Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3318
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200511230033187
Data do Acordão: 11/23/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1651/05
Data: 04/07/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.
2. Ainda que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respectivos factos materiais e, sobretudo, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova.
3. Se a prova que foi produzida sobre os factos que os documentos alegadamente se destinavam a provar criou no tribunal uma convicção contrária à materialidade das declarações neles contidas, ficam as conclusões que emergiram dessa convicção ao abrigo da sindicância do STJ por manifestamente se não verificar a situação prevista no art. 722, nº 2, do C.Proc.Civil.

4. A determinação do sentido das declarações negociais, conforme a vontade real dos contraentes, constitui, mesmo no domínio dos negócios formais, matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, insusceptível de censura pelo Supremo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" - União Cervejeira, SA" intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra "B, SL" pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 3.973.631$00, acrescida dos juros legais, desde 13/04/2000 até efectivo e integral pagamento.

Alegou, para tanto, que:

- é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de produção e comercialização de cervejas e refrigerantes, bem como à comercialização de águas minerais e vinhos;

- a ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, designadamente a exploração de uma cadeia de supermercados, com a denominação "Gildos Supermercados", na região de Salamanca;

- no exercício das respectivas actividades, a ré encomendou à autora e esta, em execução dessas encomendas, forneceu àquela sucessivas e diversas quantidades de cartões de cervejas de tara perdida, contendo garrafas de 33 cl. de marca Super Bock e Cristal, adiante designadas abreviadamente por produtos;

- todos os produtos foram entregues pela autora à ré na sede desta, e facturados à ré pelos preços justos, correntes, normais de mercados, acordados e pactuados com a ré e, ademais, constantes das tabelas de preços da autora em vigor à data dos fornecimentos;

- ficou convencionado entre a autora e a ré que, mediante apresentação de uma garantia bancária, o pagamento dos fornecimentos deveria ser efectuado na sede da autora e no prazo de 60 dias, após os respectivos fornecimentos;

- em 7 de Novembro de 1994, a autora accionou, por meio de fax, a garantia prestada pela ré, no valor total de ESP 7.000.000 (sete milhões de pesetas), com vista ao pagamento das facturas já vencidas nºs 675/94, de 08/07/94, 696/94, de 15/07/94, 721/94, de 21/07/94, 722/94, de 21/07/94 e 749/94, de 29/07/94, todas no importe de ESP 1.492.736 e totalizando ESP 7.463.680;

- a referida garantia foi paga em 22/12/94, pelo Banco C, conforme o fax enviado à autora na mesma data por esta entidade bancária;

- em consequência, em relação à última factura n° 479/94, de 29/07/94, subsistiu um débito remanescente de ESP 463.680;

- acresce que a ré também não procedeu ao pagamento dos fornecimentos de produtos discriminados nas facturas nºs 831/94, de 26/08/94, e 858/94, de 01/09/94, ambas no importe de ESP 1.388.800;

- as quantias em débito possuem os seguintes contravalores em escudos com o câmbio à data de emissão das facturas: 574.267$00, 1.697.946$50, 1.701.418$80, perfazendo o total de 3.973.631$00.

Contestou a ré sustentando, em resumo, que:

- após os fornecimentos e entregas das mercadorias mencionadas nas facturas nºs 831/94 e 858/94, referidas pela autora na petição inicial, esta recusou-se a vender, como não vendeu, qualquer outra mercadoria;

- não obstante, a autora facturou à ré por mercadoria que não lhe vendeu nem entregou, a saber, as facturas nºs 1054/94 e 1055/94;

- mercadorias essas que foram, na realidade, vendidas e entregues a outrem, de quem a autora recebeu os respectivos preços;

- por sua vez, a ré pagou à autora as quantias de 1.620.565,00 e 1.306.722,00 pesetas, que esta unilateralmente e sem qualquer causa justificativa imputou ao abatimento parcial das ditas facturas 1054/94 e 1055/94;

- desta forma e através da entrega daquelas quantias, a ré pagou o saldo proveniente da factura 479/94, bem como a totalidade da factura 831/94 e ainda, parcialmente, o valor da factura 858/94.

Deduziu, ainda, reconvenção pedindo a condenação da autora a pagar-lhe quantia não inferior a 100.000.000$00, acrescida dos juros legais, alegando como causa de pedir o rompimento, por parte da autora, do contrato de compra e venda de execução continuada entre ambas celebrado.

