Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A077
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
GERENTE
RENÚNCIA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: SJ200304080000771
Data do Acordão: 04/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 715/02
Data: 11/01/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - "A", intentou acção com processo ordinário contra "B, Limitada", pedindo que a ré seja condenada a pagar a quantia de 67.015.955.00 e juros.

Alegou que foi destituído das funções de gerente da ré, sofrendo com isso prejuízos no montante de pedido.

Contestando, a ré, excepcionou a litispendência e, em sede de impugnação, sustentou que o autor não tem direito a qualquer indemnização.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela improcedência da acção.

Apelou o autor.

O Tribunal da Relação confirmou o decidido

Inconformado, recorre o autor para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:

- os autos revelam, de forma clara e evidente, que a declaração do ora recorrente, datada de 13.10.1997, foi abusivamente utilizada pela recorrida, sem que a mesma permita uma disponibilidade sobre a situação da gerência imputável ao recorrido;
- com efeito, é apenas ao declarante que cabe fixar os efeitos da declaração, não sendo possível ao declaratário ultrapassar ou desvirtuar, como efectivamente aconteceu, o seu teor e conteúdo;
- ora, a declaração em causa claramente conduz a que a renuncia em momento anterior a 30.6.1998 apenas seria aceite pelo recorrente se tivesse ocorrido um acordo entre ambos (plural) os sócios, sendo certo que a sociedade apenas tem dois sócios, um dos quais, exactamente, o recorrente;
- situação que era do claro e evidente conhecimento da sociedade recorrida, tendo, a mesma, em assembleia geral, e mesmo antes, tido, de viva voz (vide declaração anexa à acta) sido objecto de transmissão e inerente recepção do efectivo alcance da declaração, não obstante a clareza cristalina do seu teor;
- sendo, pois, absolutamente desnecessário o recurso ao disposto no art.º 236.º, n.º 1, do Cód. Civil, em face do disposto no n.º 2 daquele mesmo preceito legal, que a ele se sobrepõe;
- tanto mais que nunca poderia a recorrida, como fez, retroagir os efeitos da sua deliberação;
- não se verificando, pois, uma situação susceptível de ser enquadrada na previsão contida no art.º 258.º do Cód. das Soc. Comerciais, ocorrendo, antes, e de forma clara e notória, uma destituição da gerência de que o recorrente foi objecto;
- destituição essa sem justa causa, não tendo a mesma sido invocada, nem sequer se tendo lançado mão do disposto no n.º 5 do art.º 257.º do Cód. das Soc. Comerciais;
- ocorrendo, pois, uma destituição do recorrente da gerência da sociedade recorrida, sem justa causa, o que o torna credor da indemnização peticionada, tal como previsto no art.º 257.º, n.º 7, do Cód. Soc. Comerciais;
- tanto mais que os autos evidenciam que, independentemente do comportamento do recorrente, sempre a recorrida o iria afastar, fosse de que forma fosse, da gerência da sociedade, como efectivamente o fez;
- partindo a decisão de desvinculação do recorrente, e sendo a renuncia um acto dependente daquele que renuncia, não tem sentido serem as outras partes a determinar-lhe o momento em que o mesmo renuncia, ainda mais quando se trata de uma sociedade constituída apenas por dois sócios, sendo a decisão tomada apenas pelo outro sócio, com oposição do recorrente;
- violados se revelam, pois, os preceitos legais supra indicados, pela sentença recorrida
Contra-alegando, a ré defende a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

A R. B, Ldª dedica-se ao comércio de produtos farmacêuticos.

Por deliberação de 21/3/97, o A. foi reconduzido como gerente da R. até ao dia 31/3/2000;

Em contrapartida pelo exercício das suas funções de gerente, estava atribuído ao A. um veículo automóvel de marca Mercedes, suportando a R. as despesas do respectivo seguro, bem como um telemóvel, com as despesas integralmente pagas;

Dentro das condições remuneratória, cada dois anos, o A. beneficiava de uma viagem de avião para si e para a família - mulher e filha - ida e volta, em classe económica, entre Portugal e Alemanha;

Em 16/10/97, foi entregue ao A., pelo representante do sócio maioritário da R., C, a comunicação datada de 14/10/97 e traduzida no instrumento de fls. 18/19, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte:

"Por esta via confirmamos a sua rescisão escrita e oral do dia 13/10/97. A gerência e o conselho de C decidiram libertá-lo com efeito imediato das suas tarefas e da função de gerente da B, Ldª.

O Sr. D foi incumbido de estar presente na liquidação do seu gabinete. Por isso, advertimos-lhe que entre nas instalações na B unicamente acompanhado pelo sr. D.

O sr. D viajará no dia 15/10/97 para Portugal de forma a que conjuntamente possam proceder no dia 16/10/97 obrigatoriamente à entrega final" ;

Em 13/10/97, o A. remeteu à R. a comunicação traduzida no instrumento de fls. 22, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta, além do mais o seguinte:

"na minha opinião, tal facto contribuiu, de forma grave, para a continuação da firma B, Ldª."

Em face, deste perigo levanta-se para mim o problema do meu futuro profissional e da minha existência material, que considero bastante ameaçados.

Sendo assim, declaro por esta via a minha demissão como gerente da B, Ldª., para entrar em vigor em 30/06/98 ou em qualquer altura antes, desde que os sócios da B. Ldª, o desejarem."

Desde 16/10/97, o A. ficou inibido e impedido de aceder às instalações da R., tendo-lhe sido cessados os pagamentos desde Novembro de 1997;

Em 11/11/97 foi remetida ao A., e por este recebida, a comunicação inserta, no instrumento de fls. 23, da qual consta o seguinte:

"Nos termos do Código das Sociedades Comerciais e demais legislação aplicável, convocam-se todos os sócios da sociedade por quotas denominada B, Ldª "para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária, no próximo dia 15 de Dezembro de 1997, pelas 17 h 30m, na sede da sociedade, com a seguinte:

Ordem de trabalhos:

1.- Analisar, deliberar e votar a renúncia à gerência da sociedade apresentada pelo gerente único, Sr. A e, sobre a data da eficácia da renúncia".

Realizada a assembleia geral, na data e hora indicadas, foi lavrada a acta constante do instrumento de fls. 24/8, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte:

"Aos quinze dias do mês de Dezembro de mil novecentos e noventa e sete, pelas dezassete horas e trinta minutos, reuniram em Assembleia Geral extraordinária, todos os sócios da B, Ldª".

Estavam presentes os Srs. A e Doutor E, este em representação da sócia F", sendo aquele titular de uma quota no valor nominal de um milhão quatrocentos e oitenta e oito mil setecentos e cinquenta escudos, e esta titular de uma quota no valor nominal de duzentos e noventa e oito milhões e onze mil e cinquenta escudos, encontrando-se assim presente e representada a totalidade do capital social que é de trezentos milhões de escudos.

Entrando-se na apreciação do ponto número um da Ordem de Trabalhos foi pelo representante da sócia F apresentada proposta para aceitar o pedido de renúncia à gerência da sociedade apresentada pelo gerente A, o qual deverá produzir todos os efeitos a partir de 13/10/97, data da apresentação da sua renúncia, porquanto a Assembleia entende que a sua permanência naquelas funções não convém à sociedade:

Esta proposta foi pela Assembleia admitida, discutida e aprovada, por maioria, com o voto a favor da sócia F e o voto contra o sócio A, pelas razões constantes da declaração anexa que se junta à presente acta como doc. n.º 1, e que dela faz parte integrante."

O A. iniciou funções de gerente da R. no ano de 1988.

A título de remuneração devida ao A., a título de gerente, a R. declarava à Segurança Social a importância líquida de 680.400$00 mensais;

O A. recebia ainda subsídio de refeição com valor mensal situado entre 21.000$00 e 27000$00, sendo gasolina, manutenção geral e reparações do veículo que lhe estava atribuído, directamente pagas pela R., bem como as despesas relativas ao telemóvel;

O A., à semelhança dos outros colaboradores da R. beneficiava de um seguro de saúde e de vida, de âmbito e benefícios não apurados, cujos prémios eram custeados pela R;

O A. beneficiava de viagens pagas à Alemanha;

Em 26/3/99, teve lugar a assembleia de aprovação de contas da R. relativamente ao ano de 1998, previamente a essa assembleia, e por solicitação do A., sido pedida o mapa de pessoal e remunerações dos colaboradores da R. em 1/1/97, tendo esta fornecido documento de conteúdo constante a fls. 95, embora de configuração distinta àquele".

III - O autor, sustentando que foi destituído sem justa causa das funções de gerente da ré antes do termo das mesmas, pediu que esta fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização relativa aos danos que sofreu com tal destituição.

O acórdão da Relação (confirmando a decisão da 1ª instância) julgou a acção improcedente.

Daí o recurso.

A questão de fundo a resolver consiste em saber se o ora recorrente foi ou não destituído da gerência sem justa causa.

Como sub-questão, essencial para a resolução da primeira, coloca-se a problemática da interpretação da carta de renúncia enviada pelo aqui recorrente à recorrida.

A carta em causa, depois de fazer referência às dificuldades por que a firma ré estava a passar e às incertezas do recorrente quanto ao seu futuro profissional, termina dizendo, textualmente, o seguinte:

"Sendo assim declaro por esta via a minha demissão como gerente da B, Lda, para entrar em vigor em 30.06.98 ou em qualquer altura antes, desde que os sócios da B, Lda, o desejarem".

Está-se, indubitavelmente, face à renúncia ao cargo de gerente que o ora recorrente ocupava.

O artigo 258º nº 1 do C. Sociedades Comerciais determina que a renúncia de gerente deve ser comunicada por escrito à sociedade e torna-se efectiva oito dias depois de recebida a comunicação.

A renúncia produziria os seus efeitos oito dias após recebida a carta do autor. Este dilatou, contudo, no tempo a sua demissão, exprimindo, em primeiro lugar, a vontade de que só entrasse "em vigor em 30.06.98". Acrescentou, porém, uma alternativa: a demissão ocorreria "em qualquer altura antes, desde que os sócios da B, Lda, o desejassem".

A ré, recebida que foi a carta do autor, convocou os sócios para reunirem em Assembleia Geral Extraordinária, tendo como ordem de trabalhos: "Analisar, deliberar e votar a renúncia à gerência da sociedade representada pelo gerente único Sr. A e sobre a data da eficácia da renúncia"

Realizada a assembleia com o voto a favor da sócia e o voto contra do sócio, ora recorrente, foi aprovada a proposta que aceitava a renúncia à gerência apresentada, fixando-se que a mesma renúncia devia produzir todos os efeitos a partir de 13.10.97, data da sua apresentação.

A discordância do aqui recorrente assenta no entendimento de que a renúncia apenas produzirá efeitos em 30.06.98, salvo se os sócios - ambos os sócios - alcançassem uma plataforma de entendimento que antecipasse tal renuncia. Esse acordo, diz, não se verificou.

Importa focar dois aspectos.

O primeiro é o de que as pessoas colectivas são centros autónomos de relações jurídicas, autónomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos.

A capacidade de exercício de direitos e capacidade de gozo, inerentes à existência das pessoas colectivas como pessoas jurídicas, manifestam-se através dos seus órgãos, que exprimem a vontade da pessoa colectiva.

Era assim à Assembleia Geral que competia decidir e não aos sócios individualmente considerados.

Por outro lado, o sentido da declaração emitida pelo ora recorrente é claramente no sentido de renunciar ao cargo que exercia.

A renúncia é um negócio jurídico unilateral, receptício e, em princípio, não formal.

Tratando-se, porém, da renúncia de gerente, a lei (artigo 258º nº 1 do CSC) impõe documento escrito, pelo que o negócio assume aqui a natureza de formal ou solene.

Através da renúncia o recorrente, por manifestação unilateral da sua vontade, assumiu, voluntariamente, a perda de um direito.

Tendo a sociedade em causa apenas dois sócios, a destituição da gerência, mesmo com fundamento em justa causa, só poderia ser decidida pelo Tribunal em acção própria (artigo 257º nº 1 e 5 do CSC). O aqui recorrente renunciou porém a esse eventual direito ao emitir uma declaração negocial inequívoca no sentido da renúncia.

Não pode pois a comunicação do autor ter o sentido que lhe é atribuído nas alegações.

É legítimo o recurso ao artigo 236º nº 1 do C. Civil, feito pelas instâncias, já que, contrariamente ao defendido na tese do recorrente, a factualidade apurada não mostra que o declaratário conhecesse a vontade real do declarante e só se isso acontecesse é que seria de acordo com ela que valeria a declaração emitida.

Sendo assim e entendendo a doutrina e jurisprudência largamente maioritárias que o referido artigo 236º consagra a tese da impressão do destinatário, releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário - Prof. Mota Pinto - "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª ed., págs. 447/448.

Nem os factos considerados provados mostram, por forma alguma, que o declarante não podia razoavelmente contar com o sentido que aqui lhe é atribuído (artigo 236º nº 1 in fine).

Acresce até, em sede de interpretação, que tratando-se, como está referido, de um negócio formal, vale um maior objectivismo, não podendo o sentido valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respectivo documento (artigo 238º nº 1 do CC), de acordo com o que alguns autores designam como teoria da manifestação.

Ora, de acordo com a comunicação feita pelo autor nenhum outro sentido é razoavelmente permitido para além daquele que aqui é dado.

O autor renunciou ao cargo a partir de certa data, podendo, porém, a vontade da sociedade (composta por dois sócios, obviamente) impor uma data anterior.

A sociedade, através do órgão legítimo para o efeito - Assembleia Geral - deliberou assim de acordo com a renúncia do autor, não se podendo falar por isso de destituição do cargo.

Não procedem por isso as bem estruturadas alegações, nada havendo a alterar no que fundamentadamente foi decidido.

Pelo exposto, nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 8 de Abril de 2003

Pinto Monteiro

Reis Figueira

Barros Caldeira