Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
240/03.0TBRMR.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: POSSE
USUCAPIÃO
INVERSÃO DO TITULO DE POSSE
Data do Acordão: 06/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I) - Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio possessionis”) – art. 1263º d) do Código Civil – ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua, inequivocamente, como titular daquele direito.

II) – Tal inversão também pode ocorrer por acto de terceiro, hábil para transferir a posse.

III) – Não basta a mera alegação de que houve intenção de inverter o título de posse e afirmar que essa intenção foi plasmada na actuação dos detentores precários; importa, isso sim, que essa “inversão”, inequivocamente, seja direccionada contra a pessoa em nome de quem detinham, através de actos públicos deles conhecidos, ou cognoscíveis, sob pena de tal actuação não ter relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam reagir a essa proclamada inversão do título possessório, o que seria de todo violador das regras da boa-fé.

IV) – Tal como a posse relevante para usucapião (a par de outros requisitos, deve ser pública), também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía, sendo que, como observa Orlando de Carvalho, in “Introdução à Posse”, RLJ, Ano 123°, nº3792 (1990-1991), a respeito da posse pública, esta não deixa de ser pública quando não é propriamente conhecida de toda a gente, é-o acima de tudo, quando é conhecida do interessado directo ou indirecto – “trata-se de uma relação mais com o próprio interessado do que com o público em geral”.

V) - Não tendo cessado o arrendamento de que era titular o pai dos AA., apesar da Ré nem sequer ter reagido à cessação do pagamento da renda que não actualizou, o certo é que os AA. ao incluírem o imóvel no acervo a partilhar por morte do seu pai e ao exerceram, pública, pacífica e sem oposição, a exploração do prédio como se fossem seus donos, inverteram o título de posse, começando desde aí – 27.3.1983 – a correr um prazo que poderia conduzir à usucapião, dependendo, além do mais, da actuação e manutenção daquela posse no tempo.

VI) – A função do registo é, apenas, a de definir a situação jurídica dos prédios, exonerando os titulares inscritos de demonstrarem o facto em que assenta a presunção que dimana do registo – art. 350º, nº1, do Código Civil – ou seja, que o direito registado existe na sua esfera jurídica.

VII) – O facto de através de documento público os AA. terem procedido à partilha do imóvel, exercerem sobre ele actos de posse, desde aquela partilha, actos esses ostensivos porque exercidos à vista de toda a gente, logo dirigidos contra a Ré e concludentemente reveladores que se arrogavam o direito de propriedade do imóvel, mesmo após o registo promovido por ela, e a sua inércia em actuar em sentido consonante com o seu arrogado direito de propriedade, revelam ter havido inversão do título de posse a que a Ré não reagiu, por exemplo, cobrando as rendas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e marido BB, e;

CC e mulher CC.

Intentaram, em 13.3.2003, no Tribunal Judicial da Comarca de R... M... – 2º Juízo – acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, contra:

Câmara Municipal de R... M....

Formulando os seguintes pedidos:

a) Declarar-se por sentença que os autores adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio rústico composto de terra de semeadura com trinta tanchas, sito no lugar de C..., A..., a confrontar do norte com EE, do nascente com FF, do sul com caminho e do poente com GG, inscrito na matriz sob o artigo 1332, omisso na Conservatória do Registo Predial, prédio esse actualmente com a seguinte descrição: prédio rústico designado por “C...” – olival e solo subjacente de cultura arvense de olival – 2.920 m2 – norte, EE; sul, caminho; nascente, FF; poente, GG, inscrito na matriz rústica sob o artigo 122, secção CP, descrito na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior sob o nº3317, da freguesia e concelho de R... M...;

b) Ser a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade que aos autores assiste e em consequência, a não turbar seja de que forma for, a propriedade e posse dos autores sobre o mesmo prédio;

c) Ser considerada nula e sem nenhum efeito a escritura de aquisição – por usucapião – a favor da ré, do referido prédio;

d) Ser ordenado o cancelamento de todos os registos em vigor que incidem sobre o prédio, designadamente o registo de aquisição a favor da ré.