Replicou a autora, mantendo a sua posição inicial e impugnando a existência do contrato de compra e venda de execução continuada invocado pela ré.

Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, foi realizada audiência de discussão e julgamento, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 19.820,38 Euros, acrescida de juros de mora e julgou improcedente a reconvenção.

Inconformada apelou a ré, sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 7 de Abril de 2005, decidiu julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Interpôs, agora, a ré recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido, de modo a julgar-se improcedente a acção.

Em contra-alegações defendeu a recorrida a confirmação do acórdão impugnado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas alegações da revista a recorrente formulou as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. A revista pode fundar-se no erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando ocorra ofensa de disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova, nos termos do artigo 722º, nº 2, do Código de Processo Civil.

2. Os documentos de fls. 53, 113, 148, 150, 271 e 272 dos autos são particulares, não foram arguidos de falsos, nem invocada falta e/ou vício de vontade que os afecte quanto à materialidade integradora deles, pelo que fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (a recorrida), como dispõe o artigo 376º, nº 1, do Código Civil.
3. Os factos compreendidos nesses documentos consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, nos termos do artigo 376º, nº 2, do Código Civil;
4. E, uma vez que a declaração da recorrida é dirigida à recorrente, os factos nela compreendidos e contrários aos interesses daquela valem a favor da recorrente, nos termos da confissão.
5. As instâncias fizeram incorrecta interpretação das declarações contidas nesse documento, com violação do disposto no artigo 236º, nº 1, do Código Civil.
6. Os documentos consubstanciam, de acordo com a teoria objectivista da impressão do destinatário consagrada no artigo 236º, nº 1, do C.Civil, o reconhecimento pela recorrida de que a recorrente nada lhe deve por via dos fornecimentos efectuados.
7. A prova testemunhal, para contraprova, que incidiu sobre os factos vertidos nos artigos 5º, 7º, 8º, 9º e 17º da Base Instrutória não deveria ter sido admitida, por aplicação do disposto no artigo 393º, nº 2, do Código Civil.
8. A recorrida não logrou provar a vontade real das declarações referidas.
9. Mas, caso assim se não entenda, a óbvia falta de correspondência entre o teor da impugnação desses documentos por parte da sua autora, a aqui recorrida, com os textos dos mesmos é causal da invalidade do sentido veiculado pelas citadas respostas, nos termos do disposto no art. 238º do CC, o que conduz à improcedência da acção.

No acórdão recorrido foram tidos como provados os factos seguintes:

i) - a autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de produção e comercialização de cervejas e refrigerantes, bem como à comercialização de águas minerais e vinhos;

ii) - a ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, designadamente à exploração de uma cadeia de supermercados, com a denominação "Gildos Supermercados", na região de Salamanca, em Espanha;

iii) - no exercício das respectivas actividades, a ré encomendou à autora e esta, em execução dessas encomendas, forneceu àquela sucessivas e diversas quantidades de cartões de cervejas de tara perdida, contendo garrafas de 33 cl. de marca Super Bock e Cristal;

iv) - os produtos eram entregues pela autora à ré na sede desta, e facturados à ré pelos preços justos, correntes, normais de mercados, acordados e pactuados com a ré e, ademais, constantes das tabelas de preços da autora em vigor à data dos fornecimentos;

v) - ficou convencionado entre a autora e a ré que, mediante apresentação de uma garantia bancária, o pagamento dos fornecimentos deveria ser efectuado na sede da autora e no prazo de 60 dias após os respectivos fornecimentos;

vi) - em 7 de Novembro de 1994, a autora accionou, por meio de fax, a garantia prestada pela ré, no valor total de ESP 7.000.000 (sete milhões de pesetas);

vii) - a referida garantia foi paga em 22/12/94, pelo Banco C, conforme o fax enviado à autora na mesma data por esta entidade bancária;

viii) - em resposta à carta enviada pela ré em 02/02/99 a autora, através do fax de 05/03/99, agendou para dia 10/03/99 pelas 14.30 horas, uma reunião nas instalações da ré com o objectivo de esclarecer o saldo devedor;

ix) - a autora forneceu à ré as mercadorias correspondentes às facturas nº 675/94 de 08/07/94, 696/94 de 15/07/94, 721/94 de 21/07/94, 722/94 de 21/07/94, 749/94 de 29/07/94, todas no importe de ESP 1.492.736 e totalizando ESP 7.463.680; 479/94 de 29/07/94, que subsistiu um débito remanescente de ESP 463.680; 831/94 de 26/08/94 e 858/94 de 01/09/94, ambas no importe de ESP 1.388.800;

x) - o cumprimento do pagamento do preço por parte da ré foi garantido por meio de garantia bancária até ao limite máximo de sete milhões de pesetas;

xi) - a ora autora recebeu do Hipermercado Jumbo Madrid, dos Supermercados Expresso, do Hipermercado Jumbo Cuenca e do Hipermercado Jumbo Linares os respectivos preços das facturas nºs 1054/94 e 1055/94;

xii) - pelo fornecimento de mercadorias, a ré não pagou à autora, pelo menos, a quantia de 149.737 pesetas;

xiii) - os pagamentos referidos em xi) foram efectuados pelas referidas superfícies comerciais através de um desconto de letra da JUMBO MADRID e factura a ser paga pela autora, em 04/05/95, no valor de 1.620.565$00 (ESP 1.367.565.00) e desconto de uma letra da JUMBO LINARES, em 22/01/96, no valor de ESP 1.306.772.00;

xiv) - por carta datada de 25/07/1996, que a ré remeteu à autora e esta dela recebeu, insistiu junto da autora para que esta fizesse deslocar às instalações da ré "alguém" com elementos suficientes, a fim de esclarecer os lançamentos do extracto de factura da autora;

xv) - as mercadorias descritas nas facturas nºs 1054/94 e 1055/94, como tendo sido vendidas e entregues pela autora à ré, foram vendidas e entregues, em quantidades diversas, pela autora ao Hipermercado Jumbo Madrid, aos Supermercados Expresso, ao Hipermercado Jumbo Cuenca e ao Hipermercado Jumbo Linares;

xvi) - a ré auferia uma diferença entre o preço unitário do cartão de cerveja que comprava à autora para o preço de venda para o mercado suíço de 150 pesetas, em média, por cartão;

xvii) - a ré adquiriu à autora, desde Novembro de 1993 a 01/09/1994, 91.392 cartões de cerveja das acima referidas marcas, que vendeu para o mercado suíço;

xviii) - a autora apenas facultou à ré uma tabela de preços e condições de venda, que era idêntica à habitualmente enviada para todos os clientes da autora em Espanha;

xix) - a carta de 25/07/96, junta pela autora na petição inicial como documento nº 10, foi alvo de resposta através de fax datado de 29/07/96, em que a autora solicitava a confirmação do valor em débito constante da contabilidade da ré, com o intuito de apurar a razão de ser das divergências existentes entre os valores contabilísticos de ambas as partes;

xx) - a partir do envio pela autora à ré da nova tabela de preços em 15/06/94, a ré não mais voltou a encomendar produtos à autora;

xxi) - os produtos adquiridos à autora ao abrigo das duas facturas referidas em xi), foram reexpedidos pela ré para o Hipermercado Jumbo Madrid, Supermercado Expresso, Hipermercado Jumbo Cuenca e Hipermercado Jumbo Linares, tendo a ré emitido as correspondentes facturas nºs 940003, 940004, 940005 e 940006;

xxii) - o pagamento efectuado em 04/07/94, serviu para liquidação das facturas nºs 149 de 17/03/94, 153 de 21/03/94 e 156 de 23/03/94.

A impugnação da recorrente cinge-se à apreciação e fixação da matéria de facto feita pelo acórdão recorrido.

Por um lado, sustenta que os factos compreendidos nos documentos de fls. 53, 113, 148, 150, 271 e 272 na medida em que são contrários aos interesses da autora, valem a favor da recorrente nos termos da confissão.

Doutro passo, afirma que o acórdão recorrido fez incorrecta interpretação das declarações contidas nesses documentos, com violação do disposto nos artigos 236º, nº 1, e 238º do Código Civil, já que os documentos consubstanciam, de acordo com a teoria objectivista da impressão do destinatário consagrada no artigo 236º, nº 1, do C.Civil, o reconhecimento pela recorrida de que a recorrente nada lhe deve por via dos fornecimentos efectuados.

Acrescenta, ainda, que a prova testemunhal, para contraprova, que incidiu sobre os factos vertidos nos artigos 5º, 7º, 8º, 9º e 17º da Base Instrutória não deveria ter sido admitida, por aplicação do disposto no artigo 393º, nº 2, do Código Civil.

Por último defende que a falta de correspondência entre o teor da impugnação desses documentos por parte da sua autora, a aqui recorrida, com os textos dos mesmos é causal da invalidade do sentido veiculado pelas respostas aos quesitos, nos termos do disposto no art. 238º do CC.

Importa, antes de mais, esclarecer que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue aplicável (art. 729º, nº 1, do C.Proc.Civil).

Consequentemente, não conhece de matéria de facto (1), salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do mesmo diploma).

É que, como é sabido, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, cabe à Relação a última palavra. Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material - artigo 722º, nº 2 - ou a mandar ampliar a decisão sobre matéria de facto - artigo 729º, nº 3. Aliás, não poderá esquecer-se que só à Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos nºs 1 e 4 do artigo 712º. (2)

Pode, assim, afirmar-se que no âmbito do julgamento da matéria de facto se movem as instâncias, estando, em princípio, vedado ao STJ proceder à respectiva sindicância. (3)

Vejamos, então.

Começamos por esclarecer - nem mesmo a recorrente sustenta algo de diverso - que não nos encontramos no âmbito da prova vinculada, isto é, perante a exigência legal de qualquer meio de prova para os factos constantes da matéria de facto apurada nos autos.

Reporta-se a recorrente à alegada prova por confissão resultante dos documentos de fls. 53, 113, 148, 150, 271 e 272, pressupondo-se (já que o não refere expressamente) que pretende, como consequência da sua argumentação, ver alteradas as respostas dadas pelo tribunal aos pontos 5º, 7º, 8º, 9º e 17º da Base Instrutória de modo a serem tidos como provados os factos neles contidos (obtiveram as respostas de não provados).
Desses documentos, foram juntos aos autos pela autora os de fls. 53 e 113, sendo juntos pela ré os de fls. 148, 150, 271 e 272.

Os documentos de fls.148 e 150 foram impugnados, quanto à sua materialidade e quanto aos efeitos pretendidos pela sua junção, pela autora, sendo que a mesma autora impugnou o conteúdo dos documentos de fls. 271 e 272.

A confissão aparece definida no art. 352º do C.Civil como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe seja desfavorável e que favoreça a parte contrária.

A respectiva eficácia "vem prevista no art. 358º: a confissão tem força probatória plena contra o confitente quando se trate de confissão judicial escrita (358º, nº 1); de confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular e nos termos que lhe sejam aplicáveis e feita à parte contrária (358º, nº 2). Nos outros casos, é apreciada livremente pelo tribunal (358º, nºs 3 e 4)". (4)

Por isso, no que concerne à confissão extrajudicial - a única que aqui se poderia configurar face à junção pela autora dos documentos ao processo (ou da eventual falta de impugnação dos documentos juntos pela ré) - a mesma deve, como vimos, ser apreciada nos termos aplicáveis aos respectivos documentos.

Trata-se, in casu, de documentos particulares. Quanto a eles estabelece o art. 374º, nº 1, do C.Civil, que "a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras".


Relativamente à sua força probatória dispõe o art. 376º do C.Civil que "o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento" (nº 1), sendo que "os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante" (nº 2).

"A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito". (5)

Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, que o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.

É que "a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do art. 376º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas" (6) .

Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respectivos factos materiais. (7)

E, sobretudo, não se exclui a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova, uma vez que "embora um documento prove as declarações das partes, deve poder provar-se que elas não correspondem à verdade". (8)

De facto, atento o disposto no art. 393º, nº 2, do C.Proc.Civil, apenas só "não é admitida a prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena", situação que, como vimos, não sucede no caso sub judice.

Haverá, pois, que concluir, que os acima indicados documentos, só por si, não impunham uma inequívoca e positiva decisão de facto, antes na averiguação da factualidade concreta se movendo o tribunal recorrido livremente, nos termos dos arts. 396º do C.Civil e 655º do C.Proc.Civil.

E assim, se a prova que foi produzida sobre os factos que os documentos alegadamente se destinavam a provar criou no tribunal uma convicção contrária à materialidade das declarações neles contidas, ficam as conclusões que emergiram dessa convicção ao abrigo da sindicância do STJ por manifestamente se não verificar a situação prevista no art. 722º, nº 2, do C.Proc.Civil.

Por último, e no que respeita à interpretação das declarações negociais (também resultantes do conteúdo dos documentos citados) importa não esquecer que "a determinação do sentido das declarações negociais, conforme a vontade real dos contraentes, constitui, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme, matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, de modo que a rejeição dessa interpretação pela Relação se torna insusceptível de censura por este Supremo Tribunal (artigos 729º, nº 2, e 722º, nº 2, do Código de Processo Civil)". (9)

Com efeito, "a interpretação das declarações negociais constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias. Ao Supremo, como tribunal de revista, só cabe exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando-se da situação prevista no art. 236º do C.Civil, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante ou, tratando-se de situação contemplada no art. 238, nº 1, do mesmo diploma, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso". (10)


E isto mesmo no âmbito dos negócios formais desde que o declaratário conheça a vontade real do declarante. (11)

Ora, in casu, a Relação, ao rejeitar a alteração da matéria de facto, nos termos pretendidos pela recorrente, manteve a sua apreciação no estrito domínio do apuramento da real intenção negocial das partes, sem recorrer a qualquer critério normativo de interpretação.

Por isso, não se pode suscitar, também neste aspecto, qualquer questão de direito, designadamente consistente na violação do preceituado nos arts. 236º e 238º do C.Civil.

Consequentemente, porque não cabe a este STJ debruçar-se sobre o apuramento da matéria de facto (e não também aplicação do direito) quando, como in casu, tal teve lugar através do recurso a meios de prova livremente valoráveis pelo julgador de acordo com a convicção por ele formada, impõe-se, como inevitável, a improcedência do recurso.

Termos em que se decide:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré "B, SL";
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 23 de Novembro de 2005
Araújo Barros,
Oliveira Barros,
Salvador da Costa.
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(1) Art. 26º da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.

(2) Cfr. Acs. STJ de 22/11/94, no Proc. nº 85752, da 1ª secção (relator César Marques); de 30/01/97, no Proc. nº 751/96, da 2ª secção (relator Miranda Gusmão); de 31/03/98, no Proc. 265/98 da 1ª secção (relator Silva Paixão); de 19/09/2002, no Proc. 2047/02, da 7ª secção (relator Miranda Gusmão); e de 29/02/2002, no Proc. 3/00 da 1ª secção (relator Garcia Marques).

(3) Cfr. Acs. STJ de 25/05/2000, no Proc. 319/00 da 2ª secção (relator Costa Soares); de 11/10/2001, no Proc. 2492/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); de 18/04/2002, no Proc. 725/02 da 2ª secção (relator Simões Freire); de 15/05/2003, no Proc. 1314/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 06/11/2003, no Proc. 2960/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); e de 09/10/2003, no Proc. 1168/03 da 7ª secção (relator Araújo Barros).

(4) António Menezes Cordeiro, "Tratado de Direito Civil", I, Tomo IV, Coimbra, 2005, pag. 489.
(5) José Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", Coimbra, 1984, pags. 55 e 56.

(6) Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 523 (nota 3); Acs. STJ de 03/05/77, in BMJ nº 267, pag. 125 (relator Alves Pinto); de 18/04/2002, no Proc. 717/02 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); e de 21/04/2005, no Proc. 522/05 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).

(7) Ac. STJ de 09/11/94, in CJSTJ, Ano III, 3, pag. 282 (relator Fernando Simão).


(8) Vaz Serra, in RLJ Ano 110º, pag. 85; Ac. STJ de 16/12/99, no Proc. 224/99 da 4ª secção (relator Diniz Nunes).

(9) Ac. STJ de 17/03/2005, no Proc. 4807/04 da 2ª secção (relator Lucas Coelho).

(10) Ac. STJ de 31/03/2004, no Proc. 510/04 da 6ª secção (relator Azevedo Ramos).

(11) Ac. STJ de 4/3/97, in CJSTJ Ano V, 1, pag. 46 (relator Martins da Costa).