Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1054/06.6TBALM.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: OFENSAS À HONRA
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.55
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – O facto de o R., em plena Escola onde a A. trabalha, a ter apelidado, perante outrem, de “mentirosa”, “bandalho”, “aberração para o ensino”, “incompetente”, causando-lhe, como consequência directa e necessária graves perturbações físicas e psíquicas, é motivo de sobra para legitimar a condenação daquele, por ofensa à honra desta, no pagamento da peticionada indemnização por danos não patrimoniais.
II – O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade. A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com outras pessoas. O valor da honra, enquanto dignitas humana, é mais importante que qualquer outro e transige menos facilmente com os demais em sede de ponderação de interesses.
III – Perante a gravidade da situação, a condenação do R. no pagamento à A. de 10.000 € representa, atento o disposto no artigo 496º, nº 1 e 3, do Código Civil, aquele quid mínimo que poderá ajudar a minorar todo o extenso sofrimento a que a A./Recorrida, foi, injustamente, sujeita. É que a dor de alma é, sem receios de exageros, incomensurável.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I.
Relatório.
AA intentou, no Tribunal Cível da Comarca de Almada, acção ordinária contra
BB, pedindo a sua condenação no pagamento total de 18.898,56 €, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos (danos emergentes e lucros cessantes) e de 15.000, como compensação dos danos não patrimoniais sofridos, com a alegação de que o R., pai de uma sua aluna, a atingiu na sua honra e consideração, durante uma reunião na Escola onde é professora.
O R. contestou, pugnando pela sua total absolvição, e, em reconvenção, pediu a condenação da A. no pagamento de 5.000 €, por danos não patrimoniais, e de 892,04 €, respeitante a despesas médicas motivadas por problemas de saúde derivadas do processo-crime que a A. lhe instaurou.
A A. replicou.
Em sede de saneador, o pedido reconvencional não foi admitido, o que motivou, por parte do R., recurso de agravo.
A acção seguiu, depois, a sua normal tramitação até julgamento e, findo este, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, com a condenação do R. no pagamento à A. de 10.000 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos.
Em vão, apelou o R. para o Tribunal da Relação de Lisboa que, não só confirmou a sentença, como, também, negou provimento ao agravo, por ele, oportunamente, interposto.
Continuando irresignado, pede, ora, revista, a coberto da seguinte síntese conclusiva com que rematou a minuta apresentada:
– Os factos apurados na presente acção não constituem fundamento para o pagamento de uma indemnização.
– Efectivamente a gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos.
– Devendo os mesmos danos constituir uma consequência normal, típica e provável dos actos praticados.
– Uma determinada acção deve ser considerada como causa de um prejuízo se a mesma se mostrar, face à experiência comum, como adequada à produção do prejuízo ou com fortes possibilidades de o causar.
– Tal análise deve ser feita da perspectiva do homem normal colocado na mesma posição.
– Entende o Recorrente que no caso sub-judice não era previsível que as suas palavras desencadeassem um processo contínuo de sofrimento, stress e tristeza além do sentimento de desvalorização pessoal e da dignidade e reputação da Recorrida.
– Aquelas palavras foram proferidas numa reunião com um pai de uma aluna preocupado e protector – o ora Recorrente.
– Devendo, assim, ser levadas à conta do nervosismo e tensão do Recorrente que, lembre-se, tinha pedido a reunião em virtude da sua preocupação com o desempenho da Recorrida, enquanto professora da sua filha.
– Igualmente a circunstância de as declarações terem sido proferidas na presença de colegas da Recorrida não constitui facto que agrave os danos da Recorrida já que aqueles não consideraram, com certeza, que aquelas declarações, proferidas em momento de tensão, manchavam a dignidade e reputação daquela.
– A Recorrida, aliás, colaborou com uma empresa de projectos e elaborou um estudo de avaliação para uma moradia o que, além do seu trabalho como professora, demonstra não estar assim tão afectada pelas declarações do Recorrente.
– Deve assim considerar-se que só pela introdução de factores subjectivos de sensibilidade requintada ou exacerbada se podem considerar como graves os eventos recorridos.
– As consequências de tais eventos, em boa verdade, devem mais ser consideradas como incómodos ou contrariedades do que verdadeiros danos não sendo, assim, indemnizáveis.
– E ainda que assim não se considere, deve, contudo, o montante indemnizatório fixado ser considerado como manifestamente exagerado.
– Com base em critérios de equidade, a que o Tribunal deve obedecer, a fixação de uma indemnização de € 10 000,00 é uma sanção demasiado gravosa e exige do ora Recorrente um esforço financeiro exagerado pelo que não deve ser aceite.
– O acórdão recorrido violou, assim, o artigo 496º, do Código Civil.

A Parte recorrida contra-alegou, em defesa da manutenção do acórdão recorrido.
II.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
– O R. é pai de CC, a qual, enquanto aluna da A., frequentou o 12° ano, na Escola Secundária ..........., em Almada, durante o ano lectivo de 2000/2001.
– No dia 7 de Março de 2003, realizou-se uma reunião, na qual estiveram presentes a A., o R., a filha deste, CC, o Director de Turma, professor DD e a Vice-Presidente do Conselho Executivo, professora EE.
– A A. apresentou queixa crime contra o R., processo que correu termos no 2º Juízo Criminal, com o nº 440/01.8TAALM, e no qual o mesmo foi pronunciado como autor material de um crime de injúria agravada, p. e p., pelos artigos 181°, nº 1 e 184°, com referência ao artigo 132°, nº 2, alínea h), todos do Código Penal.
– Na reunião de 7 de Março de 2001, o R., pelo menos, fez referência ao mau desempenho da A., enquanto docente da disciplina de História da Arte.
– Por carta de 8 de Março de 2001, que o R. endereçou ao Presidente do Conselho Pedagógico da Escola Secundária Anselmo de Andrade, aquele chamava a atenção para a falta de profissionalismo da A. e para a forma como esta tratava a sua filha.
– Por sentença transitada em julgado, no dia 13.07.2004, o R. foi condenado no âmbito do processo referido, pela prática de um crime de injúrias agravadas, p. e p., pelos artigos 181 °, nº 1 e 184°, do Código Penal.
– A A. é professora, de História da Artes e Oficina de Artes, do quadro de nomeação definitiva da Escola Secundária Anselmo de Andrade, em Almada.
– No 1º trimestre do ano lectivo de 2000/2001, a A. faltou onze vezes por ter fracturado a perna.
– Na sequência das faltas da A., o R. solicitou à Escola a realização de uma reunião, a pretexto de obter esclarecimentos, designadamente sobre a assiduidade da A..
– Durante a reunião aludida, o R. declarou que a A. mandava “bocas nas aulas à aluna CC”.
– O R. disse que a A. terminava as aulas “dez minutos antes do toque”.
– E que pedia aos alunos para dizerem aos funcionários que estavam a sair de um teste.
– Nessa reunião o R. disse que a A., na véspera dos testes, informava sobre as questões ipsis verbis que sairiam.
– E afirmou que a A. levou os alunos a “perderem aulas para elaborarem o material para o desfile de Carnaval”.
– Nessa mesma reunião apelidou a A. de “mentirosa”, “bandalho”, “aberração para o ensino”, “incompetente”.
– Declarando que A. precisava de tratamento psiquiátrico urgente.
– Estas expressões foram proferidas em tom de voz acentuado, que era audível no corredor e salas contíguas.
– Surpreendida e afectada com o que estava a acontecer, a A. abandonou a sala de reuniões.
– A A., a partir destes acontecimentos, não mais deixou de se sentir desvalorizada pessoalmente.
– E afectada na sua dignidade e reputação.
– A A. é professora há quase vinte anos.
– Os acontecimentos descritos contribuíram para a evolução de um processo contínuo de sofrimento e stress na A., não superado, à data da propositura da acção.
– O citado processo evoluiu para depressão grave, acompanhada de hipertensão arterial.
– Em 2 de Abril de 2001, a A. sofreu crise hipertensiva grave e maligna.
– Acompanhada de alterações neurológicas, que obrigou a A., nesse dia, ao internamento hospitalar com urgência, no Hospital Garcia da Orta.
– Ao longo da manhã do dia 2 de Abril de 2004, foi-se manifestando uma alteração do sistema nervoso da A., sendo visível paralisia facial periférica do lado esquerdo.
– Afectando a boca, o olho, os músculos em geral e dificuldade de locomoção.
– No Hospital Garcia da Orta foi registado que se tratava de crise hipertensiva maligna no contexto de marcada labilidade emocional, associada a franca paralisia facial periférica esquerda.
– Da crise hipertensiva maligna resultou um quadro clínico de acidente vascular cerebral, acompanhado de síndrome depressivo grave.
– Dos acontecimentos resultaram para a A. também a oclusão da vista esquerda, com risco de necrose (cegueira), com posterior perda da acuidade visual da vista esquerda.
– Descoordenação motora e desequilíbrio que lhe afecta a locomoção.
– Paralisia facial periférica esquerda, com afecção da fala.
– Intolerância ao ruído.
– Apesar de todos os tratamentos, nomeadamente, medicamentos e de reabilitação, a A. manteve hipertensão arterial e estabeleceu-se síndrome depressivo grave.
– Vindo a sofrer uma recaída, em 30.09.2002, que determinou a sua entrada na urgência do Hospital Garcia da Orta.
– Veio a ser diagnosticado à A. uma recaída grave de síndrome depressivo reactivo com inibição psicomotora.
– A A. mantém-se em tratamentos, incluindo psicoterapia, não estando a sua situação clínica ainda estabilizada e definitivamente assente.
– Antes dos acontecimentos a A. era uma pessoa saudável e bonita.
– Bem disposta e que gostava de conviver com os amigos e colegas.
– Após 2 de Abril de 2001, a A. ficou triste.
– A Escola Secundária Anselmo de Andrade, logo no dia 2.4.2001, efectuou uma participação, ao Ministério da Educação, do incidente sofrido pela A. nesse dia, descrevendo a ocorrência, com vista à sua consideração como acidente de serviço.
– A partir de 2 de Abril de 2001, a A. tem vindo a faltar ao serviço.
– A partir de 2 de Abril de 2001 (após a recaída de 30.09.2002), a A. encontra-se na situação de faltas por doença.
– A A. encontra-se no 8º escalão escala salarial da carreira.
– Actualmente a remuneração do 8º escalão é de € 2.014,08.
– A do 9º escalão de € 2.457,09.
– E a do 10° escalão de € 2.759,04.
– A A. despendeu, até à data, a quantia de € 2.025,14.
– A A. iniciou nova actividade, em 01.09.2001, para uma sociedade denominada Mapec, Lda., sendo que tal actividade não implicava qualquer trabalho específico, limitando-se a fazer parte dos quadros da empresa, como técnica de alvará.
– Tal ligação continuou durante os anos de 2002 e 2003.
– Em 30.03.2004, a A. elaborou um estudo de avaliação de um lote, com moradia familiar tendo sido paga por isso.

III.
Quid iuris?
Da síntese conclusiva apresentada pelo R./Recorrente extrai-se a ideia, por ele defendida, de que, por um lado, nada justifica a atribuição de uma indemnização à A./Recorrida, por não ter, em verdade, sofrido danos, antes incómodos ou contrariedades, e, por outro, que, a haver lugar à mesma, deve ser fixada em valor inferior ao que foi atribuído pelas instâncias, sob pena de violação do preceituado no artigo 496º do Código Civil.
Desta forma, a crítica à decisão recorrida passa, naturalmente, por saber se os actos praticados pelo R./Recorrente foram de molde a causar as lesões sofridas pela A./ Recorrida e, no caso afirmativo, se o montante indemnizatório fixado se ajusta à dimensão das mesmas.
Colocadas, assim, as balizas do nosso poder crítico e decisório, cumpre-nos, em 1º lugar, dizer em que circunstâncias o nosso ordenamento jurídico permite a indemnização por danos não patrimoniais e, só depois, analisar a factualidade dada como provada, relativamente às imputações feitas pelo R./Recorrente à A./Recorrida, para aquilatar da sua gravidade, à luz do que está consagrado em sede de protecção dos direitos de personalidade e, mais concretamente, do chamado direito à honra.

A respeito da fixação de indemnização por danos não patrimoniais, reza o artigo 496º, nº 1, do Código Civil, o seguinte:
“Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito”.
Por sua vez, o nº 3 deste mesmo preceito apela à equidade para a fixação do montante devido por danos não patrimoniais, na medida do “grau de culpabilidade do agente, (d)a situação económica deste e do lesado e (d)as demais circunstâncias do caso”, ou seja, remete o julgador para os denominados “conceitos gradativos”.
É consabida a dificuldade que há na fixação da indemnização por danos não patrimoniais.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, o montante da indemnização correspondente a danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo, para além do mais, à situação económica das partes, à flutuação da moeda, tomando-se em conta na fixação todas as regras da boa prudência, da justa medida das coisas, do bom senso prático e da criteriosa ponderação das realidades da vida (Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, página 474).
No mesmo sentido, opina Diogo José Paredes Leite de Campos ao fazer apelo ao bom sendo do juiz “que disporá de um certo número de dados objectivos em que se apoiar, como sejam a gravidade objectiva, social, da agressão, os sinais externos de sofrimento perante ela, ponderados por uma atenta consideração da personalidade do sujeito passivo, da valoração social da gravidade do prejuízo, etc.” (A Indemnização do Dano da Morte, pág. 16).
Delfim Maya Lucena, apoiando-se na opinião de Inocêncio Galvão Telles, defende que na fixação equitativa do montante indemnizatório, previsto no artigo 496º, do Código Civil, nunca se poderá deixar de atender à culpa do lesante, à sua situação económica, bem como à do lesado e às demais circunstâncias do caso.
E, acrescenta: “o grau de culpa do agente é determinante para se estabelecer a amplitude da respectiva indemnização, isto é, para efectuar o seu cálculo” (Danos Não Patrimoniais, página 21 e ss.).
Mário Júlio de Almeida Costa, por sua vez, não deixa de salientar que o legislador confiou ao tribunal o encargo de apreciar, no quadro das várias situações concretas, socorrendo-se de factores objectivos, se o dano não patrimonial se mostra digno de protecção jurídica, sendo irrelevantes os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultem de uma sensibilidade anómala (Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 550).
Também Inocêncio Galvão Telles frisa que o montante da fixação do montante da reparação dos danos não patrimoniais deverá ser determinado “mediante o cômputo equitativo de uma compensação, em que se atenderá, não só e antes de mais à própria extensão e gravidade dos prejuízos, mas também ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso” (Direito das Obrigações, 3ª edição, páginas 331 a 342).
É hoje ponto assente, na jurisprudência, que, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, os tribunais não se devem guiar por critérios miserabilistas.
Uma outra nota a considerar diz respeito à própria função da indemnização por danos não patrimoniais.
Delfim Maya Lucena defende, a este respeito, que, para a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, o artigo 494º, do Código Civil, apenas fornece o critério para estabelecer a própria indemnização, sendo infundada “a afirmação de que o referido artigo não indicia, de todo em todo, a atribuição de uma função punitiva à responsabilidade civil extra-obrigacional, … já que no que respeita aos danos não patrimoniais, o grau de culpa do agente é determinante para estabelecer a amplitude da indemnização, isto é, para efectuar o seu cálculo” (obra citada, pág. 23).
João de Matos Antunes Varela, depois de considerar que só em face da gravidade do dano se justifica a satisfação pecuniária do lesado, sublinha que esta é “mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização, terminando por acentuar que “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (Das Obrigações em geral, Vol. I, 8ª edição, páginas 616 a 618).
A dificuldade na determinação do quantum indemnizatório por ofensa ao direito à honra (a par de ofensas à privacidade, à imagem, ou outras que causem à vítima sofrimento interior) é particularmente sentida por Pedro Pais de Vasconcelos, quando diz que ela “reside, por um lado, na demonstração da ocorrência desse sofrimento e, por outro, no da sua intensidade” (Direito de Personalidade, página 152).
Traçadas, a traços largos, as ideias motivadoras deste tipo de indemnização por danos não patrimoniais, realçado que, no essencial, se deve atender, antes de tudo, à gravidade dos danos, eis-nos perante a tarefa de ditarmos o direito aplicável ao caso concreto, que passa, necessariamente, pela apreciação crítica dos factos provados e pela análise da tutela jurídica que os mesmos possam merecer.
