Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1483
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: CHAMAMENTO À AUTORIA
PRESSUPOSTOS
ACÇÃO DE REGRESSO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
Nº do Documento: SJ200305270014832
Data do Acordão: 05/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2432/02
Data: 12/05/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário : I. No incidente de chamamento à autoria, então regulado no artº 325º do CPC 67, tornava-se necessário que o requerente do chamamento alegasse a existência de «conexão» entre o direito invocado e a relação jurídica controvertida pela qual o chamado pudesse vir a ser responsabilizado, em acção de regresso.
II. E daí que esse chamamento facultativo apenas se justificasse quando, em virtude dessa relação jurídica conexa, o chamado devesse responder pelo dano resultante da sucumbência para com o chamante.
III. Acção de regresso aquela cuja consistência prático-jurídica deveria emergir e ser aferida em função da alegação/substanciação de um nexo de causalidade «adequada» entre o prejuízo invocado (com a consequente acção de regresso) e a perda da demanda.
IV. A execução de um mandado judicial de despejo, como corolário lógico e natural do desfecho final de uma lide dirimida através de um meio processual estritamente regulado na lei (artº 55º e ss do RAU 90) e com escrupulosa observância do princípio da igualdade das partes e da facultação, também igualitária, dos meios recursais, representa um acto praticado na exercitação de um poder soberano do Estado - a função de julgar - constitucionalmente cometida, em exclusividade, aos tribunais - não podendo, por isso, constituir «a se» fonte da obrigação de indemnizar as partes «prejudicadas» com as respectivas decisões transitadas em julgado.
V. Tornar-se-ia, em tal hipótese, indispensável a alegação de factos demonstrativos da responsabilidade (delitual) do Estado pelos prejuízos que a acção lhe pudesse (a si chamante) acarretar, neles incluídos os factos integradores da obrigação de indemnização, nos termos e para os efeitos do artº 22º da Constituição da República e demais preceitos do DL 48051 de 21-11-67.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. A, propôs, em 6-7-95, no Tribunal Judicial de Cascais, acção possessória de manutenção de posse, com processo especial então regulado nos artigos 1033° e ss do CPC contra B, C, D e E solicitando fosse mantida na posse da fracção - FA" - Torre..., 10° andar B, Torres do..., Sitio das Areias, S. João do Estoril, como legítima arrendatária da mesma, condenando-se as RR a entregar-lhe as chaves da dita fracção e a restituí-la devoluta, bem como a pagar à A. uma indemnização por danos morais e materiais, correspondente a montante a liquidar em execução de sentença.
Alegou, para tanto e resumidamente, que:
- no âmbito de uma acção de despejo para a qual não foi oportunamente citada, foi decretado o despejo da casa em questão, agora propriedade das RR, mandado executar e consumado em 12-10-88;
- a A., titular do direito de arrendamento dessa casa, só nessa altura teve conhecimento da acção de despejo;
- nessa acção de despejo foi proferida sentença que declarou caducado o direito à resolução do arrendamento, por falta de pagamento de rendas, sentença que transitou em julgado no dia 27-2-94;
- apesar do decidido, a A. não pode utilizar a casa, visto que, após o dia do despejo, ficou impedida dela entrar e as RR recusam-se a devolver-lhe a posse da mesma.
Alegou ainda estar a sofrer um impedimento absoluto e completo do exercício da posse da casa, tendo sofrido - danos morais e materiais de avultadíssimo valor", mas cujo montante total era, na altura, indeterminado, razão pela qual reservava a sua liquidação para execução de sentença.

2. Citadas as RR, veio a Ré B, em 14-6-01, contestar, deduzindo ainda, na respectiva peça processual, incidente de chamamento à autoria do Estado Português ao abrigo do disposto no artº 325º do CPC 67.
Alegou, relativamente a este, e em síntese, que, apesar da a A. não ter alegado factos suficientes para caracterizar, nem os danos morais e materiais que diz ter sofrido, nem a sua imputação a qualquer conduta ilícita dos RR, caso estes viessem a ser condenados a pagar-lhe qualquer quantia a título de indemnização, assistir-lhes-ia o direito de regresso relativamente ao Estado Português porquanto os invocados danos, a existirem, são resultado do cumprimento de uma ordem dada por um órgão jurisdicional seu.

3. Respondeu a A., quer à matéria da excepção invocada naquela contestação, quer ao pedido de intervenção provocada, alegando, no que ao conhecimento do presente recurso interessa, que sendo ao incidente deduzido aplicáveis as disposições do CPC, na redacção anterior ao DL 329-A/95, o mesmo deveria ter sido deduzido como chamamento à autoria e em requerimento autónomo, antes de apresentada a contestação.
Aduziu ainda que, independentemente dessa irregularidade, o chamamento não tinha qualquer fundamento, já que o Estado nada tinha a ver com o discutido na acção, pois que quem tem que restituir a posse do locado são as RR e não o Estado e a complicação processual verificada na acção de despejo deveu-se essencialmente a ré B, autora naquela outra acção.

4. Por despacho de 31-10-01, o Mmo Juiz da Comarca de Cascais indeferiu o aludido pedido incidental.
E isto pela circunstância de esse incidente não haver sido deduzido em requerimento autónomo como o exigiam as disposições legais aplicáveis e ainda por não se tratar de uma situação de direito de regresso que legitimasse a dedução do incidente.

5. Inconformada com esse despacho, dele veio agravar a 1ª Ré B, tendo, porém, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 5-12-02, negado provimento ao recurso.

6. De novo irresignada, desta feita com tal aresto, dela veio a mesma recorrente agravar para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
A)- Arrogando-se a requerente ao direito de fazer repercutir em terceiro, o prejuízo decorrente da eventual perda da demanda, deve ser admitido o chamamento, na estreita medida em que a condenação do R.R. nestes autos, constituiu condição da existência e exercício do direito de regresso por estes invocado;
B)- Constituindo causa de pedir (quanto à indemnização) a impossibilidade de a A. exercer a posse do imóvel, e considerando os RR que aquele impedimento deve ser imputado ao Estado, não pode ser recusado o poder de os RR. estenderem a eficácia da sentença a este terceiro, por forma a ficar definitivamente decidido um dos pressupostos da acção de regresso, ou seja, o dano resultante da sucumbência da acção;
C)- Os requerentes não se limitaram - salvo o devido respeito - a, conclusivamente, invocar o direito de regresso, invocaram factos constitutivos daquele direito.

7. Contra-alegou a agravada A sustentando a correcção do julgado.

8. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre decidir.

9. A matéria de facto a que a Relação se circunscreveu, para decidir como decidiu, é aquela que se encontra dispersa no relatório supra.

Passemos ao direito aplicável.

10. Âmbito do agravo:
Quanto à inadmissibilidade do incidente por razões meramente formais - falta de dedução em articulado autónomo - a Relação decidiu já não haver obstáculo processual/formal à respectiva apreciação face à lei ao tempo aplicável.
Com esse segmento do acórdão se conformou a Ré, requerente e ora agravante, a qual, na sua alegação de recurso para este Supremo Tribunal, apenas pôe em crise o segmento do acórdão relativo à não verificação dos pressupostos substantivos legalmente exigidos para o deferimento do incidente deduzido, concluindo pelo efectivo preenchimento desses requisitos.

11. Pressupostos do incidente de chamamento à autoria.
A acção foi proposta no dia 6-7-95, sendo-lhe, por isso, aplicáveis as disposições do CPC, na redacção anterior à reforma processual de 95/96 (DL n° 329-A/95, de 12/12 (artº 16° deste diploma).
O artº 325° do CPC, na redacção anterior a esse diploma, sob a epígrafe -chamamento à autoria -, estatuía que o Réu que tivesse acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe causasse a perda da demanda, podia chamá-lo à autoria; se o não chamasse, teria de provar, na acção de indemnização, que na demanda anterior empregara todos os esforços para evitar a condenação.
O incidente tinha, assim, a finalidade, tão-somente, de dispensar o putativo titular do direito de regresso de demonstrar, numa eventual acção futura contra o chamado, ter usado de todos os meios para evitar a condenação na acção que anteriormente lhe fora movida e ajustava-se aos casos de o chamado não ser sujeito da relação jurídica controvertida, mas sujeito de uma outra relação jurídica conexa com aquela.
Tornava-se, pois, necessário, por um lado, que o requerente do chamamento alegasse a existência de «conexão» do direito que invocava com a relação jurídica controvertida, pela qual o chamado pudesse vir a ser responsabilizado, em acção de regresso, pelos danos que lhe poderia causar a perda da demanda e, por outro, que o direito de regresso tivesse por fonte um qualquer acto jurídico, mesmo ilícito, que envolvesse responsabilidade civil.
E daí que tal tipo de «chamamento facultativo apenas se justificasse quando, em virtude dessa relação jurídica conexa, o chamado devesse responder pelo dano resultante da sucumbência para o chamante» - conf. Salvador da Costa, in - Os Incidentes da Instância -, Almedina, 1999, pág 124.
Acção de regresso essa contra o terceiro chamado, cuja consistência prático-jurídica deveria emergir e ser aferida em função da alegação/substanciação aduzida pelo Réu chamante no respectivo articulado.
Não seria, pois, admissível o chamamento, se tivesse por consequência que o terceiro chamado - quiçá se o Réu primitivamente demandado lograsse obter a sua própria exclusão processual - se pudesse ver constrangido, a litigar sobre uma relação a que fosse totalmente estranho alheio e estranho.
Teria sempre que demonstrar-se um nexo de causalidade «adequada» entre o prejuízo invocado (com a consequente acção de regresso) e a perda da demanda, isto é, tal prejuízo tem de derivar da condenação do réu face à pretensão do autor, não podendo emergir de qualquer outra circunstância.
E daí que o chamamento à autoria só fosse, em princípio, concebível em contadas hipóteses, como as situações típicas de aquisição derivada de direitos, de solidariedade não abrangidos pelo incidente de chamamento à demanda e de acções ou conduta de terceiros causadores da situação que teria leva o autor a demandar o réu chamante.
A aludida «conexão», exigiria, desse modo, para que o chamamento à autoria se justificasse, que o chamado, neste caso o chamado/Estado, devesse responder pelo dano resultante da sucumbência da Ré demandada/chamante, por ser essa sucumbência que lhe viria a ser imposta, por força do caso julgado, através daquele meio processual.
Ora, no caso vertente, a ora agravante, requerente do incidente, porventura «influenciada» pela vacuidade, generalidade e abstracção da pretensão indemnizatória formulada pela A. na petição inicial, não logrou alegar factos demonstrativos da responsabilidade (delitual) do Estado pelos prejuízos que a acção lhe pudesse (a si chamante) acarretar, neles incluídos os factos integradores da obrigação de indemnização.
A agravante, na sua veste de requerente/chamante, limitou-se a alegar, depois de impugnar a existência de quaisquer danos a si e aos restantes RR imputados, que os mesmos, a existirem, seriam o resultado da execução de um mandado judicial de despejo, ou seja, da responsabilidade do Estado que não deles RR contestantes.
Ora, a execução de um mandado judicial de despejo, como corolário lógico e natural do desfecho final de uma lide dirimida através de um meio processual estritamente regulado na lei (artº 55º e ss do RAU 90), com escrupulosa observância do princípio da igualdade das partes e da facultação, também igualitária, dos meios recursais, sempre representaria um acto praticado na exercitação de um poder soberano do Estado, como é o exercício da função de julgar - constitucionalmente cometido, em exclusividade, aos tribunais judiciais -, não podendo, por isso constituir «a se» fonte da obrigação de indemnizar as partes «prejudicadas» com as respectivas decisões transitadas em julgado.
Com efeito, «as decisões judiciais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades - artº 205º, nº 2 da Constituição da República»; e mais: «a lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução» - nº 3 do mesmo artº 205º.
Existem, é certo, situações-limite de responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas públicas perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos no domínio da gestão pública, responsabilidade essa que pode mesmo estender-se a actos materiais lícitos, cujos pressupostos gerais e especiais se encontravam ao tempo, e se encontram ainda hoje, plasmados no artº 22º da Constituição da República e do DL 48051 de 21-11-67.
Advirta-se, porém, e a talho de foice, que quando satisfizer qualquer indemnização desse tipo, o Estado gozará, ele próprio, do direito de regresso contra os titulares dos órgãos ou agentes culpados, se houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo - conf. nº 2 do artº 2º daquele DL.
Só que os pressupostos constitutivos da sugerida responsabilidade pública estadual não foram sequer perfunctoriamente aflorados pela requerente para fundamentar, ao menos em primeira aparência, uma sua futura exercitação do direito de regresso.
É que, na verdade, tal como escreve o Dr. Salvador da Costa, in ob cit, pág 124, «a própria existência do direito de regresso ou de indemnização, deverá ser susceptível de afectação pela decisão da causa, sendo a própria responsabilidade do réu para com o autor elemento essencial da responsabilidade do chamado perante o réu, ou seja a conexão do direito de regresso ou de indemnização há-de surgir da própria existência e concreta configuração jurídica da relação controvertida » (sic).
Ora, a Ré, tendo, é certo, impugnado os elementos integradores da «causa petendi» concretamente invocada na petição inicial e configuradores da respectiva relação material controvertida, não logrou, todavia, substanciar, com um mínimo de consistência, o seu aventado direito de regresso para com o chamado/requerido Estado, o que constituía pressuposto essencial do incidente deduzido.

12. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão recorrido qualquer censura.

13. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar provimento ao agravo;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27 de Maio de 2003.
Ferreira de Almeida (Relator)
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares