Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A575
Nº Convencional: JSTJ00038468
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
Nº do Documento: SJ199909230005751
Data do Acordão: 09/23/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6193/98
Data: 02/04/1999
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 323 N1 ARTIGO 325 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC437/98 DE 1998/10/13 1SEC.
ACÓRDÃO STJ PROC842/96 DE 1997/03/04 1SEC.
Sumário : I - As causas interruptivas da prescrição podem provir do titular do direito ou do reconhecimento, pela outra parte, desse direito.
II - Reconhecimento como acto jurídico, declaração de ciência, verbal ou escrita, expressa ou resultante de factos concludentes, que inequivocamente o exprimem.
III - A presunção da vontade do reconhecimento por parte do sujeito passivo da relação jurídica, dispensando da prática de actos interruptivos o titular do direito, estriba-se em factos que revelem de forma inequívoca o conhecimento de tal vínculo ou a consciência da consistência jurídica dessa pretensão.
IV - O reconhecimento feito ante um terceiro não dá garantias suficientes de que represente uma inequívoca declaração do conhecimento da existência do direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
A e B intentaram, no Tribunal Judicial de Oeiras, a presente acção com processo ordinário contra C e mulher D, todos com os sinais dos autos, pedindo a condenação dos RR. a pagar: à 1ª A. a quantia de 546667 escudos, acrescida dos juros de mora legais vencidos (entre Junho de 1975 e 19-12-96), no valor de 1622193 escudos, e dos juros de mora que se vencerem até integral pagamento; e ao 2º A. a quantia de 136667 escudos, acrescida dos juros de mora legais vencidos (entre Junho de 1975 e 19-12-96), no valor de 405549 escudos, e dos juros de mora que se vencerem até integral pagamento.
Alegaram, em síntese, o seguinte: (a) para a aquisição e construção, em Bissau, de um imóvel por parte do R. marido, a A. e seu marido, B, já falecido, emprestaram aos RR., por várias entregas, entre Janeiro de 1971 e Junho de 1975, a quantia total de 820000 escudos; (b) embora os RR. sempre tenham reconhecido a dívida, nunca a pagaram, pelo que a mesma se mantém desde Junho de 1975; (c) não obstante o facto de o empréstimo se dever considerar nulo por falta de forma, essa nulidade implica a restituição de tudo o que foi prestado, o que deve incluir os rendimentos do valor respectivo, no caso, os juros de mora legais; (d) sendo a A. meeira do património do casal e a mesma, bem como o 2º A. e o 1º R. herdeiros do falecido marido da 1ª A. (que faleceu em 18 de Fevereiro de 1973), os RR. devem à A. a importância de 546667 escudos e ao 2º A. a importância de 136667 escudos de capital.
Contestando, os RR excepcionaram, designadamente, a prescrição da dívida invocada, a dar-se o caso de a mesma existir. Mais alegaram: (a) que as quantias entregues pela A. e seu falecido marido foram em escudos guineenses, pelo que o pedido em escudos portugueses é descabido; (b) que o dinheiro entregue ao R. se destinou a custear parte da construção de um armazém implantado num terreno deste, o qual seria utilizado pelos AA. com uma redução substancial da renda; (c) que, em 1975, o R. entregou o armazém à A, o qual esteve, até 1980, à disposição da sociedade fundada por ela e seu marido, ficando saldada a dívida.
Replicando, os AA. alegaram, no fundamental, que os RR. sempre reconheceram a dívida, não só por escrito, mas também verbalmente, como aconteceu numa reunião que tiveram com um ilustre advogado e amigo da família, no escritório deste, em 7 de Março de 1994, concluindo pela improcedência das deduzidas excepções.
Elaborados o saneador - no qual se relegou para momento posterior o conhecimento da excepção da prescrição -, bem como a especificação e o questionário, e realizada a audiência de julgamento com observância do formalismo legal correspondente, foi, em 27 de Março de 1998, proferida sentença que, julgando procedente a prescrição excepcionada, absolveu os RR. do pedido.
Inconformados, os RR. apelaram, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 4 de Fevereiro de 1999, ao abrigo do disposto pelo artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, confirmado integralmente a decisão recorrida.
Ainda inconformados, decidiram os RR. trazer a presente revista, na qual, ao alegarem, oferecem, no essencial, as seguintes conclusões:

