Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | GARCIA MARQUES | ||
Descritores: | HERANÇA CABEÇA DE CASAL ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA HERDEIRO USUFRUTUÁRIO | ||
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Nº do Documento: | SJ200205280012761 | ||
Data do Acordão: | 05/28/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL ÉVORA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1937/01 | ||
Data: | 12/13/2001 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIR CIV - DIR SUC. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 2030 N2 N4 N5. ARTIGO 2079 ARTIGO 2087 ARTIGO 2088. | ||
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Sumário : | I - O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega material dos bens que deva administrar e estejam no poder destes desde que essa entrega seja realmente necessária ao exercício da gestão. II - Nos "terceiros" não se incluem os legatários (são proprietários dos bens legados, não são terceiros em relação a eles), salvo, por interpretação extensiva, o usufrutuário ainda que universal (embora legatários, são terceiros em relação aos bens, não são seus proprietários). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I A, intentou, no tribunal judicial de Coruche, acção declarativa com processo ordinário, contra B e mulher C, pedindo que:a) seja declarado que o prédio rústico misto denominado Herdade das Gamas integra a herança aberta por óbito de D e de E, que foram casados em regime de comunhão geral de bens; b) sejam os RR. condenados a reconhecer a propriedade da referida herança indivisa sobre aquele prédio rústico; c) sejam os RR. condenados a absterem-se de qualquer acto que prejudique os direitos de propriedade da herança indivisa sobre o referido prédio; d) sejam os RR. condenados a restituir, inteiramente devoluto e desembaraçado, à herança na pessoa do A., seu cabeça de casal, o prédio que, sem justificação, ocupam; e) sejam os RR. ainda condenados a pagar à herança indemnização em montante a determinar em liquidação de sentença. Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte: (a) é cabeça de casal designado no processo de inventário nº 11/98, a correr termos no Tribunal de Coruche, por óbito de D e mulher E, que foram casados em regime de comunhão geral de bens e de cuja herança faz parte a referida Herdade das Gamas; (b) a essa herança por partilhar concorrem, por sucessão testamentária, por um lado, o A. e, por outro, os filhos dos RR., sendo os RR. legatários do usufruto sucessivo de todos os bens deixados pela referida E; (c) os RR. vêm ocupando e explorando o prédio, com prejuízo da herança por estar privada de dar uso aos terrenos e deles obter rendimento. Citados, os RR. contestaram, alegando que ocupam o prédio com o consentimento e no interesse dos herdeiros, não causando quaisquer prejuízos e que celebraram com a referida E um contrato de arrendamento. Após saneamento, condensação e audiência de julgamento, foi, em 30-10-2000, proferida sentença que julgou a acção apenas parcialmente procedente e condenou os RR. a entregar ao A., assim o restituindo à herança indivisa aberta por óbito de D e de E, da qual aquele A. é cabeça de casal, o prédio denominado Herdade das Gamas, inteiramente devoluto e desembaraçado, indo os RR., no mais, absolvidos - cfr. fls. 65 a 75. Inconformados, os RR. apelaram, tendo o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 13-12-2001, julgado procedente o recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo os RR. do pedido. Agora, por sua vez, inconformado, traz o Autor a presente revista, na qual, ao alegar, oferece as seguintes conclusões: 1. A herança em que se integra o prédio reivindicado ainda se encontra indivisa. 2. Na herança indivisa, os herdeiros têm direito a uma quota dessa herança e não aos bens em concreto que a compõem. 3. Os herdeiros não detêm qualquer direito próprio sobre cada um dos bens da herança. 4. Enquanto não estiverem determinados ou concretizados os bens sobre os quais recairá o usufruto de que os recorridos beneficiam, caber-lhes-á, e tão só, o direito aos rendimentos gerados pelos bens que a herança produza. 5. Os herdeiros de uma herança indivisa não detêm qualquer direito próprio sobre cada um dos bens que a integram, pois são apenas contitulares do direito à herança, têm tão só um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesmo considerada. 