Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | URBANO DIAS | ||
Descritores: | MORA CREDITORIS ABUSO DO DIREITO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 06/09/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I – Em homenagem à regra da pontualidade (a prestação deve ser efectuada no tempo, lugar e modo próprios), deve o devedor fazer a entrega ao credor daquilo a que se obrigou. Caso ofereça apenas parte da prestação devida e o credor não a aceite, não ocorre mora accipiendi em relação à parte recusada, mas antes mora solvendi em relação a toda a prestação. II – Uma tal posição de recusa por parte do credor configura o exercício de um direito conferido por lei e, não tendo ele contribuído para a transgressão do devedor, nada justifica a invocação, por parte deste, da figura do abuso do direito. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Relatório AA intentou acção ordinária contra BB– Investimento, S. A. com vista a obter a sua condenação no pagamento de 160.684,58 € e juros vincendos sobre o capital de 160.684,58 €, à taxa Euribor de 6 meses, acrescida de dois pontos, desde 24 de Março de 2006 até integral pagamento. Em suma, alegou ter resolvido, com fundamento em incumprimento da R., o contrato-promessa com ela celebrado, tendo, por isso mesmo, direito a perceber a quantia peticionada, por via do que ficou estipulado na cláusula 5ª do contrato. Contestou a R., para dizer que não pagou ao A. o valor do sinal e juros, a que o A. tem direito, por virtude do seu próprio incumprimento, porque este, na carta que lhe enviou a 26/10/2004, exigiu um montante superior ao previamente estipulado, concretamente, dinheiros relativos a seguros de vida, a imposto de selo e avaliação e a juros calculados à taxa Euribor a 6 meses, acrescida de dois pontos percentuais e, ainda, um spread de 8%, e que lhe propôs o pagamento apenas do que estava estipulado, certo que os juros eram, na data da resolução, de 12.296,29 €, tendo aquele, posteriormente, em 15/12/2004, aduzido que os mesmos se contabilizavam em 16.000 €. Na réplica, o A. contrariou a versão dada pela R., alegando não ter havido mora da sua parte e que este, em 10 de Dezembro de 2004, se dispôs a pagar o capital mais 12.296,29 €, a título de juros, sendo que os mesmos, então, se computavam já em 14.290,17 €. Em sede de saneador e após uma frustrada tentativa de conciliação, foi proferida sentença a julgar o pedido procedente na totalidade. Sem êxito, apelou a R. para o Tribunal da Relação de Lisboa. Continuando inconformada, pede, ora, revista do aresto proferido, a coberto das seguintes conclusões com que fechou a sua minuta: - Na cláusula quinta do contrato-promessa de compra e venda, as partes fixaram uma cláusula penal, nos termos da qual se definiu a indemnização devida em caso de resolução do contrato-promessa de compra e venda, bem como o valor dos juros de mora devidos pela mora no pagamento dessa indemnização. - O A. não tinha direito a receber as quantias que reclamou da R., a título de “juros sobre os pagamentos efectuados à Pelicano” e de “seguros de dívida, imposto de selo e avaliação”. - Uma vez que esses valores não se encontram previstos na indemnização fixada pelas partes, na cláusula quinta do contrato-promessa de compra e venda. - Assim, o A. interpelou a R. para que pagasse valor superior ao que era devido, não sendo assim exigível à R. que o pagasse. - Pelo que o retardamento no cumprimento da obrigação da R., não se deveu a causa imputável à R., inexistindo assim, nos termos do artigo 804º, nº 2, do Código Civil, mora da R. - Esta conduta do A. originou a sua constituição em mora, nos termos do artigo 813° do Código Civil. - Uma vez que o A., ao reclamar o pagamento de um valor superior ao que lhe era efectivamente devido, impossibilitou o cumprimento da obrigação da R.. - O fax enviado pela R. ao A., em 10 de Dezembro de 2004, na qual a R. oferece o pagamento de juros de mora (€ 12.296,29) inferiores àqueles que o Tribunal recorrido julgou serem devidos nessa data (€ 14.290,17), não originou a constituição da R. em mora. - Dado