Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | LUÍS FONSECA | ||
| Descritores: | INCUMPRIMENTO DEFINITIVO EMPREITADA | ||
| Nº do Documento: | SJ200302270046062 | ||
| Data do Acordão: | 02/27/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 589/02 | ||
| Data: | 05/21/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Sumário : | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A" demanda "B", pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 1.053.250$00 acrescida dos juros vincendos a contar da citação, à taxa de 10%. Alega para tanto que, sendo empreiteiro de construção civil, contratou com a ré uma empreitada, tendo prestado serviços extra no montante do pedido e que esta se recusa a pagar. Contestou a ré, negando tais factos. E reconveio, pedindo: a) que se declare a resolução do contrato de empreitada, celebrado em 1 de Agosto de 1995, e se reduza a prestação da ré, a título de preço contratado, à quantia de 19.160.000$00; b) a condenação do autor/reconvindo, a restituir-lhe a quantia de 3.340.000$00 que recebeu a mais; c) a condenação do autor/reconvindo a pagar-lhe a quantia de 6.000.000$00 a título de indemnização pelos prejuízos causados - acrescida de juros de mora vencidos desde a notificação até pagamento. Pediu ainda a condenação do autor, como litigante de má fé. Alega para tanto que o autor/reconvindo abandonou a obra sem a ter concluído, causando-lhe prejuízos na quantia pedida. Replicou o autor/reconvindo que se pronunciou pela improcedência da reconvenção, ampliou o pedido de condenação da ré na quantia de 500.000$00 e pediu a condenação da ré/reconvinte, como litigante de má fé, em multa e indemnização. Saneado e condensado, o processo seguiu seus termos normais, realizando-se a audiência de julgamento. Foi proferida sentença onde, julgando-se parcialmente procedente a acção, se declarou que a ré não pagou ao autor os trabalhos que, a seu pedido, executou para além dos inicialmente contratados, no valor de 969.052$00. Julgou-se também parcialmente procedente a reconvenção, condenando-se o autor a pagar à ré a quantia de 3.340.000$00 a título de indemnização pelos prejuízos causados com o abandono da obra e consequente incumprimento parcial e definitivo do contrato de empreitada entre ambos celebrado. Feita a necessária compensação, foi o autor condenado a pagar à ré a quantia de 2.370.948$00 acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a notificação do pedido reconvencional até integral pagamento. Condenaram-se ainda, como litigantes de má fé, o autor em 10 UC e a ré em 5 UC - esta também em indemnização que vier a apurar-se. Autor e ré apelaram, fazendo-o esta subordinadamente, tendo a Relação do Porto, por acórdão de 21 de Maio de 2002, negado provimento a ambos os recursos, confirmando a sentença recorrida. Autor e ré interpuseram recursos de revista para este Tribunal, fazendo-o a ré subordinadamente. O autor conclui, assim, a sua alegação do recurso: 1- Na resposta à contestação/reconvenção o ora recorrente alegou factos constantes dos artigos 8º, 9º, 10º e 11º que aqui se dão por reproduzidos, os quais, a serem provados, nomeadamente o facto referido no artigo 11º, prejudicaria a tese do reconvinte. 2- Tais factos, com relevante interesse para a decisão da causa, não foram incluídos no questionário. 3- Na reconvenção o recorrido peticiona, além do mais, um quantum indemnizatório alegadamente despendido com trabalhos não executados pelo recorrente. 4- Todavia, o recorrido nunca denunciou o contrato de empreitada celebrado com o recorrente. 5- O recorrido, apenas um mês depois do recorrente ter abandonado a obra por alegadamente a ter concluído, é que envia uma carta, aludindo vagamente a trabalhos não executados. 6- A unidade e harmonia do sistema jurídico impõe que as normas concretas que disciplinam os defeitos das obras se apliquem aos casos de alegado abandono, não fazendo qualquer sentido que apenas por faltarem pinturas, telhas, soalho, o dono da obra possa substituir-se ao empreiteiro. 7- O alegado abandono tem de ter um comprovativo que se não limite à mera e falível prova testemunhal sem se correr o risco de privilegiar o dono da obra em detrimento dos interesses do empreiteiro, o que o direito não admite. 8- A analogia, por a figura do abandono não ter sido directamente prevista pelo legislador, impõe-se em nome da citada harmonia e unidade do sistema jurídico e da igualdade do todos perante a lei, nos termos do art. 10º do Cód. Civil. 9- O recorrente fez juntar aos autos as escrituras de constituição de propriedade horizontal, bem como uma escritura de compra e venda de uma das fracções, onde o recorrido declara que todas as fracções estão aptas aos fins a que se destinam. 10- Embora sobre tais factos seja possível prova testemunhal, esta não pode prevalecer sobre o valor probatório imposto pela lei. 11- O conteúdo dos documentos juntos, escrituras de constituição de propriedade horizontal e escritura de compra e venda duma das fracções, por se achar intimamente ligado ao pedido do reconvinte e ter relevante interesse para a decisão da causa, é questão importante e não mera razão ou argumento, devendo o Tribunal pronunciar-se sobre o valor de tais documentos, como impõe a alínea d) do art. 668º do C.P.C., sob pena de nulidade por omissão de pronúncia. 12- A má fé que releva para os efeitos do disposto no art. 456º do C.P.C., é a lide essencialmente dolosa e não já a mera conjuntura do julgador. 13- Pode perfeitamente admitir-se, face aos elementos constantes do processo que, a ser outro qualquer julgador, a decisão podia ter sido diferente, o que basta para afastar a litigância de má fé. 14- Foram violadas as normas dos arts. 511º, 653º, nº 2, 668º, al. d) e 456º, todos do C.P.C., e arts. 10º, 364º, 376º, nº 2, 1.220º, 1.221º e 1.222º, todos do Cód. Civil. Não houve contra alegações. A ré conclui, assim, a sua alegação do recurso: 1- A oposição deduzida pela ré/recorrente na sua contestação/reconvenção não foi infundamentada, nem tão pouco é passível de ser considerada como consubstanciando uma conduta dolosa ou com negligência grave. 2- Pelo que, ao condenar a ré/recorrente como litigante de má fé, a sentença, confirmada pelo acórdão recorrido, realizou uma errada interpretação e aplicação do disposto no art. 456º, nº 2, al. a) do C.P.C. 3- Finalmente, quando assim não se entenda, o que não se espera, a condenação da ré/recorrente, como litigante de má fé, em indemnização a apurar a favor do autor, configura, no caso dos autos, a realização de um verdadeiro abuso de direito por parte do recorrido que, naturalmente, a ratio do disposto nos arts. 456º e 457º do C.P.C., não permite, de todo em todo. Não houve contra alegações. Corridos os vistos, cumpre decidir. As instâncias julgaram provados os seguintes factos: 1- O autor é empresário de construção civil. 2- Em 1 de Agosto de 1995 o autor e a ré subscreveram um documento sob a epígrafe "Contrato de Empreitada", pelo qual a ré entregava ao autor a realização dos trabalhos de construção civil nos prédios dos lotes 6, 7 e 8, em ....., Santa Maria Maior, pelo prazo de seis meses e pelo preço de 23.000.000$00 com IVA incluído, a pagar em várias fases da obra. 3- A ré pagou ao autor 22.500.000$00. 4- Durante a realização da obra referida no item 2, o autor efectuou outros trabalhos para a ré, a pedido desta, no valor global de 663.390$00 com IVA. 5- Sendo 54.000$00 de 6 dias de trabalho de um homem a cortar relva junto a blocos já construídos. 6- 27.000$00 de 3 dias de trabalho de um homem a desentupir esgotos junto aos mesmos blocos. 7- 324.000$00 de 18 dias de trabalho de 2 homens a arrumar material no terreno da Papanata para futuras construções. 8- 54.000$00 de 3 dias de trabalho de 2 homens a fazer alterações nos pisos destinados a comércio. 9- E 108.000$00 de 6 dias de trabalho de 2 homens a fazer alterações na cave. 10- A solicitação da ré o autor dispensou ainda pessoal por 27,5 dias de trabalho para arranjo de passeios exteriores, da cave e de lotes de terreno. 11- Sendo tal trabalho no valor de 305.662$00. 12- Nos três prédios o autor não fez clarabóias, chaminés, varandas e/ou floreiras, cofradas e enchidas de betão, bem como os telhados, remates e vedação total. 13- Tais obras orçaram em 3.000.000$00. 14- O autor não rebocou as 24 cozinhas e 36 casas de banho dos apartamentos dos três prédios. 15- Obra que orça em 600.000$00. 16- Em meados de Junho o autor retirou do local da obra a sua maquinaria, ferramentas e pessoal. 17- E nunca mais lá voltou. 18- Pelo que a ré teve de encarregar terceiros da execução das obras referidas nos itens 12 a 15. 19- Essas obras ficaram concluídas no final de Setembro de 1996. 20- A descrita conduta do autor impossibilitou que os prédios estivessem prontos a partir de Março de 1996, conforme previsto. É pelas conclusões da alegação do recurso que se delimita o seu âmbito - cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. Conhece-se em 1º lugar do recurso do autor. As questões suscitadas neste recurso respeitam à: a) inclusão no questionário dos factos alegados nos arts. 8º, 9º, 10º e 11º da réplica dos autores; b) aplicação ao abandono da obra do regime jurídico dos defeitos das obras; c) força probatória da declaração do recorrido feita nas escrituras de constituição de propriedade horizontal bem como na escritura de compra e venda duma das fracções, de que todas as fracções estão aptas aos fins a que se destinam; d) natureza de questão do valor probatório do conteúdo das escrituras de constituição de propriedade horizontal e escritura de compra e venda duma das fracções com o consequente dever de pronúncia do tribunal sobre ela; e) inexistência de litigância de má fé do autor. Analisemos tais questões: a) Pretende o recorrente ver incluída no questionário a matéria de facto alegada nos arts. 8º, 9º, 10º e 11º da sua réplica. Conforme o acórdão nº 4/99 de 14/4/99, uniformizador da jurisprudência, publicado no D.R. nº 165, 1 Série-A, de 17/7/99, nas causas julgadas com aplicação do Código de Processo Civil de 1961, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei nº 242/85, de 9 de Julho, não é admissível recurso para o S.T.J., pelo que respeita à organização da especificação e questionário. Este acórdão, a cujos fundamentos se adere, segue a doutrina do Prof. Alberto dos Reis no sentido da inadmissibilidade de recurso para o Supremo, da decisão da Relação acerca da especificação e do questionário. Com efeito, conforme ensinava o Prof. Alberto dos Reis, Código Civil anotado, Vol. III, pág. 231, «tratando-se de saber se a questão de facto está ou não bem condensada e focada no questionário, é aos tribunais de instância que interessa o problema.» O referido acórdão uniformizador de jurisprudência mantêm a sua actualidade nesta acção que, aliás, foi proposta em 13/11/96, ainda na vigência do regime processual civil anterior à revisão processual decretada pelo Dec-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro - cfr. art. 16º deste Diploma Legal. Pelo que não se conhece da questão suscitada. b) Está provado que o ora recorrente em meados de Junho retirou do local da obra a sua maquinaria, ferramentas e pessoal e nunca mais lá voltou. Este comportamento do ora recorrente constitui um abandono da obra que ainda se encontrava incompleta. O regime jurídico do abandono não está expressamente regulado. Todavia o abandono revela que o seu autor desistiu, renunciou à realização integral da obra. Tal comportamento equivale a uma declaração de vontade de não querer continuar a cumprir a sua obrigação, reconduzível ao conceito de «recusa de cumprimento», o que permite considerá-la um incumprimento parcial definitivo. Esta situação é diferente, como é evidente, daquela que resulta do empreiteiro realizar a obra com defeitos. No caso do abandono não procedem as razões justificativas do regime jurídico da obra com defeitos, pelo que não se pode aplicar por analogia tal regime - cfr. nº 2 do art. 10º do Cód. Civil.. É que desistir, renunciar à realização completa duma obra é completamente diferente de completar uma obra, embora com defeitos. Como se refere no acórdão de 11/11/76 do S.T.J., citado na sentença recorrida, « I- O abandono das obras pelo empreiteiro é uma situação diversa do cumprimento defeituoso, significando renúncia ao cumprimento integral. ». Não exigindo a lei uma específica espécie de prova para comprovar o abandono, pode este ser provado por qualquer meio de prova, designadamente a testemunhal, a qual é apreciada livremente pelo tribunal colectivo, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto - cfr. art. 655º, nº 1 do C.P.C. c) A declaração da recorrida, feita nas referidas escrituras, de que todas as fracções estão aptas aos fins a que se destinam, não tem um valor probatório superior a outros meios de prova. O documento autêntico só faz prova plena dos factos praticados pelo documentador (v.g. notário), dos que se passam na sua presença e dos que ele atesta com base nas suas percepções - art. 371º do Cód. Civil. - cfr. acórdão de 5/2/87 do S.T.J., B.M.J. nº 364, pág.796. Assim, neste caso está plenamente provado que a recorrida, através do seu representante, fez tal declaração. Mas não está plenamente provado que tal declaração seja verdadeira, corresponda à realidade, dado que disso não podia o documentador certificar-se através dos seus sentidos. Os factos constantes de tal declaração, em relação a terceiros (as pessoas que não intervieram nos referidos documentos) não têm eficácia plena, valendo a declaração como elemento de prova a apreciar livremente - cfr. Prof. Vaz Serra, RLJ 114-287 (« ... nessa medida, o documento pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente. »), e acórdão de 22/6/82 do S.T.J., B.M.J. 318, págs. 415 e segs. d) Afirma o ora recorrente que o conteúdo dos documentos juntos, escrituras de constituição de propriedade horizontal e escritura de compra e venda duma das fracções, por se achar intimamente ligado ao pedido do reconvinte e ter relevante interesse para a decisão da causa, é questão importante e não mera razão ou argumento, devendo o Tribunal pronunciar-se sobre o valor probatório de tais documentos, como impõe a alínea d) do art. 668º do C.P.C., sob pena de nulidade por omissão de pronúncia. Mas não é assim. O art. 660º, nº 2 do C.P.C. dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excepto aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Neste caso as questões que o tribunal da 1ª instância devia apreciar e apreciou são aquelas que as causas de pedir e os pedidos formulados na petição inicial e na reconvenção suscitam e nelas não estava incluída a força probatória das referidas escrituras. Como refere o Cons. Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", Vol. III, pág. 228, «O nº 2 do preceito em anotação (refere-se ao art. 660º) suscita um problema melindroso que é o de interpretar, em termos exactos, o sentido da expressão «questões», ali empregada. Essa interpretação tem muito interesse porque está directamente ligada à definição do âmbito do caso julgado e à apreciação da nulidade cominada pela alínea d) do nº 1 do art. 668º. Em primeiro lugar parece que poderão excluir-se as «questões» prévias ou prejudiciais do conhecimento do mérito da causa, visto que a estas se refere directamente o nº 1 deste artigo. Também devem arredar-se os «argumentos» ou «raciocínios» expostos na defesa da tese de cada uma das partes, que podendo constituir «questões» em sentido lógico ou científico, não integram matéria decisória do juiz. Temos, assim, que as questões sobre o mérito a que se refere este nº 2 serão as que suscitam a apreciação quer a causa de pedir apresentada, quer o pedido formulado.». e) No que respeita à litigância de má fé, o ora recorrente não suscitou tal questão na alegação do recurso para a Relação. Desta forma a decisão da 1ª instância relativa à condenação do ora recorrente como litigante de má fé, transitou em julgado - cfr. arts. 684º, nos 3 e 4 do C.P.C. Assim, a referida decisão já não pode ser alterada. Improcedem, pois, as conclusões deste recurso. Passa-se a analisar o recurso da ré. A única questão suscitada neste recurso respeita à sua condenação como litigante de má fé que a recorrente entende não se verificar. As partes têm o dever de verdade, probidade e cooperação na sua conduta processual. Assim não devem: formular pedidos ilegais, alterar a verdade dos factos e fazer do processo um uso reprovável com o fim de entorpecer a acção da justiça - cfr. art. 456º do C.P.C. A ré negou, na contestação, a realização dos trabalhos a mais que o autor, na petição inicial, alegou ter feito. Veio-se a provar a realização de tais trabalhos extra, efectuados a pedido da ré. Portanto, a ré não podia ignorar a realização desses trabalhos feitos a solicitação sua e, como tal, negando-os faltou conscientemente à verdade. Litigou, pois, de má fé. Não há abuso de direito da parte do autor quando pediu que a ré fosse condenada, como litigante de má fé, em indemnização a seu favor. A circunstância do autor ter litigado de má fé não afasta a possibilidade deste, verificando que a ré litiga de má fé, peça a condenação desta em indemnização a seu favor. Com efeito, tal indemnização é também uma sanção imposta pela lei ao litigante de má fé. Como se refere no acórdão recorrido, « Nem o facto de a parte contrária também ser considerada litigante de má fé impede que a outra parte seja condenada da mesma forma, em multa e indemnização à contraparte, se esta a pedir. Os erros de uma parte não justificam os da parte contrária.». Improcedem, pois, as conclusões deste recurso. Pelo exposto, nega-se a revista a ambos os recursos. As custas dos recursos ficam a cargo dos respectivos recorrentes. Lisboa, 27 de Fevereiro de 2003. Luís Fonseca Eduardo Batista Moitinho de Almeida |