Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A350
Nº Convencional: JSTJ00037382
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: ACESSÃO
BOA-FÉ
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Nº do Documento: SJ199906080003501
Data do Acordão: 06/08/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 9830464
Data: 11/16/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: JURISPRUDÊNCIA UNIFORME.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 334 ARTIGO 1260 N1 ARTIGO 1317 ARTIGO 1340 N1 N2 N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1994/11/22 IN CJSTJ ANOII T3 PAG157.
ACÓRDÃO STJ PROC88403 DE 1996/04/16 1SEC.
ACÓRDÃO STJ PROC85943 DE 1994/12/14 1SEC.
ACÓRDÃO STJ DE 1986/03/06 IN RLJ ANO125 PAG183.
Sumário : I - Nas hipóteses contempladas no artigo 1340 do C.Civil o elemento subjacente é obrigatoriamente uma benfeitoria.
II - No actual C.Civil o direito de acessão não está reservado ao possuidor em nome próprio nem se faz depender tal direito de a posse do interventor ser titulada nem o legislador se quis desviar da ideia de boa fé adoptada em matéria possessória.
III - Age de boa fé quem desconhecia que o terreno onde produziu a intervenção era alheio ou o que interveio debaixo da autorização (não precisa de provir de uma manifestação de vontade expressa) do dono do terreno; para o caso de prédios em regime de compropriedade, deve entender-se que a autorização cabe a todos os contitulares, sob pena de má fé.
IV - Tendo os réus negociado sempre e só com o cabeça de casal no convencimento legítimo de que ele agia em nome e no interesse de todos os irmãos, tendo com ele acordado o preço a pagar, tendo-lhe efectuado o pagamento do preço, é manifesto que quando o cabeça de casal os autorizou a realizarem obras e plantações, os réus se consideraram autorizados por todos os interessados a fazê-lo, agiram de boa fé.
V - Para efeitos de acessão, o "valor acescentado" é dado pela diferença entre o valor da nova realidade económica resultante da incorporação e o valor que o prédio tinha antes, não o valor investido ou dispendido (note-se que o momento da aquisição do direito de propriedade, com fundamento no artigo 1340 do C.Civil, é o da verificação dos actos materiais de incorporação, se bem que, nas hipóteses dos ns. 1 e 2, ao contrário do n. 3, ela não é uma consequência forçada e automática da incorporação, dependendo antes do exercício do correspondente direito potestativo).
VI - Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais e económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso.
VII - O artigo 334 do C.Civil prevê a boa fé objectiva - não versa factores atinentes ao sujeito, mas antes elementos que enquadrando o seu comportamento se lhe contrapõem.
VIII - A confiança dá um critério para a proibição de venire contra factum proprium. Criada uma situação de confiança, requer-se que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança; se não aderiu ou se, tendo confiado, tenha desacatado (ou descurado) a observância de deveres de indagação que ao caso deviam caber, não há que lhe oferecer a protecção jurídica.
IX - À nulidade por vício de forma pode ser oposto o abuso de direito se o outorgante estava subjectivamente de boa fé (desconhecia, aquando da "celebração" do contrato, a necessidade formal, embora tenha observado o dever de indagação e informação) e desconhecia as consequências para ele emergentes da nulidade, caso esta seja declarada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
A, por si, e como cabeça de casal das heranças indivisas deixadas por Manuel Ribeiro e Corálio Pinto Cardoso, intentou contra B e mulher C, todos com os sinais dos autos, a presente acção com processo ordinário, pedindo:
1º - Que os RR. sejam condenados a restituírem à A. os seguintes bens:
a) Um prédio rústico denominado "Lama Grande", sito nos limites de Temonde, freguesia de S. Martinho de Mouros, concelho de Resende, composto por terra de cultura, regadio, sequeiro, oliveiras, cerejeiras, fruteiras e pastagem, com a área de 13200 m2, o qual está, hoje, integrado no prédio rústico inscrito na matriz sob o artº 341, sendo que aquela área antes correspondia às antigas inscrições matriciais sob os artºs 1501, 1502 e 1503 daquela freguesia e tinha primitivamente as seguintes confrontações: do nascente com a estrada, do poente e norte com herdeiros de António Gonçalves e Abel Pereira Cardoso, do poente, também com o rego de consortes e do sul com o caminho;
b) Um prédio rústico de vinha denominado "Capuchinha", com a área de 250 m2, sito no lugar do mesmo nome, da freguesia de S. Martinho de Mouros, que confronta do norte com José Teixeira Duarte, do nascente com Osório Vieira, do sul com o caminho e do poente com José Teixeira Duarte, inscrito na matriz sob o artº 346 rústico;
c) Uma casa de habitação de rés-do-chão e um andar, sita na Lama Grande, limite de Temonde referido, que confronta de todos os lados com o proprietário tem a área coberta de 73 m2 e está inscrita na matriz sob o artº 877.
2º - Que sejam ainda condenados a indemnizarem a A., enquanto cabeça de casal das citadas heranças, pelos prejuízos que estas estão a ter por não receberem rendimentos gerados por aqueles prédios rústicos, respeitantes aos três últimos anos e aos que ocorrerão até à entrega efectiva dos terrenos, a liquidar em execução de sentença.
3º - Posteriormente, na audiência de discussão e julgamento, foi admitida a ampliação do pedido por forma a que se declare que as heranças deixadas por Manuel Ribeiro e Corálio Pinto Cardoso são comproprietárias, na proporção de 17/18 e 1/18, respectivamente, dos referidos bens.
A A. alegou, em resumo o seguinte: (a) As heranças deixadas por Manuel Ribeiro e Corálio Pinto Cardoso são comproprietárias dos prédios supra referidos na proporção de 17/18 e 1/18, respectivamente, por os haverem adquirido por usucapião e por sucessão; (b) Há cerca de oito anos, os RR. estão a deter tais prédios sem qualquer título e contra a vontade da A., arrogando-se donos dos mesmos; (c) Desta actuação derivam prejuízos para as heranças, correspondentes aos rendimentos líquidos dos referidos prédios rústicos, de valores não apurados.
Citados, os RR, após deduzirem o chamamento à autoria dos irmãos e filhos da A.- fls.38 e 39 -, contestaram e deduziram reconvenção - cfr. fls. 98 e segs.
Impugnando parte dos factos, alegaram, resumidamente, que: (a) O cabeça de casal da herança aberta por óbito de Manuel Ribeiro foi o filho Manuel de Almeida Ribeiro, o qual foi incumbido por todos os irmãos e pelo marido da A. de vender alguns prédios da herança do Manuel Ribeiro, entre os quais os referidos na petição inicial; (b) Em 25-03-1981, o Manuel de Almeida Ribeiro, em nome de todos os herdeiros, prometeu vender ao R., que prometeu comprar, os prédios denominados "Lama Grande" e "Capuchinha" pelo preço de 2000000 escudos, que pagou, tendo a A. e o seu falecido marido recebido a sua parte; (c) A partir da data do negócio, os RR. entraram na posse daqueles prédios, comportando-se como seus donos, sem oposição de ninguém; (d) De imediato fizeram obras, tendo aumentado o valor dos imóveis em mais de 4000000 escudos.
Mais alegaram continuar interessados na formalização do negócio.
Concluem, pedindo:
A) Que se declare que os prédios identificados nas als. a), b) e c), formando este com o primeiro um prédio misto sem qualquer autonomia, são declarados vendidos aos RR. pela A. e irmãos, mediante o preço de 2000000 escudos, que já receberam;
B) Subsidiariamente, que se declare que aqueles mesmos prédios são propriedade dos RR., por os haverem adquirido por acessão imobiliária, com dispensa de pagamento de qualquer preço, por já se encontrarem pagos;
C) Ou que se efectue a redução do contrato promessa, por forma a considerar-se vendidos aos RR. o direito e acção que os restantes oito irmãos têm nos mesmos imóveis, tendo em conta que nenhuns outros há para partilhar;
D) Ou, ainda subsidiariamente, que se condene a A. e os chamados, solidariamente, a devolver aos RR. o sinal e o preço entregue em dobro, e ainda a indemnização de 4000000 escudos, valor das obras feitas e valorização do imóvel, e juros legais a partir da citação ( ) Presume-se que se quis dizer da notificação daquele pedido.), acrescida de outra indemnização, a liquidar em execução de sentença, por responsabilidade pré-negocial da A.;
E) E que se reconheça aos RR. o direito de retenção sobre os ditos imóveis até integral reembolso da importância ou importâncias em que a A. vier a ser condenada a pagar-lhes.
Replicando, a A. aceitou que o cabeça de casal da herança deixada por Manuel Ribeiro foi Manuel de Almeida Ribeiro, facto que não lhe retira legitimidade para desencadear e sustentar a presente acção, uma vez que age por si, enquanto comproprietária de um dos prédios e como cabeça de casal da herança deixada por seu marido. Negou ter incumbido o Manuel de Almeida Ribeiro de vender quaisquer bens da herança e ter recebido qualquer preço e alegou que ela e seu marido sempre manifestaram ao cabeça de casal e aos demais herdeiros o desejo de adquirirem os prédios em causa. Mais alegou que a pretensa venda é nula por falta de forma e que a promessa de venda não lhe é oponível visto não ter assinado o respectivo documento cujo teor não corresponde à matéria alegada; que os RR. sempre souberam da oposição da A. e de seu marido a que eles tomassem posse dos prédios e que nunca deram consentimento para a realização das obras que diz desconhecer.
Foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a legitimidade da A. e se absolveu a mesma da instância reconvencional na parte referente aos pedidos A), B) e C). Foram organizados especificação e questionário de que não houve reclamação.
Os RR., inconformados com a decisão de absolvição da A. da instância reconvencional na parte referente aos referidos pedidos, interpuseram recurso do despacho saneador, que foi admitido como de agravo a subir com o primeiro que, depois dele, houvesse de subir imediatamente - fls. 122 e 135.
Realizado o julgamento com observância das formalidades legais, foi decidida, por forma a não merecer qualquer reparo, a matéria do questionário.
Proferida sentença em 24-11-97, foi decidido julgar a acção improcedente, absolvendo-se os RR. dos pedidos, mais se declarando inútil a reconvenção - fls. 217-231.
Inconformada, apelou a A., tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 16-11-98, decidido: (a) não conhecer, por prejudicado, do recurso de agravo interposto pelos RR.; (b) e julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida - fls 255-263, vs.
Ainda inconformada, traz a A. a presente revista, oferecendo, ao alegar, as seguintes conclusões:

1. Os RR. adquiriram os prédios descritos na alínea C) e G), o R. marido pagou o preço e os RR., a partir de 25/3/81, entraram no uso e fruição dos referidos prédios e passaram a comportar-se, em relação a ambos, como seus donos - Quesitos U), V), W) e X).
2. Os RR., nos termos do nº 1 do artº 1260º estavam na posse de boa fé. O fenómeno da acessão não tem lugar quando o incorporante não é estranho aos terrenos que estavam na sua posse.
3. "Acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto com ela; esse terceiro pode ser simples detentor ocasional" - Prof. Vaz Serra, in R.L.J., Ano 106, pág. 109.
4. Um dos meios pelos quais se pode adquirir por acessão é o de o agente incorporador ter realizado a incorporação com autorização do dono da obra - nº 4 do artº 1340º do Cód. Civ.
5. A autorização referida nos autos foi concedida pelo cabeça-de-casal (quesito ww).
6. Mas o cabeça-de-casal não é dono dos terrenos em causa. Ele é um mero administrador cujos poderes lhe não conferem aquele direito de autorizar.
7. A autorização duma incorporação, em terrenos de herança, só pode ser autorizada por todos os herdeiros - S.T.J., 16/6/1972 - BMJ nº 218, pág. 252.
8. Assim, faltando aquela autorização, a acessão não pode ter lugar por carecer de autorização legal.
9. O douto Acórdão, ora recorrido, confundiu o custo das incorporações feitas com o valor que aquelas tivessem trazido à totalidade do prédio.
10. É do conhecimento vulgar que aqueles custos raramente coincidem com os valores referidos na disposição citada.
11. O que importa avaliar não é o somatório dos custos mas antes que valor acrescentado trouxeram aos terrenos descritos nas alíneas C) e G), nos termos dos três primeiros números do artº 1340º.
12. Por outro lado, a douta decisão recorrida não tomou em consideração que se trata de dois terrenos distintos embora pertencentes à mesma herança.
13. Não se procedendo à avaliação do valor acrescentado no primeiro e segundo prédios, ofende-se o preceituado nos três primeiros números do artº 1340º.
14. De resto, não se sabe se a incorporação se verificou apenas quanto a um dos prédios ou a ambos e em que medida.

Contra-alegando, os Recorridos pugnaram pela manutenção do julgado e, nos termos do artigo 684º-A, do Código de Processo Civil, requereram que o Tribunal ad quem conheça do fundamento do alegado "abuso de direito" por parte da A., caso seja necessário.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
É a seguinte a matéria de facto dada como provada:
A) A A. é filha de Manuel Ribeiro e de sua mulher Laura Lacerda de Almeida.
B) A referida Laura faleceu em 25 de Maio de 1954.
C) Por seu óbito correu termos pelo Tribunal Judicial de Resende o processo de inventário nº 22/54, onde, entre outros bens, foi descrita uma propriedade denominada "Lama Grande", nos limites de Temonde, freguesia de S. Martinho de Mouros, Resende, que parte do nascente com a estrada, do poente com herdeiros de António Gonçalves e de Abel Pereira Cardoso e rego de consortes, do norte com herdeiros de António Gonçalves e de Abel Cardoso e do sul com o caminho, não descrita na Conservatória do Registo Predial, e inscrita na matriz urbana sob o artº 877 e na rústica sob os artºs 1501 (1/2), 1502 ((1/2) e 1503 (1/2), sendo a parte rústica composta de terra de alqueva com vinha e oliveiras e a parte urbana constituída por casa de habitação de rés-do-chão e um andar com a área de 73 m2.
D) Na partilha a que se procedeu nesse inventário veio a caber à A. 1/18 daquela propriedade.
E) Em 18 de Outubro de 1977 faleceu o pai da A.
F) A metade daquele mesmo prédio que não foi inventariada por óbito de Laura Lacerda de Almeida foi relacionada para efeitos de liquidação do imposto sucessório devido em razão do óbito de Manuel Ribeiro.
G) Neste acervo hereditário integra-se uma terra de vinha denominada "Capuchinha", com a área de 250 m2, sita no lugar do mesmo nome da freguesia de S. Martinho de Mouros, actualmente inscrita na matriz sob o artº 346 rústico, que confronta de norte e poente com José Teixeira Duarte, do nascente com Osório Vieira e do sul com o caminho.
H) O Manuel Ribeiro deixou como únicos herdeiros seus nove filhos, a saber: a A., e os chamados Maria Teresa, José Manuel, Deolinda, Joaquim, Manuel, Maria Laura, António Maria, e Luís Duarte, todos com os apelidos Almeida Ribeiro.
I) A A. foi casada com Corálio Pinto Cardoso, no regime de comunhão geral de bens.
J) Este faleceu em 13 de Novembro de 1986, na constância do matrimónio.
L) O Manuel Ribeiro esteve a cultivar o terreno denominado "Capuchinha", nele fazendo as plantações adequadas, nomeadamente, de vinha e os actos de granjeio necessários e, na época própria, colheu os respectivos frutos.
M) Esta sua actuação desenvolveu-se continuadamente desde, pelo menos, 25/5/54 até 18/10/1977.
N) O dito Capuchinho era pertença dos antepassados do Manuel Ribeiro, que lho transmitiram por herança.
O) Os prédios referidos em C) e G) estiveram inscritos na matriz em nome do Manuel Ribeiro e, antes, dos seus antecessores, durante mais de trinta anos.
P) Os RR., aproveitando a organização de novas matrizes levadas a cabo pela Repartição de Finanças de Resende, fizeram inscrever aqueles terrenos rústicos em seu nome, através de declaração feita à brigada que procedia ao cadastro.
Q) Da matriz rústica da freguesia de S. Martinho de Mouros consta o seguinte: terra de cultura, regadio e de sequeiro, com 98 oliveiras, 10 cerejeiras, fruteiras, pastagem e uma dependência agrícola, sita em Pera Longa ou Lama Grande; confronta do norte com José da Silva Roleta, do nascente com a estrada nacional nº 222 e Manuel Cardoso Ribeiro (Herd.º), do sul com António Miranda e Manuel Miranda e do poente com caminho de consortes, António Pereira e outros; tem a área de 32.930 m2; está inscrita na matriz sob o artº 341 e não se encontra descrita na Conservatória do Registo Predial de Resende.
R) Este prédio tem esta definição e estas características desde que, há menos de cinco anos, entraram em vigor as novas matrizes rústicas da feguesia de S. Martinho de Mouros.
S) Nele está integrada a parte rústica do prédio referido em C).
T) O cabeça de casal da herança aberta por óbito de Manuel Ribeiro foi Manuel de Almeida Ribeiro, por ser o filho que com ele vivia há muitos anos aquando da sua morte.
U) Em 25 de Março de 1981, o cabeça de casal declarou vender ao R. os prédios referidos em C) e G) pelo preço global de 2000000 escudos, conforme documento de fls. 40, aqui dado por reproduzido.
V) Nessa data, o R. entregou ao Manuel Almeida Ribeiro 1300000 escudos, como início de pagamento.
W) Em 12-06-1981, o R. pagou mais 700000 escudos ( ) Cfr. documento de fls. 41.).
X) Os RR. entraram no uso e fruição dos prédios referidos em C) e G) a partir de 25/3/81 e passaram a comportar-se em relação a ambos como seus donos.
Y) Nunca nenhuma parte exigiu à outra a outorga de escritura para formalização do negócio.
Z) Os prédios especificados em C) e G) não foram partilhados pelos herdeiros do Manuel Ribeiro.
AA) Quando a Laura Lacerda de Almeida faleceu, ela e seu marido cultivavam o prédio referido em C) há, pelo menos, vinte anos.
BB) E já antes deles, por mais de vinte anos, o tinham feito os avós da A., de quem os seus pais herdaram.
CC) Uns e outros procederam ao respectivo granjeio directamente ou através de pessoal por si contratado.
DD) Nele fizeram plantações de vinha, oliveiras, cerejeiras e outras árvores de fruto.
EE) Demarcaram-no.
FF) E, na época própria, colheram os respectivos frutos que fizeram seus.
GG) A casa inscrita sob o nº 877 sempre foi por eles utilizada para recolher alfaias agrícolas, adubos e outros fertilizantes, bem como para habitação ou permanência de pessoas que estavam dedicadas ao cultivo do terreno rústico.
HH) Depois da morte da Laura, o seu viúvo e os seus filhos, entre eles a A., continuaram a providenciar pelo granjeio daquele terreno rústico e a colherem os respectivos frutos na época própria.
II) E continuaram a destinar a casa aos fins referidos em GG).
JJ) Todos estes actos desenrolaram-se continuadamente desde antes de 1940 até 25 de Março de 1981.
LL) Agiram todos, desde o princípio, por estarem convictos de serem donos daquele terreno e casa e de não lesarem o direito de outrem.
MM) Nunca alguém pôs em causa esta actuação da A. e seus antepassados.
NN) A actuação referida em L) foi prosseguida pelos herdeiros do Manuel Ribeiro até 25/3/81.
OO) Todos eles estiveram convictos, desde o início, de serem os donos da terra referida em G).
PP) E sempre consideraram que, com aquela actuação, não lesavam interesse ou direito de quem quer que fosse.
QQ) Todas as pessoas do local, nomeadamente os vizinhos do "Capuchinho", sempre respeitaram aquela actuação do Manuel Ribeiro, dos seus antepassados e depois dos seus herdeiros.
RR) O Manuel de Almeida Ribeiro foi incumbido por todos os irmãos de vender os prédios mencionados em C) e G).
SS) O Manuel de Almeida Ribeiro sempre declarou agir em nome e no interesse de todos os interessados e dentro dos limites dos poderes que lhe conferiram.
TT) O preço do negócio foi o pretendido por todos os interessados.
UU) Todos acordaram a modalidade de pagamento e a entrega dos prédios aos RR.
VV) A totalidade do preço foi distribuída, em partes iguais, pelos nove herdeiros, incluindo a A.
WW) Em Março de 1981, autorizados pelo cabeça de casal, os RR. efectuaram nos prédios referidos em C) e G) as seguintes obras:
- construíram um tanque de pedra e tijolo com capacidade de 18 m3, no que despenderam 200000 escudos;
- repararam outro tanque, no que gastaram 46000 escudos;
- surribaram 2200 m2 de terreno para plantação de cerejeiras e pessegueiros, despendendo 400000 escudos;
- construíram 500 m2 de ramadas de bordadura em pedra e arame, no que despenderam 100000 escudos;
- desobstruíram uma mina com 32m de comprimento e colocaram três metros de capelos, no que despenderam 120000 escudos;
- plantaram 120 videiras, no que gastaram 12000 escudos;
- plantaram 45 pessegueiros, no que gastaram 22000 escudos;
- plantaram 33 cerejeiras, no que despenderam 15500 escudos;
- drenaram 40m com manilhas de cimento, no que gastaram 48000 escudos;
- construíram 20m de parede em pedra para suportar o terreno, no que despenderam 100000 escudos;
- e transportaram 250 carradas de aterro para regularização do terreno, no que despenderam 2000000 escudos.
XX) Todas as plantações e obras efectuadas destinaram-se a evitar a deterioração e destruição daqueles prédios.
YY) Nenhuma delas pode ser levantada sem detrimento dos mesmos.
III
1 - Tendo presente que as conclusões da alegação do Recorrente definem o objecto do recurso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C.P.C.), são duas as questões centrais que cumpre decidir, ambas relativas aos requisitos da acessão.
A primeira prende-se com o conceito de boa fé, a que se refere o nº 4 do artigo 1340º do Código Civil, reportando-se a segunda à problemática relativa ao conceito de valor acrescentado, ou seja, o diferencial entre o valor do novo conjunto, após a incorporação, e o de antes da incorporação - cfr. os nºs 1 a 3 do referido artigo 1340º do Código Civil, diploma a que pertencem os normativos que se venham a indicar sem menção da respectiva origem.
Adicionalmente, importará, se tal se revelar necessário, analisar a questão do "abuso de direito" da A., alegado pelos Réus/Recorridos.
2 - Sob a epígrafe "Obras, sementeiras ou plantações feitas de boa fé em terreno alheio", o artigo 1340º prescreve o seguinte:
1. Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.
2. Se o valor acrescentado for igual haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1333º.
3. Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação.
4. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.

Considerou o acórdão recorrido, em sintonia com a decisão da 1ª instância, que no presente caso, como resulta da matéria de facto dada como provada (ver alíneas u), v), w), x), z), rr), ss), tt), uu) e vv) e ww)), a conduta dos RR. preenche o requisito da boa fé , não só porque realizaram as obras, reparações e plantações devidamente autorizados pelo cabeça de casal da herança, mas também porque o mesmo lhes prometeu vender os prédios em causa em representação de todos os herdeiros, incluindo a A., a qual recebeu a parte que lhe coube do preço acordado.
Passando à apreciação dos demais requisitos da acessão, mormente do respeitante ao "valor acrescentado", mais entendeu o acórdão recorrido não assistir razão à apelante, por, desde logo, em face da matéria de facto dada como provada (alíneas u), x), y), z), ww), xx) e yy)), estar demonstrada "a valorização dos prédios em causa e consequente aumento do valor dos prédios".
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar, na totalidade, o entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido.
Vejamos porquê, para o que se impõe fazer um breve excurso acerca dos pontos relevantes do instituto da espécie de acessão industrial imobiliária a que se refere o artigo 1340º, já transcrito ( ) Para o efeito, acompanhar-se-á de perto, além de outras fontes oportunamente citadas, o estudo de Quirino Soares, "Acessão e Benfeitorias", Separata dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IV, Tomo I, 1996.).

3. - Nas hipóteses contempladas no artigo 1340º, o elemento material subjacente é, obrigatoriamente, uma benfeitoria, uma vez que uma obra, sementeira ou plantação que acrescenta valor ao prédio onde é realizada, mais não é do que "uma despesa feita para (o) melhorar" - artigo 216º, nº 1.
Como afirmam Pires de Lima/ Antunes Varela, a diferença mais significativa entre o regime vertido no artigo 1340º e o do artigo homólogo do Código Civil de 1867 - o artigo 2306º - consistiu na omissão, no novo Código, da parte final do corpo daquele artigo 2306º, ou seja, da referência ali feita à posse em nome próprio, de boa fé e com justo título, por parte do interventor ( ) Cfr. "Código Civil Anotado", 2ª edição, III, pág. 162. ).
Com efeito, o actual Código não reserva o direito de acessão ao possuidor em nome próprio (o mero detentor não está excluído), nem faz depender tal direito de a posse do interventor ser titulada. Nessa medida os próprios conceitos de boa fé adoptados pelo dois códigos são substancialmente diferentes, uma vez que o nº 4 do artigo 1304º não condiciona a boa fé à existência de justo título.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, o legislador não quis, neste capítulo dedicado à aquisição da propriedade, desviar-se da ideia de boa fé que adoptou em matéria possessória (nº 1 do artigo 1260º).
Como escreve Quirino Soares, "dizer-se que age de boa fé, para efeitos de acessão, o que desconhecia que o terreno onde produziu a intervenção era alheio, ou o que interveio debaixo de autorização do dono do terreno, é, pois, o mesmo que dizer que assim age (de boa fé) aquele que ignorava, ao intervir em terreno alheio, que lesava o direito de terceiro".
O conceito estritamente psicológico de boa fé adoptado pelo actual Código simplificou a tarefa do intérprete e aplicador da lei, mas não deixam de se pôr, com alguma frequência, dúvidas, sempre que aquele estado psicológico é referido a uma autorização e não ao desconhecimento de que o objecto da intervenção é alheio.
Trata-se de situação que importa aprofundar por ter correspondência no caso dos autos. Com efeito, e tal como resulta das próprias contra-alegações oferecidas na presente revista, "os Recorridos sabiam que juridicamente os prédios não eram seus por inexistência de qualquer vínculo jurídico válido que os ligasse a eles".
Ora, para o caso de prédios no regime de compropriedade, deve entender-se que a autorização cabe a todos os contitulares, sob pena de má fé ( ) Cfr., neste sentido, Quirino Soares, loc. cit., pág. 20 e, bem assim, o Acórdão da Relação do Porto de 29-10-71, in BMJ nº 210, pág. 179, e Acórdãos do STJ de 16-06-72, in BMJ nº 218, pág. 252; de 14-12-94, Procº. nº 85943, 1ª Secção; e de 16-04-96, Procº nº 88403, 1ª Secção.) ( ) Sendo o terreno propriedade comum de um casal, também não basta ao autor da obra, para efeitos da boa fé a que se refere a parte final do nº 4 do artigo 1340º, obter autorização de incorporação por parte de um dos cônjuges, sendo-lhe necessário obter a autorização, expressa ou tácita, do outro - cfr. o Acórdão do S.T.J. de 6 de Março de 1986, publicado na R.L.J., Ano 125º, nº 3819, págs. 183 e segs.).
Perante isto, qual a conclusão a tirar no caso sub judice?
É certo que apenas o cabeça de casal, Manuel de Almeida Ribeiro, autorizou os RR. a realizarem as obras elencadas supra em ww).
Poderá extrair-se desse facto a conclusão de que houve má fé da parte dos RR. para os efeitos do nº 4 do artigo 1340º?
Entendemos que, para o caso concreto que nos ocupa, a resposta deve ser negativa, pelo que se acompanha, neste ponto, a conclusão extraída no acórdão recorrido.
Na verdade, resulta da matéria de facto dada como provada que:
a) O referido Manuel Almeida Ribeiro foi incumbido por todos os irmãos de vender os prédios em apreço - cfr. supra alínea rr);
b) O mesmo Manuel Almeida Ribeiro sempre declarou agir em nome e no interesse de todos os interessados e dentro dos limites dos poderes que lhe conferiram - cfr a alínea ss);
c) O preço do negócio foi o pretendido por todos os interessados - cfr. a alínea tt);
d) Todos acordaram a modalidade de pagamento e a entrega dos prédios aos RR. - cfr. a alínea uu);
e) A totalidade do preço foi distribuída, em partes iguais, pelos nove herdeiros, incluindo a A. - cfr. a alínea vv);
f) Todas as plantações e obras destinaram-se a evitar a deterioração e destruição daqueles prédios - cfr. a alínea xx).
Torna-se manifesto que a autorização concedida pelo cabeça de casal aos RR. no sentido de efectuarem as obras e plantações a que se refere a alínea ww) não pode deixar de ser vista em conjunto com os antecedentes acabados de enunciar, pelo que, tendo presente aquele quadro global, parece claro que os RR. se sentiram autorizados por todos os interessados, incluindo a A., a realizarem tais obras e plantações, aliás, destinadas a evitar a deterioração e destruição dos prédios.
Com efeito, a autorização não precisa, como é óbvio, de provir de uma manifestação de vontade expressa. Ela, as mais das vezes, insere-se ou resulta de um negócio que pretende envolver a disposição ou oneração do prédio a favor do autor da incorporação.
Exemplos de situações de autorização deste tipo são os citados por Pires de Lima e Antunes Varela: contratos de compra e venda envolvendo a entrega imediata do prédio, para que o promitente comprador dele se sirva como dono.
Tendo os RR. negociado sempre - e só - com o cabeça de casal no convencimento legítimo de que ele agia em nome e no interesse de todos os irmãos, tendo com ele acordado o preço a pagar, tendo-lhe efectuado o pagamento do preço, é manifesto que, quando o cabeça de casal os autorizou a realizarem as obras e plantações em causa, os RR. se consideraram autorizados por todos os interessados a fazê-lo.
Nestes termos, temos como verificado o requisito da boa fé a que se refere o nº 4 do artigo 1340º.
Improcedem, por isso, as conclusões 5ª a 8ª.
4. - Passemos, então, agora, à questão relativa ao "custo acrescentado" trazido à totalidade dos prédios pelas obras e plantações efectuadas - cfr. nº 1 do artigo 1340º. A esta matéria referem-se as conclusões 9ª a 14ª.
A temática relativa ao "valor acrescentado" configura-se como nuclear do conjunto das soluções contidas no artigo 1340º. Com efeito, conforme tal valor seja superior ou inferior ao que o prédio tinha antes da incorporação, assim o direito de adquirir, por acessão, pertencerá ao interventor ou ao dono do terreno (neste caso, em aplicação do princípio superficies solo cedit). Se o valor acrescentado for igual, determina o nº 2 que se abra licitação entre ambos.
Não tendo a Recorrente levado às conclusões a questão relativa ao funcionamento (automático ou potestativo) da acessão, não se coloca agora a necessidade de abordar tal problemática com desenvolvimento. Limitamo-nos, por isso, a dizer que, a esse propósito, aderimos à tese defendida no referido estudo de Quirino Soares, que se pode sintetizar do seguinte modo: O momento da aquisição do direito de propriedade, com fundamento nas hipóteses do artigo 1340º, é o da verificação dos actos materiais de incorporação, nos termos da alínea d) do artigo 1317º, não sendo, porém, tal aquisição, nas hipóteses dos nºs 1 e 2, uma consequência forçada e automática da referida incorporação, dependendo antes do exercício do correspondente direito potestativo, pelo que é, nesse sentido, uma aquisição voluntária. Já, porém, no caso do nº 3, relativo ao direito de acessão do dono do solo, a aquisição do direito é automática, coincidindo com o acto material de incorporação.

4.1. - Voltemos, pois, à questão do valor acrescentado, sobre a qual, depois de algumas considerações de ordem geral, será tomada a decisão imposta pela situação de facto do caso sub judice.
Como escreve o referido Autor, "valor acrescentado" não é o mesmo que valor dos materiais, das sementes ou das plantas, nem sequer, a mesma coisa que valor da obra, da sementeira ou da plantação.
Após o que acrescenta o seguinte:
"A expressão, que é quantitativa, de "valor acrescentado", é dada pela diferença entre o valor da nova realidade económica resultante da incorporação e o valor que o prédio tinha antes.
"O valor dessa diferença pode, muito bem, ser maior ou menor que o dos materiais, sementes ou plantas, ou, até, que o da obra, sementeira ou plantação.
"A incorporação pode, pois, produzir uma mais valia relativamente à soma do valor do terreno com o das obras, sementeiras ou plantações; mas também, pode saldar-se em menos valia, na medida em que aquela soma (a do valor do terreno mais o das obras, sementeiras ou plantações) seja superior ao da nova realidade económica resultante da incorporação.
"O que conta, em qualquer caso, para a determinação do beneficiário da acessão (conforme os nºs 1, 2 e 3 do artigo 1340º), é o "valor acrescentado" em comparação com o valor do prédio, antes da incorporação".
Fácil é, assim, concluir serem insuficientes as petições iniciais que, fundadas na disciplina do artigo 1340º, se limitam a alegar o valor dos actos materiais de incorporação, o do prédio, antes destes, e a comparar um com o outro. São, de igual modo, insuficientes os arbitramentos cujos quesitos se limitem à indagação desses mesmos valores.
O que interessa alegar (no articulado) e quesitar (no arbitramento) é o valor da nova realidade predial resultante da incorporação e o valor que o prédio tinha antes dela; a diferença entre esses dois valores dará ao julgador a medida do "valor acrescentado" que é necessária à determinação do beneficiário da acessão.
Ora, quanto ao caso em presença, verifica-se, da matéria de facto, que não se consegue apurar qual o "valor acrescentado" a um e outro dos prédios em causa. Como se disse, é de valor trazido pelas obras, sementeiras ou plantações que se trata; não de valor investido ou despendido. Ora, os valores supra discriminados na alínea ww) referem-se às despesas efectuadas nas obras e plantações e não ao "valor acrescentado" do conjunto em resultado dessa obras e plantações.
Com efeito, não basta apurar quais as despesas que os RR. fizeram com as obras; o que importa, como requisito da acessão, é saber em quanto é que o valor dos prédios foi aumentado. Como já se disse, a despesa realizada não se repercute necessariamente - e muito menos, na mesma proporção - no consequente acréscimo da primitiva valorização do prédio.
Acresce, como refere a Recorrente, que não foi, sequer, alegada, pelos RR./Recorridos a "distribuição" das despesas efectuadas com a as obras e as plantações nos dois prédios ora em causa - denominados "Lama Grande" e "Capuchinha".
Nestes termos, a decisão recorrida não tomou em consideração que se trata de dois terrenos distintos, pelo que não se sabe se a incorporação se verificou, e em que medida, apenas num dos prédios ou em ambos. Por outro lado, não se tendo apurado o valor acrescentado em cada um dos prédios ofendeu-se a disciplina constante do citado artigo 1340º.
Extrai-se do exposto que procedem as conclusões 9ª a 14ª da alegação da Recorrente, pelo que cumpre concluir não estarem reunidos todos os requisitos de que depende a ocorrência da invocada acessão imobiliária nos termos do artigo 1340º.

5 - Atentas as conclusões atingidas, importa passar agora à apreciação do fundamento constante da ampliação do âmbito do recurso, suscitada pelos Recorridos, ao abrigo do artigo 684º-A, do Código de Processo Civil.
A tese dos Recorridos é sintetizada do seguinte modo, na conclusão 4ª das suas contra-alegações:
Não deve consentir-se que, decorridos que foram 14 anos entre o negócio efectuado pelos recorrentes e demais irmãos, todos representados pelo cabeça de casal como em todos os demais negócios, possa prevalecer o facto de aquele ser nulo por vício de forma, e contra todos os princípios éticos, sociais e até económicos a recorrente beneficie de tal nulidade, sendo que a sua conduta é contraditória - um venire contra factum proprium - e em manifesto confronto com o princípio da tutela da confiança (artº 334º do C.C.).
Apreciando a matéria, concluiu-se na 1ª instância que, apesar de a A. ter incumbido o seu irmão Manuel de Almeida Ribeiro de vender os prédios aqui em causa, ter acordado o respectivo preço e a modalidade de pagamento e ter recebido a parte que lhe coube, tal conduta, embora pouco abonatória, não integra o abuso de direito.
Não se concorda com tal entendimento.
É certo que, para que se verifique abuso de direito, exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Como explicam Pires de Lima/ Antunes Varela, os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso ( ) Cfr. "Código Civil Anotado", volume I, 4ª edição revista e actualizada, anotação ao artigo 334º, págs. 298-299.).
Manuel de Andrade refere-se aos direitos "exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça" e às "hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição" ( ) Apud Pires de Lima/Antunes Varela, loc. cit. na nota anterior.).
Também Vaz Serra se refere à "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante" ( ) Cfr. "Abuso do Direito (Em matéria de responsabilidade civil)", B.M.J., nº 85, págs. 243 e segs.).
Mas será que, no caso sub judice, o exercício do direito pretendido pela A. não configura esse excesso manifesto? Não resultará desse exercício clamorosa ofensa do sentimento de justiça, do sentido ético-jurídico dominante?
Tenham-se presentes os factos supra assinalados sob as alíneas t). u), v), w), x), y), z), rr), ss), tt), uu) e vv), para que agora se remete.
Recordem-se, ademais, as divergências substanciais entre os factos alegados pela A. na p. i. e o complexo fáctico que veio a ser dado como provado.
Divergências que permitem constatar como era distinto o quadro de facto alegado pela A. para servir de fundamento ao pedido.
Mesmo na réplica - cfr. fls. 105 e segs. -, a A., apesar de reconhecer não ser ela, mas sim seu irmão Manuel Almeida Ribeiro, o cabeça de casal, continuou a manter afirmações que não correspondem de modo algum à factualidade que veio a ser dada como provada. Vejam-se, a título de exemplo, as asserções constantes dos artigos 10, 12, 13, 14, 15, 16, 19 e 23.
Recordar-se-ão ainda, neste contexto, as respostas de "não provado" dadas aos quesitos 17º, 18º, 27º, 28º, 29º e 30º.
Apesar de, na réplica, a A. continuar a afirmar que não recebeu qualquer preço das mãos do cabeça de casal, acrescentando que "nem o receberia por vontade própria" (cfr. artºs 35 e 36, a fls. 108), o certo é que, da fundamentação da matéria de facto, consta haver a mesma confessado "ter recebido a parte que lhe coube na venda dos ditos prédios" - cfr. fls. 206, vs.
Todo o exposto - e muito mais se poderia, concretizando, aditar - revela um procedimento processual muito pouco abonatório por parte da A., que começou, recorde-se, por se intitular cabeça de casal na herança de seu falecido pai, Manuel Ribeiro.

5.1. - Importa, assim, analisar com mais pormenor o instituto do abuso do direito. É o que vamos passar a fazer.
O Código Civil fere, no artigo 334º, determinados actos como abusivos. Prevê, para tanto, o titular que exceda manifestamente, no exercício do direito, limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico.
O artº 334º prevê a boa fé objectiva: não versa factores atinentes ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem.
O abuso do direito serviu, além do mais, para dar cobertura à reprovação do venire contra factum proprium, bem como às ininvocabilidades de certas nulidades formais.
Trata-se de regulações típicas de comportamentos abusivos, de cujas existência e possibilidade no nosso ordenamento cabe agora cuidar.

5.2. - A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido por parte da doutrina que o conhece como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa fé. A confiança dá um critério para a proibição de venire contra factum proprium.
Os princípios que, à face do Direito civil português, permitem detectar a presença de um facto gerador de confiança podem ser induzidos das regras referentes às declarações de vontade, com relevância para a normalidade - artº 236º, nº 1 - e o equilíbrio - artº 237º. Significa isto que o quantum relevante de credibilidade para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é, assim, função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante e razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do factor a que se entrega. Assim se obtém o enquadramento objectivo da situação de confiança. Requere-se, porém ainda um elemento subjectivo: o de que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.
É que bem pode acontecer que, não obstante a presença de elementos objectivos suficientes para justificar a protecção da confiança, o beneficiário em potência, por razões específicas, não tenha de facto confiado na situação que se lhe oferecia. Não cabe então oferecer-lhe a protecção jurídica.
Ou que, tendo confiado, tenha desacatado (ou descurado) a observância de deveres de indagação que ao caso deviam caber. O que significaria que, apesar da verificação de tais elementos objectivos geradores da confiança, a mesma não "resistiria" aos cuidados de diligência resultantes do cumprimento do dever de indagação.

5.3. - Vejamos, agora, alguns princípios relativos à ininvocabilidade de certas nulidades formais.
Voltando ao pensamento de Menezes Cordeiro, acompanhemos o que este Autor observa a propósito da temática agora em equação: "Não obstante as apregoadas justificações da forma legal, quando prescrita (...), o seu desrespeito não concita, aos níveis ético, psicológico e social, a reprovação enérgica que o Direito lhe conecta".
Adiante, e no seguimento do mesmo raciocínio, escreve o seguinte:
"A desconsideração comum pelos valores jurídicos associados à forma é agravada pelo arcaísmo dos regimes modernos, no tocante ao sistema da sua prescrição: oneram-se actos de relevo social e económico em regressão, enquanto outros, da maior importância, se mantêm consensuais.
"Pode, pois, falar-se de pressão sobre o dispositivo legal que prescreve as nulidades formais.
"No limite uma pessoa pode, com dolo até, induzir outra a celebrar um negócio sem a forma prescrita, retirar da aparência daí emergente os benefícios que lhe aprouver e, em qualquer momento que lhe convenha, alegar a nulidade" - ( ) Cfr. loc. cit., págs. 771 e segs.).
O certo, porém, é que a finalidade do legislador ao instituir a forma em certos negócios jurídicos e ao associar-lhe, em caso de inobservância, a nulidade, não é apenas prosseguir os valores de reflexão, segurança e publicidade atribuídos ao formalismo clássico no direito. A finalidade do legislador foi, sobretudo, a de igualizar, sob a forma, todas as declarações negociais atinentes a certos sectores e uniformizar, sob a nulidade, todas as violações àquela regra.