6. Enquanto não se proceder a partilhas, a herança indivisa constitui um todo indivisível, cujos direitos e obrigações não podem ser atribuídos destrinçadamente a qualquer um dos herdeiros. 7. A ocupação que os recorridos estão a fazer do prédio Herdade das Gamas, quiçá, o bem mais valioso que integra a herança, constitui um nítido abuso de direito. 8. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 2079º e 2088º do Código Civil. 9. Impõe-se assim a sua revogação e decidir-se pelo provimento da acção, devendo os Recorridos ser condenados a restituir à herança na pessoa do A. cabeça de casal da mesma o prédio misto denominado Herdade das Gamas (...), que integra a herança aberta por óbito de D e de E, que foram casados no regime de comunhão geral de bens (terreno e construções) que injustificadamente ocupam, inteiramente devoluto e desembaraçado.(...). Contra-alegando, os RR. pugnam pela manutenção do julgado. II São os seguintes os factos - todos eles "factos assentes" - que foram dados como provados (cfr. fls. 39 a 41):1 - Pelo Tribunal da Comarca de Coruche correm seus termos os autos de inventário nº 11/98. 2 - Nesses autos foi o aqui Autor designado cabeça de casal. 3 - De entre os bens relacionados e a partilhar consta o prédio misto denominado Herdade das Gamas, com a área de 396,35 ha, composto de terras destinadas a cultura arvense, sobreiros, eucaliptal, pinhal, prado natural hortejo, laranjeiras, oliveiras, pastagens, vinha, figueiras, pomar de citrinos, mato, cultura arvense de regadio e de sequeiro, arrozal e diversas construções urbanas, sito na freguesia e concelho de Coruche, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1 - CC - CC1 e artigos nºs 1750 e 1769, os urbanos, com o valor patrimonial de 8197185 escudos. 4 - Este prédio misto integrava o património do casal inventariado naqueles autos de inventário, ou seja de D e de E, que foram casados em regime de comunhão geral de bens. 5 - Este D faleceu no dia 11 de Maio de 1938, no estado de casado com a referida E, sem descendentes nem ascendentes vivos. 6 - O falecido deixou dois testamentos cerrados, o primeiro com data de 23 de Fevereiro de 1931, aprovado em 4 de Março de 1931 e o segundo com data de 18 de Julho de 1936, aprovado em 6 de Agosto de 1936, nos quais institui como suas únicas herdeiras a sua mulher E e a sua afilhada F, casada com G. 7 - Em 20 de Agosto de 1967, faleceu em Lisboa a aludida afilhada e herdeira, F, no estado de casada em primeiras e únicas núpcias com G, sem descendentes nem ascendentes vivos, deixando um único testamento público. 8 - Neste testamento, lavrado em 19 de Agosto de 1967, F instituiu seu único e universal herdeiro o marido G. 9 - Em 16 de Abril de 1968, faleceu em Lisboa, G, no estado de viúvo de F, sem descendentes nem ascendentes vivos, tendo-se finado com um testamento público, lavrado em 25 de Novembro de 1996, no qual deixou legados e instituiu seu universal herdeiro, do remanescente da sua herança, A, ora Autora. 10 - Em 31 de Março de 1981, faleceu E, no estado de viúva do aludido D, sem ter deixado descendentes nem ascendentes vivos, com último domicílio no Monte das Gamas, em Coruche. 11 - A falecida deixou dois testamentos cerrados, um sem data e o outro datado de 12 de Dezembro de 1973, respectivamente aprovados em 25 de Outubro de 1968 e 12 de Dezembro de 1973, nos quais instituiu legatários do usufruto sucessivo de todos os seus bens, B e sua mulher C, casados segundo o regime de comunhão geral de bens, ambos residentes no Monte das Gamas, em Coruche e na nua propriedade de todos os seus bens os filhos do referido casal, que são os seguintes: - H; I, J e L. 12 - Os RR. vêm ocupando e explorando o prédio supra identificado, conhecido por Herdade das Gamas. Pode, nesta sede, aditar-se ainda o seguinte: Os 13 quesitos que integravam a base instrutória mereceram a resposta de "não provado" - cfr. fls. 41/42 e 61. Na fundamentação das respostas pode ler-se o seguinte: "A convicção do Tribunal Colectivo formou-se, relativamente às respostas negativas a toda a matéria de facto constante dos quesitos 1º a 6º e 8º a 13º da base instrutória, com base na circunstância de nenhuma prova ter sido oferecida, nem produzida, quanto a tal matéria. Quanto à resposta negativa à matéria de facto constante do quesito 7º (1), a convicção do Tribunal assentou na circunstância de nenhuma prova testemunhal ter sido oferecida, nem produzida, e em sede de prova documental, apenas terem sido apresentadas meras fotocópias de documentos (junção ocorrida em audiência de julgamento), cuja conformidade com os respectivos originais não resulta atestada (cfr. artº 387º do Cód. Civ.), pelo que não são tais simples fotocópias dotadas de força probatória que permita alicerçar, nessa parte, convicção positiva do Tribunal" - cfr. fls. 62. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. III Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do C.P.C.), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas - e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso -, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras - artigo 660º, nº 2, também do C.P.C.A questão que importa decidir consiste em saber se os Réus/recorridos estão obrigados a entregar à herança, na pessoa do Autor, na qualidade de cabeça-de-casal, o prédio misto já identificado, conhecido por "Herdade das Gamas". 1 - Sob a rubrica "Cabeça-de-casal", o artigo 2079º do Código Civil, diploma a que pertencerão os normativos que, doravante, se indiquem sem menção da origem, dispõe o seguinte: "A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal". E, depois de o artigo 2087º responder à pergunta sobre quais são os bens sujeitos à administração do cabeça de casal, o artigo 2088º, sob a epígrafe "Entrega de bens", prescreve, no seu nº 1, o seguinte: "O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído" (2). Justificam-se duas observações. Tendo presente a intencionalidade da norma, tem-se como essencial que a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança (3). Por outro lado, considerando a literalidade do preceito, é de sublinhar que os eventuais destinatários do dever de entrega dos bens ao cabeça-de-casal são os "herdeiros" e os "terceiros" e não os legatários, que não são, evidentemente, terceiros em relação a bens que já estão em seu poder. Como expressamente sustenta Oliveira Ascensão, os poderes do cabeça-de-casal a que se refere o nº 1 do artigo 2088º "não abrange os bens certos e determinados que foram legados e estavam já em poder do legatário. Justificando esta afirmação, escreve o referido Autor: "Não se compreenderia efectivamente que o cabeça-de-casal fosse exigir bens já da propriedade dos legatários e cuja entrega teria de ser feita no prazo de um ano. Aliás, o artigo 2088º permite ao cabeça-de-casal pedir os bens que deva administrar "aos herdeiros ou a terceiros". Não se refere ao legatário, que não é evidentemente um terceiro em relação a bens que são já sua propriedade, como vimos" (4). Ora, a qualidade sucessória dos recorridos é a de "legatários" e não de "herdeiros", razão por que não fazem particular sentido as muitas referências feitas nas conclusões da alegação do recorrente aos "herdeiros", ali se omitindo, em contrapartida, qualquer alusão aos "legatários". A verdade, porém, é que os réus/recorridos foram instituídos legatários, não de "bens ou valores determinados" (artigo 2030º, nº 2, 2ª parte), mas sim do usufruto sucessivo de todos os bens da falecida E. O certo, porém, é que nem por isso deixam de ser considerados pela lei como legatários (artigo 2030º, nº 4). Em face da ausência de declaração específica da lei, resulta, pois, do elemento literal de interpretação, um argumento contrário à pretensão do recorrente. Importará, no entanto, apurar se, da conjugação dos restantes elementos em sede de hermenêutica (5), será possível alcançar um resultado interpretativo que, contrariando o elemento literal, imponha, in casu, o acolhimento de uma interpretação extensiva da norma do nº 1 do artigo 2088º, que, ao lado dos "herdeiros" e "terceiros", deva abranger também os "legatários", ao menos quando sucedem no usufruto da universalidade dos bens deixados pelo de cujus (6). Diga-se, desde já, não se tratar de uma questão simples. Para o seu tratamento, importa proceder a uma breve digressão de contornos essencialmente teóricos em redor das noções de "herdeiro" e "legatário". 2 - Justifica-se começar por proceder à transcrição o artigo 2030º. Estabelece o seguinte: "1 - Os sucessores são herdeiros e legatários. 2 - Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados. 3 - É havido como herdeiro o que sucede no remanescente dos bens do falecido, não havendo especificação destes. 4 - O usufrutuário, ainda que o seu direito incida sobre a totalidade do património, é havido como legatário. 5 - A qualificação dada pelo testador aos seus sucessores não lhes confere o título de herdeiro ou legatário em contravenção do disposto nos números anteriores". 2.1. - Como resulta do nº 5, o critério legal de distinção entre herdeiro e legatário tem carácter imperativo. Como ensina Galvão Telles, "está em causa uma qualificação jurídica e as qualificações compete à lei fazê-las e impô-las, não aos particulares através dos seus actos" (7). Diferentemente dos herdeiros, que são os que sucedem no património considerado unitariamente, visto sob um prisma universal, o legatário sucede em bens determinados. É um sucessor particular ou singular. Como escreve Galvão Telles, "o conceito de bens determinados tem o seu quê de relativo. Os bens determinados aparecem aqui contrapostos ao património - ao património global como universitas. São bens determinados, neste sentido, todos aqueles que não consistem no universum jus ou numa sua quota. Saem do universum jus ou são obtidos à sua custa, não se confundem com ele" (8). Prosseguindo, escreve o Autor que estamos a acompanhar: "Os legados revestem variedade muito grande. O que há de comum em todos eles é envolverem uma atribuição patrimonial por morte a título particular. Enquanto a herança é uma atribuição universal, o legado é uma atribuição singular que pode concretizar-se em modalidades diversas" (9). 2.2. - Como refere Oliveira Ascensão, o legislador do nosso Código Civil foi normalmente seguro na utilização dos termos "herdeiros" e "legatários", evitando, designadamente, a acepção imprópria do conceito de herdeiro, como susceptível de abranger todos os beneficiários da sucessão (10). Os legados ficam pesando sobre a herança como encargos. Os herdeiros testamentários e legais recebem uma atribuição patrimonial gratuita do universum jus, mas esse benefício é limitado ou restringido pelos legados. Abrangendo o património tanto o activo como o passivo e tornando-se os herdeiros titulares dele em substituição do de cujus, ficam devedores como o de cujus era. Diferentemente, os legatários não são devedores: são credores. Credores de uma prestação de coisa ou de uma prestação de facto. Os legados constituem um passivo que acresce ao que o de cujus tinha em vida. 2.3. - Quid juris relativamente à situação - que é a dos presentes autos - em que os legatários são usufrutuários da totalidade dos bens deixados pela E - sendo herdeiros da nua propriedade os seus quatro filhos? Diferentemente do que acontecia com o projecto do actual Código Civil - no qual o instituído na universalidade, fosse proprietário pleno, nu proprietário ou usufrutuário, era herdeiro -, entendeu-se, na comissão revisora, que o usufrutuário devia ser sempre qualificado de legatário, solução que veio a ter acolhimento no nº 4 do artigo 2030º. Sendo a qualificação do sucessor obra da lei, é esta perfeitamente clara no sentido de considerar o usufrutuário universal, do mesmo modo que o usufrutuário particular, como legatário. Recaia o usufruto sobre o património abstractamente considerado ou sobre bens singulares, é sempre legado em face da lei. Trata-se de solução que, se bem que clara no plano do direito constituído, é discutível de jure condendo. Vozes autorizadas entendem, com abundância de fundamentos, que a qualificação do usufrutuário universal como legatário não se justifica (11). Mas se o problema, do ponto da vista da qualificação, não se discute, porque a lei é, nessa sede, rigidamente imperativa (nº 5 do artigo 2030º), já o mesmo não acontece no que se refere ao respectivo "estatuto", o qual também é definido por lei - mas agora através de preceitos em parte imperativos, mas em parte dispositivos que, sendo meramente interpretativos ou supletivos da vontade do de cujus, cedem perante vontade contrária. Ora, o estatuto do legatário universal é praticamente o do herdeiro, ou seja, aquele que a lei associa normalmente ao regime de herdeiro. De acordo com o entendimento que perfilhamos, o estatuto sucessório a que estão sujeitos tanto o titular da raiz como o titular do usufruto é o de herdeiro, "embora com as adaptações impostas pela circunstância de os seus direitos serem complementares e qualitativamente distintos" (12). Ou seja, tendo presentes os elementos racional ou teleológico de interpretação da lei, somos levados a concluir que, não obstante a sua qualificação (imperativa) como legatário, o usufrutuário universal do "de cujus" deve ser incluído, a par dos "herdeiros" e "terceiros" no âmbito da norma do nº 1 do artigo 2088º, interpretada extensivamente. Mas, aqui chegados, nem por isso entendemos que a revista do recorrente deva merecer procedência. Vejamos porquê. 3 - Lamentavelmente, atenta a resposta negativa dada aos quesitos, não foi possível fazer prova de factualidade mais esclarecedora, uma vez que nenhuma prova testemunhal foi oferecida nem produzida e, em sede de prova documental, apenas foram apresentadas fotocópias de documentos (designadamente, os "escritos particulares" de arrendamento rural e de parceria agrícola, de fls. 56-57 e 58-59) não dotadas de força probatória que permitisse alicerçar, nessa parte, convicção positiva do Tribunal. Mesmo assim, é possível, a partir da matéria de facto dada como assente, retirar, no que ora releva, as seguintes ideias essenciais: a) O A. é o cabeça-de-casal no âmbito do inventário para partilha da herança aberta por morte do casal inventariado - D e E; b) A Herdade das Gamas é um bem relacionado e a partilhar que faz parte da dita herança; c) Os RR. vêm ocupando e explorando a Herdade das Gamas; d) Os RR. foram instituídos legatários do usufruto sucessivo de todos os bens deixados pela falecida E; e) Os RR. residem no Monte da Herdade das Gamas, que foi também o último domicílio da falecida E; f) O A. é herdeiro de G, que sucedeu, como herdeiro universal, a sua mulher F, a qual, por sua vez, fora instituída, juntamente com a E, herdeira do D. 3.1. - A primeira conclusão que importa extrair é a de que não tem fundamento a afirmação do A. segundo a qual os RR. ocupam "injustificadamente" a Herdade das Gamas - cfr. a conclusão 8ª. Além de a ocupação e exploração pelos RR. - legatários do usufruto da herança deixada pela E e residentes no Monte da Herdade em apreço - nada ter de abusivo ou injustificado, o Autor, ora recorrente não logrou provar que a herança por ele gerida esteja a sofrer prejuízos, por estar impossibilitada de dar qualquer outro uso aos terrenos ou deles retirar quaisquer rendimentos - resposta negativa ao quesito 2º. Do que resulta que a pretensão do A. não pode deixar de soçobrar uma vez que não fez prova, cujo ónus estava a seu cargo, de que a entrega material da Herdade das Gamas era realmente necessária ao exercício da gestão que a lei confia ao cabeça-de-casal. Ora, como acima se disse - cfr. supra, ponto III, 1. -, a primeira ilação que importava retirar do nº 1 do artigo 2088º era justamente a de que se revela essencial que a entrega material dos bens fosse realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança (13). 3.2. - Por outro lado, residindo os RR. na Herdade das Gamas, como foi, desde logo, dito (confessado), pelo A, na petição inicial, a pretendida entrega da referida Herdade (terreno e construções), ao abrigo do nº 1 do artigo 2088º seria susceptível de configurar uma situação de abuso de direito por parte do cabeça-de-casal (14). Mas, ainda que assim não se entendesse, uma coisa se tem como certa: interpretado nos termos e em conformidade com o entendimento subjacente ao pedido do A., a referida norma passaria a estar ferida de inconstitucionalidade por violação do direito social à habitação, inscrito no nº 1 do artigo 65º da CRP, segundo o qual "todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar". Ora, o direito à habitação consiste, desde logo, "no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma", revestindo, por isso, neste sentido, "a forma de "direito negativo", ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos "direitos, liberdades e garantias" (15). Sendo-lhe, nessa medida, aplicável o regime próprios dos direitos, liberdades e garantias (artigo 17º da CRP), incluindo a sua eficácia imediata, por serem "directamente aplicáveis", bem como a vinculação das entidades públicas e privadas (artigo 18º, nº 1, também do texto constitucional). Atento o exposto, improcede a revista do Autor, não ocorrendo violação das normas legais indicadas, designadamente, dos artigos 2079º e 2088º do Código Civil. Termos em que se nega a revista. Custas pelo Recorrente. Lisboa, 28 de Maio de 2002 Garcia Marques, Ferreira Ramos, Pinto Monteiro. ----------------------------------- (1) Do seguinte teor: "A E e os Réus celebraram um contrato de arrendamento rural há muitos, muitos anos, que, no ano de 1975, por imposição legal, foi reduzido a escrito?" (2) Sublinhado agora. (3) Neste sentido, cfr., verbi gratia, Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", volume VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 148. (4) Cfr., neste sentido, Oliveira Ascensão, "Direito Civil - Sucessões", 4ª edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 476. (5) A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado ("Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs, 187 e segs.), uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. Ou, como diz Oliveira Ascensão ("O Direito, Introdução e Teoria Geral", Lisboa, 1978, pág. 350), "a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito". Como escreveu Francesco Ferrara ("Interpretação e Aplicação das Leis", tradução de Manuel de Andrade, 3ª edição, Coimbra, 1978, págs. 127 e segs. e 138 e segs.), para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios. "Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo". Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica. O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o "lugar sistemático" que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios. O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar". (6) Socorrendo-se dos elementos ou subsídios interpretativos referidos na nota anterior, o intérprete acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades essenciais de interpretação: (a) Interpretação declarativa: nesta o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo; (b) Interpretação extensiva: o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal apontada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, por forma a fazer corresponder a letra da lei ao seu espírito; (c) Interpretação restritiva: outras vezes, pelo contrário, o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer. Também aqui a ratio legis tem uma palavra decisiva. O intérprete, em vez de se deixar arrastar pelo sentido aparente do texto, deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, ou seja, com aquela ratio, em aplicação do brocardo latino cessante ratione legis cessat ejus dispositio. (7) Cfr. "Direito das Sucessões - Noções Fundamentais", 6ª edição, Coimbra Editora, 1991, pág. 214. (8) Loc cit. na nota anterior, pág. 193. (9) Ibidem, pág. 195. (10) Cfr. loc. cit. na nota (4), pág. 476. (11) É, por exemplo, a posição defendida por Galvão Telles na obra já citada. (12) Para maior desenvolvimento, incompatível com a economia da abordagem nesta sede, veja-se Galvão Telles, loc. cit., págs. 246 a 253. (13) Os poderes do cabeça-de-casal são os poderes de mera administração, podendo, nomeadamente, utilizar todos os meios conservatórios em relação ao património hereditário; deve, entretanto, satisfazer as despesas do funeral e sufrágio, bem como os encargos da própria administração (artigo 2090º, nº 1), apesar de não responder pelo passivo da herança. Pode receber o pagamento de dívidas activas feito espontaneamente e, excepcionalmente, proceder à sua cobrança coerciva, mas só se a cobrança perigar com a demora. Na verdade, nos termos do artigo 2089º "o cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente". (14) O Código Civil fere, no artigo 334º, determinados actos como abusivos. Prevê, para tanto, o titular que exceda manifestamente, no exercício do direito, limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico. O artigo 334º prevê a boa fé objectiva: não versa factores atinentes ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem. É certo que, para que se verifique abuso de direito, exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Como explicam Pires de Lima/ Antunes Varela, os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. Manuel de Andrade refere-se aos direitos "exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça" e às "hipóteses em que a invocação e aplicação se um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição". Também Vaz Serra se refere à "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante". Para maior desenvolvimento, em situação, de certo modo, afim, veja-se o Acórdão deste STJ de 11 de Janeiro de 2001, proferido na Revista nº 3344/00-1, de que foi relator o mesmo do presente acórdão. (15) Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 344. |