que o A., no fax que enviou à R., em 15 de Dezembro de 2004, vem reclamar, mais uma vez, o pagamento de uma quantia superior à que lhe era, nessa altura, efectivamente devida, pois que peticionava juros de mora (€ 16.000,00) superiores aos que efectivamente eram devidos, como, de resto, entendeu o Tribunal recorrido. - Também por este motivo se deverá considerar que existe mora do credor, mora essa que, nos termos do artigo 814º, nº 2, do Código Civil, tem como efeito que a dívida deixe de vencer juros. - Porém, mesmo que se considere que não existia mora do credor, e que existia mora do devedor, ou seja, que seria apenas a R. a encontrar-se em mora, no que não se concede e só por dever de patrocínio se equaciona, sempre o A. agiria em abuso de direito ao peticionar o pagamento de juros de mora pelo retardamento no pagamento devido pela resolução do contrato-promessa de compra e venda. - Uma vez que esse retardamento é da responsabilidade do A., visto que este reclamou o pagamento de uma quantia superior à que lhe era efectivamente devida. - Tal conduta do A. configura um abuso de direito na sua sub modalidade de “tu quoque”, dado que o A. pretende fazer uso de um direito que decorre de uma sua conduta ilegítima. - Ou seja, não pode o A. beneficiar de um retardamento a que deu, ilegitimamente, azo. - Em conclusão de todo o exposto, não serão devidos juros de mora, pela R. ao A., relativos ao período posterior à resolução do contrato-promessa de compra e venda pelo A. O recorrido não contra-alegou. 2. As instâncias deram como provados os seguintes factos: 1. No dia 26 de Outubro de 2001, o A., por um lado, e a R., por outro, declararam por escrito, que designaram por “Contrato-Promessa de Compra e Venda” que: “ (…) 1ª A promitente vendedora é dona e legitima possuidora do lote de terreno para construção de uma moradia designado por lote nº 33-11, com a área de 441,10 m2, sito na Quinta ..., freguesia da Quinta ..., concelho de Palmela, que integra o processo de loteamento L-272000, aprovado pela Câmara Municipal de Palmela, correspondente ao empreendimento turístico “Palmela .....”. 2ª Pelo presente contrato a promitente vendedora promete vender ao promitente comprador e este promete comprar pelo preço total de 46.379.000$00, a que corresponde o preço em € 231.337,48, o lote com a moradia correspondente ao projecto do tipo 12, conforme planta anexa (anexo I ao presente contrato), com os acabamentos e equipamentos constantes do Anexo II (...)”. 3ª O preço de venda acordado será pago pelo promitente-comprador à promitente vendedora da seguinte forma: a) 4.637.900$00 ou € 23.133,75, nesta data, a título de sinal e princípio de pagamento, pelo qual a promitente vendedora dá ao promitente comprador a respectiva quitação, correspondente a 10% do valor de aquisição; b) 2.318.950$00 ou € 11.566,87, a título de reforço de sinal, no prazo de 90 dias a contar da assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição; c) 4.637.900$00 ou € 23.133,75, a título de reforço de sinal, no prazo de 180 dias após a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 10% do valor de aquisição; d) 2.318,950$00 ou € 11.566,87, a título de reforço de sinal, no prazo de 270 dias após a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição; e) 4.637.900$00 ou € 23.133,75, a título de reforço de sinal, no prazo de 360 dias após a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 10% do valor de aquisição; f) 2.318.950$00 ou € 11.566,87, a título de reforço de sinal, no prazo de 450 dias após a assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor da aquisição; g) 2.318.950$00 ou € 11.566,87, a título de reforço de sinal, no prazo de 540 dias após a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição; h) 2.318.950$00 ou € 11.566,87, a título de reforço de sinal, no prazo de 630 dias após a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição; i) 2.318.950$00 ou € 11.566,87, a título de reforço de sinal, no prazo de 720 dias após a assinatura do presente contrato-promessa de compra e venda, correspondente a 5% do valor de aquisição; j) O remanescente do preço, no montante de 18.551.600$00 ou € 92.534,99, correspondente a 40% do valor de aquisição, será pago no acto da outorga da escritura pública de compra e venda. 