Portuguesa. É impossível apreciar a causa, sem que sejam removidas as contradições da matéria de facto dada por provada».
«Acorda-se pois em anular a decisão recorrida, ordenando a repetição do julgamento. Tal repetição versará as circunstâncias caracterizadoras do contrato que as partes quiseram efectivamente celebrar, sem embargo da prova de outra factualidade que evite novas contradições».

«Custas a final pela parte vencida».
4. Daí novo agravo, agora proposto pela requerida da providência cautelar - a B.
II
Objecto do agravo
O objecto do agravo é traçado pelas conclusões da recorrente, conforme dispõem os artigos 684º-3 e 690º - 1, 2, 3 e 4, ambos do Código de Processo Civil.

São as seguintes:

1° A matéria de facto tem de ser analisada no seu todo.
2° Dentro do quadro global da matéria de facto dada como provada inexiste qualquer contradição relevante e que não possa ser esclarecida com o conjunto de factos provados.
3° Andou mal o Tribunal da Relação ao ordenar a repetição do julgamento, pois, inexiste qualquer contradição e, conforme se havia decidido, a então requerente não lograra fazer a prova da aparência do seu direito.
4° Violou-se, pois, o artigo 712°, n° 4 do CPC, que não deveria ter sido aplicado, devendo-se substituir o douto acórdão por outro que confirme "in totum" a decisão da 1ª Instância.
III
Matéria de facto apurada
É a seguinte a matéria de facto apurada que tem importância para conhecimento do objecto do agravo, tal como ficou enunciado em II:
A) A requerida e as anteriores proprietárias, nunca tiveram a intenção de dar de arrendamento o imóvel em causa para finalidades de exploração agrícola/pecuária.
B) Nem nunca foi essa a aptidão do imóvel descrito nos autos.
C) Desde 1984, que era prática comum, face à existência de terreno em excesso e incultivado na área onde se situavam as antenas e respectivas estacas, vender anualmente as pastagens - melhor dizendo a erva - do prédio rústico do Porto Alto, a interessados para tal.
D) A venda do pasto permitia uma pequena contrapartida, bem como evitava trabalhos de limpeza e desmatagem. "
E) De 1989 a 1995, foi o Sr. E, gerente da ora requerente, que se mostrou interessado na compra anual das pastagens.
F) O contrato tinha como único objecto a venda de pastagens.
G) O contrato limitava o direito da requerente à apascentação de um rebanho não superior a 200 cabeças de gado ovino.
H) A requerente, por intermédio do seu sócio gerente, F, sempre aceitaram as condições contratuais referidas.
I) Os proprietários do terreno nunca reconheceram à requerente o direito a cultivar o prédio.
J) Desde Janeiro de 1996, nunca mais a requerente se dirigiu à requerida.
L) Desde então, nunca mais pagou nada à requerida.
M) Desde essa data, nunca mais a requerente contactou o proprietário do imóvel para qualquer efeito, nomeadamente o de apresentar uma proposta de compra das pastagens, como costumava fazer anteriormente.
IV
Direito aplicável

1. Reduzido a uma expressão simples, que facilita a sua compreensão e análise, o problema do agravo consiste em saber se a sociedade requerente da providência cautelar é, ou não, titular de um direito de arrendamento rural relativamente ao imóvel, onde se situam as construções e vedações, cuja demolição pretende evitar cautelarmente.
No tratamento do tema, e tendo também em conta como limite, o que vem, e como vem, decidido pela Relação, consideraremos dois aspectos essenciais que esgotam o exame:
- As invocadas contradições que levam a Relação a mandar repetir o julgamento;
- A existência ou não do contrato de arrendamento rural, segundo a vontade real das partes, que legitime a providencia cautelar solicitada. Por fim, retiraremos:
- A síntese do resultado do tratamento, assim empreendido.,
2. Vejamos o primeiro aspecto enunciado:
A Relação considerou, partindo da matéria de facto (fls.321), que se deu como provada, que o antigo dono proporcionou o gozo do prédio rústico à requerente, mediante retribuição (facto 4º).
E concluiu: «Dir-se-ia que o requerente lograra fazer a prova da existência de um contrato de arrendamento rural, nos seus elementos essenciais, ao mesmo tempo que afastava a possibilidade de ter existido um contrato de compra e venda de pastagens».
«Dá-se ainda como provado, mais adiante, que a requerida e as anteriores proprietárias, nunca tiveram a intenção de dar de arrendamento o imóvel em causa para finalidades de exploração agrícola-pecuária ( facto n.º32) e que o contrato tinha como único objecto a venda de pastagens ( facto n.º43)».
E remata: « Quer dizer: ficou provado que o então proprietário cedeu o gozo da parte rústica mediante retribuição e deu-se igualmente como provado que o contrato tinha como único objecto a venda de pastagens, dando-se afinal como provadas as versões da requerente e da requerida». (fls. 322).
Fica assim circunscrita a contradição do julgado, na tese da Relação, que conduz à sua anulação, remetendo para novo julgamento.
2.1. Ora bem. O suporte de qualquer exame de um objecto, não pode isolar alguns aspectos ponderativos do contexto geral em que todos os aspectos se inserem.
Nada, aliás, pode ser visto isoladamente, sobretudo tratando-se de acontecimentos humanos.
Claro, que é também assim na avaliação ético-normativa, cuja convocação aqui é feita, perante o apuramento factual que se recolhe da elaboração da prova.
A avaliação é integrada, afastando as significações linguísticas singelas que potenciam o perigo da inaptidão da palavra para traduzir a transparência perfeita do real, evitando que a parte se tome pelo todo da mesma realidade.
Nem sempre desta, a assimilação é fácil, pelos contornos dissuasores que marcam a complexidade artificial das coisas - de todas as coisas, que simples são á partida, mas que o Homem pode confundir, a benefício do que lhe interessa, seja induzido pelo lado do espírito, seja induzido pelo lado da matéria.

