Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | NUNO CAMEIRA | ||
Descritores: | PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA COOPERATIVA COMERCIANTE | ||
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Nº do Documento: | SJ200505240014711 | ||
Data do Acordão: | 05/24/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | 1 - A prescrição tratada no art. 317, al. b), do CC é uma prescrição presuntiva ou "imperfeita", na medida em que, decorrido o prazo legal, o que actua em termos jurídicos não é propriamente a recusa legítima do cumprimento da prestação por parte do beneficiário, mas apenas a presunção de que esse cumprimento teve lugar; a "imperfeição", a incompletude resulta justamente da sua natureza presuntiva, e não extintiva do direito accionado. 2 - A presunção do cumprimento pode ser ilidida por prova em contrário, que, no entanto, a lei só aceita que se faça por confissão do devedor - judicial e extrajudicial - e neste último caso ainda com a limitação de ter que se realizar por escrito (art.s 313 e 314 do Código Civil). 3 - A prescrição presuntiva tem, portanto, um carácter diferente da prescrição comum; nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei; naquela, exactamente porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos (requisitos) que a caracterizam e definem. 4 - As cooperativas, por definição, não são sociedades, nem, consequentemente, sociedades comerciais, desde logo porque não têm escopo lucrativo, nos termos legais (art.º 2 do Código Cooperativo). 5 - Provando-se que a actividade da autora enquanto cooperativa agrícola consiste na recolha, concentração e tratamento do leite, no fabrico e venda de queijos e derivados, bem como na comercialização, armazenagem e industrialização de cereais, sendo que no exercício dessa sua actividade forneceu aos réus as mercadorias referidas nas facturas juntas ao processo, não pode considerar-se adquirido que ela seja um comerciante no sentido visado pelo art. 13 do Código Comercial e acolhido no art. 317, al. b), do Código Civil. 6 - Ainda que afaste a aplicação da prescrição presuntiva, o tribunal deve facultar aos réus o ensejo de provar que cumpriram a obrigação se tiverem alegado expressamente a excepção do pagamento (art.ºs 314, 2ª parte, 317, b), e 342, nº 2, Código Civil). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. A autora, "A", CRL, propôs em 19.2.02 uma acção ordinária contra B e sua mulher C, pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de 38.739,00 €, acrescida de juros legais vincendos. Invocou como causas de pedir o empréstimo de determinadas quantias em datas situadas entre 1990 e 1992 e a venda das mercadorias referenciadas nas facturas juntas com a petição inicial, cujo preço, salvo pequenos pagamentos por conta efectuados conforme documentos para que remete, os réus não satisfizeram. Após julgamento dos factos foi proferida sentença que, dando procedência à excepção da prescrição presuntiva oportunamente invocada, absolveu os réus da parte do pedido referente ao fornecimento de mercadorias, no total de 17.560,81 €. Sob recurso da autora a Relação decidiu anular o julgamento, mandando aditar um quesito à base instrutória, nos termos do art.º 712º, nº 4, do CPC, para o efeito de se apurar se os réus pagaram "as quantias referentes às facturas objecto da presente acção, além das quantias referidas nas alíneas C) e D) dos factos assentes" (fls 350, v). Inconformados, recorrem agora os réus para o Supremo Tribunal, concluindo, de útil, que deve ser reposta a decisão da 1ª instância porque a Relação violou os art.ºs 317º, b), do Código Civil, 4º do Código Cooperativo, 1º e 2º do CSC, 13º e 230º do Código Comercial ao desconsiderar os pressupostos para aplicação da prescrição presuntiva. Não foram apresentadas contra alegações. 2. Nesta fase do processo discute-se apenas uma das duas causas de pedir da acção: os fornecimentos feitos pela autora aos réus, discriminados nas facturas juntas com a petição inicial. A esse propósito invocou-se na contestação, por um lado, a prescrição presuntiva prevista no art.º 317º, b), do CC, e, por outro, o pagamento. Quanto à primeira excepção, a Relação considerou que ela não opera na situação ajuizada; quanto à segunda, decidiu mandar ampliar a matéria de facto, nos termos acima referidos, esclarecendo que isso facultaria aos réus "a prova do que alegaram e que lhes incumbe provar, por qualquer meio admitido em direito, e aos autores a contraprova ou a prova do contrário, pondo-se assim as coisas no seu justo pé". No recurso os réus atacam somente a decisão tomada a respeito do afastamento da prescrição presuntiva; apesar da intima conexão lógica entre ambos, o outro segmento do acórdão recorrido é deixado incólume, não podendo, assim, ser reexaminado pelo Supremo, por não fazer parte do objecto da revista. Assim isolada a questão a decidir, vejamos se assiste razão aos recorrentes. Na parte que interessa ao caso, o art.