Alegaram, em síntese, que os pais da primeira Autora e do segundo Autor entraram na posse do dito prédio antes do ano de 1950, considerando-se donos e legítimos possuidores desde então, e por todos assim foram considerados, plantando, cultivando, semeando e amanhando a terra, à vista do toda a gente, sem interrupção e sem oposição de ninguém, convencidos de que exerciam um direito próprio.

Mais alegaram que, por escritura de partilha dos bens, por óbito de HH, o referido prédio foi adjudicado aos Autores AA e marido e CC, na proporção de 3/16, e adjudicado à viúva II 5/8, que por sua vez doou 5/16 à Autora AA e 5/16 ao Autor CC.

Ficando os autores únicos proprietários do prédio, continuando a colher frutos, cultivar e amanhar a terra, à vista de toda a gente, continuamente, sem oposição de quem quer que fosse, como seus proprietários e no convencimento de que exerciam um direito próprio, tendo assim os autores por si, e, antes deles, seus pais, amanhado, zelado e cuidado do prédio mais de 50 anos.

Alegaram igualmente que a ré outorgou escritura de justificação de direitos sobre o prédio e procedeu ao respectivo registo na Conservatória do Registo Predial de R... M..., sendo que tal aquisição registada a favor da ré foi feita quando o prédio ainda pertencia aos autores que sobre ele exerciam a posse, situação que se mantém até hoje.

A ré foi regularmente citada, tendo apresentado contestação/reconvenção, onde se defendeu por excepção, alegando que o procedimento adequado para a impugnação do direito justificado era o mecanismo do artigo 101º do Código do Notariado.

Alegou ainda a Ré que o prédio em questão se encontra-se inscrito a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de R... M..., sob o n.° ..., pela inscrição G-1, aquisição feita através de escritura de justificação de direitos celebrada em 27 de Maio de 1993, pelo Notário Privativo da Câmara Municipal.

Alegou também que, por escritura de arrendamento e na sequência de deliberação camarária, o prédio foi dado de arrendamento a HH, em 28/06/1949, e que o mesmo integra o património imobiliário municipal, detendo a ré a posse sobre o prédio de boa fé, com conhecimento de toda a gente, sem interrupção e oposição de quem quer que fosse.

Em reconvenção pediu que a escritura de partilha e doação outorgada pelos autores fosse declarada parcialmente nula quanto ao prédio em questão, e que fossem os autores condenados a entregar o prédio livre e desocupado à ré.

Os autores apresentaram réplica, onde em resposta às excepções invocadas, alegaram que o disposto no artigo 101º do Código do Notariado se aplica à impugnação do direito justificado somente nos casos em que tal ocorre nos 30 dias posteriores à publicação do extracto, o que não aconteceu.

Alegaram ainda que o prédio foi dado de arrendamento ao pai dos autores no ano de 1949 pela R., que aquele pagou renda até ao ano de 1977, daí em diante, e porque a ré lho confirmou, passou a ser proprietário, assim agindo, conjuntamente com sua mulher.

Além do que a ré nunca praticou actos de posse sobre o prédio, nem se opôs a que os pais dos autores e posteriormente estes, assim o fizessem, nem solicitou o pagamento de rendas.
Em contestação ao pedido reconvencional alegaram, em síntese, que o pai dos autores agiu como proprietário desde o ano de 1977 até à data da sua morte, ocorrida no ano de 1982, e que desde essa data assim agiram os seus filhos, ora autores, pelo que procederam à partilha do bem por escritura pública.

Ainda que assim não fosse, os autores adquiriram o prédio por usucapião, uma vez que estão na sua posse há mais de 15 anos, de boa fé, pública e pacificamente.

Pugnaram assim os autores reconvindos pela improcedência da excepção invocada e pela validade da escritura de partilha e doação.