1. Consideram os ora recorrentes que a declaração que o R. efectuou perante o Dr. E de que aceitaria pagar a quantia de 820000 escudos desde que se realizasse a partilha por morte do seu pai referente aos bens existentes na Guiné e no âmbito desta (...), constitui um verdadeiro reconhecimento do direito dos AA., nos termos a que se refere o artigo 325º do Código Civil, ou um reconhecimento da dívida que os RR. têm para com os AA.
2. O Réu, ao aceitar pagar a quantia de 820000 escudos (...), ainda que só quando se realizar a partilha por morte do seu pai referente aos bens existentes na Guiné e no âmbito desta, está, antes de mais, a reconhecer aos AA. o direito à restituição deste mesmo valor emprestado, ou seja, está a reconhecer que tem uma dívida para com os mesmos AA.
3. Atendendo a que está dado como provado o empréstimo efectuado pela A. e seu marido aos RR. e a não restituição do respectivo valor e não está dado como provado qualquer facto que pudesse extinguir a dívida resultante deste mesmo empréstimo, a afirmação que o R. fez na reunião que teve com o Dr. E só pode significar um reconhecimento por parte dos RR. da dívida que têm para com os AA.
4. E tal reconhecimento interrompe a prescrição, nos termos do artº 325º do C.C.
5. Este reconhecimento é relevante para efeitos do artigo 325º do C.C.
6. Entendem os recorrentes que o R. não efectuou a referida declaração (...) perante um terceiro; e terceiro só pode ser entendido no sentido de alguém que não tem qualquer relação com os AA. e até com os RR.
7. A referida declaração foi efectuada perante o Advogado Dr. E, que não é terceiro neste mesmo sentido.
8. Com efeito, foi dado como provado que a referida reunião foi realizada pelo Dr. E, não por sua iniciativa, mas a pedido da A.
9. E uma vez que esta reunião foi pedida pela A., o resultado da mesma teria sempre de lhe ser transmitido.
10. O R. bem sabia que, tendo a reunião sido solicitada pela A. o resultado da mesma seria depois transmitido a ela.
11. Assim sendo, a referida declaração (ou reconhecimento da dívida) é como se tivesse sido efectuada pelo R. perante a A.
12. Relativamente ao facto de o R., na reunião que teve com o Dr. E, ter aceite pagar a quantia de 820000 escudos (...), desde que se realizasse a partilha por morte de seu pai referente aos bens existentes na Guiné e no âmbito desta, os recorrentes têm a dizer que não foi dado como provado qualquer acordo (entre os AA. e RR.) neste sentido.
13. Trata-se de uma "condição" que o R. impôs na reunião que teve com o Dr. E (apenas com o intuito de se furtar ao seu pagamento ou eventualmente de atrasar o mesmo) e que nunca foi acordada entre ele e os AA.
14. Pelo exposto, conclui-se que o prazo de prescrição foi interrompido quando o R. na reunião que teve com o Dr. E, no escritório deste e em 1994, reconheceu a dívida para com os AA. (reconhecimento e consequente interrupção da prescrição nos termos do artigo 325º do C.C..
15. Assim sendo, entendem os recorrentes que o Acórdão recorrido considera erradamente que não se verificou o disposto no artigo 325º do Código Civil e que, portanto, o prazo de prescrição não se interrompeu com a reunião de 1994.