4ª A escritura pública de compra e venda será celebrada em dia, hora e Cartório Notarial a designar pela promitente-vendedora, até ao termo do prazo de 30 meses após assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, obrigando-se esta a avisar o promitente-comprador, por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 8 dias da data marcada. 5ª Caso a escritura pública de compra e venda objecto do presente contrato não seja outorgada no prazo previsto neste contrato, terá o promitente-comprador a faculdade de interpelar a promitente vendedora para proceder à marcação da respectiva escritura e, caso tal não seja efectuado no prazo de 180 dias, poderá então resolver este contrato, devendo, então, a promitente vendedora devolver-lhe as quantias recebidas ao abrigo do mesmo, a título de sinal e princípio de pagamento, acrescidas de juros calculados à taxa Euribor a 6 meses, mais 2 p.p. (dois pontos percentuais), pelo período compreendido entre as datas das suas respectivas entregas e a data da sua efectiva restituição (...)”. 2. A 19 de Março de 2004, o A. e a R. realizaram um aditamento ao acordo acima aludido, designado por “Aditamento ao contrato promessa de compra e venda de imóvel”, tendo a cláusula 2ª, alínea a) e a cláusula 3ª alínea j) passado a ter a seguinte redacção: “2ª a) Pelo presente contrato, a promitente vendedora promete vender ao 2º outorgante e este promete comprar pelo preço de € 239.884,47 (...) o lote de terreno para construção designado por lote 33-11, sito na Quinta da .., freguesia da Quinta do ..., concelho de Palmela (...)”. 3ª (...) j) O remanescente do preço, no montante de € 101.081,98 será pago no acto de outorga da escritura pública de compra e venda”. 3. O A., na data referida em 1., entregou à R. a quantia de € 23.133,75. 4. O A. entregou à R, as quantias de: € 11.566,87 em 28.01.2002; € 23.133,75 em 30.04.2002; €11.566,87 em 29.07.2002; €23.133,75 em 29.10.2002; €11.566,87 em 29.01.2003; €11.566,87 em 09.05.2003; €11.566,87 em 01.08.2003; €11.566,87 em 31.10.2003. 5. Trinta meses após a data do acordo referido em 1., a R. não tinha marcado dia, hora e Cartório Notarial para outorga da escritura pública referida em 1. 6. Em 27.04.2004, o A. enviou à R. uma carta registada com A/R, nos termos da qual: “ (…)”. 7. Em 05.05.2004, a R. enviou ao A. uma carta, nos termos da qual: “ (...).” 8. No dia 26.10.2004, o A. envia à R. uma carta registada com A/R, nos termos da qual: “ (...) No exercício da faculdade conferida na cláusula 5ª do contrato-promessa de compra e venda, outorgado em 26.10.2001, entre os AA. e Vexas., manifestamos pela presente carta a intenção definitiva de resolução do citado contrato. Pretendemos, assim, que V. Exas. procedam com a maior celeridade à rescisão do respectivo contrato, com a devolução dos valores por vós recebidos a título de sinal e princípio de pagamento (€ 138.802,47) e respectivos juros calculados à taxa Euribor de 6 meses, acrescidos de 2 p.p. (dois pontos percentuais). Aproveitamos para informar que durante os três anos que mediaram a efectivação do dito contrato e a presente carta foram por nós liquidados ao Banco Espírito Santo, os seguintes valores: € 13.188,17, referentes a juros sobre os pagamentos efectuados à BBa título de sinal e princípio de pagamento, com condições contratuais de Euribor 6 meses acrescido de spread a 0,8%, € 1.758,97, referentes a seguros de dívida, imposto de selo e avaliação, valores esses que perfazem o total de € 14.947,14. Sendo que assim agradeceríamos a maior rapidez possível na resolução do respectivo contrato de modo a evitar mais prejuízos ao AA”. 9. A R. não entregou à A. as quantias referidas nem os juros. 10. No dia 10.11.2004, o A., por intermédio da sua mandatária, enviou à R. uma carta registada com A/R, nos termos da qual: “ (...) Dirijo-me a V. Exas., na qualidade de mandatária do Sr. AA. Não obstante a carta registada com A/R enviada pelo meu cliente em 26.10.2004, que se refere à sua intenção de resolução do contrato-promessa de compra e venda nos termos da clausula 5ª do contrato identificado em epígrafe outorgado em 26.10.2001, até à presente data não houve lugar ao pagamento das quantias a que V. Exas. se encontram obrigados nos termos do aludido contrato e que são as seguintes: A quantia de € 138.802,47 a título de devolução de sinal e princípio de pagamento, acrescida dos respectivos juros calculados à taxa de Euribor a 6 meses, acrescidos de dois pontos percentuais. A quantia de € 13.188,17, a título de juros liquidados pelo promitente-comprador sobre os pagamentos efectuados a título de sinal e princípio de pagamento; A quantia de 1.758,97 €, a título de seguros, imposto de selo e avaliação. Deste modo, interpelo V. Exas. para que, no prazo de 10 dias, procedam ao pagamento dos montantes em divida (...)”. 11. A 10 de Dezembro de 2004, a R., por fax enviado à mandatária do A., responde à carta referida em 10., nos termos do qual: “ (...) Vimos informar que a BBS.A. propõe celebrar com o cliente um acordo de revogação do contrato-promessa de compra e venda, restituindo ao cliente a quantia total de € 151.098,76, correspondente à soma da quantia de € 138.802,47, entregue a título de sinal e seus sucessivos reforços, acrescida do montante de € 12.296,29, a título de juros calculados à taxa Euribor a seis meses acrescidos de dois pontos percentuais (...)”. 12. No dia 15.12.2004, a mandatária do A. enviou, via fax, resposta ao fax referido em 11., nos termos do qual: “ (...) Quanto à proposta de restituição da quantia de € 138.802,47, a título de sinal e sucessivos reforços, os meus clientes nada têm a opor, pelo que aceitam desde já. No que diz respeito ao valor de € 12.296,29, referente a juros sobre os pagamentos efectuados a título de sinal e princípio de pagamento, em condições contratuais de Euribor a 6 meses, acrescidas de dois pontos percentuais pelo período compreendido entre as datas das respectivas entregas e data da sua efectiva restituição, os meus clientes não poderão aceitar o montante proposto, por ser manifestamente inferior ao valor devido, que na presente data se computa em € 16.000,00. Assim sendo, os meus clientes aceitam celebrar um acordo de revogação do contrato-promessa de compra e venda contra o pagamento das seguintes quantias: A quantia de € 138.802,47, a título de sinal e sucessivos reforços, acrescida de € 16.000,00, a título de juros sobre os pagamentos efectuados a título de sinal e principio de pagamento, em condições contratuais de Euribor 6 meses, acrescida de dois pontos percentuais pelo período compreendido entre as datas das respectivas entregas e data da sua efectiva restituição. Parece-me que esta proposta, para além de correcta, é bastante razoável, na medida em que os meus clientes nem sequer reclamam as quantias pagas a título de seguros imposto de selo e avaliações”. 13. No dia 10.01.2005, a R. responde ao fax referido em 12., nos termos do qual: “ (...) Como é do conhecimento do cliente e da I. Colega, a BB S.A. considerou-se interpelada para proceder à marcação da escritura pública de compra e venda até ao dia 27.10.2004, tendo as partes expressamente acordado na parte final da clausula 5ª do referido contrato promessa a consequência prevista para o incumprimento deste prazo, tendo o cliente usado a faculdade conferida nesta cláusula através da carta registada com A/R recebida pela BB, S.A., em 27.10.2004. Assim, a BB S.A. está na disposição de cumprir pontualmente o contrato promessa de compra e venda celebrado, ou seja, está na disposição de devolver ao cliente as quantias recebidas a título de sinal e princípio de pagamento, no montante total de € 138.802,47, acrescidas de juros à taxa Euribor a 6 meses mais dois pontos percentuais pelo período compreendido entre as datas das suas respectivas entregas e a data da sua efectiva restituição, o que perfaz o montante de € 12.296,29 de juros calculados até ao dia 10.12.2004, tudo conforme previsto na parte final da cláusula 5ª do referido contrato promessa. A BB S.A. não está, assim, na disposição de pagar ao cliente os montantes despendidos por este a título de seguro de vida, imposto de selo, avaliações, etc., mas sim de devolver ao cliente o valor global de € 151.098,76, conforme nosso fax de 10.12.2004”. 