Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
| Descritores: | PROCESSO CONTRA MAGISTRADO INJÚRIA DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA INDÍCIOS SUFICIENTES | ||
| Nº do Documento: | SJ200305210014933 | ||
| Data do Acordão: | 05/21/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT | ||
| Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 1619/01 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Sumário : | I- Constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável; II- Tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. Na sequência de queixa apresentada por "A" , identificado no processo, contra "B" , magistrado do Ministério Público na comarca de Guimarães, por factos que, no entender do queixoso, constituíam ofensas, foi aberto inquérito a cargo do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, findo o qual o queixoso, entretanto admitido a intervir como assistente, deduziu acusação contra o denunciado por factos que integrariam o crime de injúrias, e reclamou a indemnização de 500 Euros a título de compensação por danos morais. O Ministério Público acompanhou a acusação particular. O arguido, discordando da acusação, requereu a abertura de instrução, no âmbito da qual teve lugar uma diligência. Após o debate instrutório, foi proferido pelo Tribunal da Relação despacho de não pronúncia do arguido pelo crime de que vinha acusado, determinando-se o arquivamento. 2. O Ministério Público interpôs recurso do despacho de não pronúncia e apresentou a sua motivação, na qual apresentou as seguintes conclusões: - Nos autos foram recolhidos indícios suficientes de terem ocorrido os factos imputados ao arguido, os quais constituem crime; - Assim, estão verificados os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido: - O debate instrutório não trouxe ao processo qualquer elemento infirmativo relevante; - A decisão impugnada violou o disposto no artigo, 308, n° 1 do Código de Processo Penal; - Termos em que deverá ser substituída por outra que determine a pronúncia do arguido pelos factos por que foi acusado pelo assistente e pelo Ministério Público. Por sua vez, o arguido respondeu à motivação, terminando a resposta pela síntese contida nas conclusões seguintes: - A noção de "suficiência indiciária" assenta em "objectividade" (artigo 283°, n.° 2 do C.P.P., quando usa os conceitos se fala em "que deles." e "...por força deles..."), e "objectivismo" traduz-se em que "o Ministério Público não deve atender ao critério de exigência por que o seu titular em cada momento se norteie, mas sim pelos que são sentidos na comunidade em que o facto e a eventual lesão forem cometidos"; - Essa característica tem que nortear e exornar a actuação do M°P° - artigos 2°, nº 2, do E. M. P., como 55º, 58º, n°s 1 e 4 do C.P.P., não bastando a lúcida "convicção" do Magistrado ou do assistente, mas a "convicção" no sentido de "vitória das razões do pró, face às do contra", ou grau de verosimilhança que nenhuma pessoa, com razoabilidade, que aprecie com clareza as relações da vida, possa duvidar" - No caso estar-se-á bem longe de tal grau de verosimilhança, sendo, por isso, de concluir pela não pronúncia. 3. No Supremo Tribunal, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal, considerou nada obstar ao conhecimento do mérito do recurso. 4. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, cumprindo apreciar e decidir. A dedução de acusação findo o inquérito, como o despacho de pronúncia no caso de ter havido lugar a instrução, supõem a existência no processo de indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de quem foi o seu agente - artigos 283º, nº 1 e 308º, nº1, do Código de Processo Penal. Esta disposição determina, com efeito, que «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia». Por seu lado, o artigo 283º, nº 2, do mesmo diploma, formata normativamente o conceito de "indícios suficientes": «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Esta fórmula legal acolhe a noção, sucessivamente densificada pela doutrina e pela jurisprudência, de "indícios suficientes". Em formulação doutrinalmente bem marcada, os indícios são suficientes, mas «só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição» (cfr., Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", vol. I, 1974, pág. 132-133). Quer isto dizer que na suficiência dos indícios está contida a «mesma exigência de verdade» requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo «prova bastante» para a acusação (ou para a pronúncia). A jurisprudência, por seu lado, afinou a compreensão do conceito através da definição e enunciação de elementos de integração que se podem hoje rever na noção legal. Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionaridade. 5. O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos. Não se exigindo a certeza - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável - que tem de preceder um juízo condenatório, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação. No caso sob apreciação, a reconstituição processual que os elementos do inquérito e da instrução revelam, não permite alcançar, como a decisão recorrida também julgou, o nível de probabilidade quanto à existência do crime imputado pelo assistente ao arguido necessária para o despacho de pronúncia. A concretização indiciária das expressões (ou das palavras) usadas revela-se indispensável, dada a carga semântica associada a valorações negativas com projecção ao nível da tipicidade penal inscrita nas expressões imputadas. Na verdade, tanto quanto os elementos recolhidos deixam transparecer e nos limites de uma ilação permitida pelas regras da experiência, apenas se pode considerar razoavelmente indiciado, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, a existência de uma troca de palavras entre o assistente e o arguido, sem, contudo, se revelar, com a indispensável precisão, a natureza das expressões utilizadas. Com efeito, o assistente, na queixa apresentada, descreve os factos de determinado modo, que mais de que apontarem para a existência de um ilícito penal, se manteriam no limite próprio das apreciações sobre a urbanidade: o arguido dirigiu-se-lhe «aos berros», para se «desviar imediatamente [destas] instalações», dizendo que [o assistente] cometeu um «crime». Posteriormente, a algum tempo de distância (31 de Janeiro, mais de meio ano depois), nas declarações que prestou no inquérito, o assistente, continuando a situar os factos no âmbito da urbanidade («o arguido não foi educado com o queixoso»), acrescenta, todavia, algumas precisões que fariam subir as expressões ao nível da tipicidade: «que [o arguido] não foi educado com o queixoso, chegando mesmo a chamar-lhe criminoso e violador de crianças (...)». Porém, esta especificidade de linguagem - a situar-se já no plano da tipicidade própria da injúria - que contém uma carga semântica que a torna particularmente apta a permanecer na recordação de quem a ouça, não foi reconhecida nem pela testemunha que estava presente no gabinete do arguido, nem pela funcionária judicial que, pelas circunstâncias de lugar, poderiam ter presenciado a divergência e estavam em condições de ouvir os termos em que se manifestou: ambas, no entanto, referem não terem ouvido as expressões qualificadas como «insultos», embora refiram que o assistente ficou «alterado» com o facto de o arguido lhe ter dito «que não tinha de falar com ele» e «para deixar o gabinete». A versão do assistente é reproduzida pela sua filha, ao tempo menor de 11 anos; porém, a credibilidade do testemunho tem de ser avaliada nas circunstâncias em que foi produzido, tendo como fundo também um conflito sério no plano intrafamiliar, com aparente ascendente do assistente sobre a testemunha. Esta circunstância, bem como a apresentação externa das declarações com traços de reprodução ipsis verbis, relativiza acentuadamente o valor do testemunho em confronto com os demais. Acresce ainda uma circunstância, que no plano dos indícios deve ser valorizada, e para a qual o assistente, quando confrontado na instrução, apresentou uma justificação que a normalidade das relações e dos comportamentos dificilmente comporta: a divergência - e divergência relevante no âmbito da tipicidade - entre a imputação factual constante da queixa e a posterior posição no inquérito. Na queixa o assistente refere que o arguido se lhe dirigiu «aos berros», dizendo-lhe «que tinha cometido um crime». Esta expressão, por se referir a um facto e não a juízos de valor sobre a pessoa, e que poderia ter alguma base contextual (os sucessivos incumprimentos dos termos da regulação do poder paternal), é essencialmente diversa das identificações verbais posteriores, podendo mesmo ser inócua no plano da tipicidade. A explicação para esta divergência [«expressões fortes demais para englobar na denúncia inicial»] não é de forte convencimento, quando se considere a normalidade dos comportamentos e a melhor memória e sentimento dos factos, sendo, por isso, mais de aceitar, indiciariamente, a realidade das referências verbais constantes da participação - aliás elaborada com bom cuidado formal. Todos estes elementos, conjugados e relacionados, se mantidos em julgamento, apontam para uma situação de non liquet, que é valorada em favor do arguido e a absolvição seria mais provável do que a condenação: os indícios não são, assim, suficientes para proferir despacho de pronúncia. 6. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida. Não é devida taxa de justiça. Lisboa, 21 de Maio de 2003 Henriques Gaspar Antunes Grancho (com a declaração de que o recurso da decisão instrutória devia ser conhecido em conferência) Silva Flor Armando Leandro |