Termos em que se acompanha Menezes Cordeiro quando reconhece que "a aplicação dos arts. 220º e 286º, bem como de todos aqueles que, com primado para o artº 875º, prescrevam formas legais para certos actos jurídicos não pode ser bloqueada" ( ) Menezes Cordeiro, pág. 792.).
O que é primordial é a posição da pessoa contra quem se pretende fazer valer a nulidade formal. Esta posição equaciona-se em dois aspectos: a sua relação com o vício formal e as consequências para ela emergentes da nulidade, caso esta seja declarada.
Quanto ao primeiro, que, sobremaneira, agora interessa, deve entender-se a necessidade de boa fé subjectiva por parte de quem queira fazer valer a inalegabilidade, ou seja, de desconhecimento, aquando da "celebração" do contrato, da necessidade formal.
A boa fé subjectiva comporta aqui deveres de indagação e informação de intensidade acrescida, dada a rigidez das normas em jogo, e visto o conhecimento generalizado que existe da necessidade de formalidade para certos actos.
A evidência da falta de forma ou a negligência grosseira prejudicam sempre, pois, estando presentes, ou havendo conhecimento do vício, é razoável que o contratante corra o risco de ver declarado nulo o seu contrato ( ) Op. cit., págs. 783 e 784.).

6 - Passados em revista os princípios teóricos fundamentais aplicáveis às temáticas em jogo nestes autos - o "venire contra factum proprium" e a inalegabilidade de nulidades formais -, é o momento de subsumir a realidade fáctica verificada no caso sub judice àqueles princípios.
O Acórdão recorrido não chegou, por desnecessidade, em face do entendimento perfilhado a respeito da verificação, in casu, dos requisitos da aquisição da propriedade dos terrenos por acessão, a pronunciar-se acerca da questão do alegado abuso do direito por parte da A.
A 1ª instância entendeu, como se viu, que, não obstante a conduta pouco abonatória por parte da A., a mesma não integra o abuso de direito.
O certo, porém, é que:
a) A A., bem como todos os seus outros irmãos, incumbiram o Manuel Almeida Ribeiro de vender os mencionados prédios - cfr. alínea rr). Fizeram-no logo após a morte do respectivo pai, Manuel Ribeiro, ocorrida em 18-10-1977. Veja-se, nesse sentido, a fundamentação da matéria de facto constante de fls. 206, vs., onde se faz referência ao depoimento do chamado José Manuel de Almeida Ribeiro, segundo o qual, no dia da missa do 7º dia após a morte de Manuel Ribeiro, todos os herdeiros deste deliberaram proceder à venda de bens da herança e incumbir de tal tarefa o Manuel de Almeida Ribeiro;
b) O Manuel de Almeida Ribeiro sempre declarou agir em nome e no interesse de todos os interessados, incluindo a A., e dentro dos limites dos poderes que lhe conferiram - cfr. supra alínea ss);
c) O preço do negócio foi o pretendido por todos os interessados, tendo todos eles, incluindo, portanto, a A., acordado a modalidade de pagamento e a entrega dos prédios aos RR. - cfr. alíneas tt) e uu). Com efeito, como resulta dos documentos juntos a fls. 40 e 41, o preço foi pago em 25 de Março de 1981 (mil e trezentos contos) e em 12 de Junho de 1981 (setecentos contos);
d) A totalidade do preço foi distribuída, em partes iguais, pelos nove herdeiros, incluindo a A. - cfr. supra, alínea vv);
e) Foi assim que, em Março de 1981, após autorizados pelo cabeça de casal, os RR. procederam à realização, nos referidos terrenos, de importantes obras e plantações, todas elas destinadas a evitar a destruição e deterioração dos prédios, nenhuma podendo ser levantada sem detrimento dos mesmos - cfr. supra, alíneas ww), xx) e yy).
f) Em Março de 1994, ou seja, treze anos depois, veio a A., intitulando-se também cabeça de casal da herança deixada pelo seu Pai, instaurar contra os RR. a presente acção, pedindo a condenação dos mesmos a restituírem-lhe os bens identificados e a indemnizarem-na pelos prejuízos sofridos pelas heranças. Para o efeito alegou diversos factos que não se provaram, revelando-se, relativamente a alguns, não corresponderem à verdade;
g) Na réplica, alegou a A. a nulidade da venda dos prédios por falta da forma legal (artigos 220º do Código Civil e 89º A, do Código do Notariado), confessando, no entanto, que a escritura de compra e venda não foi celebrada, uma vez que "nunca os RR. ousaram marcá-la, pois sabiam qua a A. e seu marido, e agora os herdeiros deste, nela não compareceriam" - cfr. o artigo 26º da réplica, a fls. 106, vs.

Neste quadro, considera-se que a nulidade de forma é ininvocável pela A., acrescendo que o exercício do direito, tal como pretende prossegui-lo, representa excesso manifesto, na modalidade vulgarmente traduzida pela fórmula "venire contra factum proprium".
Logo, sob pena de clamorosa ofensa do sentimento ético-jurídico socialmente dominante, não deve consentir-se que, agora, decorridos tantos anos, possa prevalecer o facto de o contrato de compra e venda ser nulo, por não constar de escritura pública, e que, contra todos os princípios éticos, sociais e até económicos, a Recorrente beneficie de tal nulidade ( ) Veja-se, na matéria, o Acórdão deste STJ de 22-11-1994, publicado em "Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secção Cível", Ano II, Tomo III, págs. 157 e segs.). A procedência da acção representaria um intolerável e manifesto abuso, ofensivo da tutela da confiança que a antecedente conduta da A. - e de todos os demais interessados - fizera nascer nos RR.
Tem, assim, fundamento o abuso do direito, invocado, na sua contra-alegação, pelos RR. ( ) Aliás, a apreciação do abuso de direito pode ser feita oficiosamente - cfr. o Acórdão referido na nota anterior.)
Neste contexto, embora por razões diferentes das constantes do Acórdão recorrido, a acção não pode proceder.
Termos em que se nega a revista.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 8 de Junho de 1999.
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro.