Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S4115
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
VALOR DA CAUSA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200902120041154
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIMENTO
Sumário :

I - No domínio do processo laboral vigora a regra da inadmissibilidade de recursos de decisões proferidas em causas de valor não superior à alçada do tribunal de que se recorre – artigo 678.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Civil (CPC), e proémio do artigo 79.º do Código de Processo do Trabalho (CPT).
II - As acções emergentes de acidente de trabalho não estão contempladas em nenhuma das excepções à regra da alçada, no que concerne ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 79.º, alíneas a), b), e c), do Código de Processo do Trabalho].
III - A expressão "Fixo à causa o valor de € 13.886,86", constante da sentença que decide a acção emergente de acidente de trabalho, integrando um período de texto autónomo, sem sem ligação discursiva à expressão "Custas pela ré", que a antecede, não restringe os seus efeitos ao domínio tributário e compreende-se no exercício do poder/dever atribuído ao juiz de, em qualquer momento, alterar o valor da causa, nos termos do artigo 120.º, n.º 3, do CPT.
IV - Este valor da causa torna-se definitivo se, nessa parte, a sentença não foi objecto de recurso, por força das disposições combinadas dos artigos 123.º, n.º 3, do CPT, 308.º, n.º 3 e 315,º, n.º 3, do CPC).
V - As regras sobre o modo de estabelecer o valor da causa acima referidas, para efeito de ser permitido o recurso, não são injustificadas, tanto mais que às partes é sempre facultado em tal domínio recorrer (nos termos do artigo 678.º, n.º 3, do CPC), não constituindo tais regras obstáculo ao pleno exercício do direito de acesso aos tribunais, tal como se acha configurado nos vários incisos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
VI - Podendo a parte impugnar, por via de recurso, o valor da causa fixado na sentença em montante que lhe não permita aceder a determinada fase recursória para discutir outros segmentos decisórios da mesma sentença, se o não fizer só a ela é imputável a consequência de lhe ser negada a possibilidade de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I


O Autor AA interpôs o presente recurso de revista do acórdão da Relação de Coimbra que, concedendo provimento à apelação que a Ré Companhia de Seguros BB – ......, S.A., levara àquele tribunal superior, revogou a sentença do Tribunal do Trabalho de Viseu que julgara procedente a acção especial emergente de acidente de trabalho e condenara a dita Ré no pagamento ao demandante das prestações correspondentes à reparação do acidente por ele sofrido em 5 de Outubro de 2005.

Notificada do requerimento de interposição da revista, a Ré veio aos autos dizer que o recurso não podia ser recebido «dado que, tendo sido fixado à acção o valor de € 13.886,86, não é admissível recurso de revista para o STJ».

O Autor respondeu para sustentar que o recurso devia ser admitido, dizendo que «[n]ão assiste razão à Recorrida quanto ao valor da acção para efeito de recurso porquanto nos termos do disposto no art. 308.º/1 do CPC ''na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a acção é proposta'', sendo que nesse momento, como resulta da P.I., o valor era de 20.668,17 euros».

A revista foi admitida, no tribunal recorrido, tendo o Exmo. Desembargador Relator considerado que o valor de € 20.668,17, inicialmente atribuído à acção, é superior à alçada da Relação, a ele se devendo atender, nos termos do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), porquanto o valor do processo apenas foi corrigido, para efeitos de custas e ao abrigo do artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho (CPT), em função dos valores encontrados na sentença, para aplicação da norma do referido preceito, e a sentença não transitou em julgado.

Na alegação que apresentou em resposta ao recurso de revista, a recorrida continuou a sustentar a inadmissibilidade do recurso, imputando ao despacho que o recebeu a violação do disposto nos artigos 678. n.º 1, do CPC, 79.º, n.º 1 e 81.º, n.º 5, do CPT.

Recebidos os autos neste Supremo Tribunal, o relator proferiu despacho em que decidiu não admitir a revista, no entendimento de que o valor a atender, para efeito de admissibilidade do recurso, é o que foi fixado à causa na sentença da 1.ª instância.

Notificado desse despacho, veio o Autor requerer que sobre a matéria do mesmo recaia acórdão, nos termos do artigo 700.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.

Exprimiu os motivos da sua discordância em relação ao decidido pelo relator, nos seguintes termos:

«[...]

1. Dão-se aqui por integralmente reproduzidas as razões expressas pelo Exmo. Relator do processo no Tribunal da Relação de Coimbra que admitiu o Recurso de Revista.

2. É que como o mesmo acentua, e bem, o valor fixado no processo continua a ser o valor inicialmente atribuído de 20.688,17 euros porquanto o valor fixado na sentença o foi apenas para efeito de custas não se tendo o mesmo tornado definitivo uma vez que a decisão ainda não transitou em julgado.

3. Salvo o devido respeito pelo entendimento do despacho impugnado, a posição expendida mais não visa que negar ao Recorrente a possibilidade de recorrer para o mais alto Tribunal para que nele não seja apreciado o fundo material da sua pretensão e tal não seja negado por razões, expressas ou implícitas, de mero entendimento formal das normas do processo.

4. Tal entendimento contraria todo o espírito das alterações das regras e princípios processuais, começados a produzir a partir da reforma do processo trazida pelo D.L. 329-A/95, de 12/12, referindo-se aqui que "o direito de acesso aos tribunais envolverá identicamente a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma".

5. No caso dos autos o único valor definitivamente fixado nos autos como valor da causa é o que lhe foi atribuído na petição inicial.

6. Assim, não se vislumbram razões para a não admissão da Revista e apreciações [sic] das questões materiais nela incluídas.

7. A interpretação efectuada no despacho recorrido viola, pelo que se afirmou, o direito do Recorrente à justiça inscrito nomeadamente no art. 20.º da CRP.

[...]»

A recorrida não respondeu.

Vêm os autos à conferência com dispensa de vistos.


II


1. O despacho que o recorrente pretende ver revogado observou que, tendo a questão da admissibilidade do recurso sido suscitada pela Ré antes de proferido no tribunal recorrido o despacho que o recebeu, o que proporcionou ao Autor exercer o contraditório, como efectivamente sucedeu, mostrando-se, desse modo, satisfeita a exigência contida no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), nada obstava à imediata apreciação, nos termos das disposições combinadas dos artigos 700.º, n.º 1, alínea e), e 726.º, ambos do mesmo Código, na versão aqui aplicável, que é a anterior à da revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto — versão aquela a que pertencem os preceitos adiante referidos sem menção de diploma —, cuja disciplina rege subsidiariamente o processo laboral, nos termos do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho (CPT).

E, para decidir no sentido da inadmissibilidade da revista, discorreu assim:

«1. Das disposições combinadas dos artigos 79.º, proémio, do CPT, e 678.º, n.º 1, do CPC, resulta que, em regra, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de decisões proferidas em acções cujo valor não exceda a alçada da Relação.

A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, traduzindo a utilidade económica imediata do pedido, a ele se atendendo para determinar a relação da causa com a alçada do tribunal (artigo 305.º, n.os 1 e 2).

O valor da causa deve ser declarado na petição inicial [artigos 407.º, n.º 1, alínea f), e 474.º, alínea e)], considerando-se definitivamente fixado no montante indicado, na ausência de impugnação ou alteração oficiosa pelo juiz, logo que proferido despacho saneador (artigo 315.º, n.os 1 e 2), atendendo-se, na sua determinação, ao momento em que a acção é proposta (artigo 308.º, n.º 1).

A lei processual civil consagra, no entanto, excepções a esta regra geral: os processos de liquidação ou outros em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, casos em que o valor inicialmente aceite, será corrigido, logo que o processo forneça os elementos necessários, considerando-se o valor da causa definitivamente fixado logo que seja proferida sentença (artigos 308.º, n.º 3, e 315.º, n.º 3).

Nos processos de acidente de trabalho, em qualquer altura o juiz pode alterar o valor fixado à causa, em conformidade com os elementos que o processo fornecer (artigo 120.º, n.º 3, do CPT).

Trata-se, igualmente, de uma excepção à regra geral acima referida, pois que, em tais processos, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção.

Por isso, o poder/dever de o juiz alterar o valor da causa, em qualquer momento do processo, nos termos do n.º 3 do referido artigo 120.º, não se confina, no plano dos efeitos, ao âmbito tributário.

Aliás, para efeitos de custas, só é de atender ao valor resultante da aplicação da lei de processo, nos casos não expressamente previstos no diploma que estabelece a disciplina em matéria de custas (artigo 5.º, n.º 1, do Código das Custas Judiciais, na versão que resultou da revisão efectuada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, aplicável ao caso presente), sendo certo que, nos processos destinados a efectivar direitos emergentes de acidentes de trabalho, o valor da causa a considerar para efeitos de custas, independentemente de o juiz usar daquele poder/dever, é o do montante das reservas matemáticas legalmente estabelecido para garantia das respectivas pensões, sendo, porém, de cinco vezes o valor anual da indemnização se a incapacidade invocada for temporária, e igual ao de todas as prestações se [se] tratar de indemnizações ou de pensões temporárias vencidas [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais].

Assim, fixado na sentença o valor da causa, em acção especial emergente de acidente de trabalho, é esse o valor que, por corresponder à utilidade económica do pedido, vale para efeitos processuais, desde que, nessa parte, a decisão não tenha sido impugnada, por via de recurso, sempre admissível, nos termos do artigo 678.º, n.º 3.

2. No presente caso, o processo teve início em 13 de Julho de 2005, data da participação do acidente (fls. 1), e a fase contenciosa em 11 de Maio de 2006 (fls. 65), tendo, na respectiva petição, sido atribuída à acção o valor de € 20.688,17.

Na sentença da 1.ª instância, lê-se, na parte final: “Custas pela ré. Fixo à causa o valor de € 13.886,86”.

Não se afigura correcto interpretar o modo como o tribunal se exprimiu no sentido de restringir a produção de efeitos da decisão quanto ao valor da causa ao âmbito tributário, devendo considerar-se que tal decisão foi proferida ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 120.º do CPT e com a projecção conferida pelo artigo 315.º, n.º 3, do CPC, com referência ao n.º 3 do artigo 308.º deste diploma, ou seja, para todos os efeitos processuais, incluindo o de determinar a relação da causa com a alçada do tribunal, tal como sucederia se, atribuído na petição valor inferior à alçada do tribunal, a sentença viesse a fixar um valor superior.

A sentença, nessa parte, não foi impugnada, pelo que o valor assim fixado se tornou definitivo e inalterável.

O regime da admissibilidade dos recursos, em processo laboral, é o que resulta das disposições combinadas dos artigos 79.º do Código de Processo do Trabalho de 1999 e 678.º do Código de Processo Civil.

De harmonia com este regime, a regra, no que agora interessa, é a da inadmissibilidade de recursos de decisões proferidas em causas de valor não superior à alçada do tribunal de que se recorre – artigo 678.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Civil, e proémio do artigo 79.º do Código de Processo do Trabalho.

As excepções a tal regra contemplam as acções em que estejam em causa a determinação da categoria profissional, o despedimento do trabalhador, a sua reintegração na empresa e a validade ou subsistência do contrato de trabalho, os processos emergentes de acidentes de trabalho ou de doença profissional, e os processos do contencioso das instituições de previdência, abono de família e organismos sindicais, sendo, em todos os casos, independentemente do valor, admissível recurso, mas, apenas, até à Relação – 79.º, alíneas a), b), e c), do Código de Processo do Trabalho.

