Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
Descritores: | HOMICÍDIO ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA ILICITUDE CULPA MEDIDA DA PENA PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL IMAGEM GLOBAL DO FACTO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO PRINCÍPIO DA NECESSIDADE REGIME ESPECIAL PARA JOVENS TENTATIVA LEGÍTIMA DEFESA EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM NEXO DE CAUSALIDADE BEM JURÍDICO PROTEGIDO CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE | ||
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Data do Acordão: | 10/27/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | CJASTJ, ANOXVIII, TOMO III/2010, P.237 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I - Para as situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do art. 72.º do CP. II - Com efeito, quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade, especialmente para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo. III - Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção. Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo. IV - A atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas. A atenuação especial da pena constitui, pois, um instrumento de correcção ou de reordenamento de proporcionalidade na construção da moldura (e da medida) da pena, nos casos em que os limites normais da moldura do respectivo tipo não permitiria a escolha de uma pena concretamente adequada. V - O afastamento crítico entre as circunstâncias normais do modelo e da moldura do tipo e as circunstâncias específicas que coloquem determinado caso fora desse modelo pode resultar, quer da concorrência de um conjunto de factores integráveis nos pressupostos definidos através de cláusulas gerais no art. 72.º do CP, quer de situações directamente previstas como construções autónomas na lei, nas quais a atenuação especial constitui, no rigor, não mais do que um critério de determinação da moldura da atenuação por aplicação do art. 73.º do CP. São os casos, v.g., das penas no direito penal de jovens adultos (DL 401/82, de 23-09 – art. 4.º «se for aplicável pena de prisão»), da pena na tentativa (art. 23.º, n.º 2, do CP) e da pena no excesso de legítima defesa censurável (art. 33.º, n.º 1, do CP). VI - No caso em apreço – em que o arguido estava acusado e foi condenado pela prática de um crime de homicídio –, a decisão do tribunal do júri fundamentou a opção pela atenuação especial da pena no âmbito material das circunstâncias enunciadas no art. 72.º do CP, por ter considerado que «os graus de ilicitude e da culpa surgiram mitigados» («factos ocorridos de noite, dentro de prédio fortemente vedado e por isso não livremente acessível ao público, após múltiplas incursões que causaram estragos na horta»), e que a idade do arguido (75 anos) – «muito avançada» na avaliação do tribunal – faria esbater as necessidade de prevenção e da pena. A idade do arguido foi considerada como «factor a ter em grande conta no momento de ponderação sobre a possibilidade de atenuar especialmente a pena». Haverá que reconhecer, porém, que, nesta perspectiva, a decisão recorrida acolheu um método porventura redutor, e por este modo de abordagem, «o condicionalismo que rodeou a prática do facto típico», «esbatendo de alguma sorte a ilicitude do facto ou a culpa do agente», poderia «influir na medida concreta da pena a determinar no âmbito da moldura penal abstracta pensada pelo legislador para o tipo legal em causa», mas «o mesmo condicionalismo» não justificaria «de todo o uso do mecanismo de atenuação extraordinária da pena». A escolha metodológica e a consequente fundamentação da decisão do tribunal de júri não permitiriam a conclusão a que chegou, pois tal enquadramento dificilmente suportaria, no âmbito do art. 72.º, n.ºs. 1 e 2 do CP, a qualificação de «extraordinário ou excepcional», com «diminuição de forma acentuada da ilicitude do facto, da culpa ou da necessidade da pena». VII - Mas a complexidade global dos factos e a interpretação do contexto factual segundo a razão das coisas e da vida – quase a natureza das coisas – e das regras da experiência interpretadas pelo homem comum, podem permitir uma outra abordagem, e diferentes método de análise, compreensão e decisão no quadro dogmático de outras categorias do direito penal. Perante a complexidade factual que julgou provada, o tribunal a quo afastou a legitima defesa invocada pelo arguido e, consequentemente, qualquer perspectiva da ilicitude e da culpa a ponderar no âmbito hipotético do excesso de legítima defesa. E afastou os pressupostos primeiros da legítima defesa por considerar que «é por demais evidente e desde logo não existe qualquer agressão actual ou mesmo iminente, pois não se provou que a vítima, no momento da prática do facto pelo arguido, o estivesse a agredir ou fosse agredir – designadamente que fosse disparar, sendo particularmente de relevar que, pese armado, nunca sacou da arma ou fez sequer menção de o fazer». A decisão considerou que «também não se demonstrou o animus defendendi». VIII - Este juízo revela-se de algum modo redutor, quando se compreendam e interpretem os factos contextualmente para além da soma material dos factos singulares e parcelares, e se avalie o conjunto, os antecedentes, a ambiência, a sequência e a dinâmica pelo feixe poliédrico das regras da experiência da vida e das coisas, interpretadas pelo sentido do homem comum colocado nas circunstâncias do arguido. IX - Diz-se em legítima defesa – art. 32.º do CP – o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro; a legítima defesa afasta a ilicitude do facto. A ideia básica subjacente à legítima defesa está contida na afirmação de que o direito não tem de retroceder face ao injusto, entendida a afirmação e as suas consequências num certo sentido de adequação social. A aceitação pelo direito da auto-defesa pode compreender-se numa perspectiva jurídico-individual como o direito de auto-afirmação do indivíduo através da defesa da sua própria pessoa perante um ataque antijurídico de outrem, mas também numa perspectiva ou ponto de vista jurídico-social, de acordo com o princípio de que o direito não deve ceder perante o injusto. X - Segundo a definição clássica de legítima defesa – acção necessária para repelir por si mesmo um ataque actual e antijurídico, que essencialmente vem aceite no art. 32.º do CP – a situação de defesa pressupõe e tem de ser desencadeada por uma agressão actual e ilícita contra o agente ou terceiro, afectando bem jurídico susceptível de ser protegido através de defesa. Deve, pois, existir uma agressão, que significa toda a lesão ou a iminência de lesão (perigo imediato) de um interesse juridicamente protegido do agente ou de terceiro, desde que o comportamento do agressor se apresente com um mínimo de causalidade de acção. XI - Mas, para efeito de integração do pressupostos da situação de legítima defesa, a agressão é actual quando está em execução ou quando está iminente, porque o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado; a agressão está iminente quando, embora ainda não iniciada numa aproximação analógica aos elementos da tentativa, se deva seguir imediatamente segundo a leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente. A iminência da agressão estará presente nas situações em que se saiba antecipadamente, com certeza ou com elevado grau de probabilidade, que terá lugar. XII - A situação de legítima defesa começa logo que exista um perigo de agressão, com carácter imediato, que ameace um interesse protegido. Mas, para determinar a iminência ou a actualidade é decisivo o prognóstico objectivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjectiva deste. A mera intenção, sem ser exteriormente accionada, não constitui iminência de agressão. XIII - A iminência da agressão, com alguma analogia com o começo da tentativa, ocorrerá quando a ameaça de ofensa é mais do que uma intenção, mas se pode transformar imediatamente numa lesão; e estrita fase final e exteriorizada de um acto preparatório, imediatamente prévia ao começo da tentativa, pode ser o início de uma conduta que dentro de um processo histórico único dará lugar à agressão; pôr em prática ou manifestar externamente a vontade de lesão de um bem jurídico: v.g., um movimento agressivo com a mão ou um gesto com significado e interpretação factual semelhante. XIV - Por outro lado, é susceptível de legítima defesa qualquer interesse juridicamente protegido; a agressão deve ser antijurídica (todo o ataque que objectivamente infrinja o ordenamento jurídico), e actual, no sentido em que a agressão está iminente, a acontecer, a ter lugar no próprio momento ou persista em sequência. Na consideração da actualidade da agressão, o que releva e será decisivo é o prognóstico objectivo de uma pessoa experimentada colocada na situação do agredido e não a representação subjectiva deste; a intenção de agredir que se não revele externamente não constitui agressão susceptível de integrar os pressupostos da legítima defesa. XV - Perante uma agressão actual e antijurídica pode ter lugar a defesa necessária. A legítima defesa, como defesa necessária, supõe, porém, uma vontade de defesa, mas não no sentido de exclusão: desde que exista vontade de defesa, podem concorrer, para além desta, outros motivos (v.g., ódio, indignação, vingança), mas com tratamento específico quando, perante o animus deffendendi, sobrelevem a necessidade de defesa. XVI - A necessidade (art. 32.