3. Quid iuris? A verdadeira questão que a recorrente coloca à nossa consideração, para decisão, é a de saber se o A.-recorrido entrou em mora (mora creditoris), impossibilitando-a de cumprir a obrigação a que estava adstrita, em resultado de ter incumprido o contrato-promessa que com ele firmara. Só, depois de resolvida esta, é que se nos coloca a outra, de saber se a conduta do A. é configurável como sendo abusiva, na modalidade “tu quoque”. Apesar de só agora a recorrente colocar na mesa da discussão este último problema, não nos impede de dele tomar conhecimento, dado que, como sabido, a excepção arguida é de conhecimento oficioso. Analisemos, pois, a 1ª questão. A mora define-se como sendo o atraso ou o retardamento no cumprimento da obrigação. Esta pode ser imputável tanto ao devedor (artigo 804º, nº 2, do Código Civil), como ao credor (artigo 813º do mesmo diploma legal). Assim, de acordo com o primeiro preceito legal citado, “o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada em tempo devido. E, segundo o último dispositivo legal referido, “o credor incorre em mora, quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”. O atraso no cumprimento atribui-se ao credor se este, injustificadamente, omite a cooperação necessária para que o devedor efectue a prestação. Em face do que está prescrito no supra citado artigo 813º, a mora creditoris baseia-se na ausência de motivo justificado, ou seja, de fundamento legítimo (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, página 1007, e Fernando Augusto Cunha de Sá, Direito ao Cumprimento e Direito a Cumprir, página 80, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3ª edição, páginas 86 e seguintes). Ora bem. No caso que nos inquieta, face à situação de incumprimento da R. do contrato firmado com o A. (facto este que não é posto em causa pelas Partes), competia a este, se tal fosse a sua vontade, resolver o contrato, dando, assim, azo a que aquela pagasse o que estava estipulado no próprio contrato-promessa para esta situação. Era condição primeira e essencial, para que o A. percebesse da R. a indemnização clausulada para o incumprimento, a declaração de resolução do contrato. E terá esta tido lugar? As instâncias deram este ponto como dado adquirido e, daí para a frente, curaram apenas de saber se houve efectivamente mora creditoris, o que, a verificar-se, impediria o A. de continuar a perceber juros desde a sua efectiva constituição, acabando ambas por concluir que a mesma não se verificou e que, por isso, assistia à R. o dever de, atempadamente, ter prestado aquilo a que se tinha obrigado. E, por via dessa consideração, acabaram por condenar a R. a pagar ao A. o capital em dívida (138.802,47 €) e juros vencidos no montante de 21.882,11 €. E o certo é que as Partes não puseram em causa esse juízo valorativo referente à resolução do contrato. Malgrado isso, é curioso que não se nos antolha de tarefa fácil tirar a conclusão de que o A. resolveu, efectivamente, o contrato, antes nos parecendo necessário um trabalho de interpretação de toda a documentação junta aos autos, para, com cuidado, chegar a tal conclusão. Como sabemos, a resolução é uma declaração unilateral receptícia pela qual uma das partes, dirigindo-se à outra, põe termo ao negócio retroactivamente, destruindo, assim, a relação contratual: é a ideia que se colhe da leitura do artigo 436º, nº 1, do Código Civil. “A resolução do contrato é um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral e encontra-se condicionada por um motivo previsto na lei ou depende de convenção das partes”: esta, a resolução convencional, funda-se na liberdade contratual, aquela, a resolução legal, encontra a sua justificação no incumprimento, na perda de equilíbrio contratual e, ainda, em outros casos em que, independentemente de qualificação, se aplica o regime deste meio de extinção do vínculo (Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, páginas 65 e 66) No caso sub iudice, as Partes estipularam que, por força do incumprimento da R., cumpria ao A., se nisso estivesse interessado, comunicar àquela a resolução do contrato, a sua destruição (resolução convencional), accionando, de seguida, a cláusula indemnizatória (cláusula 5ª). E o que é que o A. fez no concreto? Na carta de 26 de Outubro de 2004, depois, de manifestar a intenção resolutiva, pediu à R. para proceder com celeridade à rescisão do contrato. Face ao silêncio da R., perante as exigências do A., contidas na aludida carta, este escreveu, de novo, em 10 de Novembro de 2004, àquela referindo, entre o mais, a sua intenção de resolução do contrato. A esta carta respondeu a R., em 10 de Dezembro de 2004, na qual faz alusão à sua intenção de celebrar com o A. um acordo de revogação do contrato, a qual mereceu, em 15 de Dezembro de 2004, resposta deste, a dizer, além do mais, que aceitava celebrar um acordo de revogação do contrato. Esta última carta, mereceu resposta da R. e nela é referido que o A. usou, na carta que recebeu a 27 de Outubro de 2004, da faculdade conferida pela cláusula 5ª do contrato, o que equivale a dizer que resolveu o contrato. Vistas as cousas uti singuli, carta a carta, teremos de concluir que, formalmente, não houve, da parte do A., a tal declaração dirigida à R., que a lei alude e que é necessária com vista à efectiva resolução do contrato. Mas considerando o “pingue-pongue” epistolar referido, não podemos deixar de considerar que, efectivamente, as Partes, no desenvolvimento dos diversos contactos que entre si tiveram, deram o contrato-promessa por acabado, por extinto, por resolvido: só assim se pode compreender que tenham, ao longo de todo o processo de respostas e contra-respostas, desprezado este “pormenor” e passado a discutir o quantum indemnizatório devido em função do que foi clausulado. Temos por certo ser este o sentido que qualquer declaratário normal acabaria por tirar do comportamento de ambas as Partes, tal como está expresso na diversa correspondência que mantiveram entre si. Este é o dado que, definitivamente, feita esta explicação, nos permite avançar no nosso trabalho. Dest’arte, consideramos que o A., com a carta que, em 26 de Outubro de 2004, dirigiu à R., e que esta recebeu a 27 do mesmo mês, resolveu o contrato-promessa que firmara com esta. Isto posto, a pergunta com que, naturalmente, deparamos é esta: terá a R. entrada em situação de mora, não entregando ao A. a quantia a que este tinha direito, ou, pelo contrário, ela (pre) dispõe-se, desde o início, a honrar o compromisso assumido? Vejamos. Na dita carta, de 26 de Outubro de 2004, detonadora da resolução do contrato, o A. exigiu da R. não só o que contratualmente ela estava obrigada, por força da cláusula 5ª do contrato-promessa, mas mais alguma coisa, como seja o acrescento do spread a 0,8%, 1.758,97 €, referente a seguros de vida, imposto de selo e avaliação. Perante esta interpelação, a R. não entregou as quantias referidas nem os juros (cfr. ponto 9 supra elencado). Face ao silêncio desta, o A. insistiu, por carta de 10 de Novembro de 2004, no sentido de aquela lhe fazer a entrega de 138.802,47 €, a título de devolução de sinal e princípio de pagamento, acrescida dos respectivos juros calculados à taxa Euribor a 6 meses, acrescida de dois pontos percentuais. Aqui, deixou cair a exigência do spread a 8%. Perante esta “nova” exigência do A., a R. respondeu, dizendo que estava disposta a restituir ao A. a quantia global de 151.098,76 €, correspondente à soma de 138.802,47 €, entregue a título de sinal e seus reforços, acrescida do montante de 12.296,29 €, a título de juros calculados à taxa Euribor a seis meses, acrescida de dois pontos percentuais. E é em face desta posição (expressa) da R. (e não tácita, como a inicial) que o A. vem, em resposta, dizer, que abdica daquelas quantias que não estavam contempladas na cláusula 5ª do contrato-promessa, exigindo só o pagamento do capital e juros, estes, então, no valor de 16.000 €, terminando por sublinhar a correcção da proposta, uma vez que nem sequer reclamava as quantias pagas a título de seguros, imposto de selo e avaliações (carta de 15 de Dezembro de 2004). A esta clarificação do A., respondeu a R., por carta datada de 10 de Janeiro de 2005, dizendo, mais uma vez que só pagaria capital e juros, tal-qualmente estava previsto na dita cláusula 5ª, sendo que os juros foram, por si, calculados desde 10 de Dezembro de 2004 (data da carta, através da qual se predispôs a entregar o dinheiro), certo que, como dito, considerou que a resolução do contrato operou por meio da carta de 26 de Outubro de 2004. Assente, definitivamente, que a R. resolveu o contrato em 26 de Outubro de 2004, uma outra cousa temos de ter como certa: é que, por força da cláusula 5ª do contrato-promessa que as Partes celebraram, ela ficou, automaticamente, obrigada não só a restituir as quantias recebidas “a título de sinal e princípio de pagamento, acrescidas de juros calculados à taxa Euribor a 6 meses, mais 2 p.p. (dois pontos percentuais), pelo período compreendido entre a(s) data(s) das suas efectivas entregas e a data da sua efectiva restituição”. Isto significa que era obrigação da R. ter entregue, logo à data resolutiva do contrato, o capital mais os juros. Argumentará esta que se predispôs a entregar ao A., para além do capital de 138.802,47 €, os juros vencidos que calculou serem de 12.296,29 €, em 10 de Dezembro de 2004. Só que, como é bem evidenciado, tanto na sentença da 1ª instância como no acórdão da Relação, os juros devidos, em 10 de Dezembro de 2004, importavam já em 14.290,17 € e não em 12.296,29 € e, como a R. dizia. Ora, o A. só era e é obrigado a aceitar o cumprimento da obrigação por inteiro e já não parcialmente. Com efeito, o artigo 763º, nº 1 do Código Civil estipula que “a prestação deve ser realizada integralmente e não por partes, excepto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos”. Comentando este normativo, Pires de Lima e Antunes Varela sublinham que a regra aqui imposta “é um aspecto apenas da regra da pontualidade, de recorte mais amplo, segundo a qual a prestação deve ser efectuada no tempo, lugar e modo próprios”. E não deixam mesmo de fazer notar que deste princípio resultam consequências importantes, como esta: “se, por ex., o devedor oferece uma parte da prestação e o credor não a aceita, não se verifica a mora accipiendi em relação à parte recusada, mas a mora solvendi em relação a toda a prestação” (obra citada, página 5). Também Inocêncio Galvão Telles não deixa de destacar este preciso ponto, ao dizer que não há mora accipiendi se a omissão do credor é justificada, se tem fundamento legítimo, como, por exemplo, se o credor “se recusa a prestação porque lhe é oferecido menos do que aquilo a que tem direito” (Direito das Obrigações, 3ª edição, páginas 255 256). Como assim, não podemos dizer que o A. não colaborou com a R. no cumprimento da obrigação que sobre esta impendia, antes, pelo contrário, o que aconteceu foi, pura e simplesmente, um não cumprimento desta ao não realizar atempadamente a obrigação (toda a obrigação) de pagamento de capital e juros. Ao não cumprir devidamente a sua obrigação, a R. legitimou a recusa do A. em perceber o que lhe era oferecido, certo que este não era o devido, mas menos do que isso. Ao contrário, pois, do que a recorrente argumenta, não houve mora creditoris, antes e só mora debitoris. Compreende-se, agora, bem o sentido da última carta do A. dirigida à R. a exigir-lhe o pagamento não só do capital, como também dos juros que continuaram a vencer-se e que, então, se computavam em 16.000 €. Nem tão-pouco serve de argumentação ou de desculpa para a R. o facto de o A. ter, inicialmente, exigido algo para além do devido. É que em relação a esse “algo” a R. sempre estaria justificada na recusa, pois o mesmo não tinha qualquer suporte legal ou contratual. Não assim, em relação àquilo que, efectivamente, constituía a sua obrigação que era a de pagamento de capital e juros, nos precisos termos clausulados. Prescreve o artigo 813º do Código Civil que “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica actos necessários ao cumprimento da obrigação”. Segundo Baptista Machado, o artigo citado inspirou-se no “princípio segundo o qual cada um responde pelas consequências que uma conduta voluntária e livre possa fazer repercutir sobre a implementação de um projecto obrigacional em que é parte”, parecendo ter em vista “uma conduta voluntária e livre do credor que, traduzindo-se na falta de cooperação que seria de esperar dele segundo o projecto obrigacional, possa no entanto eventualmente legitimar-se com base numa causa justificativa” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 116º, páginas 358 e 359). Perante a oferta de algo que não era a prestação devida, o A. entendeu não a aceitar: estava no seu legítimo direito. Decidida a 1ª questão colocada pela recorrente, eis-nos, agora, confrontados com a questão de saber se, não obstante o direito do A. em recusar a prestação que lhe foi oferecida, se pode configurar a sua acção como integradora da figura do abuso do direito e na modalidade de “tu quoque”. A resposta está implícita no que ficou dito. Na verdade, ao A. assistia o direito de recusa da prestação (indevida) oferecida pela R., pois esta não representava a totalidade do devido. Como bem acentua António Menezes Cordeiro, “a fórmula tu quoque (também tu!) exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso: ou prevalecer-se da situação daí decorrente; ou exercer a posição violada pelo próprio ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada” (Tratado de Direito Civil Português – I – Parte Geral, Tomo IV, página 327). Para Pedro Pais de Vasconcelos, o “tu quoque” traduz-se na invocação ou aproveitamento de um acto ilícito por parte de quem o cometeu”, no fundo, “trata-se de um caso de violação do dever de honeste agere que é eticamente inaceitável para o Direito (turpitudo sua non allegare) e que pode, com êxito, ser contrariado pelo exceptio doli (Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, página 275). Como dito, nada legitima o comportamento da R., traduzido na recusa de entrega dos juros devidos, acompanhados do respectivo capital, antes, pelo contrário, consentiu que o A. recusasse, justamente, o que lhe era oferecido, indevidamente: este teve motivos justificados para não aceitar o que lhe foi oferecido e que correspondia apenas a parte do devido (ainda Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, página 86). O A. em nada contribuiu para que a R. incumprisse a sua obrigação. E nem o facto de aquele ter, inicialmente, pedido a esta mais do que era devido, é motivo justificativo para ter oferecido menos do que aquilo a que era obrigado. Como bem salienta o recorrido nas contra-alegações da apelação, duas posições poderia a R. ter tomado em face da posição inicial do A.: ou ter intentado uma acção de consignação em depósito, nos termos do artigo 1024º do Código de Processo Civil, ou, nestes próprios autos, ter suscitado a questão, por via incidental, nos termos permitidos pelo artigo 1032º do mesmo diploma legal. Nada disto foi usado pela R., de nada valendo argumentar que a sua posição de oferecer menos do que o devido encontra arrimo na exigência a mais do A.. E se isto é assim, como efectivamente é, afastada está qualquer hipótese de, legitimamente, se poder falar em abuso de direito, nomeadamente na modalidade apontada: é que a posição de recusa do A. representa o exercício de um direito que a própria lei lhe confere, nada tendo ele contribuído para que a R. continuasse em transgressão ao que tinha sido, livremente, estipulado. Às questões colocadas responderemos, pois, dizendo que, in casu, ficou provada a mora debitoris da R.-recorrente e não a mora creditoris do A.-recorrido, não havendo razão alguma para falar em abuso do direito por parte deste. Improcede, assim, na totalidade, a tese aqui apresentada pela recorrente. 4. Decisão Nega-se a revista e condena-se a R.-recorrente no pagamento das respectivas custas. Lisboa, aos 09 de Junho de 2009 Urbano Dias (relator) Paulo Sá Mário Cruz |