Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
046752
Nº Convencional: JSTJ00025267
Relator: CASTANHEIRA DA COSTA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
ARMA PROIBIDA
OFENSAS CORPORAIS COM DOLO DE PERIGO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
ERRO NOTÓRIO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
REENVIO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ199410190467523
Data do Acordão: 10/19/1994
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PESSOAS / CRIM C/SOCIEDADE.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 77 ARTIGO 144 ARTIGO 260.
CPP87 ARTIGO 410 N2 C ARTIGO 426 ARTIGO 433.
DL 430/83 DE 1983/12/13 ARTIGO 23 N1 ARTIGO 24 N1.
Sumário : I - Há caso notório na apreciação das provas, nos termos da alínea c) do n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, quando o tribunal dá como certo ter sido anteriormente condenado o réu pelo crime do artigo 144 do Código Penal, sendo, todavia, possivel que o certificado de registo criminal junto se refira a outra pessoa.
II - Tal erro não justifica a anulação do julgamento e o reenvio do processo. O Supremo, no caso, afastará a existência do antecedente referido e tirará daí as devidas consequências, se as tiver.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Os arguidos
1. A e
2. B, devidamente identificados nos autos, foram acusados pelo Ministério
Público, no processo comum n. 622 - (1240/92. OTJ-LSB) da 2 Vara Criminal de Lisboa, da prática de um crime de tráfico de quantidade diminuta de estupefaciente previsto e punido pelos artigos 23 n. 1 e 24 n. 1 e 3 do Decreto-Lei 430/83 de 13 de Dezembro, sendo o arguido B como reincidente, nos termos do artigo 76 n. 1 do Código Penal.
Submetido a julgamento, em 10 de Fevereiro de 1994 o
Tribunal Colectivo deu como provados os seguintes factos:
- Em 28 de Julho de 1992, a arguida A encarregou C, filho menor de ambos, de entregar no Estabelecimento Prisional de Lisboa, destinado ao arguido B, que ali estava detido, um saco onde tinha introduzido, entre os objectos pessoais e alimentos destinados a este, 327 miligramas de um produto que, através de exame Laboratorial, se verificou ser heroína.
Fê-lo na sequência de acordo prévio havido entre ela e o arguido B, de introduzir no estabelecimento prisional aquele estupefaciente.
O C deixou, nesse dia, o saco no referido estabelecimento prisional para ser entregue ao arguido B.
No estabelecimento prisional porém, na revista que fizeram ao saco, os guardas prisionais detectaram e apreenderam a heroína nele introduzida.
A A e o B conheciam a natureza estupefaciente da heroína.
Sabiam que a sua conduta não era permitida.
Os 327 miligramas de heroína não excedem a quantidade desse produto que um consumidor normal consome por dia.
O arguido B foi condenado no processo 2318/86, por decisão de 2 de Fevereiro de 1987 do Tribunal Judicial de Cascais, 3 Juízo, 1 Secção, na pena de sete anos de prisão e 50000 escudos de multa, e na expulsão do pais, por tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 23 n. 1 e 27 b) do Decreto-Lei 430/83 de 13 de Dezembro.
A pena de expulsão veio no entanto a ser revogada por indulto de sua Excelência o Senhor Presidente da República de 22 de Dezembro de 1988.
Foi ainda condenado no processo 3598/92 por decisão de 9 de Julho de 1992 do Tribunal Judicial de Cascais - 3 Juízo, 2 Secção na pena de sete anos de prisão e 150000 escudos de multa pelo crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 23 n. 1 do Decreto-Lei 430/83, cometido em 29 de Outubro de 1991.
No processo 1969/90, por decisão de 4 de Fevereiro de 1993 do tribunal Judicial de Cascais, 4 Juízo, 2 Secção, na pena de 7 meses de prisão, digo, 7 meses de prisão suspensa por dois anos e toda perdoada nos termos do artigo 13 da Lei 16/86, por um crime de detenção de arma proibida cometido em 4 de Setembro de 1985.
No processo 65/92, por decisão de 13 de Março de 1992 de Tribunal Judicial de Loures, 4 Juízo - 2 Secção, por factos de 2 de Novembro de 1991, foi condenado na pena de dois anos de prisão por um crime previsto e punido pelo artigo 144 do Código Penal, e de 6 meses de prisão por um crime previsto e punido pelo artigo 260 do
Código Penal, e, em cúmulo, na pena de 2 anos e 3 meses, cuja execução ficou suspensa por 4 anos.
Tinha cumprido já parte da pena de prisão do processo 2318/86; mas esse facto não o coibiu de acordar, como acordou, com a arguida A em esta lhe fazer chegar às mãos a heroína referida.
A arguida A foi condenada por decisão de 14 de Julho de 1993 do Tribunal Judicial de Cascais, 3 Juízo - 2 Secção, na pena de 5 anos e 8 meses de prisão, por crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 23 n. 1 e 27 - c) do Decreto-Lei 430/83, cometido em 12 de Novembro de 1992 - (processo 1663/92.4 J. GLSB).
Está a cumprir a pena do dito processo 1663/92.
É natural de Angola, sendo cidadã da República Popular desse pais.
Filha de pais de média condição económica, perdeu a mãe aos 10 anos de idade.
Começou a trabalhar aos 12 anos de idade para uma família de origem portuguesa com quem veio para Lisboa.
Aos 20 anos de idade passou a viver maritalmente com o arguido B, com quem teve três filhos.
O arguido B está a cumprir a pena do dito processo 3598/92 e tem ainda a cumprir o remanescente da pena do processo 2318/86.
É cidadão da República de Cabo Verde.
O seu pai faleceu quando ele tinha 13 anos de idade.
Aos 17 anos de idade veio residir para Portugal.
Terminou a 4 classe quando cumpriu pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus.
Antes de preso exercia a profissão de pedreiro.
Perante tal quadro factual o tribunal Colectivo julgou a arguida A autora de um crime previsto e punido pelos artigos 23 n. 1 e 24 n. 1 e 3 do Decreto-Lei 430/83 de 13 de Dezembro e condenou-a na pena de 15 meses de prisão e 50000 escudos de multa; e o arguido B autor de um crime previsto e punido pelos artigos 23 n. 1 e 24 n. 1 e 3 do mesmo Decreto-Lei, como reincidente, nos termos do artigo 76 n. 1 e 77 n.
1 do Código Penal e condenou-o na pena de 2 anos de prisão e 200000 escudos de multa.
Inconformado o arguido B interpôs recurso que motivou formulando as seguintes conclusões.
1 - O Tribunal "a quo" valorou certidão oficial de Registo Criminal de um outro cidadão que não o arguido, o que constitui erro notório de identidade, e que influiu significativamente, pela negativa, na apreciação da prova, e na convicção dos juizes para condenar o arguido.
2 - Deverá, por isso, o Supremo Tribunal de Justiça determinar a anulação do julgamento e o reenvio do processo para novo julgamento, em abono da verdade factual, da realidade da prova documental e por uma
Justiça sempre Digna.
Respondendo a Excelentíssima Magistrada do Ministério
Público na comarca concluiu assim:
1 - O recorrente não indica, de forma expressa qual o fundamento do seu recurso, tendo em conta o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 433 e 410 n. 2 e 3 do Código de Processo Penal.
2 - Poder-se-à, porém, retirar da sua conclusão, que o fundamento do recurso assenta no vício da alínea c) do artigo 410 do n. 2 do Código de Processo Penal - Erro notório na apreciação da prova.
3 - Trata-se de uma fundamentação implícita, de duvidosa aceitação.
Em todo o caso.
4 - O acórdão recorrido baseou a sua convicção quanto ao facto dado como provado de que o arguido foi condenado no processo 65/92 do Tribunal de Loures não no boletim n. 9 do seu Certificado de Registo Criminal mas sim na certidão de folhas 185 a 189, a qual, no entanto, diverge na filiação e data de nascimento, em relação à identificação do arguido.
5 - Não constitui, porém, erro notório na apreciação da prova para efeitos do artigo 410 n. 2 alínea c) do Código de Processo Penal; determinador da anulação do julgamento e do reenvio do processo nos termos do artigo 426 do mesmo diploma, pelos motivos expostos na motivação;
Nomeadamente: a) Não foi levantada, em qualquer momento, antes deste recurso, a inveracidade de boletim n. 9 e da certidão referida, nem a sua não correspondência ao arguido. b) Trata-se de documentos autênticos ou com igual força. c) O facto dado como provado não contraria o conteúdo da certidão nem do boletim que integra o C.R.C. do arguido. d) Não teve aquele facto influência quer na imputação do ilícito ao arguido, na prova do mesmo, quer na pena concreta que lhe foi aplicada, como resulta do próprio texto da decisão recorrida.
6 - Sendo possível a correcção da decisão através do recurso ao disposto no artigo 380 alínea b) do C.P.P..
7 - Ou, caso assim se não entenda, deverá ser anulado, apenas naquela parte, o acórdão, ordenando-se a elaboração de nova decisão da qual não consta tal facto como provado, tanto mais que se trata de prova documental.
Razão pela qual deve ser negado provimento ao recurso nos termos em que é peticionado pelo recorrente decidindo-se como for de justiça.
Cumpre decidir:
No seu bem elaborado acórdão o Tribunal Colectivo fundamentou a sua decisão, para além do mais, "no registo criminal do arguido (folhas 89 a 99)" e "nos documentos de folhas 175 a 189".
Desse certificado e dessa decisão consta, para além do mais, que "B Tavares Alvarenga foi condenado no processo 65/92, por decisão de 13 de Março de 1992 do Tribunal Judicial de Loures, 4 Juízo - 2 Secção, por factos de 2 de Novembro de 1991, nas penas de dois anos de prisão, por um crime previsto e punido pelo artigo
144 do Código Penal, e de seis meses de prisão por um crime previsto e punido pelo artigo 260 do mesmo diploma, e, em cúmulo, na pena de dois anos e três meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por quatro anos.
Verifica-se que os restantes elementos de identificação não correspondem aos do arguido, nomeadamente a filiação e a data do nascimento.
Na decisão o Tribunal Colectivo deu esse facto como provado.
O recurso é fundamentado em vício da decisão de facto, que se traduzirá em "erro notório na apreciação da prova".
Nos termos do artigo 410 n. 2 c) do Código de Processo Penal é perfeitamente de admitir este recurso e, por força do artigo 433 do mesmo diploma, cabe nos poderes deste Supremo Tribunal o seu conhecimento.
Como resulta do próprio texto da Lei este vício traduz-se em ter havido errada apreciação de certo meio de prova utilizado, que é notório na decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Quando resulta de meio de prova vinculativo, como é o caso de resultar de documento autêntico - o que sucede no caso que nos ocupa - esse erro resultará da circunstância de o Tribunal ter decidido de forma contrária ao que consta desse meio de prova utilizado.
É o que sucede, por exemplo, se o Tribunal der como provado que certo indivíduo vendeu um prédio, com base na respectiva escritura, quando nela ele figura como comprador, ou é outra a pessoa identificada como vendedor.
Sem recurso a quaisquer elementos estranhos à própria decisão e aos elementos que ela refere como utilizados e que podem ser confrontados pelo Tribunal Superior, será notório que existiu um erro na decisão que foi tomada.
Nitidamente que, nessas situações o recurso vem exercer a sua verdadeira função de permitir o reexame do julgamento, na procura da verdade e da justiça.
No presente caso a sentença para decidir quanto à fixação da medida da pena teve que atender ao anterior comportamento do arguido e, para isso, entrou com aquela condenação, que deu como provada, e que afinal se refere a pessoa com diversa identidade. E isto porque errou ao não reparar que o boletim em que ela assentava e a própria certidão da condenação se referiam a pessoa com diferentes elementos de identificação.
Consequentemente este facto não pode ser julgado provado, o que se declara desde já.
Simplesmente acontece que a constatação deste vício não tem as consequências que o recorrente pretende, de anulação e reenvio.
Nunca seria caso de anulação porquanto não existe qualquer nulidade, mas apenas um erro de apuramento de ponto de facto, que acarreta um erro de julgamento.
Por outro lado, nos termos do artigo 426 do Código de
Processo Penal o reenvio apenas deve ser ordenado, quando "não for possível decidir da causa" o que não é o caso.
A dúvida criada pela não correspondência entre os elementos de identificação que constam do referido boletim do registo criminal e a real identificação do arguido, criam efectivamente dúvida sobre a prática, por ele, do referido crime. E essa dúvida, relativamente a tal questão de facto, tem de ser decidida a favor dele, e, em consequência apenas tem como efeito não ser dado como provado esse facto.
Como, contudo, todos os demais permitem desde já uma decisão, é isso que terá de ser feito, e vai consequentemente fazer-se.
Na parte de aplicação do direito aos factos provados e de fixação da medida da pena, o Tribunal Colectivo não fez a menor referência a esta condenação no processo 65/92 do Tribunal Judicial de Loures.
Efectivamente refere-se no acórdão recorrido a folha 208 - "Antes da prática do crime deste processo o arguido B já sofreu duas condenações por tráfico de estupefacientes e cumpriu a pena de prisão em que foi condenado no processo 2318/86, o que demonstra que as condenações anteriores não foram suficientes para o dissuadir da prática do crime".
E a folha 209 acrescenta-se: "Considerando o que está apurado e tudo o atrás expendido, nomeadamente o valor tutelado pela norma violada, as circunstâncias do facto ilícito e as suas consequências, os antecedentes criminais do arguido B ... a pena concreta, deve (para ele) fixar-se em 2 anos de prisão e 200000 escudos de multa," como autor de um crime do artigo 23 n. 1 do Decreto-Lei n. 430/83.
E isto porque se atendeu à gravidade da conduta do arguido preso que recebe, ou actua por forma a receber, droga introduzida no estabelecimento prisional, por menor, à circunstância de ele não ter chegado a ter contacto com essa droga, ao facto de a sua actuação ter resultado de acordo com a arguida e um filho menor de ambos, de ser elevado o grau da ilicitude do facto e intenso o dolo, aos seus antecedentes criminais, que o tornam reincidente, e às necessidades de prevenção especial e geral.
Ora, sendo a moldura penal de 16 meses a 4 anos de prisão - artigo 23 n. 1 e 24 n. 1 do Decreto-Lei 430/83 e artigo 77 do Código penal - a pena aplicada de dois anos de prisão de forma alguma se pode considerar exagerada ou a merecer redução, atendendo ao descrito quadro circunstancial.
Por isso o erro cometido não tem qualquer consequência na decisão que deve ser tomada e consequentemente negando provimento ao recurso confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente fixando em 5 UCs a taxa de justiça. Honorários à defensora 7500 escudos.
Lisboa, 19 de Outubro de 1994.
Castanheira da Costa;
Amado Gomes;
Oliveira Matias;
Teixeira do Carmo.
Decisão impugnada:
Acórdão de 10 de Fevereiro de 1994 da 2 Vara Criminal,
2 Secção - Lisboa.