Também admitem sempre recurso, no que aqui importa considerar, as decisões respeitantes ao valor da causa, e qualquer seja o valor desta, as decisões impugnadas com fundamento em violação das regras de competência absoluta ou em ofensa de caso julgado, bem como os acórdãos da Relação que estejam em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, e, ainda, as decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada – artigo 678.º, n.os 2, 3, 4 e 6, do Código de Processo Civil.

O presente caso não está contemplado em nenhuma das excepções à regra da alçada, no que concerne ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

A alçada dos Tribunais da Relação, estabelecida pelo artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, também designada Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na redacção do artigo 3.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, é de € 14.963,94, sendo este o valor a considerar, para efeito de ser consentido o presente recurso de revista.

Como o valor definitivamente fixado à causa é inferior à alçada da Relação, o recurso não devia ter sido admitido.

A decisão que admite o recurso não vincula o tribunal superior (artigo 687.º, n.º 4).

Assim, embora o recurso tenha sido admitido na 2.ª instância, nada obsta a que seja, pelo relator, em vista do disposto nos artigos 700.º, n.º 1, alínea e), 701.º, n.º 1, [e] 704.º, aplicáveis por força do artigo 724.º, n.º 1, proferida decisão a declará-lo inadmissível.»

2. Defende o recorrente, na linha do despacho proferido no tribunal recorrido, que a sentença apenas fixou o valor para efeitos de custas.

Tal interpretação não tem correspondência com a literalidade do segmento da sentença em causa, pois, ali se não restringe ao domínio tributário o valor fixado, sendo que a expressão "Fixo à causa o valor de € 13.886,86" integra um período do texto autónomo e sem ligação discursiva à expressão "Custas pela ré", que constitui o período antecedente. Por outro lado, aquela primeira expressão decisória só se compreende no exercício do poder/dever atribuído ao juiz de, em qualquer momento, alterar o valor da causa, nos termos do artigo 120.º, n.º 3, do CPT.

Diz, ainda, o recorrente que aquele valor não se tornou definitivo, "uma vez que a decisão não transitou em julgado".

Não tem razão, visto que das disposições combinadas dos artigos 123.º, n.º 3, do CPT, 308.º, n.º 3 e 315,º, n.º 3, do CPC, o valor da causa se considera definitivamente fixado logo que seja proferida a sentença, desde que a decisão sobre o valor não seja impugnado por via de recurso, sempre admissível, nos termos do artigo 678.º, n.º 3, do CPC.

No caso, como as partes se conformaram com o valor fixado, visto que, nessa parte, a sentença não foi objecto de recurso, ele tornou-se definitivo.

E se é certo que, na expressão do legislador vertida no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, "o direito de acesso aos tribunais envolverá identicamente a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma", a verdade é que as regras sobre o modo de estabelecer o valor da causa acima referidas, para efeito de ser permitido o recurso, de modo algum podem considerar-se injustificadas, tanto mais que às partes é sempre facultado em tal domínio recorrer, não constituindo tais regras obstáculo ao pleno exercício do direito de acesso aos tribunais, tal como se acha configurado nos vários incisos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Neste contexto, podendo a parte impugnar, por via de recurso, o valor da causa fixado na sentença em montante que lhe não permita aceder a determinada fase recursória para discutir outros segmentos decisórios da mesma sentença, se o não fizer só a ela é imputável a consequência de lhe ser negada "a possibilidade de recorrer para o mais alto Tribunal para que nele seja apreciado o fundo material da sua pretensão", por isso que se apresenta manifestamente descabido — por impertinente para aquilatar da bondade dos fundamentos do despacho reclamado — o que se mostra escrito no ponto 3 da reclamação, porventura, por esquecimento do verdadeiro alcance e da plena dimensão do que, a respeito do comportamento dos intervenientes processuais, dispõe o artigo 266.º-B, n.os 1 e 2, do CPC.

Quanto ao mais, sufragam-se os fundamentos e a decisão do relator.


III


Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação e confirmar o despacho do relator.

Custas pelo reclamante.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2009.

Vasques Dinis (Relator)

Bravo Serra

Mário Pereira