º 317º, b), do CC diz que prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio. A prescrição de que aqui se trata é uma prescrição presuntiva ou "imperfeita", na medida em que, decorrido o prazo legal, o que funciona, o que actua em termos jurídicos não é propriamente a extinção da obrigação - mais precisamente, a recusa legítima do cumprimento da prestação por parte do beneficiário (art.º 304º, nº 1 do CC) - mas apenas a presunção do cumprimento; a "imperfeição", a incompletude resulta justamente da sua natureza presuntiva, e não extintiva do direito accionado. A presunção do cumprimento pode ser ilidida por prova em contrário, que, no entanto, a lei só aceita que se faça por confissão do devedor (judicial e extrajudicial, mas neste caso ainda com a limitação de ter que se realizar por escrito - art.ºs 313º e 314º do mesmo diploma legal). A prescrição presuntiva, portanto, tem um carácter diferente da prescrição comum; nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei; naquela, exactamente porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos (requisitos) que a caracterizam e definem. No caso ajuizado, o primeiro desses elementos é o tratar-se de créditos de um comerciante (citado art.º 317º, b). Ora, foi elaborado um quesito - o 6º - sobre o facto do não pagamento ("os réus nunca entregaram à autora os montantes constantes das facturas"?"), que a 1ª instância considerou provado. Mas a Relação, e bem, alterou a resposta, julgando o quesito não provado, precisamente com o fundamento de que, a verificar-se a presunção do pagamento das mercadorias em causa (cereais e rações para animais), aquele facto só podia resultar provado mediante confissão dos réus devedores, nos termos das disposições legais atrás mencionadas; mas tal confissão, acrescentou-se, não ocorreu, nem mesmo sob a forma de confissão tácita, derivada da recusa do devedor a depor ou prestar juramento no tribunal, ou da prática em juízo de actos incompatíveis com o incumprimento. Como resulta do que já se disse, o acerto deste outro segmento do acórdão recorrido afigura-se indiscutível; e, de todo o modo, o simples facto de também ele não ter sido objecto da censura dos recorrentes na presente revista determina, por si só, o insucesso desta. Com efeito, os réus insistem em que a prescrição presuntiva opera na situação ajuizada porque, contrariamente ao decidido pela Relação, a recorrida é comerciante, isto é, exerce profissionalmente o comércio, tendo sido no exercício deste que lhes vendeu os produtos. Mas não é assim. Apenas está assente que a autora é uma cooperativa agrícola. E as cooperativas, por definição, não são sociedades, nem, consequentemente, sociedades comerciais, desde logo porque não têm escopo lucrativo, nos termos legais (art.º 2º do Código Cooperativo). Por outro lado, não resulta dos autos, nem que a autora seja um comerciante no sentido visado pelo art.º 13º do Código Comercial e acolhido no art.º 317º, b), do CC, isto é, alguém que exerça a título profissional uma determinada actividade económica com fins lucrativos, nem que os fornecimentos em causa no processo se inscrevam no âmbito dessa actividade. Está provado que a actividade da autora enquanto cooperativa agrícola consiste na recolha, concentração e tratamento do leite, no fabrico e venda de queijos e derivados, bem como na comercialização, armazenagem e industrialização de cereais, e que no exercício desta sua actividade forneceu aos réus as mercadorias referidas nas facturas juntas ao processo (todas com data de vencimento situadas entre 1994 e 1999). Todavia, não tendo a 2ª instância retirado destes factos a ilação de que a autora é um comerciante na acepção indicada, parece que ao Supremo Tribunal sempre estaria vedado fazê-lo, na medida em que se trata de matéria de facto que enquanto tribunal de revista não lhe cabe julgar. Assim, mostra-se acertado o veredicto da 2ª instância ao afastar a aplicação daquela presunção presuntiva por falta de verificação dos respectivos pressupostos, mas ao facultar aos réus, por outro lado, o ensejo de provar que cumpriram, nos termos do art.º 342º, nº 2, do CC, considerando que alegaram expressamente a excepção peremptória do pagamento nos artigos 2º, 14º e 15º da contestação. É, como se viu, uma decisão correcta do ponto de vista estritamente legal porquanto o facto de não funcionar a inversão do ónus da prova associada à prescrição presuntiva em razão da ausência de confissão juridicamente relevante não impede o devedor que tenha alegado o pagamento de fazer a prova deste para se livrar da obrigação; e as coisas passam-se assim porque a invocação do pagamento não é substancialmente incompatível com a presunção de cumprimento (art.º 314º, 2ª parte, do CC). Mas é também, para além disso, uma decisão que abre as portas a uma solução final do litígio assente no apuramento da verdade material, desfecho este que deve sempre prevalecer quando não se anteveja a impossibilidade prática de conciliar o valor da segurança jurídica com o valor, mais alto, da justiça. 3. Nestes termos, nega-se a revista. Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Lisboa, 24 de Maio de 2005 Nuno Cameira, Sousa Leite, Salreta Pereira. |