Foi proferido despacho saneador, onde foi julgada a excepção inominada invocada pela ré improcedente por não provada, admitido o pedido reconvencional e onde foram ainda seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento.
***

Foi proferida sentença em 24.8.2007 – fls. 223 a 251 – do Círculo Judicial do Cartaxo do seguinte teor:

“1. Declaram-se AA, BB, CC e DD, donos e legítimos proprietários do prédio rústico identificado no artigo 3.° da petição inicial: prédio rústico composto de terra de semeadura com trinta tanchas, sito no lugar de C..., A..., a confrontar do norte com EE, do nascente com FF, do sul com caminho e do poente com GG, inscrito na matriz sob o artigo 1332, omisso na Conservatória do Registo Predial, prédio esse actualmente com a seguinte descrição: prédio rústico designado por “C...” – olival e solo subjacente de cultura arvense de olival – 2.920 m2 – norte, EE; sul, caminho; nascente, FF; poente, GG, inscrito na matriz rústica sob o artigo 122, secção Código Penal, descrito na conservatória do Registo Predial de R... M... sob o n.° 3317, da freguesia e concelho de R... M...;

2. Condena-se a Ré a reconhecer o direito de propriedade que aos autores assiste e em consequência, a não turbar seja de que forma for, a propriedade e posse dos autores sobre o mesmo prédio;

3. Declara-se que são desconformes com a realidade apurada no presente processo as declarações prestadas na escritura pública outorgada em 27/05/1993, objecto de rectificação em 17/09/1993, pelo notário privativo da Câmara Municipal de R... M... e, em consequência, declara-se que a ré não adquiriu por usucapião o direito de propriedade do prédio rústico descrito na referida escritura;

4. Ordena-se o cancelamento de todos os registos em vigor que incidem sobre o prédio, designadamente o registo de aquisição a favor da ré, prédio esse descrito na Conservatória do Registo Predial de R... M... sob o n.° 03317/940228 – R... M..., freguesia de R... M..., cuja aquisição se encontra registada sob a inscrição AP. 02/940228;

5. Declara-se parcialmente nula a escritura de partilha e doação, outorgada no Cartório Notarial de R... M..., em 27 de Julho de 1983, no que se refere ao imóvel aí identificado como: prédio rústico denominado “C...”, sito no lugar do C..., A..., R... M..., composto de terra de semeadura com trinta tanchas, que confronta do norte com caminho, nascente com FF e do poente com GG, inscrito na matriz predial respectiva no artigo 1332, da secção CP e omisso na Conservatória do Registo Predial de R... M...;

6. No mais, julga-se a reconvençao improcedente, pelo que se absolvem os autores reconvindos do pedido reconvencional deduzido pela ré reconvinte, na parte em que esta pedia que fossem aqueles condenados a entregarem o prédio descrito, livre e desocupado, à Câmara Municipal de R... M...;
[…]” (sublinhámos)

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Inconformada, a Ré recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 9.12.2008 – fls. 299 a 312 – com um voto de vencido negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.
***

De novo inconformada, a Ré recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. Não está provado nos autos qualquer comportamento dos AA. que permitisse percepcionar uma inversão do título por parte destes;

2. Com efeito, a falta de pagamento das rendas não constitui inversão de título, e não ficou demonstrado qualquer comportamento externo concludente dessa inversão de título, na medida em que os AA. continuaram a amanhar o prédio, como antes o fizera o anterior arrendatário;

3. Não constitui inversão de título relevante a outorga de escritura de partilha com inclusão do prédio em causa, na medida em que a mesma não constitui acto eficaz de oposição à Ré porque não praticado na sua presença ou com o seu conhecimento, porque carente de publicidade;

4. Pelo contrário, a escritura de justificação outorgada pelo Município, é um acto público de reiteração dos direitos do Ré sobre o prédio, a que é conferida publicidade;

5. Ao dar provimento à acção, a douta sentença violou os artigos 1263° al. d) e 1265° do Código Civil.

6. Deve ser substituída por outra que, reconhecendo-o, absolva a Ré do pedido.


Não houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. Encontra-se inscrita em favor da Câmara Municipal de R... M... o prédio rústico denominado “C...”, sito no lugar do C..., freguesia e concelho de R... M..., composto de olival e solo subjacente de cultura arvense de olival, com a área de 2.920 m2, que confronta do norte com EE, do sul com caminho, do nascente com FF e do poente com GG, inscrito na matriz predial respectiva no artigo 122 da secção CP e descrito na Conservatória do Registo Predial de R... M... sob o nº033 17/940228 – R... M... (A).