Não podem restar dúvidas acerca da gravidade dos factos praticados pelo R./Recorrente: ele acabou, até, por, no foro criminal, ser condenado pela prática de um crime de injúrias agravadas, p.p. pelos artigos 181º, nº 1, e 184º, do Código Penal.
Em boa verdade, chamar a uma professora, no seu próprio local de trabalho, perante outrem, incluindo colegas e a sua própria filha, aluna daquela, “mentirosa”, “bandalho”, “aberração para o ensino” e “incompetente”, revela, além do mais, uma personalidade malsã do R./Recorrente.
E tudo contextualizado: foi o próprio R./Recorrente quem solicitou à Escola a realização da reunião, a pretexto de obter esclarecimentos, designadamente sobre a assiduidade da A./Recorrida, tendo, no decorrer da mesma, declarado que esta mandava “bocas nas aulas à aluna CC” (sua filha), e, ainda, que terminava as aulas “dez minutos antes do toque”, que pedia aos alunos para dizerem aos funcionários que estavam a sair de um teste, que nas vésperas dos testes informava sobre as questões ipsis verbis que sairiam”, e que levou os alunos a “perderem aulas para a elaborarem o material para o desfile de Carnaval”.
Ou seja, o quadro factual permite, na realidade, tirar a ideia de que o “ataque” ocorreu no terreno propício para atingir a honra da A., enquanto professora daquela concreta Escola. Onde a ofensa não podia ser mais intensa.
Ideia aquela, acerca da personalidade do R./Recorrente, que sai, naturalmente, reforçada na justa medida em que, em vez de se penitenciar, arcando, com dignidade e coragem, as culpas do ocorrido, acaba, em sede de recurso, por atribuir as consequências do seu acto à sensibilidade requintada ou exacerbada da vítima (!!!).
Mais grave, ainda: por pretender catalogar o sofrimento da A./Recorrida como simples incómodos ou contrariedades e já não danos.
Um passo mais e só faltava que tivesse defendido que se limitou a exercer um direito! Que tivesse direito de insulto sobre a A., pelo simples facto de esta ser professora incompetente, segundo o seu modo de ver!
E se virmos bem, esteve lá perto: peticionar, em reconvenção, o pagamento de uma indemnização por eventuais danos sofridos, em reflexo do processo-crime que teve de suportar, por virtude de ter cometido crime de ofensa à honra na pessoa da A., significa, ao cabo e ao resto, não saber assumir as suas próprias culpas.
Por outras palavras: traduz uma negação de si próprio – é que só honra a Honra quem a tem, de verdade.
Não cremos que o R./Recorrente, no tribunal da sua consciência, sinta isso mesmo.
Entendamo-nos, pois.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem consagra, no artigo 12º, o do direito à honra.
O artigo 26º, nº 1, da Constituição, garante que a todos é reconhecido, entre outros, o direito ao bom nome e reputação.
Por outro lado, o nº 1 do artigo 70º, do Código Civil, assegura que “a lei protege os indivíduos contra ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
A honra juscivilisticamente tutelada abrange a projecção do valor da dignidade humana, a qual é inata a todos os seres humanos.
Em sentido lato, ela abrange o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político, engloba o simples decoro, como projecção dos valores comportamentais do indivíduo no que se prende ao trato social, e envolve o crédito pessoal, como projecção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem (Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, páginas 301 e ss.).
A honra significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade humana.
Para o Cardeal Saraiva, “tem honra o homem que constantemente, e por hum sentimento habitual, procura alcançar a estima, a boa opinião e o louvor dos outros homens e trabalha por o merecer”, certo que “o sentimento de honra nasce de hum bem sucedido amor de nós mesmos, e nos leva directamente à virtude e às acções generosas, como único meio de alcançarmos boa opinião e louvor dos outros homens” (Obras completas, tomo VII, páginas 186 e 187, citado por José Augusto Sacadura Garcia Marques, A Tutela Geral da Personalidade e o Sentido ao Bom Nome na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, apud Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 da Reforma de 1977, Volume II, página 111).
No campo jurídico ela pode definir-se como a dignidade pessoal reflectida na consideração dos outros e no sentimento da própria pessoa.
Tal direito é um direito inato da personalidade: pelo simples facto do nascimento toda a criatura tem, em si mesma, o bem da própria honra. “Posteriormente, a posição que o indivíduo adquire na sociedade, o género de actividade que pratica, as qualidades pessoais que se desenvolvem com a idade, são todos os elementos que a honra individual pode sofrer maior ou menor desenvolvimento, revelando-se por um modo ou por outro. … Mesmo o sexo, a raça, a nacionalidade, conferem à honra outros tantos aspectos especiais, mas, no entanto, o conceito de honra, ainda que proteiforme, conserva a sua fundamental unidade. O direito à honra é, portanto, único (Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, página 111 e ss.)
O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade. A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com outras pessoas.
A honra existe numa vertente pessoal e subjectiva, e noutra vertente social, objectiva. Na primeira, traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa tem de si própria, na segunda, traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa merece ou de que goza na comunidade a que pertence.
“Todas as pessoas têm direito à honra pelo simples facto de existirem, isto é, de serem pessoas” (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, página 62, e Direito de Personalidade, página 76).
A honra será interior – opinião ou sentimento de uma pessoa sobre o seu próprio valor, ou exterior – representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, a chamada reputação ou bom nome (Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, página 79).
Para este consagrado penalista coimbrão, citando Rudolphi, “a dignidade penal da honra radica na convicção de que «a pessoa só pode viver e desenvolver-se de forma adequada numa comunidade quando os outros membros da comunidade lhe reconhecem a qualidade de pessoa e a tratam em conformidade com o seu Geltungswert. Se se recusa à pessoa este valor, através da divulgação de expressões de não-respeito ou de desrespeito, tal equivale a reduzir as possibilidades de viver e de se desenvolver no interior da sociedade”. E, em consonância, remata, dizendo que “a honra terá, assim, de representar a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver” (obra citada, página 81).
Orlando de Carvalho sustenta que “o valor da honra, enquanto dignitas humana, «é mais importante que qualquer outro (valor do direito à projecção moral, ou seja, o direito à honra em sentido amplo) e transige menos facilmente com os demais em sede de ponderação de interesses” (Teoria Geral da Relação Jurídica, página 65).

Feito este pequeno excurso doutrinal, cremos estar, agora, em condições de verificar a gravidade dos danos provocados pelas ofensas dirigidas pelo R./Recorrente à A./Recorrida.
Esta, surpreendida com a atitude daquele, abandonou a sala de reuniões onde tiveram lugar os episódios descritos e, a partir de então, não mais deixou de se sentir desvalorizada pessoal e profissionalmente.
Face a tais graves ofensas, ficou afectada na sua dignidade e reputação, o que lhe veio a causar todo o rol de enfermidades descrito, dele resultando um quadro clínico de acidente vascular cerebral, acompanhado de síndrome depressivo grave, com oclusão da vista esquerda, com risco de necrose (cegueira) (pontos 29 e 30).
Como dito, o R./Recorrente dirigiu à A./Recorrida as palavras insultuosas já referidas, em plena Escola, onde, há quase 20 anos, exercia, perante Colegas com funções directivas e perante a filha dele, aluna daquela, o que, naturalmente, contribuiu, ainda, para agravar o seu estado de espírito.
Para quem, como a A./Recorrida, exercia a docência, já há quase vinte anos, com dignidade e reputação, sendo uma pessoa saudável e que gostava de conviver com amigos e colegas, compreende-se, perfeitamente, que tenha ficado triste com a situação e passado pelas agruras por que passou.
Esta situação não passou pela indiferença da Direcção da Escola Secundária Anselmo de Andrade, onde a A./Recorrida exercia funções, na medida em que, passados uns dias, elaborou uma participação dirigida ao Ministério da Educação, narrando o ocorrido.
Não se diga, por fim, como parece ter querido dizer o R./Recorrente, que os danos sofridos pela A./Recorrida, não são a causa directa da sua conduta (que só por sensibilidade requintada ou exacerbada). É que qualquer pessoa normal, qualquer professor, nas circunstâncias descritas, tendo a honra como valor primário de vida, como entendemos que se deve ter, sob pena de negação da qualidade de Pessoa, não deixaria de sofrer o que esta A. sofreu.
Com pertinência, Fernando Pessoa Jorge, avisa-nos de que “o dano considerar-se-á efeito lesivo se, à luz das regras práticas da experiência e a partir do caso, era provável que o primeiro decorresse do segundo, de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos” (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, páginas 392 e 393).
