Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | ARAÚJO BARROS | ||
Descritores: | DOCUMENTO PARTICULAR FORÇA PROBATÓRIA FORÇA PROBATÓRIA PLENA DECLARAÇÃO NEGOCIAL INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO INTERPRETAÇÃO DA VONTADE MATÉRIA DE FACTO COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
Nº do Documento: | SJ200511230033187 | ||
Data do Acordão: | 11/23/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1651/05 | ||
Data: | 04/07/2005 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Sumário : | 1. A força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas. 2. Ainda que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respectivos factos materiais e, sobretudo, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova. 3. Se a prova que foi produzida sobre os factos que os documentos alegadamente se destinavam a provar criou no tribunal uma convicção contrária à materialidade das declarações neles contidas, ficam as conclusões que emergiram dessa convicção ao abrigo da sindicância do STJ por manifestamente se não verificar a situação prevista no art. 722, nº 2, do C.Proc.Civil. 4. A determinação do sentido das declarações negociais, conforme a vontade real dos contraentes, constitui, mesmo no domínio dos negócios formais, matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, insusceptível de censura pelo Supremo. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A" - União Cervejeira, SA" intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra "B, SL" pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 3.973.631$00, acrescida dos juros legais, desde 13/04/2000 até efectivo e integral pagamento. Alegou, para tanto, que: - é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de produção e comercialização de cervejas e refrigerantes, bem como à comercialização de águas minerais e vinhos; - a ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, designadamente a exploração de uma cadeia de supermercados, com a denominação "Gildos Supermercados", na região de Salamanca; - no exercício das respectivas actividades, a ré encomendou à autora e esta, em execução dessas encomendas, forneceu àquela sucessivas e diversas quantidades de cartões de cervejas de tara perdida, contendo garrafas de 33 cl. de marca Super Bock e Cristal, adiante designadas abreviadamente por produtos; - todos os produtos foram entregues pela autora à ré na sede desta, e facturados à ré pelos preços justos, correntes, normais de mercados, acordados e pactuados com a ré e, ademais, constantes das tabelas de preços da autora em vigor à data dos fornecimentos; - ficou convencionado entre a autora e a ré que, mediante apresentação de uma garantia bancária, o pagamento dos fornecimentos deveria ser efectuado na sede da autora e no prazo de 60 dias, após os respectivos fornecimentos; - em 7 de Novembro de 1994, a autora accionou, por meio de fax, a garantia prestada pela ré, no valor total de ESP 7.000.000 (sete milhões de pesetas), com vista ao pagamento das facturas já vencidas nºs 675/94, de 08/07/94, 696/94, de 15/07/94, 721/94, de 21/07/94, 722/94, de 21/07/94 e 749/94, de 29/07/94, todas no importe de ESP 1.492.736 e totalizando ESP 7.463.680; - a referida garantia foi paga em 22/12/94, pelo Banco C, conforme o fax enviado à autora na mesma data por esta entidade bancária; - em consequência, em relação à última factura n° 479/94, de 29/07/94, subsistiu um débito remanescente de ESP 463.680; - acresce que a ré também não procedeu ao pagamento dos fornecimentos de produtos discriminados nas facturas nºs 831/94, de 26/08/94, e 858/94, de 01/09/94, ambas no importe de ESP 1.388.800; - as quantias em débito possuem os seguintes contravalores em escudos com o câmbio à data de emissão das facturas: 574.267$00, 1.697.946$50, 1.701.418$80, perfazendo o total de 3.973.631$00. Contestou a ré sustentando, em resumo, que: - após os fornecimentos e entregas das mercadorias mencionadas nas facturas nºs 831/94 e 858/94, referidas pela autora na petição inicial, esta recusou-se a vender, como não vendeu, qualquer outra mercadoria; - não obstante, a autora facturou à ré por mercadoria que não lhe vendeu nem entregou, a saber, as facturas nºs 1054/94 e 1055/94; - mercadorias essas que foram, na realidade, vendidas e entregues a outrem, de quem a autora recebeu os respectivos preços; - por sua vez, a ré pagou à autora as quantias de 1.620.565,00 e 1.306.722,00 pesetas, que esta unilateralmente e sem qualquer causa justificativa imputou ao abatimento parcial das ditas facturas 1054/94 e 1055/94; - desta forma e através da entrega daquelas quantias, a ré pagou o saldo proveniente da factura 479/94, bem como a totalidade da factura 831/94 e ainda, parcialmente, o valor da factura 858/94. Deduziu, ainda, reconvenção pedindo a condenação da autora a pagar-lhe quantia não inferior a 100.000.000$00, acrescida dos juros legais, alegando como causa de pedir o rompimento, por parte da autora, do contrato de compra e venda de execução continuada entre ambas celebrado. Replicou a autora, mantendo a sua posição inicial e impugnando a existência do contrato de compra e venda de execução continuada invocado pela ré. Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, foi realizada audiência de discussão e julgamento, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 19.820,38 Euros, acrescida de juros de mora e julgou improcedente a reconvenção. Inconformada apelou a ré, sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 7 de Abril de 2005, decidiu julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida. 1. A revista pode fundar-se no erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando ocorra ofensa de disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova, nos termos do artigo 722º, nº 2, do Código de Processo Civil. 