2. Tal aquisição encontra-se registada sob a inscrição AP. 02/940228 (B).

3. A autora AA e o autor CC são filhos de HH e de II (C).

4. HH faleceu em 29.04.1982 (D).

5. Por morte de HH, foi instaurado o processo de imposto sucessório nº11/89 que correu termos na Repartição de Finanças de R... M... (E).

6. O referido processo integrava a relação de bens do falecido da qual constava o seguinte prédio:

- Prédio rústico denominado “C...”, sito no lugar do C..., A..., R.... M..., composto de terra de semeadura com trinta tanchas, que confronta do norte com EE, do sul com caminho, nascente com FF e do poente com GG, inscrito na matriz predial respectiva no artigo 1.332, da secção CP e omisso na Conservatória do Registo Predial de R.... M... (F).

7. Em 27 de Julho de 1983, no Cartório Notarial de R... M..., procedeu-se à escritura de partilha dos bens que ficaram por falecimento de HH (G).

8. Na aludida partilha o prédio identificado em 6) veio a ser adjudicado aos autores AA e marido e CC na proporção de 3/16 indivisos respectivamente (H).

9. Foi adjudicado à viúva 5/8 indivisos do referido prédio, a qual na mesma escritura doou 5/16 indivisos à filha JJ e 5/16 indivisos a CC (1).

10. Por escritura de justificação de direitos celebrada em 27.05.1993 foi celebrada escritura de justificação de direitos relativa ao prédio rústico identificado em 1), pelo notário privativo da Câmara Municipal de R... M...(J).

11. Tal escritura foi objecto de rectificação em 17.09.1993 (L).

12. Na sequência de deliberação camarária, a Câmara Municipal de R... M... deu o prédio de arrendamento a HH em 28.06.1949, mediante a renda inicial de 60 escudos (M).

13. Em Dezembro dos anos de 1976 e 1977 HH pagou renda no valor de 75 escudos (N).

14. O prédio identificado em 6) corresponde ao prédio que se identifica em 1) (1º).

15. Desde 1949 HH e mulher passaram a amanhar o prédio (2º).

16. Procederam à plantação de árvores (3º).

17. Cultivaram e semearam a terra (4º).

18. O que se refere anteriormente foi feito à vista de toda a gente (5º).

19. Sem oposição de quem quer que seja (6º).

20. E de forma contínua (8.°).

21. Após o falecimento de HH, os autores passaram a amanhar o prédio (10º).

22. A plantar árvores (11º).

23. A cultivar e semear a terra (12º).

24. E a colher os respectivos frutos (13º).

25. O que se refere anteriormente é feito à vista de toda a gente (15º).

26. Sem oposição de quem quer que seja (16º).

27. Com a convicção de serem donos do prédio pelo menos desde a data em que foi realizada a escritura de partilha dos bens referida em 7) (17º).

28. E de forma contínua até ao presente (18º).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se os AA. adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio rústico em disputa – a partir dos actos de posse que exerceram.

A recorrente, nas conclusões das alegações do recurso, coloca a tónica da sua argumentação na alegada consideração – que se infere até do corpo alegatório – que as instâncias consideraram a acção procedente pelo facto dos AA. terem, a partir da data em que procederam à partilha dos bens do falecido HH– 27.7.1983 – invertido o título de posse, já que, como se provou, aquele HH arrendou o imóvel à Ré e, por isso, só poderia ser considerado detentor precário e a posse precária é incapaz de conduzir à usucapião a menos que tenha sido invertido o título de posse por parte do detentor como a diante veremos.

Mas analisando o Acórdão, que remete para a bem fundamentada sentença da 1ª Instância, para concluir consonantemente, o que é afirmado é que, a partir da data daquela escritura, os AA., que até aí não tinham o animus da posse, passaram a tê-lo, por se ter considerado que os actos de posse por eles exercidos, desde aí até à data da propositura da acção, revelam uma posse boa para usucapião.

De todo o modo, analisaremos a pretensão recursiva à luz do cerne da discordância da Ré.

Está em causa a relação jurídico-contratual estabelecida ente o falecido HH e a Ré e a actuação daquele e dos seus herdeiros – AA. – após a morte dele e os actos de posse que foram praticados, assim como o circunstancialismo em que o foram, bem como a actuação da Ré – mormente, através da escritura de justificação judicial que em seu favor promoveu, bem como o registo do prédio em seu nome, para saber se os AA. adquiriram – como impetram – o direito de propriedade do imóvel pela via da aquisição originária (usucapião).

O Acórdão com votação maioritária assim conclui, tendo a Ex.ma Desembargadora, que votou vencida, afirmado na sua declaração (fls. 312) – “Vencida; entendo que houve inversão do título de posse a partir da escritura de justificação e do subsequente registo na C.R.P. não tendo os AA. logrado fazer prova de factos contrários”.

Vejamos.

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.

O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.

A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja, a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

“A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., pág.5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122-65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) sustenta que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “corpus” e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ªed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º, nº2).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1).
Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 15ª edição 2006, pág.1037.

Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.

“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – Ac. deste STJ, de 14.12.1994, in CJSTJ, 1994, III, 183.

Quem exerce a posse em nome de outrem, ou por mera condescendência do dono, é um detentor precário – art. 1253º do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – art. 1251º do Código Civil.

O Código Civil perfilha, como é dominantemente entendido, o conceito subjectivo de posse.

A posse pode ser exercida em nome próprio ou em nome alheio – art. 1252º do Código Civil

Em caso de dúvida, presume-se a posse em quem exercer o poder de facto – nº2 do citado artigo.

Sobre este normativo escreveu o Professor Mota Pinto, in “Direitos Reais”, 1970, 191:
“Como a prova do “animus” poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, ao possuidor a lei estabelece uma presunção.
Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto.
Daqui decorre que, sendo necessário o corpus e o animus, o exercício daquele faz presumir a existência deste”.

Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio possessionis”) – art. 1263º d) do Código Civil – ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua, inequivocamente, como titular daquele direito.

Tal inversão também pode ocorrer por acto de terceiro, hábil para transferir a posse.

A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse” – art. 1265º do Código Civil

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, pág. 30 ensinam:

“A inversão do título da posse (a chamada interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio.
A uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais.
A inversão pode dar-se por dois meios: por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.
O caso mais corrente é o do arrendatário que, em certo momento, se recusa a pagar as rendas com o fundamento de que o prédio é seu. Torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía.
Nesse sentido pode dizer-se que ainda se mantém a regra nemo sibi causam possessionis mutare potest.
Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título (depósito, mandato, usufruto a termo, etc.) que lhe servia de base.
O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito”.

Não basta a mera alegação de que houve intenção de inverter o título de posse e afirmar que essa intenção foi plasmada na actuação dos detentores precários; importa, isso sim, que essa “inversão”, inequivocamente, seja direccionada contra a pessoa em nome de quem detinham, através de actos públicos deles conhecidos, ou cognoscíveis, sob pena de tal actuação não ter relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam reagir a essa proclamada inversão do título possessório, o que seria de todo violador das regras da boa-fé.

Como ensina Henrique Mesquita:

“ […] A oposição tem de traduzir-se em actos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a que os actos se opõem.
Além disso, é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor através de actos que traduzam o exercício do direito que a este pertence”. “Direitos Reais”, Coimbra – 1967, págs. 98-99.

Tal como a posse relevante para usucapião (a par de outros requisitos, deve ser pública), também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía, sendo que, como observa Orlando de Carvalho, in “Introdução à Posse”, RLJ, Ano 123°, nº3792 (1990-1991), a respeito da posse pública, esta não deixa de ser pública quando não é propriamente conhecida de toda a gente, é-o acima de tudo, quando é conhecida do interessado directo ou indirecto – “trata-se de uma relação mais com o próprio interessado do que com o público em geral”.

HH e mulher, enquanto arrendatários desde 28.6.1949, do prédio rústico da Ré – pagavam a renda inicial de 60$00 depois aumentada para 75$00 e que deixou de ser paga em 1997 – exerceram uma posse em nome de outrem e, como tal, eram detentores precários – art. 1253º c) do Código Civil.

Apenas tinham o corpus da posse e não a intenção, o animus, de agir conforme donos do imóvel, por isso, e como as instâncias afirmaram, não adquiriram o direito de propriedade por usucapião.

