Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P3164
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOURENÇO MARTINS
Nº do Documento: SJ200212040031643
Data do Acordão: 12/04/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J V N GAIA
Processo no Tribunal Recurso: 25/01
Data: 06/04/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No P.º comum n.º 25/01.9GGVNG (Colectivo n.º 43/2002), da 2.ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento:
"A", filho de ..., nascido em 12/4/78, solteiro, disc ..., residente na Rua da ..., nº ..., Oliveira do Douro, actualmente preso preventivamente à ordem destes autos no EP. do Porto, imputando-se-lhe a prática de factos susceptíveis de preencherem, em autoria material, o tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes, pp. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro.
Por acórdão de 4 de Junho de 2002, o Colectivo condenou o arguido A, como autor material, do crime de tráfico de estupefacientes de que vinha acusado, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
2. Inconformado recorre o arguido para este Supremo Tribunal, concluindo a sua motivação pelo modo seguinte (transcrição):
"1. O arguido detinha pequena quantidade de estupefaciente. Confessou a sua detenção. Exercia actividade profissional. É primário. lnexiste qualquer outro factor incriminador .
2. É um jovem, inserido sócio profissionalmente e todos estes factos conjugados permitem enquadrar o tipo legal de crime no art. 25º do DL 15/93 de 22 de Janeiro, pelo que a não ser assim viola-se este normativo.
Caso assim se não entenda,
E pelo mesmo circunstancialismo,
3) A pena aplicada ao arguido é manifestamente exagerada, tendo em conta quer a sua postura, a sua idade e a ausência de antecedentes criminais, pelo que deverá a mesma ser sobremaneira reduzida.
O tribunal violou o disposto nos arts. 40, 70, 71 e 72 do C.P.
Na verdade,
4) A actividade do arguido resume-se a um acto isolado da sua vida, que não continuada no tempo, e a matéria incriminadora resulta do apurado no dia da sua detenção.
5) Limitando-se o arguido a deter produto estupefaciente;
6) Sendo a pena a medida da culpa entendemos que o factualismo apurado, resume-se à mera detenção, e por isso o dolo evidenciado é menor do que na venda efectiva;
7) Acresce que o arguido é primário, não lhe foram encontrados outros bens relacionados com a prática do crime nomeadamente dinheiro, balanças, moinhos, produtos de corte.
8) Assumiu a verdade incriminadora, evidenciando uma postura critica e vontade de arrepiar caminho.
Termos em que a pena aplicada, é sobremaneira, desproporcional, e exagerada pois existem inúmeras atenuantes que no nosso entendimento não foram atendidas e que podem reduzir substancialmente a pena do arguido".

Respondeu a Dig.ma Magistrada do Ministério Público na comarca, dizendo em síntese (transcrição):

"1 - Concordamos inteiramente com a qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal, integrando a conduta do arguido o art. 21, n.º1 do Dec. Lei n° 15/93 de 21/01.
2 - Face ao significativo número de doses apreendidas ao arguido, entendemos que tais factos são insusceptíveis de integrar o art. 25° do Dec. Lei n° 15/93, não assistindo qualquer razão ao recorrente quando defende que estamos em face de quantidades diminutas.
3 - Entendemos que na determinação da medida da pena, o Tribunal teve em devida conta os critérios previstos nos arts. 70° e ss. do C.P., conforme expressamente declarou e enunciou na douta sentença em análise, pelo que concordamos inteiramente com a medida da pena fixada no douto acórdão de 5 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art. 21°, nº 1 de Dec. Lei n° 15/93 de 22-01.
4 - Por todo o exposto, entendemos que o douto acórdão recorrido não violou qualquer preceito, devendo manter-se nos seus precisos termos".
3. Neste Supremo Tribunal, nada tendo sido oposto, foi o recurso admitido; colheram-se os vistos legais.
Procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo, tendo sido produzidas alegações orais.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto é de opinião que o recurso não merece provimento, e embora a pena seja severa escapa aos poderes de revista a sua adaptação; a Ex.ma Defensora pediu o provimento do recurso.
Cumpre ponderar e decidir.
II
Vejamos a matéria de facto considerada demonstrada pelo Colectivo.
Factos provados
"1º- No dia 25 de Outubro de 2001, pelas 17 horas, uma brigada à civil do Núcleo de Investigação Criminal da GNR deslocou-se à linha férrea da Estação da C.P. de Valadares, nesta comarca, numa acção de combate ao tráfico e consumo de estupefacientes, dado ser este um dos locais procurados por pessoas que se dedicam àquelas actividades ilícitas.
2º- Ali chegados, os agentes montaram vigilância ao local com vista a apurar quem ali estava a vender estupefacientes, tendo, minutos depois, apercebido-se que o aqui arguido acabava de chegar e que o mesmo se dirigia para junto de um aglomerado de consumidores que o aguardavam.
3º- Tratava-se de pessoa já por eles conhecida e que dias antes ali tinha estado a vender estupefacientes a terceiros e que só não foi detido naquela altura dado ter logrado fugir-lhes, tendo por via disso os agentes decidido interpelá-lo.
4º- Ao aperceber-se da presença da autoridade, o arguido pôs-se em fuga vindo no decurso da mesma a atirar para o interior do jardim de uma residência uma embalagem de plástico contendo 42 doses de cocaína, com o peso líquido de 1,964 gramas (4,820 gramas de peso bruto) e 29 de heroína, com o peso líquido de 2,350 gramas ( 4,010 gramas de peso bruto) que lhe foram apreendidas.
5º- O arguido havia adquirido a totalidade do produto apreendido em local e a pessoa não apurada.
6º- O arguido foi, em 11/12/2000, condenado na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, transitada em julgado no dia 08-01-01, por ter cometido em 3/10/98 o crime de ofensas à integridade física simples.
7º- O arguido conhecia as características estupefacientes e psicotrópicas da heroína e cocaína e destinava-as à venda.
8º- O arguido actuou de forma livre, consciente e voluntariamente bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
9º- O arguido, antes de preso, residia com uma companheira de quem tem um filho de 2 anos. À data dos factos trabalhava ocasionalmente auferindo cerca de esc. 80.000$00 por mês. Tem o 5º ano de escolaridade".
Factos não provados
" Nada mais se provou, designadamente, que o arguido destinasse a integralidade dos estupefacientes apreendidos ao seu consumo pessoal e que os tivesse adquirido no bairro do Aleixo.
Fundamentação da matéria de facto
"O tribunal formou a sua convicção quanto á matéria de facto provada e não provada na ponderação conjugada dos seguintes meios de prova :
Nas declarações do arguido prestadas em audiência, o qual confirmou a posse dos estupefacientes referidos.
Nas declarações dos elementos da G.N.R., B e C, agentes que intervieram nas operações policiais relatadas e prestaram o respectivo depoimento com isenção e seriedade, demonstrando conhecimento de causa.
Na circunstância do arguido deter cerca de 70 doses individuais de cocaína e heroína, quanto ao destino - venda - que pretendia dar às mesmas, dado que pelas regras de experiência comum a detenção de várias doses individuais de estupefacientes está associada à venda das mesmas.
Nas declarações do arguido quanto às suas condições pessoais.
No teor dos seguintes documentos
relatórios do exame do L.P.C. de fls. 42
Crc de fls. 45 ».
III
Circunscrito o objecto do recurso pelas conclusões, e assente a matéria de facto, não só por falta de impugnação como por não se detectar qualquer vício,
as questões postas são as seguintes:
- Verificam-se os pressupostos de incriminação pelo crime de tráfico de menor gravidade, pp. pelo artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93?
- Na hipótese negativa, a pena aplicada é manifestamente exagerada, em face da postura crítica do recorrente, da mera detenção dos estupefacientes, da sua idade e da ausência de antecedentes criminais?

1. Foi o arguido acusado e condenado pela prática do crime pp. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 (1), pretendendo ver a sua conduta incriminada pela disposição mais favorável do artigo 25º do mesmo diploma, onde se estipula:
"Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III; (...).
Terá razão?
Como se tem dito em casos semelhantes (2), a propósito deste normativo,"...a sua aplicação, visando no caso concreto avaliar se a ilicitude dos factos se mostra consideravelmente diminuída, está de certo modo parametrizada mediante a verificação das circunstâncias aí indicadas, ainda que a título meramente exemplificativo.
"O que aponta para a necessidade de uma valorização global dos factos imputados ao arguido e provados, não podendo deixar de se ter em conta todos os tópicos a que o preceito se refere, aditados de outros, se os houver.
A conclusão da diminuição considerável da ilicitude há-de resultar dessa apreciação complexiva, em que assumem relevo os "meios utilizados" - ou seja, a organização e logística demonstradas -, a "modalidade ou circunstâncias da acção" - isto é, o grau de perigosidade para a difusão da droga - a "qualidade" das substâncias ou preparações - aferida em termos de danosidade tal como é indiciada pela sua colocação em cada uma das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93 - enfim, a quantidade, não apenas da droga detida no momento da intervenção policial, mas que o agente tenha "manipulado" em alguma das operações enunciadas no artigo 21º".
"A sua teleologia última apresenta-se vocacionada para se aplicar a situações que estejam num ponto intermédio entre o tráfico e o tráfico-consumo, concebido para alargar a paleta das hipóteses colocadas à disposição do julgador para vivências pluriformes".
3. Fazendo o confronto entre os elementos do tipo legal e os factos apurados, à luz do que vem de dizer-se, isto é, tendo em vista a apreciação complexiva da conduta, para determinar se existe ou não diminuição considerável da ilicitude, verifica-se que:
§ os "meios utilizados", ou seja, a organização e logística demonstradas, revelam-se incipientes, pois ao arguido não foram encontrados os apetrechos próprios de uma venda organizada, nem apreendida qualquer quantia de dinheiro;
§ a "modalidade ou circunstâncias da acção", isto é, o grau de perigosidade para a difusão da droga - assume-se aqui por uma actividade repartida por duas vezes, com alguns dias de intervalo;
§ a "qualidade" das substâncias ou preparações, aferida em termos de danosidade é um elemento desvalioso - sabido que a heroína, pela dependência que provoca no consumidor, e também a cocaína, em grau menor, são drogas muito prejudiciais para a saúde;
§ a "quantidade" - deitou fora uma embalagem de plástico contendo 42 doses de cocaína, com o peso líquido de 1,964 gramas e 29 de heroína, com o peso líquido de 2,350 gramas, que foram apreendidas.
Destinava as drogas à venda aos consumidores que o procurassem.
Não existe indicação de que o recorrente fosse consumidor de droga (3).
2. Vejamos como o Colectivo, depois de considerar integrada a prática do crime do artigo 21º, n.º 1, do Decreto- Lei n.º 15/93, discorre, a dado passo, sobre a medida da pena.
"Dos factos provados importa considerar as seguintes circunstâncias atenuantes:
1º- À data dos factos o arguido tinha pouco mais de 21 anos de idade.
2º- À data dos factos o arguido trabalhava.
3º- Não apresenta antecedentes criminais de relevo, nunca tendo sido condenado pela prática de crimes relacionados com estupefacientes.
"Susceptível de agravar a sua conduta importa considerar a elevada intensidade do dolo e da ilicitude e o facto de estarem em causa duas das chamadas "drogas duras".
As circunstâncias de prevenção especial são medianas.
As circunstâncias de prevenção geral presentes neste caso são de elevado relevo, atento o flagelo social e verdadeiro drama à escala mundial que constitui o consumo e tráfico de estupefacientes e a frequência com que o tipo legal em apreço é violado".
3. Entendemos, porém, que a conduta do recorrente é integrável no disposto no artigo 25º do citado Decreto-Lei n.º 15/93 e não no mencionado artigo 21º, n.º 1.
Considerando os critérios padrão do referido artigo 25º, no confronto acima efectuado, em que apenas se apuraram duas ocasiões em que o arguido procurou vender pequenas quantidade de droga, verificam-se os pressupostos de aplicação do disposto naquele preceito, estando-se em presença de factos denunciadores de uma ilicitude consideravelmente diminuída, pelo que se convola a acusação para o crime de tráfico de menor gravidade, pp. pelos artigos 21º, n.º 1, e 25º, alínea a), do mencionado Decreto-lei n.º 15/93.

Ponderadas as circunstâncias acima referidas pelo Colectivo, nomeadamente, o grau de culpa do arguido, ter à data dos factos pouco mais de 21 anos de idade, exercer actividade laboral, ainda que ocasional, com antecedentes criminais de pouco relevo, ter um filho de 2 anos, sem esquecer que estava a lidar com duas substâncias das mais nocivas, são elementos que, dentro da nova moldura, apontam para uma pena ligeiramente superior à média abstracta prevista.
Assim, considera-se adequada a aplicação da pena de três anos de prisão (4).
4. As circunstâncias descritas, que levam à constatação, em suma, de que a actuação do arguido se integra na figura de um traficante de pequeno porte, mas que lidava com a venda de drogas das mais perigosas, assegurando o elo final da cadeia do tráfico, não são de molde a considerar reunidos os pressupostos para que a pena lhe possa ser suspensa. Designadamente, razões de prevenção geral, de reintegração dos valores protegidos pelas normas que visam defender a sociedade da proliferação das redes locais de tráfico, impedem tal posição.

Fica, assim, prejudicada a apreciação da segunda questão posta.


IV

Em conformidade, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso, e considerando integrada a conduta do recorrente no crime de tráfico de menor gravidade - citados artigos 21º, n.º 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, condenam o A na pena de três anos de prisão, confirmando-se, no mais, o decidido.

Fixa-se em 2 UCs a taxa de justiça, com 1/4 de procuradoria.

De honorários à Ex.ma Defensora fixam-se 5 URs, a adiantar pelo CGT.

Texto processado em computador pelo relator, que rubrica as restantes folhas.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2002

Lourenço Martins

Pires Salpico

Leal Henriques

Borges de Pinho

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(1) Onde se diz: "1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

(2) Acórdão de 7.12.99 - P.º n.º 955/99; cfr., também, o acórdão de 7.07.99 - P.º n.º418/99, os proferidos no P.º n.º 269/99 e no P.º n.º 1665/2000; de 10.05.00 - P.º n.º 59/00, e de 31.05.00 - P.º n.º 186/00, no BMJ n.º 497/pp. 144 e 167, respectivamente; de 27.09.00 - P.º n.º 1651/2000, de 15.10.00 - P.º n.º 2737/2000, de 25.10.00 - P.º n.º 2542/2000, de 14.02.01 - P.º n.º 4120/2000; de 3.10.01 - P.º n.º 2446/01, que agora se seguirá de perto, todos do mesmo Relator.

(3) Incompreensivelmente, o acórdão recorrido não faz referência ao relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal (fls. 67).

(4) Cfr., comparativamente, o citado ac. de 31.05.00 - P.º 186/00, que seguimos nesta parte final.