Contra-alegando, os RR. pugnam pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
É a seguinte a matéria de facto dada como provada:

- No dia 18 de Fevereiro de 1973 faleceu B, no estado de casado com a A. A, deixando como sucessíveis seus filhos C, casado com D, e F, casado com G - (alínea A) da Especificação).
- A A. A e seu marido B emprestaram aos RR., por várias entregas entre Janeiro de 1971 e Junho de 1975, a quantia de 820000 escudos, não tendo formalizado a dita entrega através de qualquer documento - (alínea B) da Especificação).
- Em conversa tida no escritório do Sr. Dr. E, em 1994, o R. C - cuja presença foi informalmente solicitada por aquele a pedido da A., como amigo de toda a família e com vista à resolução consensual dos conflitos familiares pendentes - aceitou pagar a quantia referida em B), desde que se realizasse a partilha por morte de seu pai referente aos bens existentes na Guiné e no âmbito desta - (resposta aos quesitos 1º e 2º).
- (...) nunca tendo restituído aos AA. essa importância - (resposta ao quesito 3º).
- O empréstimo referido em B) foi efectuado em escudos guineenses - (resposta ao quesito 4º).
- A quantia pecuniária referida em B) destinava-se a custear a construção de um armazém implantado em terreno do R. e que seria colocado, posteriormente, ao serviço da sociedade familiar explorada tanto pelo R. como pelos AA. - (resposta ao quesito 5º).
- Os AA. deixaram definitivamente a Guiné em 1973 e o R. em 1975 - (resposta ao quesito 7º).
- (...) tendo sido todos os seus bens - terrenos, prédios, empresas e mercadorias, quer dos AA. quer dos RR. - na Guiné-Bissau nacionalizados pelo Governo - (resposta ao quesito 8º).
III

1 - O cerne do dissídio que importa resolver na presente revista consiste apenas em saber se houve ou não interrupção do prazo prescricional pelo reconhecimento do direito.
Por outras palavras, tudo se resume à questão de saber se, com a declaração feita pelo R. marido na conversa tida, em 1994, no escritório do Sr. Dr. E, nas restantes circunstâncias descritas na factualidade apurada, houve reconhecimento do direito dos AA., suficiente, nos termos do artigo 325º, nº 1, do Código Civil ( ) Diploma de que serão as disposições legais que se venham a indicar sem menção da origem.), para que se tenha interrompido a prescrição.
Os Recorrentes sustentam repetidamente, ao longo das quinze conclusões da sua alegação, que tal declaração feita pelo R. C constitui um verdadeiro reconhecimento da dívida, relevante para efeitos do citado artigo 325º.
A sentença do Tribunal da 1ª instância e o acórdão recorrido, este por adesão àquela, consideraram que tal declaração, produzida no quadro da factualidade descrita, foi feita a um terceiro e não perante o titular do crédito, além de que a mesma não consubstancia um reconhecimento de dívida, mormente para efeitos de interrupção do prazo de prescrição em curso - na altura já com 18/19 anos de vida - cfr. fls. 120.

2 - Vejamos.

2. 1. - Da leitura conjugada do nº 1 do artigo 323º e do artigo 325º resulta que o nosso Código Civil recebeu duas formas paralelas de interrupção da prescrição: as causas interruptivas podem provir do titular do direito - artigo 323º, nº 1 - ou do reconhecimento, pela outra parte, desse direito - artigo 325º ( ) Cfr. o Acórdão deste STJ de 04-03-97, Processo nº 842/96, 1ª Secção, que agora se acompanha de perto.).
Ali, tratando-se de acto de exercício de um direito, o facto interruptivo consiste "no conhecimento que teve o obrigado, através de uma citação ou notificação judicial, de que o titular pretende exercer o direito" ( ) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, anotação ao artigo 323º.).
Aqui - artigo 325º - a interrupção opera-se pelo reconhecimento do direito por parte daquele contra quem tal decisão pode ser feita valer.
Reconhecimento como acto jurídico, declaração de ciência, verbal ou escrita, expressa ou resultante de factos concludentes, que inequivocamente o exprimem ( ) Do citado Acórdão de 04-03-97.).
A presunção da vontade do reconhecimento por parte do sujeito passivo da relação jurídica, com a correlativa dispensa de o respectivo titular do direito da prática de actos interruptivos, estriba-se em factos que revelem de forma inequívoca "o conhecimento de tal vínculo" (Lange BGB Allgemeiner Teil, 1963, pág. 111) ou "a consciência da consistência jurídica dessa pretensão" (Enneccerus - Niperdey, I, 2ª edição, 1959, pág. 1424).
Como se refere no citado acórdão de 4 de Março de 1997, os Códigos Civis alemão (§ 208) e suíco (artº 135º) mencionam exemplificativamente casos de reconhecimento.
Em anotação ao artigo 325º, Pires de Lima/Antunes Varela exemplificam, designadamente, os seguintes casos inequívocos de reconhecimento: "o pagamento de juros, a atribuição de uma garantia, o cumprimento de uma prestação (mas já não o pagamento de uma parte da dívida, se o solvens declara simultaneamente que não se considera devedor da parte restante), o pedido de prorrogação do prazo (...)" ( ) Loc. cit., pág. 292.).

2. 2. - O artigo 325º prescreve o seguinte:

1. A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.
2. O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimem.

O elemento literal da norma do nº 1 revela-se suficientemente claro no sentido de que o reconhecimento do direito, idóneo para interromper a prescrição, terá que ser efectuado perante o respectivo titular, não podendo sê-lo perante terceiros.
Como explica Vaz Serra, "o reconhecimento feito ante um terceiro não dá garantias suficientes de que represente uma inequívoca declaração do conhecimento da existência do direito. Aquele que declara perante um terceiro que existe certo direito pode fazê-lo com leviandade maior do que se essa declaração fosse feita perante o titular" ( ) Apud acórdão deste STJ de 13-10-98, processo nº 437/98, 1ª Secção, citando Vaz Serra, in "Prescrição. Caducidade".).

2.3. - O que, na factualidade dada como assente, se apurou foi o seguinte:

Em conversa tida no escritório do Sr. Dr. E, em 1994, o R. C - cuja presença foi informalmente solicitada por aquele a pedido da A., como amigo de toda a família e com vista à resolução consensual dos conflitos familiares pendentes - aceitou pagar a quantia referida em B), desde que se realizasse a partilha por morte de seu pai referente aos bens existentes na Guiné e no âmbito desta.

Desta factualidade não resulta sequer que o Senhor Advogado em questão fosse mandatário dos AA.
Pelo contrário, dela decorre que o mesmo terá agido informalmente, a pedido da A., como um amigo de toda a família.
Ou seja, a posição do Advogado em apreço é manifestamente, no que à prescrição do artigo 325º diz respeito, a de terceiro e não a de titular do direito.
Resulta ainda do nº 2 do artigo 325º, que o reconhecimento pode ser tácito, caso em que só é relevante se resultar de factos que inequivocamente o exprimam.
Mas, como bem se salientou na decisão da 1ª instância, confirmada por remissão pela Relação, não é possível, a partir da factualidade apurada, afirmar ou concluir, de forma inequívoca, que tal declaração corresponda ao reconhecimento de um direito dos AA.
Com efeito, nessa reunião, o R. limitou-se a aceitar efectuar tal pagamento, desde que enquadrado no contexto da partilha por morte de seu pai, no respeitante aos bens existentes na Guiné.
É, assim, perfeitamente viável defender a ideia de que a aceitação da realização do referido pagamento representaria, por parte do R. marido, a formulação de uma opção negocial, inserida num contexto mais vasto, que poderia, porventura, implicar cedências ou concessões por parte dos AA. no quadro do referido processo de partilhas.
Não é, pois, possível extrair da factualidade dada como provada qualquer acto de reconhecimento de dívida, designadamente para o efeito de interrupção do prazo de prescrição com a reunião de 1994.
Deste modo, conclui-se pela improcedência das conclusões dos Recorrentes, não tendo a decisão recorrida violado o artigo 325º do Código Civil.

Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 23 de Setembro de 1999.
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro.