Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98P1003
Nº Convencional: JSTJ00035306
Relator: FLORES RIBEIRO
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
DOLO EVENTUAL
Nº do Documento: SJ199901190010033
Data do Acordão: 01/19/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N483 ANO1999 PAG57
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP95 ARTIGO 14 N3 ARTIGO 32 ARTIGO 33 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1988/01/27 IN BMJ N373 PAG317.
ACÓRDÃO STJ DE 1984/06/06 IN BMJ N337 PAG307.
ACÓRDÃO STJ DE 1984/07/14 IN BMJ N339 PAG256.
Sumário : I - São pressupostos da legítima defesa uma agressão actual e a ilicitude da mesma, por um lado, e uma defesa que, para que considerada lícita, seja necessária para repelir a agressão e uma actuação com vontade de defesa, o "animus defendendi", por outro.
II - Para que se verifique excesso de legítima defesa é necessário que ocorram os pressupostos da legítma defesa, uma vez que o excesso só poderá verificar-se em relação aos meios empregados na defesa.
III - Estamos perante uma situação de dolo eventual quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta e o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1. Subsecção
Criminal:
No 2. Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de
Santarém responderam, em processo comum e perante o
Tribunal Colectivo, os arguidos A, e B, ambos com os sinais dos autos a quem o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público imputa a prática, na sua acusação, quanto ao arguido A, de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131 e 22 do Código Penal de 82 e no tocante ao arguido B, de um crime de ofensas corporais, previsto e punido pelo artigo 142 n. 1, do mesmo diploma.
O arguido A constituiu-se assistente nos autos e, contra o arguido B, deduziu acusação particular imputando a este a prática de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 165 do referido Código, formulando contra o mesmo pedido de indemnização civil, reclamando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 75000 escudos por danos não patrimoniais que alega ter sofrido.
Por sua vez, o arguido B, enquanto lesado, deduziu pedido cível contra o arguido A, solicitando a condenação deste a pagar-lhe a verba de 1335120 escudos, por danos patrimoniais e não patrimoniais, que diz ter sofrido, acrescidos de juros moratórios a partir da data da ocorrência dos factos.
Apenas o arguido B contestou oferecendo o merecimento dos autos.
Realizada a audiência de discussão e julgamento veio o
Tribunal Colectivo, em face da matéria de facto dada como provada a condenar o arguido A, como autor material de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131, 22, 23 n. 2 e 73 do Código Penal de 95 na pena de 3 anos de prisão. E a condenar o arguido B como autor de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181, do Código Penal de 95, na pena de 50 dias de multa a 500 escudos diários e como autor de um crime de ofensas corporais previsto e punido pelo artigo 142 do Código Penal de 82, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 500 escudos; em cúmulo condenou-se este arguido na pena
única de 120 dias de multa a 500 escudos por dia, ou seja, na multa de 60000 escudos, com 80 dias de prisão em alternativa.
Quanto aos pedidos de indemnização civil formulados e tendo já em conta o acórdão de folha 218 que rectificou o acórdão de folhas 175 e seguintes, foram os mesmos julgados parcialmente procedentes e assim condenou-se o arguido B a pagar ao ofendido A a quantia de 50000 escudos; e condenou-se o arguido A a pagar ao ofendido B a verba total de 1135120 escudos, acrescida de juros legais, desde 22 de Outubro de 1994 até efectivo pagamento.
Com o assim decidido não se conformou o arguido A e daí o ter interposto o presente recurso. Da motivação apresentada extraiu o recorrente as seguintes conclusões:
1. O ora recorrente foi condenado como autor material de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131, 22, 23 n. 2 e 73 do Código Penal de 1995, na pena de 3 anos de prisão.
2. Discorda o recorrente da sentença de que se recorre por considerar que, face aos factos dados como provados não se pode atribuir ao recorrente a autoria da prática de um crime de homicídio na forma tentada.
3. O recorrente exerceu o seu direito de legítima defesa e é à luz desta que a sua conduta deve ser apreciada.
4. E dos factos dados como provados o que se conclui é que o recorrente agiu em legítima defesa - vg. artigo 32 do Código Penal.
5. Nos termos do artigo 32 do Código Penal de 1995,
"Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros".
6. São requisitos de legítima defesa a existência de uma agressão, a qual deverá ser actual e ilícita e a intenção de defesa por parte do arguido.
7. No caso dos autos estão reunidos os requisitos de legítima defesa.
8. Ficou provado nos autos que o ora recorrente se encontrava, no dia dos factos, entretido a jogar matraquilhos e que a dada altura foi apalpado nas nádegas pelo ofendido.
9. Ficou também provado que já cá fora do café, o recorrente foi agredido a soco e depois com um cinto na cara.
10. Tais factos consubstanciam uma agressão, a qual é ilícita e actual (acrescente-se que o ofendido/arguido foi condenado pela prática destes crimes).
11. Foi dado ainda como provado que "ao desferir a navalha no abdómen do B, agiu o arguido A com o propósito de o afastar de si, em reacção à ofensa que este lhe acabara de cometer".
12. Este facto dado como provado é significativo e não deixa dúvidas quanto à intenção com que o recorrente agiu: "... com o propósito de o afastar de si...".
13. Este facto demonstra inequivocamente que o recorrente agiu com "animus defendendi", não tendo tido outra intenção que não a de repelir uma agressão de que estava a ser vítima.
14. O recorrente não teve intenção de matar. Aliás, é o próprio tribunal "a quo" que dá como assente que o recorrente agiu com o propósito de afastar o agressor.
15. De todos estes factos, ter-se-á que concluir que o recorrente apenas se defendeu de uma agressão, a qual não foi provocada por si, nem para ela contribuiu, como reconhece o acórdão recorrido ao concluir que "o arguido foi arrastado para o sucedido pela própria vítima".
16. Face aos factos dados como provados o tribunal "a quo" deveria ter concluído que o recorrente agiu em legítima defesa - artigo 32 do Código Penal de 95.
17. A legítima defesa é uma causa de exclusão de ilicitude - artigo 31 do Código Penal de 95 - pelo que a douta sentença recorrida deveria ter concluído pela absolvição do recorrente, nos termos dos artigos 31 e
32, ambos do Código Penal de 95.
18. Ao assim não fazer, o douto acórdão recorrido, fez erróneo enquadramento jurídico da matéria de facto dada como provada.
19. Os factos dados como provados não integram o crime previsto e punido pelos artigos 131, 22, 23 n. 2 e 73 do Código Penal, pelo que estes preceitos não são aplicáveis ao caso concreto.
20. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 31 e 32 do Código Penal de 95.
21. Mas mesmo que assim não se entendesse, o que só por mera hipótese académica se admite, concluir-se-á então que o recorrente agiu com excesso de legítima defesa.
22. Na verdade e como já se demonstrou, o recorrente apenas pretendeu defender-se de uma agressão actual e ilícita de que estava a ser vítima.
23. Pelo que estaremos sempre em presença de um caso de legítima defesa, em que no máximo se poderá concluir que o recorrente excedeu-se nos meios empregues na sua defesa.
24. Mas mesmo neste caso a conduta do recorrente não é punível por se enquadrar na previsão do n. 2 do artigo 33 do Código Penal de 95.
25. O recorrente agiu em estado emocional de perturbação, a qual foi criada pela conduta ilícita do ofendido.
26. O próprio tribunal "a quo" também assim concluiu
"... o arguido foi arrastado para o sucedido pela própria vítima, a qual, ao injuriá-lo minutos antes e, em particular, ao ofendê-lo fisicamente sem razão aparente, criou nele estado emocional de provocado, determinante de uma reacção imediata".
27. A não concluir pela legítima defesa, o tribunal "a quo" deveria ter concluído pelo excesso de legítima defesa.
28. Ao não o fazer, o acórdão recorrido violou a lei, nomeadamente, o artigo 33 do Código Penal de 95, fazendo incorrecto enquadramento jurídico dos factos.
29. Mas mesmo que assim também não se entendesse, nunca os elementos constantes dos autos levariam à conclusão de se estar perante uma tentativa de homicídio.
30. Na verdade, não se pode concluir pela existência de intenção.
31. Como já se viu, e como consta dos autos, o recorrente não procurou nem provocou qualquer briga ou discussão com o ofendido. Antes pelo contrário, foi este último que agrediu e provocou o recorrente.
32. Tais factos são dados como assentes no acórdão recorrido. Da mesma forma que é dado como assente que a agressão de que o recorrente foi vítima acarretou para ele um estado emocional de provocado, determinante de uma reacção imediata.
33. Se a esta conclusão expressa no acórdão recorrido juntarmos outra também do próprio acórdão - "ao desferir a navalha no abdómen do B, agiu o arguido A com o propósito de o afastar de si, em reacção à ofensa que este lhe acabara de cometer" - concluiremos que o recorrente agiu apenas com a intenção de se defender, não tendo tido qualquer outra intenção.
34. Dos autos o que resulta é que o recorrente tendo sido inquirido e depois agredido, se defendeu espetando uma navalha no agressor com o intuito de afastar este de si.
35. Nada nos autos nos leva ou permite concluir que o recorrente tivesse intenção de matar, ou tivesse previsto o resultado morte em consequência da sua conduta.
36. Não agiu o recorrente com dolo eventual.
37. De qualquer forma e sem conceder, o dolo eventual não chega por si só para preencher o tipo de crime- homicídio na forma tentada.
38. Na verdade, para existência deste crime torna-se necessário a existência de dolo directo.
39. Os factos dados como provados não configuram o crime previsto e punido pelos artigos 131, 22, 23 n. 2 e 73 do Código Penal de 95.
40. Assim e não aceitando que o recorrente tenha agido em legítima , o que só por mera hipótese se admite, sempre se teria de concluir que os factos integram um crime de ofensas corporais priviligiadas, nos termos do artigo 147 do Código Penal.
41. Ao assim não entender, o douto acórdão recorrido violou a lei, fazendo incorrecta interpretação da mesma.
42. Os factos dados como provados não preenchem a previsão dos artigos 131, 22, 23 n. 2 e 73 do Código Penal de 95, pelo que ao aplicá-los o acórdão recorrido violou a lei.
43. Por último e pondo a hipótese de o recorrente ter cometido o crime porque foi condenado, o que só por mera hipótese académica se admite, sempre se teria de concluir que a pena aplicada ao caso concreto foi exagerada e desproporcionada.
44. Desde logo, porque o douto acórdão não atendeu ao artigo 23 do Código Penal.
45. Este preceitua que à tentativa corresponde a pena de crime consumado especialmente atenuada.
46. Ora o douto acórdão apenas atendeu às atenuantes previstas no artigo 73 do Código Penal.
47. Salvo o devido respeito, no caso concreto, o arguido beneficia não só da atenuação prevista no artigo 73 do Código Penal, como também da prevista no artigo 23 do Código Penal.
48. Facto que por si só, transforma a pena aplicada manifestamente desajustada ao caso concreto.
49. Por outro lado, resultou provado que o arguido A é pessoa trabalhadora e por todos respeitado e estimado, gozando de boa reputação. Ficou ainda provado que não tem antecedentes criminais e que tem a seu cargo uma filha menor.
50. Ficou também demonstrado que o recorrente tem bom comportamento, quer anterior, quer posterior, pelo que nada leva a crer que enverede pela actividade criminosa. Antes pelo contrário, tudo leva a crer que o caso dos autos foi um incidente na vida do recorrente.
51. Não podendo também ser ignorado que sobre a data dos factos já passaram 3 anos.
52. A personalidade e comportamento do recorrente permite concluir com segurança pela inexistência de perigo na continuação em liberdade do recorrente.
53. Sendo também certo que o recorrente é um homem trabalhador, humilde e primário.
54. Donde, a simples ameaça da prisão é mais do que suficiente para realizar as finalidades da punição.
55. O recorrente reúne todos os requisitos necessários para que a pena de prisão aplicada seja suspensa nos termos do artigo 50 do Código Penal.
56. Ao assim não entender, o douto acórdão recorrido violou a lei por incorrecta interpretação.
Respondendo à motivação, o Excelentíssimo Magistrado do
Ministério Público defende doutamente a manutenção do acórdão recorrido.
Neste Supremo Tribunal o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e foi proferido o despacho preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a audiência oral, cumpre decidir.
A matéria de facto dada como provada é a seguinte:
1. No dia 22 de Outubro de 1994, cerca das 22 horas, o arguido A encontrava-se num café conhecido por "Café do Zé Rato", na Tapada, Almeirim, nesta comarca, entretido a jogar matraquilhos.
2. A dado momento entrou no mesmo café o arguido B e, aproximando-se do A, consciente e deliberadamente, apalpou-lhe as nádegas, reagindo este dizendo-lhe que estivesse quieto e trocando ambos palavras cujo teor não se apurou.
3. Cerca de 10 minutos depois, quando o B se encontrava já no exterior do café, o A dirigiu-se a ele em tom ameaçador questionando-o sobre o sucedido consigo minutos antes. Foi então que o B desferiu um soco na cara do A e depois com um cinto bateu-lhe também na cara, pretendo molestá-lo fisicamente não resultando, porém, para aquele, quaisquer lesões que tenha sido possível examinar.
4. De imediato o A abriu uma navalha própria para cortar com uma lâmina de um só gume que trazia no bolso das calças e com ela desferiu com força uma navalhada no B, atingindo-o no abdómen. Dessa forma, causou-lhe uma ferida perfurante atingindo o fígado e vesícula biliar, interceptando ramos portais e arteriais supra biliares e raízes da veia supra hepática média, determinando hemorragia cataclística.
5. Para controlo da situação, procedeu-se de imediato a intervenção cirúrgica no Hospital Distrital de Santarém e a transfusão de sangue, tendo ficado esgotado o sangue existente neste Hospital, no de Torres Novas e no de Tomar.
6. Caso não tivesse existido esta pronta intervenção, as lesões causadas teriam determinado a morte do B.
7. Como consequência directa e necessária da conduta do A resultou para o B, para além das lesões descritas, um período de doença de 45 dias, todos com incapacidade para o trabalho profissional.
8. Ao desferir a navalha no abdómen do B, agiu o arguido A com o propósito de o afastar de si, em reacção à ofensa que este lhe acabara de cometer; previu que com a navalha pudesse atingir aquele em
órgãos vitais e, em consequência, lhe causar lesões e bem assim a morte; não obstante isso, não se absteve de espetar a navalha por lhe ser indiferente o resultado previsto e com este se ter conformado. A morte do B só não sobreveio em virtude de ele ter sido prontamente assistido no Hospital de Santarém que pediu apoio a hospitais vizinhos para a transfusão de sangue necessária.
9. Ambos os arguidos actuaram na forma acima descrita consciente e deliberadamente.
10. Ao apalpar as nádegas do arguido A, o arguido B teve o propósito de o ofender na sua honra e consideração. O A sentiu-se ofendido e envergonhado e alvo da chacota e olhares dos frequentadores do café. A
Tapada é um lugar pequeno onde todos se conhecem e onde as notícias correm céleres, sendo um meio constituído essencialmente por pessoas trabalhadores e de condição económica e social modesta.
11. O arguido A é pessoa trabalhadora e por todos respeitado e estimado, gozando de boa reputação.
12. Nada consta do seu certificado de registo criminal.
Aufere 4000 escudos por dia na sua actividade de tractorista, tendo a seu cargo uma filha menor.
13. Confessou a materialidade dos factos, mas negou a intenção.
14. O arguido B não tem antecedentes criminais, aufere
5000 escudos por dia como tractorista. Negou a ofensa e a agressão ao A.
15. Fez despesas hospitalares no montante de 543581 escudos ainda não pagou, em consequência das lesões sofridas. Despendeu 3120 escudos em deslocações para tratamentos no Hospital de Santarém.
16. Na data dos factos trabalhava na agricultura para C, auferindo o salário diário de 4000 escudos. Perdeu 33 dias úteis de trabalho em consequência das agressões.
17. Esteve internado no Hospital de Santarém até ao dia 23 de Outubro de 1994 e depois aí se deslocou por três vezes para mudar os pensos. Foi também internado no Hospital de S. José em Lisboa.
18. Apercebeu-se do estado precário da sua situação logo após a navalhada e à medida que se esvaia em sangue. Sofreu dores, receou que a sua vida corresse perigo e que ficasse incapacitado para o trabalho activo na agricultura, sua única fonte de rendimento.
Ficou com uma cicatriz com mais de 25 centímetros e dificuldade em se dobrar e em permanecer sentado por algum tempo, o que afecta a sua actividade rural, a qual exige e impõe esforço e vigor físicos. Viu-se forçado a paciente e doloroso período de convalescença.
A sua vida com a família foi afectada, dada a delicadeza das zonas atingidas, impossibilitando a sua plena movimentação.
Determina o artigo 433 do Código de Processo Penal que, sem prejuízo do disposto no artigo 410 ns. 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
É pacífica a jurisprudência deste Supremo no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Não vem arguida qualquer nulidade nem se vê que ocorra alguma das consideradas por lei como insanável.
Também não vem invocado, nem se vê que exista, algum dos vícios referidos no n. 2 do artigo 410. São por isso, definitivos os factos dados como provados.
Determina o artigo 32 do Código Penal que "constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro".
Desta norma resulta que são pressupostos da legítima defesa uma agressão actual e a ilicitude da mesma, por um lado, e uma defesa que, para que considerada lícita, seja necessária para repelir a agressão e que se actue com vontade de defesa, o "animus defendendi", por outro.
Entendemos ao contrário do defendido, por exemplo, pelo Professor Marques da Silva na sua obra Direito Penal Português, Parte Geral II, Verbo, 1998, página 97, que é requisito da defesa o "animus defendendi". Com efeito, quando a lei diz "facto praticado como meio necessário para repelir a agressão", está a exigir que o agredido aja com intenção de se defender de uma agressão. Aliás, é neste sentido, praticamente, a jurisprudência deste Supremo, como se pode ver nos vários acórdãos citados em Leal Henriques e Simas Santos - Código Penal anotado, volume 1., 1995, páginas 339 e seguintes.
Estabelecidos os princípios à luz dos quais há que analisar a factualidade apurada, vejamos se os requisitos da legítima defesa se verificam ou não.
Ficou provado que, quando o arguido A se encontrava a jogar os matraquilhos, veio o B e lhe apalpou as nádegas. Só decorridos que foram 10 minutos é que o A, já fora do café em que tal facto ocorreu, veio pedir satisfações ao B pelo acto por este cometido. Logo este lhe deu um soco na cara e depois agrediu-o com um cinto, não se mostrando eminente qualquer outra agressão.
Daqui pode concluir-se que o A, ao agredir com a navalha o B, não estava já perante uma agressão ilícita e actual. E mais. Ele ao agredir, com a navalha, o B não agiu com intenção de se defender, mas, como ficou provado, com o único intuito de afastar de si o B. Uma coisa é agir com "animus defendendi", outra o afastar o antagonista de si.
De todos os factos provados referidos nos ns. 1 a 4, só se pode chegar à conclusão que, na realidade, não ocorreu uma situação enquadrável na legítima defesa.
Logo, falece razão ao recorrente nas conclusões 1 a 20.
Determina o n. 1 do artigo 33 do Código Penal que "se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada".
A lei é clara: para que se verifique excesso de legítima defesa é necessário que ocorram os pressupostos da legítima defesa, uma vez que o excesso só poderá verificar-se em relação aos meios empregados na defesa. É esta a orientação jurisprudencial deste Supremo
- veja-se por todos o acórdão de 27 de Janeiro de 1988, no B.M.J. 373, 317 - e também doutrinal, como se pode ver na obra já citada do Professor Marques da Silva, a página 101.
Ora, se não ocorreram os pressupostos da legítima defesa que leva, como consequência, à não existência desta, é óbvio que também não pode verificar-se o excesso de legítima defesa.
Improcedem, assim, as conclusões 21 a 28.
Ficou dado como provado - ver facto n. 8 - que o ora recorrente ao dar a navalhada previu que pudesse atingir o ofendido B em órgãos vitais e, em consequência, causar-lhe lesões e, bem assim, a morte e, não obstante isto, não se absteve de espetar a navalha por lhe ser indiferente o resultado previsto e com este se ter conformado. A morte do B só não sobreveio por circunstâncias independentes da vontade do ora recorrente.
