Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PINTO MONTEIRO | ||
Descritores: | SOCIEDADE POR QUOTAS GERENTE RENÚNCIA DECLARAÇÃO NEGOCIAL INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO | ||
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Nº do Documento: | SJ200304080000771 | ||
Data do Acordão: | 04/08/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 715/02 | ||
Data: | 11/01/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I - "A", intentou acção com processo ordinário contra "B, Limitada", pedindo que a ré seja condenada a pagar a quantia de 67.015.955.00 e juros. Alegou que foi destituído das funções de gerente da ré, sofrendo com isso prejuízos no montante de pedido. Contestando, a ré, excepcionou a litispendência e, em sede de impugnação, sustentou que o autor não tem direito a qualquer indemnização. O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela improcedência da acção. Apelou o autor. O Tribunal da Relação confirmou o decidido Inconformado, recorre o autor para este Tribunal. Formula as seguintes conclusões: - os autos revelam, de forma clara e evidente, que a declaração do ora recorrente, datada de 13.10.1997, foi abusivamente utilizada pela recorrida, sem que a mesma permita uma disponibilidade sobre a situação da gerência imputável ao recorrido; Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - Vem dado como provado: A R. B, Ldª dedica-se ao comércio de produtos farmacêuticos. Por deliberação de 21/3/97, o A. foi reconduzido como gerente da R. até ao dia 31/3/2000; Em contrapartida pelo exercício das suas funções de gerente, estava atribuído ao A. um veículo automóvel de marca Mercedes, suportando a R. as despesas do respectivo seguro, bem como um telemóvel, com as despesas integralmente pagas; Dentro das condições remuneratória, cada dois anos, o A. beneficiava de uma viagem de avião para si e para a família - mulher e filha - ida e volta, em classe económica, entre Portugal e Alemanha; Em 16/10/97, foi entregue ao A., pelo representante do sócio maioritário da R., C, a comunicação datada de 14/10/97 e traduzida no instrumento de fls. 18/19, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte: "Por esta via confirmamos a sua rescisão escrita e oral do dia 13/10/97. A gerência e o conselho de C decidiram libertá-lo com efeito imediato das suas tarefas e da função de gerente da B, Ldª. O Sr. D foi incumbido de estar presente na liquidação do seu gabinete. Por isso, advertimos-lhe que entre nas instalações na B unicamente acompanhado pelo sr. D. O sr. D viajará no dia 15/10/97 para Portugal de forma a que conjuntamente possam proceder no dia 16/10/97 obrigatoriamente à entrega final" ; Em 13/10/97, o A. remeteu à R. a comunicação traduzida no instrumento de fls. 22, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta, além do mais o seguinte: "na minha opinião, tal facto contribuiu, de forma grave, para a continuação da firma B, Ldª." Em face, deste perigo levanta-se para mim o problema do meu futuro profissional e da minha existência material, que considero bastante ameaçados. Sendo assim, declaro por esta via a minha demissão como gerente da B, Ldª., para entrar em vigor em 30/06/98 ou em qualquer altura antes, desde que os sócios da B. Ldª, o desejarem." Desde 16/10/97, o A. ficou inibido e impedido de aceder às instalações da R., tendo-lhe sido cessados os pagamentos desde Novembro de 1997; Em 11/11/97 foi remetida ao A., e por este recebida, a comunicação inserta, no instrumento de fls. 23, da qual consta o seguinte: "Nos termos do Código das Sociedades Comerciais e demais legislação aplicável, convocam-se todos os sócios da sociedade por quotas denominada B, Ldª "para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária, no próximo dia 15 de Dezembro de 1997, pelas 17 h 30m, na sede da sociedade, com a seguinte: Ordem de trabalhos: 1.- Analisar, deliberar e votar a renúncia à gerência da sociedade apresentada pelo gerente único, Sr. A e, sobre a data da eficácia da renúncia". Realizada a assembleia geral, na data e hora indicadas, foi lavrada a acta constante do instrumento de fls. 24/8, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte: "Aos quinze dias do mês de Dezembro de mil novecentos e noventa e sete, pelas dezassete horas e trinta minutos, reuniram em Assembleia Geral extraordinária, todos os sócios da B, Ldª". Estavam presentes os Srs. A e Doutor E, este em representação da sócia F", sendo aquele titular de uma quota no valor nominal de um milhão quatrocentos e oitenta e oito mil setecentos e cinquenta escudos, e esta titular de uma quota no valor nominal de duzentos e noventa e oito milhões e onze mil e cinquenta escudos, encontrando-se assim presente e representada a totalidade do capital social que é de trezentos milhões de escudos. Entrando-se na apreciação do ponto número um da Ordem de Trabalhos foi pelo representante da sócia F apresentada proposta para aceitar o pedido de renúncia à gerência da sociedade apresentada pelo gerente A, o qual deverá produzir todos os efeitos a partir de 13/10/97, data da apresentação da sua renúncia, porquanto a Assembleia entende que a sua permanência naquelas funções não convém à sociedade: Esta proposta foi pela Assembleia admitida, discutida e aprovada, por maioria, com o voto a favor da sócia F e o voto contra o sócio A, pelas razões constantes da declaração anexa que se junta à presente acta como doc. n.º 1, e que dela faz parte integrante." O A. iniciou funções de gerente da R. no ano de 1988. A título de remuneração devida ao A., a título de gerente, a R. declarava à Segurança Social a importância líquida de 680.400$00 mensais; O A. recebia ainda subsídio de refeição com valor mensal situado entre 21.000$00 e 27000$00, sendo gasolina, manutenção geral e reparações do veículo que lhe estava atribuído, directamente pagas pela R., bem como as despesas relativas ao telemóvel; O A., à semelhança dos outros colaboradores da R. beneficiava de um seguro de saúde e de vida, de âmbito e benefícios não apurados, cujos prémios eram custeados pela R; O A. beneficiava de viagens pagas à Alemanha; Em 26/3/99, teve lugar a assembleia de aprovação de contas da R. relativamente ao ano de 1998, previamente a essa assembleia, e por solicitação do A., sido pedida o mapa de pessoal e remunerações dos colaboradores da R. em 1/1/97, tendo esta fornecido documento de conteúdo constante a fls. 95, embora de configuração distinta àquele". III - O autor, sustentando que foi destituído sem justa causa das funções de gerente da ré antes do termo das mesmas, pediu que esta fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização relativa aos danos que sofreu com tal destituição. O acórdão da Relação (confirmando a decisão da 1ª instância) julgou a acção improcedente. Daí o recurso. A questão de fundo a resolver consiste em saber se o ora recorrente foi ou não destituído da gerência sem justa causa. Como sub-questão, essencial para a resolução da primeira, coloca-se a problemática da interpretação da carta de renúncia enviada pelo aqui recorrente à recorrida. A carta em causa, depois de fazer referência às dificuldades por que a firma ré estava a passar e às incertezas do recorrente quanto ao seu futuro profissional, termina dizendo, textualmente, o seguinte: "Sendo assim declaro por esta via a minha demissão como gerente da B, Lda, para entrar em vigor em 30.06.98 ou em qualquer altura antes, desde que os sócios da B, Lda, o desejarem". Está-se, indubitavelmente, face à renúncia ao cargo de gerente que o ora recorrente ocupava. O artigo 258º nº 1 do C. Sociedades Comerciais determina que a renúncia de gerente deve ser comunicada por escrito à sociedade e torna-se efectiva oito dias depois de recebida a comunicação. A renúncia produziria os seus efeitos oito dias após recebida a carta do autor. Este dilatou, contudo, no tempo a sua demissão, exprimindo, em primeiro lugar, a vontade de que só entrasse "em vigor em 30.06.98". Acrescentou, porém, uma alternativa: a demissão ocorreria "em qualquer altura antes, desde que os sócios da B, Lda, o desejassem". A ré, recebida que foi a carta do autor, convocou os sócios para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária, tendo como ordem de trabalhos: "Analisar, deliberar e votar a renúncia à gerência da sociedade representada pelo gerente único Sr. A e sobre a data da eficácia da renúncia" Realizada a assembleia com o voto a favor da sócia e o voto contra do sócio, ora recorrente, foi aprovada a proposta que aceitava a renúncia à gerência apresentada, fixando-se que a mesma renúncia devia produzir todos os efeitos a partir de 13.10.97, data da sua apresentação. A discordância do aqui recorrente assenta no entendimento de que a renúncia apenas produzirá efeitos em 30.06.98, salvo se os sócios - ambos os sócios - alcançassem uma plataforma de entendimento que antecipasse tal renuncia. Esse acordo, diz, não se verificou. Importa focar dois aspectos. O primeiro é o de que as pessoas colectivas são centros autónomos de relações jurídicas, autónomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos. A capacidade de exercício de direitos e capacidade de gozo, inerentes à existência das pessoas colectivas como pessoas jurídicas, manifestam-se através dos seus órgãos, que exprimem a vontade da pessoa colectiva. Era assim à Assembleia Geral que competia decidir e não aos sócios individualmente considerados. Por outro lado, o sentido da declaração emitida pelo ora recorrente é claramente no sentido de renunciar ao cargo que exercia. A renúncia é um negócio jurídico unilateral, receptício e, em princípio, não formal. Tratando-se, porém, da renúncia de gerente, a lei (artigo 258º nº 1 do CSC) impõe documento escrito, pelo que o negócio assume aqui a natureza de formal ou solene. Através da renúncia o recorrente, por manifestação unilateral da sua vontade, assumiu, voluntariamente, a perda de um direito. Tendo a sociedade em causa apenas dois sócios, a destituição da gerência, mesmo com fundamento em justa causa, só poderia ser decidida pelo Tribunal em acção própria (artigo 257º nº 1 e 5 do CSC). O aqui recorrente renunciou porém a esse eventual direito ao emitir uma declaração negocial inequívoca no sentido da renúncia. Não pode pois a comunicação do autor ter o sentido que lhe é atribuído nas alegações. É legítimo o recurso ao artigo 236º nº 1 do C. Civil, feito pelas instâncias, já que, contrariamente ao defendido na tese do recorrente, a factualidade apurada não mostra que o declaratário conhecesse a vontade real do declarante e só se isso acontecesse é que seria de acordo com ela que valeria a declaração emitida. Sendo assim e entendendo a doutrina e jurisprudência largamente maioritárias que o referido artigo 236º consagra a tese da impressão do destinatário, releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário - Prof. Mota Pinto - "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª ed., págs. 447/448. Nem os factos considerados provados mostram, por forma alguma, que o declarante não podia razoavelmente contar com o sentido que aqui lhe é atribuído (artigo 236º nº 1 in fine). Acresce até, em sede de interpretação, que tratando-se, como está referido, de um negócio formal, vale um maior objectivismo, não podendo o sentido valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respectivo documento (artigo 238º nº 1 do CC), de acordo com o que alguns autores designam como teoria da manifestação. Ora, de acordo com a comunicação feita pelo autor nenhum outro sentido é razoavelmente permitido para além daquele que aqui é dado. O autor renunciou ao cargo a partir de certa data, podendo, porém, a vontade da sociedade (composta por dois sócios, obviamente) impor uma data anterior. A sociedade, através do órgão legítimo para o efeito - Assembleia Geral - deliberou assim de acordo com a renúncia do autor, não se podendo falar por isso de destituição do cargo. Não procedem por isso as bem estruturadas alegações, nada havendo a alterar no que fundamentadamente foi decidido. Pelo exposto, nega-se a revista. Custas pelo recorrente. Lisboa, 8 de Abril de 2003 Pinto Monteiro Reis Figueira Barros Caldeira |