Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A050
Nº Convencional: JSTJ00042887
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIORIDADE DE PASSAGEM
CRUZAMENTO DE VEÍCULOS
Nº do Documento: SJ200203050000501
Data do Acordão: 03/05/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 202/01
Data: 06/07/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
DIR CRIM - DIR ESTRADAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 487 N1.
CE54 ARTIGO 8 N1 N2 A.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1981/05/14 IN BMJ N307 PAG191.
Sumário : Pelo facto de a prioridade de passagem não ser um direito absoluto não se segue que qualquer condutor que chegue a um cruzamento tenha de parar deixando passar quem não tem, na letra e no espírito da lei estradal, prioridade de passagem.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A e B, menor representado por seus pais, intentaram, em 15.7.94, acção sumária contra a C, pedindo a condenação desta a pagar-lhes, a título de danos patrimoniais, lucros cessantes e danos morais, a indemnização de 9932000 escudos, bem como o mais que se apurar, na acção, e em execução de sentença, com juros.
Alegaram, em resumo, que, em 28.7.1989, ocorreu um acidente de viação, cuja responsabilidade coube ao condutor do veículo NF, cuja responsabilidade civil havia sido transferida para a ré, e do qual resultaram prejuízos patrimoniais e não patrimoniais para os demandantes, em consequência de lesões corporais e incapacidade sofridas, o que tudo discriminaram.
Contestou a ré, invocando a prescrição do direito dos autores, aduzindo que o acidente se ficou a dever à conduta negligente e ilícita do autor A e impugnando os danos articulados, pedindo a improcedência da acção e a condenação dos AA como litigantes de má fé.
Responderam estes, pugnando pela improcedência da excepção da prescrição.
No saneador, julgou-se improcedente a prescrição em relação ao autor B, relegando-se para final o conhecimento de tal excepção relativamente ao autor A.
Condensado e instruído o processo, procedeu-se à audiência de julgamento, posto o que foi proferida sentença, na qual se considerou improcedente a invocada prescrição quanto ao autor A e se julgou parcialmente procedente a acção, condenando-se a ré a pagar:
a) Ao autor A, a quantia de 520283 escudos, por danos patrimoniais;
b) Ao mesmo autor, a quantia de 1120000 escudos, por danos não patrimoniais;
c) Ao autor B, a quantia de 1120000 escudos, por danos não patrimoniais;
d) A ambos os autores, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, relativa aos gastos efectuados com tratamentos e deslocações ;
e) A ambos os autores, juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal de 15%, sendo à taxa de 10% ao ano a partir de 1.10.95 e à taxa de 7% ao ano a partir de 17.4.99, a contar da data da citação quanto aos danos patrimoniais, e a contar da data da sentença, quanto aos danos não patrimoniais, absolvendo a ré do mais peticionado.
Apelou a C, tendo a Relação de Évora, por acórdão de 7.6.01, revogado a sentença e absolvido a ré do pedido.
Inconformados, interpuseram os demandantes o presente recurso de revista, fechando a minuta recursória com as seguintes
Conclusões:
1- É verdade que o condutor do veículo automóvel se apresentava pela direita do ciclomotor;
2- Contudo, isso não basta para concluir que foi o condutor do ciclomotor o único culpado do acidente;
3- Com efeito, teria sido preciso provar a simultaneidade de chegada ao cruzamento, e tal não está provado;
4- Teria sido preciso provar, para se aferir desse direito à prioridade, a velocidade a que seguia o veículo automóvel e se havia visibilidade entre os dois condutores, enquanto circulavam nas vias, antes destas se cruzarem, e isto não está provado;
5 - Apenas está provado que o condutor do ciclomotor tinha visibilidade a uma distância de 50 m à sua frente (e nada está provado quanto à visibilidade que tinha para a sua direita);
6 - Teria sido preciso provar que o veículo automóvel quis imobilizar o veículo para impedir o embate; e isto não ficou provado;
7 - Apenas se provou que o condutor do automóvel o quis imobilizar para deixar passar o ciclomotor, mas não o conseguiu pelo que o automóvel invadiu repentinamente a faixa de rodagem por onde circulava o ciclomotor;
8 - O que quer dizer que o automóvel circulava a uma velocidade que não lhe permitia o domínio da marcha do mesmo, já que quis deixar passar o ciclomotor, criando até no condutor deste a convicção de que iria parar, não o conseguiu fazer;
9 - E porque, tal como se encontra provado, ambos os condutores circulavam pela faixa direita da via, a conclusão que daí se retira é a de que, quando o ciclomotor embateu no automóvel, já tinha passado o eixo do cruzamento;
10 - Pelo que, do facto de ter sido ele a embater não pode tirar-se a conclusão de que o automóvel chegou primeiro ao cruzamento;
11 - Nos termos do artº 8º do Código da Estrada então em vigor, os condutores com prioridade de passagem têm de tomar as devidas precauções para não modificarem a sua velocidade, estando a regra da prioridade de passagem submetida ao dever geral de condução prudente em todas as circunstâncias;
12 - E uma das regras que caracteriza o dever geral de condução prudente é a de poder ser dominada a marcha do veículo em qualquer circunstância - art. 7 do Código da Estrada;
13 - Os factos provados indicam que o condutor do veículo automóvel não usou das devidas precauções;
14 - O acórdão decidiu como se do facto de o veículo automóvel se apresentar pela direita, se pudesse tirar uma presunção legal de culpa contra o condutor do ciclomotor, baseando a maior parte das suas conclusões em factos que não constam da matéria provada;
15 - Assim, o acórdão violou os artigos 8, n. 1 e 7 do Código da Estrada;
16 - Deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o acórdão e proferindo-se outro que condene nos precisos termos em que se condenou na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.
Contra-alegou a ré C, contrabatendo a tese dos recorrentes.
Correram os vistos legais.
Apreciando e decidindo.
Considerando que nas conclusões da minuta de revista apenas se trata da questão da culpa no eclodir do sinistro estradal, são os seguintes os factos assentes pelas instâncias e que interessam à solução dessa questão:
No dia 28.7.89, pelas 15.30 horas, D conduzia o veículo pesado de matrícula EJ, pela Estrada Municipal que dá acesso ao apeadeiro de Venda do Alcaide, da freguesia do Pinhal Novo, em Palmela (A));
Mais à sua frente, seguia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula NF, conduzido por E, ambos conduzidos pela faixa direito, atento o seu sentido de marcha, e no sentido da Venda do Alcaide à Estrada Municipal n° 533-1, que faz a ligação Pinhal Novo à Palhota (B));
Quando o NF chegou junto do cruzamento com a referida Estrada n° 533-1 pretendeu imobilizar-se a fim de deixar passar o motociclo de matricula LR que circulava pela faixa da direita, atento o seu sentido de marcha, naquela via, conduzido por A (1º);
No motociclo seguia como pendura o autor B (C));
O E não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia, indo invadir, repentina a faixa de rodagem da dita E. Municipal n° 533 (2º);
Por forma a ser embatido pelo motociclo que circulava no sentido Pinhal Novo - Palhota (3º);
O motociclo apresentava-se pela esquerda em relação ao NF (13º);
O NF estava praticamente imobilizado quando foi embatido pelo motociclo (14º);
Para além dos autores, circulava na "Vespa" um neto do A, Igor, que viajava de pé, entre o 1° autor e a frente do motociclo (16º);
O motociclo circulava a cerca de 60 Km/hora (17º);
A configuração do local do acidente permitia ao condutor do motociclo ver a 50 metros de distância para a sua frente (18º).
Em presença deste circunstancialismo, entendeu a Relação de Évora que não pode ser retirada a conclusão de que o condutor do NF tenha agido com culpa, quer por ter violado qualquer norma estradal, quer por ter agido de forma negligente, imprevidentemente ou com falta de cuidados que lhe fossem exigíveis, devendo a culpa na produção do acidente ser atribuída apenas ao condutor do motociclo, o autor A.
Diga-se desde já que a Relação decidiu acertadamente.
Nos termos do nº 1 do artº 487º do CC, recaía sobre os autores / lesados o ónus da prova da culpa do condutor do NF.
Essa prova não se mostra feita.
Os AA nem sequer lograram uma prova de primeira aparência (prima facie), derivada do curso normal das coisas ou da experiência da vida, através da qual pudessem fazer recair sobre a ré seguradora o ónus da contra-prova, isto é uma prova que crie um estado de dúvida ou incerteza no espírito do juiz, de molde a forçar os AA a demonstrar completamente a culpa. Com efeito, não se vislumbram factos que segundo os princípios da experiência geral tornem muito verosímil a culpa (sobre a prova de primeira aparência e suas implicações, cfr. o acórdão deste Supremo, de 14.5.81, no BMJ 307, pág.191 e segs.).
Comparemos os procedimentos de cada um dos intervenientes no acidente, nos momentos que imediatamente o precederam, para se verificar que assim é.
Quanto ao condutor do veículo automóvel:
- Seguia pela faixa direita - atento o seu sentido de marcha - de uma Estrada Municipal, no sentido da Venda do Alcaide, à Estrada Municipal nº 533-1;
- Quando chegou junto do cruzamento com esta estrada, pretendeu imobilizar-se a fim de deixar passar o motociclo que circulava pela E.M. 533-1, apresentando-se pela esquerda e circulando pela meia faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha;
- Não conseguiu imobilizar o automóvel, invadiu repentina a faixa de rodagem da E.M. 533-1 e foi embatido, quando estava praticamente imobilizado, pelo motociclo, que se lhe apresentava pela esquerda.
Quanto ao A. A, condutor do motociclo, para além do que acaba de se descrever, provou-se que:
- Circulava a cerca de 60 Km/hora;
- Levava no motociclo, como pendura, o menor e co-autor B, e, ainda, o seu neto Igor, que viajava de pé, entre o condutor e 1º autor, e a frente do motociclo;
- A configuração do local do acidente permitia-lhe ver a 50 metros de distância para a sua frente.
Ora, segundo o artº 8º, nº 1 do Código da Estrada em vigor à data do ajuizado acidente, a prioridade de passagem permitia aos condutores que dela gozassem, uma vez tomadas as indispensáveis precauções, não modificar a sua velocidade ou direcção e obrigava todos os outros a abrandar ou a parar, por forma a facultar-lhes a passagem.
O autor A estava obrigado, nas descritas circunstâncias, a abrandar a marcha ou mesmo parar, a facultar a prioridade de passagem ao condutor do automóvel.
Em vez disso, circulava a cerca de 60/km/hora!
Sendo certo que se podia aperceber com antecedência, de que se aproximava de um cruzamento, já que a configuração do local do acidente lhe permitia ver a 50 metros de distância para a sua frente.
Ademais, conduzia em condições altamente censuráveis, pois, para além de levar como pendura o co-autor menor, ainda levava um outro menor, o seu neto Igor, desta feita de pé, entre ele, condutor, e a frente do motociclo.
Mas, pergunta-se: não sendo a prioridade de passagem um direito absoluto, será que o segurado na ré tomou as indispensáveis precauções que as condições do local exigiam para que pudesse reivindicar plenamente o direito de prioridade consignado no dito artº 8º nºs 1 e 2, al. a) para os casos de inexistência de sinalização em contrário, como sucede no caso vertente?
Entendemos que sim, por isso que ele pretendeu imobilizar o automóvel, para deixar passar o motociclo. Só que não logrou pará-lo completamente, e foi embatido por este quando já estava praticamente imobilizado.
Portanto, o automobilista reduziu especialmente a velocidade, e quase parou. Estava praticamente imobilizado quando foi embatido.
Consequentemente não se pode afirmar que não tomou as precauções que no caso se impunham, não se afigurando correcto sustentar que seguia com velocidade inadequada e sem dominar a marcha do veículo automóvel.
Nesta conformidade, não tendo omitido as indispensáveis precauções, gozava plenamente do direito de prioridade de passagem, centrando-se a culpa exclusiva do sinistro no condutor do motociclo e aqui recorrente A.
Ao condutor do veículo segurado não pode ser imputada a violação de qualquer norma legal do Código da Estrada aqui aplicável, nem de qualquer dever de prudência que aos condutores nas vias públicas se imponha observar naquelas circunstâncias.
Como muito bem se observou no acórdão da Relação, tendo sido ele o embatido, significa que foi o primeiro a chegar ao cruzamento.
Não provando os AA que ele tinha possibilidade de se aperceber mais cedo da necessidade de parar o veículo e que nesse momento ainda tinha a possibilidade de parar por forma a evitar o acidente.
Finalmente, não é defensável a tese de que o condutor do automóvel é que estava obrigado a parar atempadamente, pois isso corresponderia a subverter completamente as regras da prioridade. A seguir-se essa postura, deixaria praticamente de haver regras de prioridade. Qualquer condutor que chegasse a um cruzamento teria de parar, deixando passar quem, na letra e no espírito da lei estradal, não tem prioridade de passagem.
Sem, necessidade de mais delongas, acordam em negar a revista, com custas pelos AA, sem prejuízo do apoio judiciário em devido tempo concedido.

Lisboa, 5 de Março de 2002.
Faria Antunes,
Lopes Pinto,
Ribeiro Coelho.