Estamos perante uma situação de dolo eventual quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime por representada como consequência possível da conduta e o agente actuar conformando-se com aquela realização - n. 3 do artigo 14 do Código Penal.
Conjugando os factos provados e acima referidos com o constante nesta citada norma, dúvidas legítimas não podem existir de que o ora recorrente agiu com dolo eventual como diz o acórdão deste Supremo, de 6 de
Junho de 1984, B.M.J. 337, 307, age com dolo eventual quem se representa a morte da vítima como consequência possível da sua conduta e se conforma com o resultado.
E nenhuma contradição existe entre a primeira parte do facto n. 8 com a restante matéria aí dada como provada.
Se o dolo eventual não é incompatível com o ânimo da defesa com que o agente actuou (veja-se o acórdão do S.T.J. de 14 de Julho de 1984, no B.M.J. 339, 256) igualmente o não é quando o agressor age com a única intenção de afastar o ofendido de si.
Improcedem, igualmente, as conclusões 29 a 42.
Não tem qualquer fundamento as conclusões 43 a 48.
Como resulta do acórdão recorrido, o arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada. Daí que a pena prevista para tal crime - 8 a 16 anos, de acordo com o artigo 131 - tenha que ser conjugada com o estabelecido no n. 2 do artigo 23.
E foi o que o acórdão recorrido fez: referências ao n. 2 do artigo 23 e ao artigo 73. Aquela norma, porque é ela que determina a pena do crime tentado; a este artigo, por ser o que determina, em concreto, os limites da pena aplicável.
As duas normas foram correctamente aplicadas pelo que, também neste capítulo nada há a censurar ao acórdão "sub judice".
E será de suspender a execução da pena?
Determina o n. 1 do artigo 50 do Código Penal: O tribunal suspende a execução da prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Escreveu-se no acórdão deste Supremo, de 30 de Setembro de 1998, Processo n. 841/98 que "Nos termos do disposto no artigo 40 n. 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, o que significa que, visando, também, determinar o agente a que, na sua conduta exterior, mantenha fidelidade ao Direito - dessa forma o afastando da criminalidade - ela tem como objectivo primordial restabelecer a crença colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime. Logo, quando se cura de saber se a suspensão da execução da pena de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que se pergunta é se, no caso concreto, a simples censura do facto e a ameaça da prisão se apresentam como suficientemente eficazes para, por um lado, afastar o agente da prática de novos crimes e para, por outro, estabilizar contrafacticamente as expectativas comunitárias na validade da norma violada".
Ficou provado que o arguido A é pessoa trabalhadora e por todos respeitado e estimado, gozando de boa reputação; nada consta do seu certificado de registo criminal; é tractorista e tem uma filha menor a seu cargo; confessou a materialidade dos factos, mas negou a intenção - factos 11, 12 e 13.
Igualmente resulta que o comportamento do arguido A ficou a dever-se a uma atitude menos correcta do ofendido.
Parece estar o A integrado na sociedade, representando a sua atitude, na maneira de ser do mesmo, um acto meramente ocasional.
Por tudo isto, julga-se que a simples censura e a ameaça de prisão sejam suficientes para atingir as finalidades de punição.
Foi o arguido condenado a pagar uma indemnização ao ofendido B. Subordinando a suspensão da execução da pena - n. 2 do artigo 50 do Código Penal - ao pagamento de tal indemnização, vai-se igualmente proteger o interesse do ofendido. E tal pagamento deverá ser feito no prazo de um ano, sendo o período de suspensão o de 3 anos.
Nestes termos, a ordem em dar provimento parcial ao recurso e, assim, suspende-se a execução da pena aplicada ao arguido A pelo período de 3 anos, com a condição de pagar a indemnização em que foi condenado a pagar ao ofendido B no prazo de 1 ano e o demonstrar nos autos.
Vai ainda condenado em 4 Ucs de taxa de justiça, com procuradoria que se fixa em 1/4. Fixa-se os honorários em 15000 escudos a pagar pelos Cofres.
Lisboa, 19 de Janeiro de 1999
Flores Ribeiro,
Brito Câmara,
Martins Ramires,
Pires Salpico.
2. Juizo Criminal de Santarém - Processo n. 416/96.
Acórdão de 29 de Janeiro de 1998.