Pertinentemente, Pedro Pais de Vasconcelos avisa-nos que “nem todo o dano da personalidade é ilícito por si mesmo e sem mais. A sua ilicitude é a resposta a uma interrogação sobre se, naquelas circunstâncias concretas, é exigível àquela pessoa que sofra aquele dano concreto. É lícito se lhe for exigível que o sofra; é ilícito no caso contrário”.
Mas, logo de seguida, adverte que “esta conclusão não é arbitrária e exige um critério de decisão”, o qual “decorre da «natureza das coisas», dos condicionamentos inerentes aos entia physica e dos entia moralia, principalmente do ethos imanente na vida da comunidade, que influenciam e dirigem, quer o legislador na formulação da lei, quer o julgador na decisão” (Destituição de Administrador, Direito de Personalidade e Providência de Esclarecimento Público, Separata de Estudos em Honra de Ruy Albuquerque, página 582).
A normalidade da vida diz-nos que era previsível que aqueles factos, praticados pelo R./Recorrente, naquelas circunstâncias, produzissem aqueles danos.
Pretender questionar as consequências da agressão a um dos bem mais preciosos da Pessoa, o direito à honra, mais importante que qualquer outro, enquanto dignitas humana, é, repetindo as palavras condensadas e sábias de Orlando de Carvalho, no fundo, negar-se a si próprio.
Carece, portanto, de sentido a alegação do R./Recorrente no que tange ao chamado nexo causal, na medida em que pretendeu defender que as suas “agressões” não seriam causa adequada das “lesões” sofridas pela A./Recorrida.
A sua condição humana não lhe permite, sequer, tal tipo de insinuações.
Que não apenas na sua dimensão de liberdade (em primeiro lugar, o homem é “um originário”; em segundo, porque é também autor, não só se assumindo como um eu, mas também perante os outros, “naquela «distância originária» ou diferença entre o «eu» e o «tu» pela qual cada um descobre a sua identidade, sem esquecer a dimensão temporal, ou seja, a identidade do “eu” na diferença do tempo), mas também no reconhecimento do homem enquanto pessoa, o qual terá de “ser recíproco: os outros só me podem reconhecer como pessoa se eu os reconhecer a eles como pessoa”. Ou seja, “o reconhecimento é assim um diálogo ético – um diálogo entre pessoas”.
Só assim, reconhecendo esta realidade, afirmando-se a pessoa como pessoa, atingiremos o fundamento à sua qualidade ética de sujeito ético e, “então, não podemos também deixar de reconhecer, segundo o enunciado de Hegel, que «o imperativo do direito é este: sê pessoa e respeita os outros como pessoas” Castanheira Neves, Digesta, Volume 3º, Sobre o Direito, Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito, páginas 32 a 36).
Nesta perspectiva, personalista, não podemos acreditar na autenticidade da proposta do R./Recorrente que traduz uma negação da sua própria Pessoa: não só na sua dimensão pessoal, mas também na relação (necessária) com os outros.
Como pessoa livre e responsável deverá o R./Recorrente, de uma vez por todas, pensar e repensar, nos seus actos e nas suas consequências que, no concreto caso da A./recorrida, foram, sem dúvida alguma, trágicas.

É dentro deste ponto de vista, que temos como sendo o certo, que não podemos deixar de dizer que 10.000 € é um nada.
Melhor: representa aquele quid mínimo que, indo ao encontro das exigências contidas no já citado artigo 496º do Código Civil, poderá ajudar a minorar todo o extenso sofrimento a que a A./Recorrida, foi, injustamente, sujeita.
É que, vistas bem as cousas, a dor de alma é, sem receios de exageros, incomensurável, mau grado os esforços (louváveis) da Psiquiatria em tentar medi-la.
Aqui chegados, apenas nos resta dizer que, limitados na acção não só pela injunção constante do artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil, como também pela omissão da própria A. (que não recorreu da decisão da 1ª instância), o acórdão impugnado não nos merece qualquer reparo.
IV.
Decisão:
Nega-se a revista e coloca-se o pagamento das custas a cargo do recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, aos 04 de Maio de 2010
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Mário Cruz