Foram arrendatários e, como tal, possuidores alieno nomine.

Os factos não evidenciam que tivessem deixado de o ser e, como tal, apenas se podem considerar meros detentores, exercendo posse em nome de outrem, irrelevante para conduzir à usucapião.

Tendo falecido o arrendatário em 29.4.1982, os AA. passaram a exercer os mesmos actos de posse que o seu predecessor, mas agora com a convicção de serem donos, isto, pelo menos desde a data em que foi feita a partilha dos bens – 27.7.1983 – por escritura pública, onde foi relacionado como património da herança o prédio rústico em disputa.

Como se provou: – Após o falecimento de HH, os autores passaram a amanhar o prédio; a plantar árvores; a cultivar e semear a terra e a colher os respectivos frutos, o que se refere anteriormente é feito à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de serem donos do prédio pelo menos desde a data em que foi realizada a escritura de partilha dos bens referida e de forma contínua até ao presente.

Não tendo cessado o arrendamento, ao que consta, apesar da Ré nem sequer ter reagido à cessação do pagamento da renda que, notoriamente não actualizou, o certo é que os AA. ao incluírem o imóvel no acervo a partilhar por morte do seu pai e ao exerceram, pública, pacífica e sem oposição a exploração do prédio como se fossem seus donos, inverteram o título de posse, começando desde aí – 27.3.1983 – a correr um prazo que poderia conduzir à usucapião, dependendo, além do mais, da actuação e manutenção daquela posse no tempo.

Ora, a posse exercida pelos AA. foi pública e pacífica.

Também foi titulada – art. 1259º,nº1, do Código Civil.

Como ensina Rui Pinto Duarte, in “ Curso de Direitos Reais” – 2ª edição – pág.288:

“A posse é titulada quando tem na sua origem um modo legítimo de aquisição do direito que estiver em causa – independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico; obviamente, a posse é não titulada nas outras hipóteses: sirva de exemplo à posse titulada a que tem na sua base um contrato de compra e venda (mesmo que inválido, por exemplo, por incapacidade ou por erro do vendedor) e de exemplo à posse não titulada a que resulta de apossamento”.

Sendo a posse titulada é presumidamente de boa-fé – art. 1260º, nº2, do Código Civil – sendo que a Ré não ilidiu tal presunção.

Assim, a posse prolongada, desde o seu início em 27.7.1983 até à data da instauração da acção 13.3.2003, perdurou por mais de 19 anos, pelo que os AA. adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade do imóvel – arts. 1251º, 1263°, alínea d), 1287°, 1296° e 1316.°, todos do Código Civil – já que a posse é titulada, pacífica, pública e de boa fé.

Mas será que assim devemos considerar, apesar da Ré, na sequência da escritura de justificação notarial, celebrada em 27.5.1993, ter invocado a aquisição do imóvel e ter levado tal facto ao registo predial em 28.2.1994?

O registo foi feito antes de se ter consumado o prazo de usucapião, mas tal não obsta a que o prazo da usucapião seja alterado ou que a posse, desde a data do registo, passasse a não ser de boa-fé.

Desde logo, porque a finalidade da acção de justificação visa, não definir a titularidade do direito justificado, mas antes habilitar o arrogado titular do direito registrando a fazer o primeiro registo.

Como se pode ler no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência deste STJ, de 4.12.2007, in DR. I Série, nº63, de 31.3.2008 e acessível também in www.dgsi.pt – Proc.07A2464:

“ […] A justificação notarial não constitui acto translativo, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião, uma sequência de actos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efectuado o registo, com base naquela escritura.
É que a usucapião constitui o fundamento primário dos direitos reais na nossa ordem jurídica, não podendo esquecer-se que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião (Oliveira Ascensão, Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA, Ano 34, pág. 43/46).
E o art. 101º, nº1, do Cód. do Notariado, não fixa qualquer prazo para propositura da acção de impugnação do facto justificado.”.

Assim, desde logo, há que concluir que o registo, na sequência da justificação notarial promovida pela Ré, sendo um trâmite visando a observância do princípio do trato sucessivo inerente ao registo dos prédios, não retirou qualquer direito aos AA., mais a mais se na sequência de tal registo a Ré, agora presumida dona do imóvel, não fez qualquer oposição à posse exercida pelos AA.

Por outro lado, estando registada a favor da Ré, desde 28.2.1994, a aquisição do direito de propriedade do prédio, de harmonia com a regra do art. 7º do C.R. Predial, beneficia a registrante da presunção de o direito de propriedade existir na sua titularidade, nos exactos termos em que o registo o define (2) .
.

Mas os AA. ilidiram tal presunção, demonstrando terem adquirido o imóvel por usucapião.

O art. 7º do C. Registo Predial consigna – “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

A função do registo é, apenas, a de definir a situação jurídica dos prédios, exonerando os titulares inscritos de demonstrarem o facto em que assenta a presunção que dimana do registo – art. 350º, nº1, do Código Civil – ou seja, que o direito registado existe na sua esfera jurídica.

Nisso consiste a presunção, ademais, ilidível.

Afirma o recorrente que para haver inversão do título de posse, o detentor tem de exercer actos que demonstrem, inequivocamente, que passou a exercer actos de posse contra aquele em nome de quem possuía, visando outra finalidade, in casu, o exercício de direito próprio – o direito real de propriedade.

Nos termos do art. 1265º do Código Civil, a inversão do título da posse só pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª edição, pág. 30):

“…Torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía .
Nesse sentido pode dizer-se que ainda se mantém a regra “nemo sibi causam possessionis mutare potest “.
Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título (depósito, mandato, usufruto a termo, etc.) que lhe servia de base.
O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito”.

Para ser operante, eficaz juridicamente, a inversão da posse tem de traduzir-se – “Em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que até então considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem” – Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, pág. 98.

Na obra citada, pág. 68, ensina que a oposição tem de evidenciar-se por:

“Actos positivos inequívocos e praticados na presença ou com o conhecimento daqueles a quem os actos se opõem.
É necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor através de actos que traduzam o exercício do direito que a este pertence.”.

Acerca do que deve ser entendido como oposição do detentor – art. 1265º do Código Civil – José Alberto Vieira, in “Direitos Reais” – 2008 – págs. 590/591 – depois de afirmar que a oposição pode ser material ou jurídica ou revestir ambas as formas, escreve:

“Isto mostra que a inversão do título da posse por oposição não tem natureza jurídico-negocial (…). Não existe nenhum propósito de comunicação de efeitos jurídicos a um destinatário, determinado ou indeterminado.
A conduta de oposição não tem forçosamente um conteúdo de comunicação (…).
O seu efeito, a constituição da posse, liga-se a um comportamento não declarativo do detentor (…). Trata-se antes de um acto jurídico. […] e mais adiante, […] o comportamento de oposição deve ser exteriormente reconhecível pelo possuidor (…) quando a oposição não lhe é comunicada e significar, inequivocamente, a afirmação de um direito próprio pelo detentor, diverso naturalmente do até aí exteriorizado por ele. A não entrega da coisa no final do prazo contratual, o incumprimento de obrigações, como é o caso do não pagamento das rendas pelo senhorio, a controvérsia sobre a validade do contrato ou sobre as obrigações das partes, por exemplo, não têm por si só o significado correspondente a uma inversão do título da posse se não forem acompanhados da afirmação inequívoca de um direito próprio sobre a coisa (…).”

O facto de através de documento público os AA. terem procedido à partilha do imóvel, exercerem sobre ele actos de posse, desde aquela partilha, actos esses ostensivos porque exercidos à vista de toda a gente, logo dirigidos contra a Ré e concludentemente reveladores que se arrogavam o direito de propriedade do imóvel, mesmo após o registo promovido por ela, e a sua inércia em actuar em sentido consonante com o seu arrogado direito de propriedade, revelam ter havido inequívoca inversão do título de posse a que a Ré não reagiu, por exemplo, cobrando as rendas.

Pelo quanto se expôs o recurso soçobra.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Sem custas por delas estar isenta a Ré/recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 16 Junho de 2009

Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso de Albuquerque
Salazar Casanova

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1- a par de outros requisitos, deve ser pública
2- Tal presunção, é ilidível pois que, como afirma, o Professor Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 5ª edição, pág.382 – “É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”