2. Os documentos de fls. 53, 113, 148, 150, 271 e 272 dos autos são particulares, não foram arguidos de falsos, nem invocada falta e/ou vício de vontade que os afecte quanto à materialidade integradora deles, pelo que fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (a recorrida), como dispõe o artigo 376º, nº 1, do Código Civil. i) - a autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de produção e comercialização de cervejas e refrigerantes, bem como à comercialização de águas minerais e vinhos; ii) - a ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, designadamente à exploração de uma cadeia de supermercados, com a denominação "Gildos Supermercados", na região de Salamanca, em Espanha; iii) - no exercício das respectivas actividades, a ré encomendou à autora e esta, em execução dessas encomendas, forneceu àquela sucessivas e diversas quantidades de cartões de cervejas de tara perdida, contendo garrafas de 33 cl. de marca Super Bock e Cristal; iv) - os produtos eram entregues pela autora à ré na sede desta, e facturados à ré pelos preços justos, correntes, normais de mercados, acordados e pactuados com a ré e, ademais, constantes das tabelas de preços da autora em vigor à data dos fornecimentos; v) - ficou convencionado entre a autora e a ré que, mediante apresentação de uma garantia bancária, o pagamento dos fornecimentos deveria ser efectuado na sede da autora e no prazo de 60 dias após os respectivos fornecimentos; vi) - em 7 de Novembro de 1994, a autora accionou, por meio de fax, a garantia prestada pela ré, no valor total de ESP 7.000.000 (sete milhões de pesetas); vii) - a referida garantia foi paga em 22/12/94, pelo Banco C, conforme o fax enviado à autora na mesma data por esta entidade bancária; viii) - em resposta à carta enviada pela ré em 02/02/99 a autora, através do fax de 05/03/99, agendou para dia 10/03/99 pelas 14.30 horas, uma reunião nas instalações da ré com o objectivo de esclarecer o saldo devedor; ix) - a autora forneceu à ré as mercadorias correspondentes às facturas nº 675/94 de 08/07/94, 696/94 de 15/07/94, 721/94 de 21/07/94, 722/94 de 21/07/94, 749/94 de 29/07/94, todas no importe de ESP 1.492.736 e totalizando ESP 7.463.680; 479/94 de 29/07/94, que subsistiu um débito remanescente de ESP 463.680; 831/94 de 26/08/94 e 858/94 de 01/09/94, ambas no importe de ESP 1.388.800; x) - o cumprimento do pagamento do preço por parte da ré foi garantido por meio de garantia bancária até ao limite máximo de sete milhões de pesetas; xi) - a ora autora recebeu do Hipermercado Jumbo Madrid, dos Supermercados Expresso, do Hipermercado Jumbo Cuenca e do Hipermercado Jumbo Linares os respectivos preços das facturas nºs 1054/94 e 1055/94; xii) - pelo fornecimento de mercadorias, a ré não pagou à autora, pelo menos, a quantia de 149.737 pesetas; xiii) - os pagamentos referidos em xi) foram efectuados pelas referidas superfícies comerciais através de um desconto de letra da JUMBO MADRID e factura a ser paga pela autora, em 04/05/95, no valor de 1.620.565$00 (ESP 1.367.565.00) e desconto de uma letra da JUMBO LINARES, em 22/01/96, no valor de ESP 1.306.772.00; xiv) - por carta datada de 25/07/1996, que a ré remeteu à autora e esta dela recebeu, insistiu junto da autora para que esta fizesse deslocar às instalações da ré "alguém" com elementos suficientes, a fim de esclarecer os lançamentos do extracto de factura da autora; xv) - as mercadorias descritas nas facturas nºs 1054/94 e 1055/94, como tendo sido vendidas e entregues pela autora à ré, foram vendidas e entregues, em quantidades diversas, pela autora ao Hipermercado Jumbo Madrid, aos Supermercados Expresso, ao Hipermercado Jumbo Cuenca e ao Hipermercado Jumbo Linares; xvi) - a ré auferia uma diferença entre o preço unitário do cartão de cerveja que comprava à autora para o preço de venda para o mercado suíço de 150 pesetas, em média, por cartão; xvii) - a ré adquiriu à autora, desde Novembro de 1993 a 01/09/1994, 91.392 cartões de cerveja das acima referidas marcas, que vendeu para o mercado suíço; xviii) - a autora apenas facultou à ré uma tabela de preços e condições de venda, que era idêntica à habitualmente enviada para todos os clientes da autora em Espanha; xix) - a carta de 25/07/96, junta pela autora na petição inicial como documento nº 10, foi alvo de resposta através de fax datado de 29/07/96, em que a autora solicitava a confirmação do valor em débito constante da contabilidade da ré, com o intuito de apurar a razão de ser das divergências existentes entre os valores contabilísticos de ambas as partes; xx) - a partir do envio pela autora à ré da nova tabela de preços em 15/06/94, a ré não mais voltou a encomendar produtos à autora; xxi) - os produtos adquiridos à autora ao abrigo das duas facturas referidas em xi), foram reexpedidos pela ré para o Hipermercado Jumbo Madrid, Supermercado Expresso, Hipermercado Jumbo Cuenca e Hipermercado Jumbo Linares, tendo a ré emitido as correspondentes facturas nºs 940003, 940004, 940005 e 940006; xxii) - o pagamento efectuado em 04/07/94, serviu para liquidação das facturas nºs 149 de 17/03/94, 153 de 21/03/94 e 156 de 23/03/94. A impugnação da recorrente cinge-se à apreciação e fixação da matéria de facto feita pelo acórdão recorrido. Por um lado, sustenta que os factos compreendidos nos documentos de fls. 53, 113, 148, 150, 271 e 272 na medida em que são contrários aos interesses da autora, valem a favor da recorrente nos termos da confissão. Doutro passo, afirma que o acórdão recorrido fez incorrecta interpretação das declarações contidas nesses documentos, com violação do disposto nos artigos 236º, nº 1, e 238º do Código Civil, já que os documentos consubstanciam, de acordo com a teoria objectivista da impressão do destinatário consagrada no artigo 236º, nº 1, do C.Civil, o reconhecimento pela recorrida de que a recorrente nada lhe deve por via dos fornecimentos efectuados.