º do CP: “meio necessário”) da acção defensiva para repelir o ataque constitui, assim, um pressuposto da situação de legítima defesa. Mas necessidade da acção defensiva, e não, porque o plano de consideração já é logicamente posterior, adequação estrita do meio concretamente empregue na acção defensiva. A exigência da necessidade que qualifica os meios de defesa admissíveis traduz-se na escolha do meio menos gravoso para o agressor, de acordo com o juízo do momento, mas com natureza ex ante, avaliando objectivamente toda a dinâmica do acontecimento. A acção defensiva necessária é a que é idónea para a defesa, e constitua o meio menos prejudicial para o agressor. A avaliação da necessidade depende do conjunto de circunstâncias nas quais ocorre a agressão e a reacção, especialmente a intensidade do concreto meio ofensivo e da ofensa, as características pessoais do agressor em contraposição com as características pessoais do defendente (idade, compleição, experiência em situações de confronto, perigosidade e o modo de actuação) bem como dos meios disponíveis para a defesa, e deve valorar-se sob uma perspectiva objectiva, isto é, tal como um homem médio colocado na posição do agredido teria valorado as circunstâncias da agressão. XVII - A necessidade da acção defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para afastar e repelir eficazmente a agressão – princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos; por isso, quem defende deve escolher de entre os meios eficazes de defesa que estejam, em concreto, à sua disposição, aquele que resulte menos perigoso e que cause menor dano. A ponderação da necessidade (menor lesividade) tem, porém, de ser compreendida nas circunstâncias do caso: a defesa pode ser intensa para fazer terminar rápida e completamente a agressão ou a eliminação do perigo, não sendo exigível que o agredido apenas utilize tímidos intentos de defesa que podem fazer correr o risco de continuação ou de intensificação da agressão. XVIII - A interpretação da exigência de “necessidade” deve conduzir ao resultado político-criminalmente desejável de que os erros objectivamente insuperáveis sobre a necessidade do meio defensivo sejam tomados em prejuízo do agressor. Na ponderação sobre a necessidade dos meios não deve, porém, entrar-se em linha de conta com a possibilidade de fuga; escapar não é repelir a agressão. A necessidade e o exame sobre a necessidade surgem, porém, como se referiu, ex ante, e não supõem uma ponderação de proporcionalidade dos bens jurídicos implicados. XIX - O uso de um meio não necessário constitui excesso de meios ou excesso intensivo que não exclui a ilicitude do facto defensivo – art. 33.º do CP. A proporcionalidade, não de bens, como fundamento objectivo de justificação da legítima defesa, mas como critério e medida dos limites da necessidade e da intensidade da defesa, que não afaste a ilicitude e a culpa nos casos de excesso (intensivo ou extensivo), respeita ainda a relação que o art. 2.º, n.º 2, al. a), da CEDH parece estabelecer nos (aparentes) limites da licitude da defesa que cause a lesão do bem vida – se não estiver em causa a defesa relativa a «violência ilegal» «contra uma pessoa». XX - Perante a reconstituição descrita na matéria de facto dos autos, no que é directamente mais relevante, a interpretação mais plausível de acordo com o id quod como regra da experiência, essencial na compreensão das interacções pessoais dinâmicas no contexto da situação, e o sentido da apreensão das acções humanas, ex ante, segundo a perspectiva de um observador externo, aponta para não afastar tão directamente, como fez a decisão recorrida, uma interpretação menos restritiva sobre o bem jurídico em causa, em avaliação no âmbito da complexidade dos pressupostos e consequências de uma situação de legítima defesa. A interpretação dos factos provados de acordo com as regras da experiência não pode objectivamente excluir este sentido – que é, aliás, o mais plausível contextualmente, numa perspectiva contemporânea ex ante e exterior ao agente. XXI - Com efeito, a existência de uma agressão por parte da vítima é imediatamente apreensível. A vítima entrou, furtivamente, a hora tardia da noite, em propriedade vedada, munida de um instrumento visível que poderia servir como meio de agressão – um pau (para além de armada com uma arma de fogo, com carregador e com bala na câmara, pronta a disparo imediato), não obstante a presença e a reacção de alerta de um cão que se encontrava preso. A ameaça e o início da agressão eram, assim, efectivas, considerando pelo menos um bem jurídico – propriedade – cuja possibilidade de defesa não está afastada pela ordem jurídica. Houve, pois, nas circunstâncias, agressão efectiva a um bem susceptível de defesa e apenas o arguido poderia, nas circunstâncias (local isolado, sem luz, de noite), eliminar ou suster a agressão. XXII - E também se não pode dizer, como na decisão recorrida, que não está demonstrado o animus defendendi. Mesmo se não estivesse demonstrado, também não estaria demonstrado que se não verificava ou concorria também uma vontade de defesa. Porém, esta afirmação da decisão não constitui a declaração da prova de um facto, mas apenas uma conclusão retirada de um conjunto de factos. E factos que, na sua complexidade ambiental e contextual do conjunto, não permitem uma conclusão tão definitiva. A interpretação do foro íntimo através das manifestações factuais e comportamentais externas, que revelam uma situação objectiva de defesa, não pode excluir a vontade e a actuação de defesa, nem está provado qualquer facto que inequivocamente afaste e seja contrário ou contraditório com a vontade de defesa. XXIII - É certo que se provou que o arguido «actuou livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de disparar com a arma de fogo em causa, sobre uma pessoa humana, […] e de, assim, tirar-lhe a vida, bem sabendo que, à distância a que o fez, e face à zona para que disparou, quer o chumbo quer o zagalote eram meios idóneos a causar a morte». Mas, como é indiscutido, a vontade de defesa não é incompatível com outras conjugações de vontade. A vontade de defesa concorrerá, necessariamente, quando objectivamente se verifiquem os pressupostos de actuação e quando o agente actue no quadro desses pressupostos. A confluência ou a agregação de elementos de vontade e de outras finalidades não exclui a vontade de defesa. Não pode, pois, perante as circunstâncias objectivas provadas, ser afastado o animus defendendi. Mas a actuação com vontade de defesa depende dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Existindo o conhecimento de uma situação objectiva de legítima defesa, não tem sentido a exigência adicional, como se fosse autónoma, de uma co-motivação de defesa. XXIV - Mas, para ser legítima, a defesa tem de ser necessária. A necessidade liga-se ao próprio fundamento teleológico da causa de exclusão da ilicitude – não ceder perante o ilícito; não será necessária quando, por exemplo, se verifica uma «crassa desproporção» entre a natureza, qualidade ou intensidade da agressão e a gravidade das consequências da reacção. Agressões irrelevantes não poderão ser repelidas causando a morte; não pode existir, analisada caso a caso, uma desproporção intolerável entre a natureza da agressão e a gravidade das consequências da reacção. Mesmo sendo necessária, a defesa legítima exige que se verifique uma adequação dos meios usados para repelir a agressão ou afastar a iminência da agressão. O art. 33.º, n.º 1, do CP determina directamente que o excesso intensivo dos meios de reacção não afasta a ilicitude. XXV - Voltando às circunstâncias do caso, pode dizer-se que, verificado o pressuposto de «agressão» (ou, melhor, a actualidade da agressão), os factos provados revelam uma desproporção entre a leitura objectiva do comportamento da vítima e a natureza e a intensidade da reacção do recorrente. Existe, nesta relação, em termos objectivos de verificação ex post, afectação do critério e do pressuposto da necessidade do meio pelo excesso intensivo da reacção, que produziu as mais gravosas consequências para a vítima, quando, certamente, outros modos de reacção menos intensos seriam objectivamente adequados à finalidade de suster ou eliminar a agressão, que nas circunstâncias estava preliminarmente limitada a bens patrimoniais. Por isso, a ilicitude da actuação do recorrente permanece, integrando os factos um crime de homicídio por excesso de legítima defesa. XXVI - Interpretando e conjugando congruentemente os factos na “imagem global”, o que emerge é uma situação em que, objectivamente, concorre (ou não pode ser excluído) um dos pressupostos da legítima defesa (o primeiro na ordem de construção do conceito – uma agressão), sem todavia concorrerem outros pressupostos, como seja a necessidade do meio. Isto é, uma situação que não pode ser considerada como excludente da ilicitude com base na legítima defesa por desproporção entre a agressão e a intensidade e as consequências da reacção. A desproporção (excesso extensivo) ou o excesso de meios (excesso intensivo) não retiram a ilicitude do facto do recorrente, que tem, por isso, em consequência, de ser integrado como crime de homicídio. XXVII - O excesso de legítima defesa tem um regime de punição específico no art. 33.º, n.ºs 1 e 2, do CP: se houver excesso dos meios empregados em legitima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada, não sendo o agente punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis. As circunstâncias do caso, especialmente pelos factos não provados – embora alguns dos factos não provados relativamente ao estado de espírito do arguido, aparentem em alguma medida, uma contraditoriedade com as regras da experiência – não são de modo a apontar para a hipótese de demonstração de perturbação ou medo não censuráveis. O arguido, com efeito, mesmo na situação objectiva de defesa, tinha por si a vantagem resultante da prioridade do avistamento, com melhor possibilidade de domínio da situação. A perturbação ou medo que sentisse não poderia nunca determinar uma reacção desproporcionada e, por isso, o excesso intensivo é censurável. XXVIII - Mas, como dispõe o n.º 1 do art. 33.º, a pena pode ser especialmente atenuada, desde que, obviamente, haja uma fundamentação consistente da situação objectiva de defesa, e a reacção, embora em excesso e desproporção, não seja manifestamente afastada de toda a carga própria das interacções de acção-reacção entre o ataque a um bem e as circunstâncias em que decorre. Os factos provados, a especificidade do lugar e do espaço, os antecedentes, a reacção e a verificação ex post das intenções da vítima, que dão consistência às formulações subjectivas do arguido no contexto, são bastantes para considerar adequada a atenuação especial com fundamento no disposto no art. 33.º, n.º 1, do CP. E, por este fundamento, considera-se justa e adequada a pena de 7 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo tribunal do júri ao arguido, pela prática do crime de homicídio. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. O MP acusou o arguido AA, casado, reformado, nascido a 25/3/1934, em ..., filho de ...e de ..., residente no Bairro da Suécia, em Macedo de Cavaleiros, sem mais processos pendentes declarados, imputando-lhe a prática, em concurso real, de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 1310 do C. Penal, e de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 86°/1-c) por referência ao art. 3º/3 da Lei 5/2006 de 23/2 na redacção introduzida pela Lei 17/2009 de 6/5. * Pela assistente BB foi deduzido pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento de uma indemnização no montante global de 384.000,00 € acrescido de juros de mora legais desde a notificação até integral e efectivo pagamento. 2. Na sequência do julgamento, o tribunal do júri Condenar o arguido, AA, pela prática de um crime de homicídio simples, na forma consumada, p. e p. pelo art. 131°/1 do C. Penal, agravado pelo art. 86°/3 e 4 da Lei 5/2006 de 23/2, na redacção da Lei 17/2009 de 6/5, e com atenuação especial da pena, nos termos dos arts. 72° e 73° do C. Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. Condenar o mesmo arguido pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 86°/ l-c) da Lei 5/2006 de 23/2, na redacção da Lei 17/2009 de 6/5, na pena de 1 (um) ano e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, e nos termos do art. 77° C. Penal, condenar o arguido AA na pena única de 8 (oito) anos de prisão. Julgou o pedido de indemnização parcialmente procedente e provado e, consequentemente, condenar o arguido/demandado AA a pagar à assistente/ demandante BB a quantia de 30.000,00 € (trinta mil euros) acrescida de juros de mora à taxa de 4% a contar da data do presente acórdão. 3. O arguido AA interpôs recursos interlocutórios dos despachos de 22.03.2010 (cfr. fls. 560 a 561) e de 05.05.2010 (cfr. fls. 669 a 670), em 09.04.2010 e 21.05.2010, que fundamentou nas motivações de fls. 614 a 626 e 680 a 690, admitidos (cfr. fls. 741 e 801 a 802), por despachos de 18.06.2010 e 07.09.2010, e a que o Ministério Público respondeu nos termos constantes de fls. 637 a 639 e 769 a 771. 4. O magistrado do Ministério Público, não se conformando, recorre para o Supremo Tribunal da decisão final do tribunal do júri, invocando os fundamentos constantes da motivação que apresentou, e que termina com a formulação das seguintes conclusões: 1.ª - A atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar cobrindo os casos em que se verificam circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude ou a culpa ou as exigências de punição do facto e, por via disso, a merecerem um tratamento diferenciado da generalidade e normalidade dos casos, em vista dos quais foi estabelecida a moldura penal "normal"; 2ª - Para a generalidade dos casos, para os casos "normais", "vulgares" ou "comuns", "lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios", funcionando as circunstâncias do caso na determinação da medida da respectiva pena; 3ª - no caso não se verifica – nem o tribunal invocou - qualquer dos exemplos-padrão fornecidos pelo legislador no n.º 2 do art.º 72.º do Cod. Penal.; 4"- como se escreve a pag. 28 do Ac. recorrido – fls. 732 a "acção delituosa praticada (é) -extremamente grave" e o “grau de ilicitude" tem em conta que "(através dele foi posto em causa o bem supremo da vida com um tiro dado com arma de fogo, a menos de 20 m, sem aviso prévio) ": 5ª - as circunstâncias noite (que foi usada para a emboscada), intrusão em prédio rústico vedado (exacerbação negativa dos sentimentos mais individualistas e de vindicata), enorme desproporcionalidade dos bens e um só tiro (não foi necessário mais nenhum porque a vítima foi logo mortalmente atingida), evidenciando sentimentos e reacções primárias até exasperam a ilicitude; 6ª- como se escreve na pag. 28 (fls. 732 do proc.) na douta decisão recorrida, o arguido agiu com "dolo directo (e nessa medida intenso)" sendo a culpa até muito elevada pois que dos factos resulta que o arguido agiu com insídia, traiçoeiramente: 7ª - serem "os graus de ilicitude e de culpa mitigados" não quer dizer que sejam acentuadamente diminuídos e consequentemente não preenchem os pressupostos da atenuação especial da pena; 8ª - a)- 75 anos não é uma idade muito avançada; b)- além disso a idade avançada não implica, sem mais, a atenuação especial da punição; c)- o que é especialmente válido naquele tipo de crime -como é o homicídio- mais comummente cometido pelas pessoas dessa faixa etária. d)- pelo que nestes casos é de dar especial enfoque às necessidades ele prevenção geral. 9ª- as circunstâncias invocadas pelo tribunal estão muito longe de se poderem considerar extraordinárias ou excepcionais. 10ª- no caso, estamos perante um caso tipicamente normal ou comum. 11ª - por isso, a punição do arguido pelo cometimento do homicídio agravado (pelo uso da arma) deve fazer-se na moldura do art. 131.° n.º 1 com a agravação imposta pelo art. 86.º n.º 3 da Lei das armas: 1.21- parecendo-nos justa e adequada a pena de 14 anos de prisão. IV- Normas Jurídicas Violadas: 1- com a interpretação aplicada, o tribunal, tal como se expôs, violou o disposto no art. 72.º do Cod. Penal. V- Pedido: Deve por isso ser parcialmente revogado e substituído por outro que condene o arguido pelo crime de homicídio agravado sem atenuação especial da pena. O arguido respondeu à motivação 5. No Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP. Suscita a questão prévia relativa ao conhecimento dos recursos interlocutórios do arguido, que a sequência processual tornou «inadmissíveis», pronunciando-se pela rejeição - art. 420º, nº 1, al. b) do C.P.P. Sobre o objecto do recurso do Ministério Público, entende que «se as especificidades do caso concreto se revelam de molde a esbaterem um tanto a culpa do agente, […] não se representam porém suficientes para fazer accionar o mecanismo da atenuação extraordinária da pena e muito menos com a dimensão dada pelo tribunal recorrido», e «ainda que se admita que […] a ilicitude do facto […] e a culpa com que agiu o seu autor possam mostrar-se mitigadas, verdade é que uma e outra não se representam acentuadamente diminuídas, como é mister suceder em face do que estatui o nº 1 do art. 72º do C.Penal». «Na realidade», acrescenta, «mesmo que se considere que o condicionalismo que rodeou a prática do dito facto típico (tal seja o atinente: à intrusão, a coberto da noite, da vítima na propriedade vedada que, pertença do arguido, fora recentemente alvo de desacatos que lhe ocasionaram prejuízos; ao isolamento do local […] é de molde a, esbatendo de alguma sorte a ilicitude do facto ou a culpa do agente, influir na medida concreta da pena a determinar no âmbito da moldura penal abstracta pensada pelo legislador para o tipo legal em causa, o mesmo condicionalismo não justifica de todo em todo o uso do mecanismo de atenuação extraordinária da pena». Notificado para os termos do artigo 417º, nº 2 do CPP, o arguido nada disse. 6. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir. 7. O tribunal do júri considerou provados os seguintes factos: A) Factos provados: 1. O arguido é proprietário de um prédio rústico, com a área de pelo menos 7886 m2, que destina ao cultivo de produtos agrícolas, designadamente, hortícolas, sito no lugar de Ribeirinha, freguesia de Vale de Prados, em Macedo de Cavaleiros. 2. No referido prédio, encontra-se implantado, há cerca de 7 anos, um armazém para alfaias e produtos agrícolas, sem instalação eléctrica, e onde o arguido, nas alturas de maior calor (inícios de Junho a Setembro), pernoitava bastantes vezes, para de manhã muito cedo iniciar os trabalhos de cultivo e de rega. Na parte poente/norte está construído, há uns 6 anos, um pequeno edifício que serve de loja para o cavalo do arguido, ficando junto do mesmo a casota do cão. O prédio é todo murado, com um portão principal que dá acesso a uma rodeira em terra batida e em mau estado, c outro mais pequeno, ambos em ferro, e com um muro em pedra sobreposta em todo o seu perímetro, em média com cerca de 1,20 m de altura, encimado com rede e fiadas de arame farpado, que vedam o prédio numa altura média de 1,80 a 2,30 m, e não é atravessado por qualquer caminho público, sendo de bastante difícil acesso; por causa disso, demora-se algum tempo até lá chegar, quer para quem venha da EN quer para quem venha das casas mais próximas. O prédio situa-se a cerca de 150 m da EN Macedo-Pontão de Lamas, distando as casas mais próximas a pelo menos 100 m. De noite, o local é muito mal iluminado, mercê da distância a que se encontra das luzes da EN, beneficiando apenas da luminosidade que possa ser dada pelo luar. 3. Nos meses que antecederam a data referida em 4), mais concretamente nos meses de Março e Abril de 2009, pessoa não identificada, por diversas vezes e contra a vontade do arguido, havia-lhe colocado herbicida na horta. No dia 28 de Junho de 2009, havia-lhe sido cortado, contra a sua vontade, parte do arame farpado que cobria o muro do seu prédio. 4. No dia 29 de Junho de 2009, depois das 22 h 30 e antes das 23 h, o arguido dormia no interior do referido armazém. Nesse dia, a lua estava em quarto crescente, e, a essa hora, reflectia ainda alguma luminosidade. O arguido foi acordado pelo latido do seu cão, que estava preso, levantou-se, observou-o e, como este não parasse de ladrar e arremessar em direcção à horta, desconfiou que alguém tivesse entrado no prédio, mais concretamente, que fosse a mesma pessoa que tinha andado a praticar os factos referidos em 3). 5. Então, o arguido agarrou na espingarda caçadeira calibre 12, marca G. Marco, de tiro a tiro, de canos paralelos e lisos com o comprimento de 70 cms, com o n° de série 14162, que se encontrava guardada por trás de uma parede divisória do referido armazém, e em dois cartuchos. Tais cartuchos eram carregados com zagalotes e estavam guardados, entre outros cartuchos de zagalotes e de chumbo, numa caixa de papelão. O arguido tinha comprado a caçadeira há mais de 30 anos (em 1978) e os cartuchos há uns 10 anos. 6. O arguido, mercê da escuridão, não sabia se tinha pegado em cartuchos de chumbo ou se de zagalote, conformando-se, no entanto, com qualquer das duas possibilidades. 7. Com a arma na mão, saiu para o exterior, descendo, devagar, pela sua propriedade através de um carreirão, delimitado por um lado por uma latada sustentada por pilares e encostada a um muro, passo junto à horta, onde nada viu de anormal, e por baixo do canal de rega, e carregou a arma com os dois cartuchos Depois de ter percorrido cerca de 105 m, o arguido dobrou a esquina do muro, e estacou junto a um pilar de cimento onde terminava a latada, e, aí, a cerca de 40 m, pareceu-lhe avistar um vulto em movimento. 8. Acto contínuo, o arguido amarrou-se ligeiramente, de forma a ficar encoberto pela ramada, e observou o vulto, fazendo pontaria com a caçadeira. 9. Com a aproximação do vulto, o arguido percebeu então que se tratava efectivamente de uma pessoa que caminhava em direcção à horta (e ao local onde ele se encontrava) e que trazia na mão esquerda um pau, pelo que se convenceu que se tratava da mesma pessoa que havia praticado os factos referidos em 3), e que vinha outras vez invadir o seu prédio, quando na verdade era CC. Então, o arguido, a uma distância de cerca de 18,30 m, sempre a fazer pontaria, decidiu premir o gatilho e disparou um tiro para a zona direita do tórax daquela pessoa, vindo a, efectivamente, atingi-la nessa zona, tendo aquela tombado para trás. 10. Em consequência do disparo, CC sofreu na zona do tórax: fractura do bordo interior da segunda costela à direita; fractura do terceiro e quarto arcos costais anteriores à direita; fractura do quinto e sétimo arcos costais posteriores direitos nas paredes; contusão hemorrágica da face externa à direita; no pericárdio e cavidade pericárdica, laceração dos lobos superior, médio e parte do lobo inferior, com vários fragmentos ósseos, correspondentes às fracturas das costelas atrás referidas no coração; na zona da coluna vertebral, fractura do corpo da D5, ao nível da face lateral direita; tais lesões toracopulmonares determinaram-lhe, directa e necessariamente, a morte. 11. Depois de ter disparado, o arguido ficou onde estava, durante mais algum tempo, para verificar se a vitima tinha efectivamente sido atingida e se se mexia. Depois, regressou ao armazém, muniu-se de uma lanterna, que aí tinha, regressou ao local do disparo, e aproximou-se do corpo da vítima, até uma distância de 6 a 7 m, e iluminou o cadáver. Então, e só então, apercebeu-se que a vítima tinha a cara tapada com um gorro artesanal, apenas com orifícios que lhe desobstruíam os olhos e a boca, tapando-lhe também o cabelo e a cabeça, reforçado por um boné preto, e que à cinta, no lado direito, num coldre preto preso a um cinto de cabedal castanho, trazia uma pistola. A pistola era de marca FN Browning, de calibre 9 mm, carregada com 13 munições e em condições de disparar e com uma bala na câmara. Além disso, a vítima trazia ainda um outro carregador, com mais 13 munições, acondicionado num porta-carregador preso ao cinto, do lado esquerdo, e, à cinta uma chave de fendas com 26,5 cm de comprimento e um alicate de pressão, objectos estes vulgarmente utilizados em furtos a residências, e, no bolso lateral esquerdo, tinha umas luvas azuis escuras e uma lanterna a que tinha acoplada uma lâmpada suplente. A vítima tinha entrado propositadamente no prédio do arguido, como forma de aceder sem dar nas vistas à (s) casa (s) referida (s) em 2) a fim de a (s) assaltar. 12. Após, o arguido dirigiu-se para casa, onde pediu à mulher e filha para telefonarem à GN R, à qual se entregou voluntariamente logo nessa noite, tendo conduzido os agentes ao prédio, entregue a arma e munições, indicado o local do disparo e o local onde se encontrava a vítima. 13. A colaboração do arguido com a G N R teve relevo para a descoberta da verdade. 14. A arma caçadeira encontrava-se manifestada e registada em nome do arguido, e pertencia-lhe Todavia, o arguido não era titular de licença de uso e porte de arma, sendo apenas titular de autorização de detenção da arma no domicílio, sito no Bairro da Suécia, Macedo de Cavaleiros. 15. O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de disparar com a arma de fogo em causa, que tinha levado para o armazém sem para tal possuir a necessária licença de uso e porte, sobre uma pessoa humana, e, de, assim, tirar-lhe a vida, bem sabendo que, à distância a que o fez, e face à zona para que disparou, quer o chumbo quer o zagalote eram meios idóneos a causar a morte. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. 16. A vítima, CC, tinha 57 anos á data da sua morte. Tinha sido militar da GNR (estava desligado da Guarda) e era de porte atlético. Era dono dos seguintes imóveis, da freguesia de Pinhel: duas terras e uma casa, esta com o valor patrimonial de 14.421,25 €. Para além disso, tinha vários outros prédios titulados em seu nome na matriz. 17. O arguido é pessoa tida por muito trabalhadora e respeitadora, sendo estimado e mostrando-se socialmente muito bem integrada. É de modesta condição económica, retirando os seus rendimentos da exploração da horta, cujos produtos vendia no mercado. Nutre forte relação telúrica com o prédio em causa, único que possui. 18. Não tem antecedentes criminais. B) Factos não provados: Não se provaram quaisquer outros factos, com relevo (e apenas esses), e, nomeadamente, que, - o arguido apenas avistou um vulto em movimento a uma distância cerca de 18,30 m: - a vítima fosse educado e apesar de reformado continuava a trabalhar na construção civil, executando pequenas obras; - a vítima era estimada e amada pelos seus familiares, vivendo com a mulher; - a vítima recebia uma pensão de 200 €, e tinha ainda um rendimento de 500 € de um arrendamento de um café e auferia ainda rendimentos do seu trabalho; - a demandante sofreu, e sofre, profunda dor, angústia, desespero e desgosto com a morte do marido, chorando-o e recordando-o permanentemente; - passou a isolar-se em casa; - também os dois filhos da vítima sofreram enorme dor e desgosto com a morte do pai, ficaram chocados e chorosos, tendo sofrido alterações de comportamento, passando a ser pessoas mais nervosas, com perturbações ao nível do sono, o que se reflecte nas suas ocupações profissionais, circunstâncias que aumentaram o sofrimento e desespero da demandante; - o cão do arguido fosse pequeno: - no dia dos factos, numa faixa, de poente para nascente, com uma largura de 10 a 15 m, iniciando-se a sul da casota do cão e em direcção ao muro de vedação a nascente, existia boa claridade, sendo fácil reconhecer animais e pessoas; - o local, de noite, era medonho, mesmo para o arguido; - quem gritasse por socorro, no local e de noite, não seria ouvido; - o falecido tinha antecedentes relacionados com furtos, sendo conotado pela polícia como gatuno; - ao ouvir o cão ladrar, o arguido pensou que poderia ter entrado no prédio algum cão, lobo ou javali, que andasse pela horta a comer e a estragar colheitas; - não pegava nos cartuchos havia 7/8 anos e guardava a arma e munições no armazém, durante o período referido em 2), para a sua defesa. - o arguido ia com muito medo; - ao perceber que o vulto era o de uma pessoa, o arguido ficou apavorado, tremendo como varas verdes; - pensou logo que quem caminhava naquele local e àquela hora, só podia vir armado, pelo que tinha de recear pela sua integridade física e vida; - disse em voz alta para a pessoa "Alto aí! Quem vem lá'?" e o vulto nada respondeu e pareceu estacar, mas passados alguns segundos, continuou a caminhar, muito devagar, balançando o corpo para a esquerda e para a direita como quem anda à procura de quem falou; - de repente, incidiu sobre o local onde estava o vulto e sobre este uma espécie de feixe de luz, que o iluminou durante breves instantes; - quando a pessoa já estava menos iluminada, o intruso fez um movimento com o corpo, parecendo-lhe que puxava a mão direita para trás, e, face a tal gesto, o arguido pensou que a pessoa tinha efectivamente uma arma e que iria disparar sobre ele, pelo que disparou imediatamente, sem fazer pontaria, mas puxando o cano da arma mais para a sua esquerda, a fim de tentar acertar apenas no membro superior direito da vítima; - não se aproximou mais do que 6/7 m do corpo por lhe ter faltado coragem para tal; - ficou convencido que o ser humano, que atingira, podia estar apenas inconsciente mas ainda com vida; - chegou a casa apavorado e a tremer convulsivamente; - ao disparar contra aquela pessoa, o arguido não tinha intenção de a matar, mas apenas de a atingir na sua integridade física, ao nível do membro superior direito, para impedir, visto não pode recorrer à ajuda da autoridade ou de terceiros, que o intruso o atingisse. -desconhecia que não podia guardar a espingarda e os cartuchos no seu armazém. 8. Recursos interlocutórios do arguido: O arguido AA não interpôs recurso da decisão final e também não cumpriu a imposição processual prevista no nº 5 do art. 412º do C.P.P., aplicável, ex vi do art. 413º, nº 4 do CPP, no que diz respeito aos recursos interlocutórios interpostos. Tais recursos foram admitidos com efeito devolutivo e para subir a final e nos próprios autos, isto é, com o recurso que porventura viesse a ser interposto da decisão final (nº 3 do art. 407º do C.P.P.). Assim, o recurso interlocutório admitido para subir diferidamente exige, para poder ser conhecido, que o recorrente interponha recurso da decisão final, ou que dê cumprimento ao preceituado no art. 412º, nº 5 do C.P.P. (aplicável “ex vi” do art. 413º, nº 4 do mesmo diploma). Como refere a Exmª Procuradora-Geral, «o arguido AA não fez nem uma coisa nem outra, certo sendo que relativamente à segunda opção, dependendo ela do âmbito do objecto do recurso interposto da decisão final, limitado que foi o mesmo pelo recorrente à questão de direito que se prende com a medida da pena», «quer um quer outro dos recursos interlocutórios ficaram carecidos de qualquer interesse face ao seu próprio objecto, limitado a uma questão apenas referida à matéria de facto» que, no caso, e pelo âmbito do recurso do Ministério Público, se encontra definitivamente fixada. Rejeitam-se, consequentemente, os recursos interlocutório do arguido - art. 420º, nº 1, al. b) do C.P.P. 9. Recurso do Ministério Público: A discordância do Exmº Magistrado está centrada no uso que o tribunal fez da atenuação especial da pena, prevista no artigo 72º do Código Penal, argumentando que os pressupostos da atenuação não concorrem nas circunstâncias do caso. Para as situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do artigo 72º do Código Penal. Com efeito, quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade, especialmente para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo. Para resolver situações em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida» e em que mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição em situações em que ocorram circunstâncias que «diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva», impõe-se, em consequência, que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a tais casos ou situações especiais (cfr., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1990, p. 302). A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artigo 72º do Código Penal. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena – artigo 72º, nº 1. O nº 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção. Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção. Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JOGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, p. 306; e v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 18/Out/2001, proc. 2137/01, de 30/Out/2003, in CJ (STJ), ano XI, de 12/3/2009, proc. nº 3781/08, e de 27/5/2010, proc.nº 6/09.4JAGDR). No entanto, quando estiverem verificados os pressupostos materiais, a atenuação especial («o tribunal atenua») é uma consequência jurídica que o tribunal deve declarar. A atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas. A atenuação especial da pena constitui, pois, um instrumento de correcção ou de reordenamento de proporcionalidade na construção da moldura (e da medida) da pena, nos caos em que os limites normais da moldura do respectivo tipo não permitiria a escolha de uma pena concretamente adequada. O afastamento crítico entre as circunstâncias normais do modelo e da moldura do tipo e as circunstâncias específicas que coloquem determinado caso fora desse modelo pode resultar, quer da concorrência de um conjunto de factores integráveis nos pressupostos definidos através de cláusulas gerais no artigo 72º do Código Penal, quer de situações directamente previstas como construções autónomas na lei, nas quais a atenuação especial constitui, no rigor, não mais do que um critério de determinação da moldura da atenuação por aplicação do artigo 73º do Código Penal. São os casos, v. g., das penas no direito penal de jovens adultos (Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro – artigo 4º «se for aplicável pena de prisão»), da pena na tentativa (artigo 23º, nº 2 do Código Penal) e da pena no excesso de legítima defesa censurável (artigo 33º, nº 1 do Código Penal). 10. A decisão do tribunal do júri fundamentou a opção pela atenuação especial da pena no âmbito material das circunstâncias enunciadas no artigo 72º do Código Penal, por ter considerado que «os graus de ilicitude e da culpa surgiram mitigados» («factos ocorridos de noite, dentro de prédio fortemente vedado e por isso não livremente acessível ao público, após múltiplas incursões que causaram estragos na horta»), e que a idade do arguido (75 anos) - «muito avançada» na avaliação do tribunal – faria esbater as necessidade de prevenção e da pena. A idade do arguido foi considerada como «factor a ter em grande conta no momento de ponderação sobre a possibilidade de atenuar especialmente a pena». Haverá que reconhecer, porém, que, nesta perspectiva, a decisão recorrida acolheu um método porventura redutor, e por este modo de abordagem, como salienta a Senhora Procuradora-Geral, «o condicionalismo que rodeou a prática do facto típico», «esbatendo de alguma sorte a ilicitude do facto ou a culpa do agente», poderia «influir na medida concreta da pena a determinar no âmbito da moldura penal abstracta pensada pelo legislador para o tipo legal em causa», mas «o mesmo condicionalismo» não justificaria «de todo o uso do mecanismo de atenuação extraordinária da pena». A escolha metodológica e a consequente fundamentação da decisão do tribunal de júri não permitiriam a conclusão a que chegou, pois tal enquadramento dificilmente suportaria, no âmbito do artigo 72º, nºs. 1 e 2 do Código Penal, a qualificação de «extraordinário ou excepcional», com «diminuição de forma acentuada da ilicitude do facto, da culpa ou da necessidade da pena». Mas a complexidade global dos factos e a interpretação do contexto factual segundo a razão das coisas e da vida – quase a natureza das coisas – e das regras da experiência interpretadas pelo homem comum, podem permitir uma outra abordagem, e diferentes método de análise, compreensão e decisão no quadro dogmático de outras categorias do direito penal. Perante a complexidade factual que julgou provada, o tribunal a quo afastou a legitima defesa invocada pelo arguido e, consequentemente, qualquer perspectiva da ilicitude e da culpa a ponderar no âmbito hipotético do excesso de legítima defesa. E afastou os pressupostos primeiros da legítima defesa por considerar que «é por demais evidente e desde logo não existe qualquer agressão actual ou mesmo iminente, pois não se provou que a vítima, no momento da prática do facto pelo arguido, o estivesse a agredir ou fosse agredir – designadamente que fosse disparar, sendo particularmente de relevar que, pese armado, nunca sacou da arma ou fez sequer menção de o fazer». A decisão considerou que «também não se demonstrou o animus defendendi». Este juízo revela-se de algum modo redutor, quando se compreendam e interpretem os factos contextualmente para além da soma material dos factos singulares e parcelares, e se avalie o conjunto, os antecedentes, a ambiência, a sequência e a dinâmica pelo feixe poliédrico das regras da experiência da vida e das coisas, interpretadas pelo sentido do homem comum colocado nas circunstâncias do arguido. Diz-se em legítima defesa - artigo 32 do Código Penal - o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro; a legítima defesa afasta a ilicitude do facto. A ideia básica subjacente à legítima defesa está contida na afirmação de que o direito não tem de retroceder face ao injusto, entendida a afirmação e as suas consequências nem certo sentido de adequação social. A aceitação pelo direito da auto-defesa pode compreender-se numa perspectiva jurídico-individual como o direito de auto-afirmação do indivíduo através da defesa da sua própria pessoa perante um ataque antijurídico de outrem, mas também numa perspectiva ou ponto de vista jurídico-social, de acordo com o princípio de que o direito não deve ceder perante o injusto. A faculdade de auto-protecção e a ideia de afirmação do direito servem de fundamento à configuração da legítima defesa nas construções dogmáticas modernas, reflectidas nas definições sedimentadas e acolhidas nos códigos, embora mais centradas na perspectiva jurídico-individual - protecção de bens jurídicos individuais do agente do comportamento defensivo ou de terceiro (cfr, HANS-HEINRICH JESCHECK e THOMAS WEIGEND, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, trad. da 5ª edição, 2002, p. 359 ss.). Segundo a definição clássica de legítima defesa - acção necessária para repelir por si mesmo um ataque actual e antijurídico, que essencialmente vem aceite no artigo 32º do Código Penal - a situação de defesa pressupõe e tem de ser desencadeada por uma agressão actual e ilícita contra o agente ou terceiro, afectando bem jurídico susceptível de ser protegido através de defesa. Deve, pois, existir uma agressão, que significa toda a lesão ou a iminência de lesão (perigo imediato) de um interesse juridicamente protegido do agente ou de terceiro, desde que o comportamento do agressor se apresente com um mínimo de causalidade de acção. Mas agressão actual. Para efeito de integração do pressupostos da situação de legítima defesa a agressão é actual quando está em execução ou quando está iminente, porque o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado; a agressão está iminente quando, embora ainda não iniciada numa aproximação analógica aos elementos da tentativa, se deva seguir imediatamente segundo a leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente. A iminência da agressão estará presente nas situações em que se saiba antecipadamente, com certeza ou com elevado grau de probabilidade, que terá lugar. A situação de legítima defesa começa logo que exista um perigo de agressão, com carácter imediato, que ameace um interesse protegido. Mas, para determinar a iminência ou a actualidade é decisivo o prognóstico objectivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjectiva deste. A mera intenção, sem ser exteriormente accionada, não constitui iminência de agressão. (cfr., v. g., FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª edição, p. 411 e 412; HANS-HEINRICH JESCHECK e THOMAS WEIGEND, cit. p. 366). A iminência da agressão, com alguma analogia com o começo da tentativa, ocorrerá quando a ameaça de ofensa é mais do que uma intenção, mas se pode transformar imediatamente numa lesão; e estrita fase final e exteriorizada de um acto preparatório, imediatamente prévia ao começo da tentativa, pode ser o início de uma conduta que dentro de um processo histórico único dará lugar à agressão; por em prática ou manifestar externamente a vontade de lesão de um bem jurídico: v. g., um movimento agressivo com a mão ou um gesto com significado e interpretação factual semelhante (Cfr. CLAUS ROXIN, “Derecho Penal, Parte General”, Tomo I, “Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito”, p. 619-621). Por outro lado, é susceptível de legítima defesa qualquer interesse juridicamente protegido; a agressão deve ser antijurídica (todo o ataque que objectivamente infrinja o ordenamento jurídico), e actual, no sentido em que a agressão está iminente, a acontecer, a ter lugar no próprio momento ou persista em sequência. Na consideração da actualidade da agressão, o que releva e será decisivo é o prognóstico objectivo de uma pessoa experimentada colocada na situação do agredido e não a representação subjectiva deste; a intenção de agredir que se não revele externamente não constitui agressão susceptível de integrar os pressupostos da legítima defesa (cfr. idem, p. 366-7). Perante uma agressão actual e antijurídica pode ter lugar a defesa necessária. A legítima defesa, como defesa necessária, supõe, porém, uma vontade de defesa, mas não no sentido de exclusão: desde que exista vontade de defesa, podem concorrer, para além desta, outros motivos (v. g., ódio, indignação, vingança), mas com tratamento específico quando, perante o animus deffendendi, sobrelevem a necessidade de defesa. A necessidade (artigo 32º do Código Penal: “meio necessário”) da acção defensiva para repelir o ataque constitui, assim, um pressuposto da situação de legítima defesa. Mas necessidade da acção defensiva, e não, porque o plano de consideração já é logicamente posterior, adequação estrita do meio concretamente empregue na acção defensiva. A exigência da necessidade que qualifica os meios de defesa admissíveis traduz-se na escolha do meio menos gravoso para o agressor, de acordo com o juízo do momento, mas com natureza ex ante, avaliando objectivamente toda a dinâmica do acontecimento. A acção defensiva necessária é a que é idónea para a defesa, e constitua o meio menos prejudicial para o agressor. A avaliação da necessidade depende do conjunto de circunstâncias nas quais ocorre a agressão e a reacção, especialmente a intensidade do concreto meio ofensivo e da ofensa, as características pessoais do agressor em contraposição com as características pessoais do defendente (idade, compleição, experiência em situações de confronto, perigosidade e o modo de actuação) bem como dos meios disponíveis para a defesa, e deve valorar-se sob uma perspectiva objectiva, isto é, tal como um homem médio colocado na posição do agredido teria valorado as circunstâncias da agressão. A necessidade da acção defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para afastar e repelir eficazmente a agressão - princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos; por isso, quem defende deve escolher de entre os meios eficazes de defesa que estejam, em concreto, à sua disposição, aquele que resulte menos perigoso e que cause menor dano. A ponderação da necessidade (menor lesividade) tem, porém, de ser compreendida nas circunstâncias do caso: a defesa pode ser intensa para fazer terminar rápida e completamente a agressão ou a eliminação do perigo, não sendo exigível que o agredido apenas utilize tímidos intentos de defesa que podem fazer correr o risco de continuação ou de intensificação da agressão. A interpretação da exigência de “necessidade” deve conduzir ao resultado politico-criminalmente desejável de que os erros objectivamente insuperáveis sobre a necessidade do meio defensivo sejam tomados em prejuízo do agressor. Na ponderação sobre a necessidade dos meios não deve, porém, entrar-se em linha de conta com a possibilidade de fuga; escapar não é repelir a agressão (cfr. FIGUEIREDO DIAS, cit., p. 419; CLAUS ROXIN, cit., p. 631-633). A necessidade e o exame sobre a necessidade surgem, porém, como se referiu, ex ante, e não supõem uma ponderação de proporcionalidade dos bens jurídicos implicados. É esta a posição maioritária na doutrina nacional, que nos últimos cinquenta anos não parece atender ou considerar a exigência de proporcionalidade dos bens, fundamentando-se, para tanto, no princípio de que «o direito não tem que ceder ao ilícito» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, cit., p. 428; AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO, «A Legítima Defesa», 1995, págs. 423-424; e sobre as diversas posições na questão, TERESA QUINTELA DE BRITO, «Homicídio justificado em legítima defesa e em estado de necessidade», in “Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, vol. I, p. 185, ss.). O uso de um meio não necessário constitui excesso de meios ou excesso intensivo que não exclui a ilicitude do facto defensivo – artigo 33º do Código Penal. A proporcionalidade, não de bens como fundamento objectivo de justificação da legítima defesa, mas como critério e medida dos limites da necessidade e da intensidade da defesa, que não afaste a ilicitude e a culpa nos casos de excesso (intensivo ou extensivo), respeita ainda a relação que o artigo 2º, nº 2, alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem parece estabelecer nos (aparentes) limites da licitude da defesa que cause a lesão do bem vida – se não estiver em causa a defesa relativa a «violência ilegal» «contra uma pessoa». 12. Retomem-se os factos: O arguido, proprietário de um terreno agrícola de certa dimensão, cuidado, vedado, murado e com portões - logo, não acessível – onde cultivava produtos hortícolas, verificou que nos meses de Março e Abril de 2009, pessoa não identificada por «várias vezes» colocou herbicida na horta – pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto (e é facto comum e notório o resultado da aplicação de herbicida em produtos hortícolas cultivados). Em 28 de Junho de 2009 alguém cortou parte do arame farpado que cobria o muro do prédio – ponto 3 da matéria de facto. No dia 29 de Junho de 2009, o arguido, que pernoitava, como por vezes fazia nos meses de verão, no interior de uma construção que existia no prédio, foi acordado pelo latido do seu cão, que estava preso, e como este não parasse de ladrar e arremessar em direcção à horta, desconfiou que alguém tivesse entrado no prédio» - ponto 4 da matéria de facto. O arguido agarrou numa espingarda caçadeira que se encontrava guardada por trás de uma parede divisória da construção onde pernoitava, e em dois cartuchos, tinha adquirido a caçadeira há mais de 30 anos (em 1978) e os cartuchos há uns 10 anos – ponto 5 da matéria de facto. Com a arma na mão, saiu para o exterior, descendo, devagar, pela sua propriedade através de um carreirão, delimitado por um lado por uma latada sustentada por pilares e encostada a um muro, passou junto à horta, onde nada viu de anormal, e por baixo do canal de rega, e carregou a arma com os dois cartuchos. Depois de ter percorrido cerca de 105 m. o arguido dobrou a esquina do muro, e estacou junto a um pilar de cimento onde terminava a latada, e, aí, de 40 m. pareceu-lhe avistar um vulto em movimento – ponto 7 da matéria de facto. O arguido amarrou-se ligeiramente, de forma a ficar encoberto pela ramada, e observou o vulto, fazendo pontaria com a caçadeira – ponto 8. Com a aproximação do vulto, o arguido percebeu então que se tratava efectivamente de uma pessoa que caminhava em direcção à horta (e ao local onde ele se encontrava) e que trazia na mão esquerda um pau, pelo que se convenceu que se tratava da mesma pessoa que havia praticado os factos referidos [colocar herbicida e cortar o arame de vedação] e que vinha outra vez invadir o seu prédio – ponto 9. A uma distância de cerca de 18,30 m. sempre a fazer pontaria, o arguido decidiu premir o gatilho e disparou um tiro para a zona direita do tórax daquela pessoa, vindo a atingi-la nessa zona, causando-lhe lesões que determinaram a morte. – pontos 9 e 10. O arguido apercebeu-se, posteriormente à morte da vítima, que esta pessoa tinha a cara tapada com um gorro artesanal, apenas com orifícios que lhe desobstruíam os olhos e a boca, tapando-lhe também o cabelo e a cabeça, reforçado por um boné preto, e que à cinta, no lado direito, num coldre preto preso a um cinto de castanho, trazia uma pistola de marca FN Browning, de calibre 9 mm, carregada com 13 munições e em condições de disparar e com uma bala na câmara. Além disso, a vítima trazia ainda um outro carregador, com mais 13 munições acondicionado num porta-carregador preso ao cinto, do lado esquerdo, e à cinta uma chave de fendas com 26,5 cm de comprimento e um alicate de pressão, objectos estes vulgarmente utilizados em furtos a residências, e, no bolso lateral esquerdo, tinha umas luvas azuis escuras e uma lanterna a que tinha acoplada uma lâmpada suplente. A vítima tinha entrado propositadamente no prédio do arguido, como forma de aceder sem dar nas vistas a (s) casa (s) referida (s) em 2) a fim de a (s) assaltar – ponto 11 da matéria de facto. No ponto 15, o tribunal considerou provado que «O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de disparar com a arma de fogo em causa, sobre uma pessoa humana, […] e de, assim, tirar-lhe a vida, bem sabendo que à distância a que o fez, e face à zona para que disparou, quer o chumbo quero zagalote eram meios idóneos a causar a morte». Perante a reconstituição descrita na matéria de facto no que é directamente mais relevante, a interpretação mais plausível de acordo com o id quod como regra da experiência, essencial na compreensão das interacções pessoais dinâmicas no contexto da situação, e o sentido da apreensão das acções humanas, ex ante, segundo a perspectiva de um observador externo, aponta para não afastar tão directamente, como fez a decisão recorrida, uma interpretação menos restritiva sobre o bem jurídico em causa, em avaliação no âmbito da complexidade dos pressupostos e consequências de uma situação de legítima defesa. A interpretação dos factos provados de acordo com as regras da experiência não pode objectivamente excluir este sentido – que é, aliás, o mais plausível contextualmente, numa perspectiva contemporânea ex ante e exterior ao agente. Com efeito, a existência de uma agressão por parte da vítima é imediatamente apreensível. A vítima entrou, furtivamente, a hora tardia da noite, em propriedade vedada, munida de um instrumento visível que poderia servir como meio de agressão - um pau (para além de armada com uma arma de fogo, com carregador e com bala na câmara, pronta a disparo imediato), não obstante a presença e a reacção de alerta de um cão que se encontrava preso. A ameaça e o início da agressão eram, assim, efectivas, considerando pelo menos um bem jurídico – propriedade – cuja possibilidade de defesa não está afastada pela ordem jurídica. Houve, pois, nas circunstâncias, agressão efectiva a um bem susceptível de defesa e apenas o arguido poderia, nas circunstâncias (local isolado, sem luz, de noite), eliminar ou suster a agressão. E também se não pode dizer, como na decisão recorrida, que não está demonstrado o animus defendendi. Mesmo se não estivesse demonstrado, também não estaria demonstrado que se não verificava ou concorria também uma vontade de defesa. Porém, esta afirmação da decisão não constitui a declaração da prova de um facto, mas a apenas uma conclusão retirada de um conjunto de factos. E factos que, na sua complexidade ambiental e contextual do conjunto, não permitem uma conclusão tão definitiva. A interpretação do foro íntimo através das manifestações factuais e comportamentais externas, que revelam uma situação objectiva de defesa, não pode excluír a vontade e a actuação de defesa, nem está provado qualquer facto que inequivocamente afaste e seja contrário ou contraditório com a vontade de defesa. É certo que se provou que o arguido «actuou livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de disparar com a arma de fogo em causa, sobre uma pessoa humana, […] e de, assim, tirar-lhe a vida, bem sabendo que, à distância a que o fez, e face à zona para que disparou, quer o chumbo quero zagalote eram meios idóneos a causar a morte». Mas, como é indiscutido, a vontade de defesa não é incompatível com outras conjugações de vontade. A vontade de defesa concorrerá, necessariamente, quando objectivamente se verifiquem os pressupostos de actuação e quando o agente actue no quadro desses pressupostos. A confluência ou a agregação de elementos de vontade e de outras finalidades não exclui a vontade de defesa. Não pode, pois, perante as circunstâncias objectivas provadas, ser afastado o animus defendendi. Mas a actuação com vontade de defesa depende dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Existindo o conhecimento de uma situação objectiva de legítima defesa, não tem sentido a exigência adicional, como se fosse autónoma, de uma co-motivação de defesa (cfr. FIGUEIREDO DIAS, cit. p. 438 e ROXIN, cit. p. 667). Mas, para ser legítima, a defesa tem de ser necessária. A necessidade liga-se ao próprio fundamento teleológico da causa de exclusão da ilicitude – não ceder perante o ilícito; não será necessária quando, por exemplo, se verifica uma «crassa desproporção» entre a natureza, qualidade ou intensidade da agressão e a gravidade das consequências da reacção. Agressões irrelevantes não poderão ser repelidas causando a morte; não pode existir, analisada caso a caso, uma desproporção intolerável entre a natureza da agressão e a gravidade das consequências da reacção (cfr. FIGUEIREDO DIAS, cit., p. 430; CLAUS ROXIN, cit., p. 663). Mesmo sendo necessária, a defesa legítima exige que se verifique uma adequação dos meios usados para repelir a agressão ou afastar a iminência da agressão. O artigo 33º, nº 1 do Código Penal determina directamente que o excesso intensivo dos meios de reacção não afasta a ilicitude. 13. Voltando às circunstâncias do caso, pode dizer-se que, verificado o pressuposto de «agressão» (ou, melhor, a actualidade da agressão), os factos provados revelam uma desproporção entre a leitura objectiva do comportamento da vítima e a natureza e a intensidade da reacção do recorrente. Existe, nesta relação, em termos objectivos de verificação ex post, afectação do critério e do pressuposto da necessidade do meio pelo excesso intensivo da reacção, que produziu as mais gravosas consequências para a vítima, quando, certamente, outros modos de reacção menos intensos seriam objectivamente adequados à finalidade de suster ou a eliminar a agressão, que nas circunstâncias estava preliminarmente limitada a bens patrimoniais. Por isso, a ilicitude da actuação do recorrente permanece, integrando os factos um crime de homicídio por excesso de legítima defesa. Interpretando e conjugando congruentemente os factos na “imagem global”, o que emerge é uma situação em que, objectivamente, concorre (ou não pode ser excluído) um dos pressupostos da legítima defesa (o primeiro na ordem de construção do conceito – uma agressão), sem todavia concorrerem outros pressupostos, como seja a necessidade do meio. Isto é, uma situação que não pode ser considerada como excludente da ilicitude com base na legítima defesa por desproporção entre a agressão e a intensidade e as consequências da reacção. A desproporção (excesso extensivo) ou o excesso de meios (excesso intensivo) não retiram a ilicitude do facto do recorrente, que tem, por isso, em consequência, de ser integrado como crime de homicídio. 14. O excesso de legítima defesa tem um regime de punição específico no artigo 33º, nºs 1 e 2 do Código Penal: se houver excesso dos meios empregados em legitima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada, não sendo o agente punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis. As circunstâncias do caso, especialmente pelos factos não provados – embora alguns dos factos não provados relativamente ao estado de espírito do arguido, aparentem em alguma medida, uma contraditoriedade com as regras da experiência – não são de modo a apontar para a hipótese de demonstração de perturbação ou medo não censuráveis. O arguido, com efeito, mesmo na situação objectiva de defesa, tinha por si a vantagem resultante da prioridade do avistamento, com melhor possibilidade de domínio da situação. A perturbação ou medo que sentisse não poderia nunca determinar uma reacção desproporcionada e, por isso, o excesso intensivo é censurável. Mas, como dispõe o nº 1 do artigo 33 da norma, a pena pode ser especialmente atenuada, desde que, obviamente, haja uma fundamentação consistente da situação objectiva de defesa, e a reacção, embora em excesso e desproporção, não seja manifestamente afastada de toda a carga própria das interacções de acção-reacção entre o ataque a um bem e as circunstâncias em que decorre. Os factos provados, a especificidade do lugar e do espaço, os antecedentes, a reacção e a verificação ex post das intenções da vítima, que dão consistência às formulações subjectivas do arguido no contexto, são bastantes para considerar adequada a atenuação especial com fundamento no disposto no artigo 33º, nº 1 do Código Penal. E, por este fundamento, considera-se justa e adequada a pena aplicada pelo tribunal do júri. 15. Nestes termos: (i) Rejeitam-se os recursos interlocutório do arguido - art. 420º, nº 1, al. b) do C.P.P. (ii) Nega-se provimento ao recurso do Ministério Público, e embora com diverso fundamento, confirma-se a decisão recorrida no que respeita à medida da pena. Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Outubro de 2010 Henriques Gaspar (relator) Armindo Monteiro |