2.2. Dito isto, visando o enquadramento mais geral do conflito a decidir no aspecto da contraditoriedade assinalada pela Relação, recuperemos para este lugar do discurso, a realidade que o processo revela (não temos outra), através da matéria de facto julgada livremente, segundo a prudente convicção do julgador, que imediou a prova, dando dela conta através de razão de ciência, e motivando devidamente a convicção que firmou (fls.228/231v), a qual se consolidou, não tendo havido, em tempo útil, qualquer reclamação, sobre o assim firmado.
Então, é assim, na vertente mais incisiva da matéria de facto que releva considerar:
A requerida e as anteriores proprietárias, nunca tiveram a intenção de dar de arrendamento o imóvel em causa para finalidades de exploração agrícola/pecuária.
Nem nunca foi essa a aptidão do imóvel descrito nos autos.
Desde 1984, que era prática comum, face à existência de terreno em excesso e incultivado, na área onde se situavam as antenas e respectivas estacas, vender anualmente as pastagens, ou ervas, do prédio rústico questionado, a interessados em comprá-las.
A venda do pasto permitia uma pequena contrapartida, bem como evitava trabalhos de limpeza e desmatagem.
De 1989 a 1995, foi o Sr. E, gerente da requerente, que se mostrou interessado na compra anual das pastagens.
O contrato tinha como único objecto a venda de pastagens.
O contrato limitava o direito da requerente à apascentação de um rebanho não superior a 200 cabeças de gado ovino.
A requerente, por intermédio do seu sócio gerente, José Salvador, sempre aceitou as condições contratuais.
Os proprietários do terreno nunca reconheceram à requerente o direito a cultivar o prédio.
Desde Janeiro de 1996, nunca mais a requerente se dirigiu à requerida, nada mais lhe pagando.
Desde essa data, nunca mais a requerente contactou o proprietário do imóvel para qualquer efeito, nomeadamente, o de apresentar propostas de compra das pastagens, como costumava fazer anteriormente.
E ainda, como decorre da petição do requerente (Parte I, ponto 1.2):
No início de 1989, a anterior proprietária, "C", cedeu à requerente o gozo da parte rústica do prédio mencionado, pela retribuição anual de 300.000$00.
No documento assinado pela RDP e pela requerente consta a menção " compra e venda de pastagens ".
2.3. O conjunto exposto encerra o núcleo essencial da matéria de facto apurada, onde, a nosso ver, não se revela incoerência alguma.
Quando a decisão recorrida aponta como decisivos - com vista a refazer a matéria de facto, que reputa contraditória - em especial, os factos 4º, 32º e 43º transcritos, não pondera a possibilidade, porventura mais laboriosa, da sua conciliação no contexto integrado que se acaba de descrever nos pontos 2.1 e 2.2, que antecedem.
Por outro lado, mesmo singularizando-os, no quadro isolado do tratamento avaliativo com que a Relação os ponderou, talvez valha a pena reponderar, o seguinte:
o antigo dono do prédio proporcionou o gozo do prédio rústico à requerente, mediante retribuição. E daí, pergunta-se: em que consistiu esse gozo da coisa? Por certo, na sua fruição! mas de que modo? extraindo que utilidades?
Ora, proporcionar o gozo de um prédio rústico é algo que não caracteriza quais sejam as utilidades concretamente consentidas, pelo dono, cedente, à outra parte.
Portanto, o "facto n.º 4" só vale em função de todo o conjunto da matéria em que se integra, relativamente aos poderes de que beneficiou o "cessionário".
Ceder o gozo, secamente, não é especificar a sua consistência.
É que podemos estar perante um contrato precário que traduz a fruição temporária de uma coisa, como objecto negocial submetido a um regime real ou obrigacional, para aproveitamento das utilidades que esse objecto pode proporcionar ao fruidor.
Por esta linha de pensamento, quer-se observar que não se pode fechar a porta, desde logo, à hipótese de um simples direito ao apascentamento remunerado, quer consistindo no gozo da terra (uso) para a obtenção do pasto e posterior corte; quer na utilização da terra, para directamente aí, o gado ser apascentado.
Configuração esta que, também não exclui a existência de um negócio jurídico de compra e venda da pastagem, tal como designado no contrato, como reconhece o requerente no artigo 9º da petição ( fls.3), ou o direito de apascentar o gado ovino (artigo 12º, fls.4).
Pode não haver entre todos estes possíveis conteúdos negociais, uma relação de inconciliabilidade.
Certo é, por agora, que qualquer dos conteúdos negociais, não configura fatalmente, um contrato de arrendamento rural, com exclusão de outro tipo contratual puro ou misto.
Em termos técnicos: qual(?) o conteúdo da obrigação assumida por ambas as partes, atenta a autonomia e a liberdade de prestações negociais a que estão associados, em geral, os contratos de direito civil, onerosos ou não? ( artigos 398º-1 e 405º, do Código Civil).
A cedência ou fruição não significa necessariamente uma vinculação locativa, na definição assinalada no artigo 1º-1 , do Decreto-Lei n.º385/88, de 25 de Outubro e no artigo 1022º do Código Civil, (quando define locação).
Voltaremos adiante a este propósito, quanto à forma do negócio jurídico.
O que dito fica, quer significar que não se afiguram reveladoras de contradição, podendo ser conciliáveis, as respostas dadas aos quesitos referenciados pela Relação, nomeadamente o que respeita à fruição do imóvel rústico, quando reportadas ao contexto do apuramento geral da prova em que estão integradas, ao particularizar a fruição.

3. Ponderemos o segundo aspecto: o da existência de prova reveladora do contrato de arrendamento rural, ou, no mínimo, de aparência do direito de arrendamento, matriz geradora do pedido da providência requerida.
No fundo, é, verdadeiramente, o aspecto que interessa à causa, quer cautelar, quer principal.
Como é de lei (artigo 383 n. 1, do Código de Processo Civil), o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado.
A causa pende e já foi julgada improcedente na primeira instância (fls. 287), embora sem trânsito (ao que se supõe, manter-se, neste momento).
E o direito acautelado é o invocado arrendamento rural de que é alegadamente titular a requerente da providência - e autor na acção principal em que aquela causa se objectiva, reclamando o reconhecimento do contrato de arrendamento.
A providência cautelar suporta-se no fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, cautela concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
Supõe assim, e cumulativamente, como é sabido, a existência ou, pelo menos, a aparência do direito; e o justo receio de que alguém venha a praticar actos susceptíveis de causar lesão grave ou de difícil reparação - o que a providência pretende evitar.

3.1. Voltemos aos factos.
Está fora de questão a verificação, quer da ameaça, quer da seriedade da sua natureza, bem como o receio correspondente do suposto titular do direito ameaçado.
Mas que direito? O direito de arrendamento rural, responde o requerente, ao sustentar a sua tese ( fls.3 - artigos 3º a 6º), excluindo qualquer das vinculações negociais, acima faladas. (Ponto 2.3).
É o aspecto nuclear, agora a ter em conta no exercício, e como já foi sinalizado, há pouco.
Efectivamente os elementos indicados no ponto III, e retomados em 2.2., não configuram a aparência ou o fumo ( na clássica expressão) do direito ao arrendamento rural, propulsor do direito real de aquisição que a preferência envolve, na alienação feita do imóvel questionado, aparente e objectivamente, verdadeiro móbil de todos os mecanismos judiciários que foram desencadeados, sendo a providência cautelar, o ponto de partida.
De novo, e também aqui, não há lugar a iludir a realidade, assimilando-a, no contexto integrado que já foi sublinhado, relativamente ao primeiro aspecto tratado!
3.2. Numa outra perspectiva, e com vista à economia do conhecimento do objecto do agravo, coloquemos, agora directamente, a questão de saber, se nos confrontamos, ou não, com os elementos probatórios reveladores de um contrato de arrendamento rural - única averiguação que releva, em função daquela economia e da causa de pedir em que a providência se sustenta e desenvolve. (Artigos 4º, 5º, e 6º, da petição , fls. 3).
Tudo se reconduz - e racionalizando, pela positiva, o único problema que interessa solver - se o conjunto da prova fornecida nos leva a concluir, no mínimo, por um "bom fumo do direito invocado", qual seja, o que consubstancie um contrato de arrendamento rural.
Ora, como decorre daquele conjunto, que já se analisou, é seguro, que não resultam elementos indiciários da existência do direito de arrendamento rural, ou sequer, no limite, da sua aparência, a benefício da sociedade requerente, enquanto direito ameaçado, que sustenta o pedido cautelar.
Está em causa demonstrar o direito ao arrendamento, ou apenas a aparência dele, com vista ao sucesso da providência requerida (fls.8). Nada se provou que revele semelhante vontade negocial.
Resta-nos um elemento determinante na busca negativa dessa vontade.
Nos negócios formais, como é o caso, a vontade das partes não pode valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expressa (artigos 3 do Decreto-Lei n.º 385/88, exigindo a forma escrita, e 238 n. 1, do Código Civil, estabelecendo o critério de interpretação da vontade nos negócios formais).
A verdade é que, a este propósito, já se disse, transcrevendo a própria petição do requerente (Parte I, ponto 1.2) , o seguinte:
«No início de 1989, a anterior proprietária, "C", cedeu à requerente o gozo da parte rústica do prédio mencionado, pela retribuição anual de 300. 000$00».
«No documento assinado pela RDP e pela requerente consta a menção " compra e venda de pastagens " ».
Por muito que a requerente tente convencer que, apesar da designação nele constante, o contrato celebrado pela requerente é de arrendamento rural, não pode, a nosso ver, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduzir objectivamente, esse convencimento, quando considere, no seu conjunto, o quadro de facto reproduzido, como também os critérios que, sobre a interpretação do negócio jurídico, fornecem os artigos 236º-1 e 238º-1, este já aludido, ambos do Código Civil.
3.3. Ainda duas palavras finais, sobre a decisão recorrida:
Sendo, como é, a questão fundamental, na sua tese, « a caracterização do contrato celebrado pela requerente com a Radiodifusão Portuguesa, só sendo possível apreciar a causa, removidas que sejam certas contradições da matéria de facto dada por provada e, por isso, se anula a decisão, com repetição do julgamento, para que a repetição verse as circunstâncias caracterizadoras do contrato que as partes quiseram efectivamente celebrar», contraponha-se, então que, o que se revela com clareza, é que o requerente não cumpriu o ónus que lhe cabia (artigo 342 n. 1, do Código Civil) de demonstrar a vontade real de ambas as partes de celebrarem um contrato de arrendamento rural - que era o direito, ou aparência dele, fundador da providência que requereu.
Por outro lado - é a segunda palavra - à sensibilidade do julgador faz pouco sentido a repetição do julgamento, numa altura em que já se decidiu da matéria de facto em primeira instância, na acção principal, que improcedeu, sem trânsito, nos termos já assinalados.
Repetir-se, agora - voltando ao princípio, em simultâneo com o curso da acção principal - a prova relativa à mesma legitimação do título da recorrida para uma providência, urgente por matriz, que já vai a caminho de quatro anos, ... aos olhos do julgador, insista-se, sem ser decisivo ou determinante para a decisão deste procedimento, é todavia um factor de ponderação que não pode ser neutro a uma Justiça equilibrada, no estado actual de pendência do conflito, sem prejuízo de se reconhecer que a Relação ainda poderá, porventura, alterar a matéria de facto, na acção principal cuja improcedência se assinalou.
Mas aí já será na acção principal (em outra sede), com outras garantias de que uma providência cautelar não beneficia!
4. Condensando todo o pensamento desenvolvido: A procedência do pedido passava pela demonstração de que a requerente era arrendatária do imóvel rústico, ou, no limite, demonstrasse "um bom fumo desse direito".
Ora, ainda que a lei se baste com a demonstração de uma simples aparência do direito da requerente ao arrendamento rural, que invocou como causa de pedir, certo é que do quadro probatório que foi apurado, não decorre a demonstração dessa aparência.
V
Decisão
Termos em que, ponderando todo o exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em conceder provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida, ficando a subsistir a sentença de primeira instância que julgou improcedente a providencia cautelar requerida.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 29 de Julho de 2002.
Neves Ribeiro,
Leal Henriques,
Manuel Pereira.