E, sobretudo, não se exclui a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova, uma vez que "embora um documento prove as declarações das partes, deve poder provar-se que elas não correspondem à verdade". (8) De facto, atento o disposto no art. 393º, nº 2, do C.Proc.Civil, apenas só "não é admitida a prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena", situação que, como vimos, não sucede no caso sub judice. Haverá, pois, que concluir, que os acima indicados documentos, só por si, não impunham uma inequívoca e positiva decisão de facto, antes na averiguação da factualidade concreta se movendo o tribunal recorrido livremente, nos termos dos arts. 396º do C.Civil e 655º do C.Proc.Civil. E assim, se a prova que foi produzida sobre os factos que os documentos alegadamente se destinavam a provar criou no tribunal uma convicção contrária à materialidade das declarações neles contidas, ficam as conclusões que emergiram dessa convicção ao abrigo da sindicância do STJ por manifestamente se não verificar a situação prevista no art. 722º, nº 2, do C.Proc.Civil. Por último, e no que respeita à interpretação das declarações negociais (também resultantes do conteúdo dos documentos citados) importa não esquecer que "a determinação do sentido das declarações negociais, conforme a vontade real dos contraentes, constitui, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme, matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, de modo que a rejeição dessa interpretação pela Relação se torna insusceptível de censura por este Supremo Tribunal (artigos 729º, nº 2, e 722º, nº 2, do Código de Processo Civil)". (9) Com efeito, "a interpretação das declarações negociais constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias. Ao Supremo, como tribunal de revista, só cabe exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando-se da situação prevista no art. 236º do C.Civil, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante ou, tratando-se de situação contemplada no art. 238, nº 1, do mesmo diploma, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso". (10)
Consequentemente, porque não cabe a este STJ debruçar-se sobre o apuramento da matéria de facto (e não também aplicação do direito) quando, como in casu, tal teve lugar através do recurso a meios de prova livremente valoráveis pelo julgador de acordo com a convicção por ele formada, impõe-se, como inevitável, a improcedência do recurso. Termos em que se decide:a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré "B, SL"; b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido; c) - condenar a recorrente nas custas da revista. Lisboa, 23 de Novembro de 2005 Araújo Barros, Oliveira Barros, Salvador da Costa. ---------------------------------------------- (1) Art. 26º da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro. (2) Cfr. Acs. STJ de 22/11/94, no Proc. nº 85752, da 1ª secção (relator César Marques); de 30/01/97, no Proc. nº 751/96, da 2ª secção (relator Miranda Gusmão); de 31/03/98, no Proc. 265/98 da 1ª secção (relator Silva Paixão); de 19/09/2002, no Proc. 2047/02, da 7ª secção (relator Miranda Gusmão); e de 29/02/2002, no Proc. 3/00 da 1ª secção (relator Garcia Marques). (3) Cfr. Acs. STJ de 25/05/2000, no Proc. 319/00 da 2ª secção (relator Costa Soares); de 11/10/2001, no Proc. 2492/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); de 18/04/2002, no Proc. 725/02 da 2ª secção (relator Simões Freire); de 15/05/2003, no Proc. 1314/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 06/11/2003, no Proc. 2960/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); e de 09/10/2003, no Proc. 1168/03 da 7ª secção (relator Araújo Barros). (4) António Menezes Cordeiro, "Tratado de Direito Civil", I, Tomo IV, Coimbra, 2005, pag. 489. (5) José Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", Coimbra, 1984, pags. 55 e 56. (6) Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 523 (nota 3); Acs. STJ de 03/05/77, in BMJ nº 267, pag. 125 (relator Alves Pinto); de 18/04/2002, no Proc. 717/02 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); e de 21/04/2005, no Proc. 522/05 da 7ª secção (relator Oliveira Barros). (7) Ac. STJ de 09/11/94, in CJSTJ, Ano III, 3, pag. 282 (relator Fernando Simão).
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