Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00038980 | ||
Relator: | PIRES SALPICO | ||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO MOTIVO FÚTIL MEIO INSIDIOSO | ||
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Nº do Documento: | SJ200101170028433 | ||
Data do Acordão: | 01/17/2001 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T JUD OLHÃO RESTAURAÇÃO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 201/98 | ||
Data: | 07/17/2000 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIAL. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS. | ||
Legislação Nacional: | CP95 ARTIGO 131 ARTIGO 132 N1 N2 C F. | ||
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Sumário : | I- Age determinado por motivo fútil o arguido que, na sequência do envolvimento físico entre a sua mulher e a sua irmã e perante a interposição, com o intuito de pôr termo à contenda, do companheiro da segunda, dominado por sentimentos de desforço, desfere naquele, de imediato, em zonas vitais do corpo, com um canivete que trazia oculto, diversos golpes que lhe causaram ferimentos determinantes da sua morte. II- "Meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vitima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa. III- Um canivete, como o que foi utilizado pelo arguido, é um objecto de uso corrente e, como arma branca que também é, pode servir, frequentemente, como arma letal de agressão; mas, a todas as luzes, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de "meio insidioso". | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: 1- No 1º Juízo da Comarca de Olhão da Restauração, perante o respectivo Tribunal Colectivo, foi o arguido A, identificado nos autos, condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, n.º 1 e 2, alíneas c) e f), do Código Penal de 1995, na pena de 16 anos de prisão. Em procedência do pedido de indemnização civil deduzido por B, em representação do menor C, foi, ainda, o arguido, demandado, condenado a pagar ao dito menor demandante a quantia global de 9.080.000$00. 2- Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, para o Supremo Tribunal de Justiça. Na sua motivação, como se alcança das respectivas conclusões, o recorrente invoca como fundamentos do recurso a sua discordância relativamente à qualificação jurídico-penal dos factos, sustentando que a sua conduta integra um crime de homicídio simples; outrossim, insurge-se contra a medida concreta da pena aplicada, defendendo que deverá ser-lhe imposta uma pena de "nível inferior". Na sua resposta, o Mº. Pº. pugna pela manutenção do julgado. Tendo requerido, sem oposição, que as alegações fossem produzidas por escrito, o recorrente apresentou essas alegações, nas quais se limitou a reproduzir o conteúdo da sua motivação. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Supremo Tribunal, nas suas doutas alegações escritas partilha a qualificação jurídica da conduta do arguido que consta do douto acórdão recorrido, e correcta a medida da pena aplicada, aceitando que esta possa sofrer uma ligeira redução. Foram colhidos os vistos legais. 3- Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais e, agora, cumpre decidir. Tudo visto e considerado: Na 1ª Instância deram-se como provados os seguintes factos: - O arguido é casado com D, id. nos autos, e é irmão de E, id. nos autos; - Esta irmã do arguido vivia, à época dos factos, em condições análogas às dos cônjuges, com F, id. nos autos; - Em 26/03/98, pelas 21.15 h., a E e o F dirigiram-se para a sua residência, sita na Rua ...; - Na proximidade da residência destes, o arguido e a sua esposa, que se encontravam, nas imediações a aguardar a sua chegada, abordaram aqueles, - De imediato se desenvolveu uma breve troca de palavras entre a D e a E, acabando estas por se envolver fisicamente: - Face a tal situação o arguido abordou-se da irmã E; - O F ocorreu, então, interpondo-se entre o arguido e a E, com o intuito de pôr termo à contenda; - De imediato, o arguido sacou do canivete descrito e examinado a fls. 39, que consigo transportava, e com ele desferiu diversos golpes em direcção ao F; - Um destes golpes atingiu o F na face anterior do braço esquerdo, causando-lhe uma ferida incisa com dez centímetros; - Um dos outros golpes atingiu o F na região inguinal (virilha) esquerda, causando-lhe uma ferida incisa de 12 centímetros, com secção da artéria e veia ilíaca esquerda; - Tais ferimentos foram causa directa e necessária da morte do F, a qual, lhe sobreveio em 11/04/98, pelas 2.00 h., no H. D, Faro, local para onde foi transportado após os factos e onde se encontrava internado na unidade de cuidados intensivos; - De seguida, o arguido abandonou o local em passo lento, sem curar de saber do estado do F; - Dirigiu-se a sua casa ou à da sua sogra, onde trocou de camisa, vindo a ser detido junto desta casa; - O referido canivete, em inox, de cor branca, tem 15 cm de comprimento, sendo 8 cm de cabo e 7 cm de lâmina, foi recuperado pouco após a ocorrência dos factos, a cerca de uma dezena de metros do local, ainda com vestígios de sangue; - O arguido conhecia bem as características do seu canivete, nomeadamente a sua capacidade cortante e perfurante, e que as lesões por ele provocadas eram aptas a tirar a vida a qualquer ser humano, conformando-se, porém, com tal resultado, não se inibindo de praticar tais actos; - Dirigiu os golpes desferidos com o canivete ao corpo do F, bem sabendo que a zona esquerda do tronco é zona vital, onde se aloja o coração, e que na zona da virilha se situam a artéria e a veia ilíaca, bem como, nas proximidades, o baço; - Actuou dominado por sentimentos de desforço relativamente ao F; - Manteve o canivete oculto e sem o exibir até ao momento em que, de forma imprevista, o utilizou para ferir o F; - Sabia que a sua irmã vivia em condições análogas às dos cônjuges com o F; - Ao actuar da forma descrita, conformou-se com a possibilidade de tirar a vida ao F, o que veio a suceder; - Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei; - O arguido é de modesta condição social e económica; - Vivia com a mulher e um filho menor; - Tem os antecedentes criminais constantes de fls. 146 a 149; - O demandante encontrava-se aos cuidados da sua avó materna; - Entregando o pai todos os meses à avó, a titulo de prestação de alimentos, a quantia de 10.000$00, para o menor; - O falecido acompanhava regularmente o filho, dando-lhe apoio no âmbito escolar, nos tempos livres e em situações de doença; - Pai e filho eram amigos; - O "F" sofreu dores antes de falecer; O "C" ficou triste com a morte do pai, e bem assim, perturbado. 4- Discorda o recorrente do enquadramento jurídico-penal dos factos perfilhado na 1ª Instância, sustentando que o crime cometido é o de homicídio simples previsto no art. 131 do Cód., Penal, em virtude de não ter agido por motivo fútil e, ainda, porque a utilização do canivete não constitui um meio insidioso. Em face da matéria fáctica provada, que atrás se deixou descrita, vejamos, agora se o recurso merece - ou não - provimento. 5- Quanto à qualificação jurídico-penal dos factos: O art.º 132º. do Código Penal, no qual se prevê e pune o homicídio qualificado, protege o bem jurídico da vida humana contra aqueles que tiram essa mesma vida, denunciando no facto uma especial censurabilidade ou perversidade. No n.º. 2 do citado art.º 132º. são enumerados, a título exemplificativo, algumas circunstâncias agravantes qualificativas que, uma vez verificadas, tipificam a conduta do agente como crime de homicídio qualificado. Mas, dado que o legislador português transplantou, sem mais, para o nosso actual Código Penal, ao arrepio da nossa rica e antiga tradição jurídica, algumas dessas circunstâncias agravantes qualificativas oriundas de sistemas estrangeiros, e perante a manifesta pobreza dos ensinamentos da nossa escassa doutrina penal, muitas dúvidas e perplexidades se têm suscitado nos nossos Tribunais, relativamente a algumas daquelas circunstâncias. A) Motivo fútil: No caso sub judice, o Tribunal a quo deu como provado que o arguido "actuou dominado por sentimentos de desforço relativamente ao F" , considerando que o arguido agiu determinado por motivo fútil . E, com efeito, um motivo é fútil, quando tem pouca ou nenhuma importância, ou é banal, insignificante ou nulo . Logo, examinando-se a matéria de facto descrita, e a nenhuma gravidade do confronto físico travado entre a mulher do arguido e a irmã deste, temos como inteiramente acertada a parte da decisão do Tribunal Colectivo, que considerou haver o arguido, ao dar a morte ao infeliz F, sido determinado por motivo fútil, revelando a sua conduta especial censurabilidade ou perversidade, pelo que, neste ponto, a decisão recorrida não merece censura. B) A utilização de "meio insidioso": Como pode ver-se da factualidade apurada, que ficou descrita, a morte da vítima F resultou, directa e necessariamente dos golpes que lhe foram desferidos em zonas vitais do corpo, pelo arguido, utilizando um canivete que trazia oculto num dos bolsos. A questão que agora nos compete apreciar e decidir é a de saber se o arguido, ao utilizar o dito canivete, como meio de agressão, da qual veio a resultar a morte da vítima, nas circunstâncias descritas, fez uso de um "meio insidioso", previsto na alínea c) e f), do n.º 1 e n.º 2, do art.º 132º., do Código Penal de 1995. A expressão " meio insidioso", tal como consta da nossa lei penal é vaga, e a doutrina jurídica nacional, na sua imensa pobreza, não se tem ocupado desta questão com suficiência (ver v. g. o "COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, PARTE ESPECIAL, TOMO I, pág. 38 e 39, Coimbra,1999 ). Também a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores se tem mostrado imprecisa e insegura no tocante a este ponto. Por isso, temos de socorrer-nos da moderna doutrina científica e estrangeira. Relativamente ao ponto que agora nos ocupa, SILVIO RANIERI, na doutrina jurídica italiana, ensina: "Meio insidioso é o que se emprega com engano ou cujo uso ou poder mortífero se encontra oculto". (Ver "MANUAL DE DERECHO PENAL", Tomo V , PARTE ESPECIAL , pág.38, trad . castelhana , Bogotá, 1986 ). Por seu turno, GIUSEPPE MAGGIORE , com a sua proficiência de grande penalista, escreve: "Meio insidioso" é o que não somente pela sua natureza enganosa, mas também pela maneira fraudulenta como se emprega, surpreende a vítima, tornando-lhe impossível ou difícil a defesa . Tais seriam uma armadilha ; o carregar algum objecto com corrente de alta tensão, fazendo com que a vítima o toque . O fazer experimentar uma arma de fogo cuja explosão, por dano do mecanismo, se volta contra quem a usa" (in "DERECHO PENAL", PARTE ESPECIAL , vol. IV , pág . 298 , trad. castelhana , Bogotá, 1986 ). De igual sorte, FRANCESCO ANTOLISEI, comentando a agravante qualificativa do homicídio prevista no art. 577, nº 2, do Código Penal Italiano, de "o facto haver sido cometido por meio de substância venenosa" ou "con un altro mezzo insidioso", referindo-se à emboscada e a outras formas da moderna delinquência, indica, de modo exemplificativo, como "meios insidiosos", "a sabotagem do motor de um automóvel ou de um avião, o carregar um objecto com corrente eléctrica de alta tensão et similia". (Ver "MANUALE DI DIRITTO PENALE", PARTE SPECIALE, I, pág. 52, 12ª ed., Milano, 1996). Dos ensinamentos da moderna doutrina dos mais ilustres penalistas, parece poder concluir-se que "meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta, e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa. Ora, um canivete, como o que foi utilizado pelo arguido, é um objecto de uso corrente, que muitas pessoas trazem consigo, nos bolsos do vestuário, mas que, como arma branca, que também é, pode ser utilizado, frequentemente, como arma letal de agressão, sem que, a todas as luzes, possa integrar-se no conceito jurídico-penal de "meio insidioso". Assim, consideramos como não verificada a circunstância agravante qualificativa mencionada na alínea f), do n.º 2, do art. 132º do Cód. Penal de 1995, pelo que não pode manter-se, neste ponto, a douta decisão recorrida. 6- A medida concreta da pena: Pretende o recorrente numa redução da pena que lhe foi imposta, mas, manifestamente, não lhe assiste o menor vislumbre de razão. Na verdade, o crime de homicídio qualificado praticado pelo recorrente é punido com a pena de 12 a 25 anos de prisão - nº 1 do artº 132º do Cód. Penal. Como já vimos, no crime de homicídio o bem jurídico protegido é a vida humana, como valor supremo do indivíduo e do Estado. Perante a matéria fáctica provada, temos como indiscutível que o arguido agiu com grande intensidade de dolo, sendo muitíssimo elevado o grau da sua culpa. Acresce que, na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele. Ponderando todas as circunstâncias do caso, que ficaram descritas, entendemos que, na graduação da pena imposta ao arguido, o Tribunal "a quo" fez uma correcta e justa aplicação da lei aos factos provados, pelo que não merece censura a pena imposta. 7- Em suma: de tudo o que vem de ser exposto resulta que o recurso merece provimento parcial, no que concerne ao enquadramento jurídico-penal da apurada conduta do arguido, que configura um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nºs. 1 e 2, alínea c), do Cód. Penal de 1995. No mais, o recurso haverá de improceder. 8- Nestes termos e concluindo: Acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso, alterando a qualificação jurídico-penal dos factos provados que preenchem o tipo legal de crime de homicídio qualificado previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nºs. 1 e 2, alínea c) do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei nº 48/95; de 15 de Março, confirmando-se em tudo o mais o douto acórdão recorrido. O recorrente vai condenado no pagamento de 8 Ucs de taxa de justiça. Lisboa, 17 de Janeiro de 2001 Pires Salpico Leal-Henriques (voto a decisão, por entender que o meio insidioso não tem a ver exclusivamente com o instrumento utilizado, mas essencialmente com o modo e as circuntâncias com que foi usado) Armando Leandro |