Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
866/05.8TCGMR.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: SIMULAÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
NULIDADE DO CONTRATO
DOAÇÃO
NEGÓCIO FORMAL
ESCRITURA PÚBLICA
VALIDADE
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL .
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO / PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA.
Doutrina:

- Heinrich Ewald Horster, “Simulação. Simulação Relativa. Formalismo Legal”, CDP (Cadernos de Direito Privado) nº 19, p. 3 e segs..
- Henrique Mesquita, in RLJ, Ano 129º/271.
- Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, pp. 179 a 182;
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, p. 719 e segs..
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, (1976), pp. 357 a 362.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª Ed., pp. 584, 590 a 593.
- Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Vol. II, 3ª Ed., p. 221.
- Vaz Serra, in RLJ, Anos 111º/246, 113º/60 e 114º/317.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 240.º, 241.º, 291.º, N.º1, 289º, Nº1, PARTE FINAL, 334.º, 875.º, 947.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 266º, Nº1, 266.º-A, 456.º, 660.º, N.º2, 668º, Nº1, AL. D), 1ª PARTE.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 07/02/2002, COL/STJ – 1º/77; DE 17/06/2003 – COL/STJ- 2º/112; E, DE 09/10/2003,– COL/STJ – 3º93.
Sumário :
I - Formalizada por escritura pública uma compra e venda que enferma da nulidade prevista no art. 240.º do CC e considerando que, sob a capa do negócio ostensivo, aparente, simulado – compra e venda – se alberga um outro, latente, oculto, encoberto, dissimulado, disfarçado ou camuflado, que foi o verdadeiramente querido pelas partes – doação –, não se trata de simulação absoluta – hipótese em que o negócio por tal viciado colorem habet, substantiam vero nullam –, antes devendo a mesma ser caracterizada como relativa – caso em que o negócio celebrado colorem habet, substantiam vero alteram.

II - Tem de haver-se por inteiramente válido o dissimulado negócio de doação, porquanto o mesmo foi formalizado por escritura pública, forma adoptada para a celebração do simulado negócio jurídico de compra e venda, tendo, pois, sido observada a forma legalmente exigida para o negócio dissimulado de doação (arts. 241.º, 875.º e 947.º, n.º 1, do CC).

III - Passando os donatários réus a ser titulares do direito de propriedade incidente sobre o prédio objecto de tal doação, não impende sobre os mesmos nenhuma obrigação de restituição à doadora autora do respectivo valor.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 866/05.8TCGMR.G1.S1[1]

                (Rel. 115)[2]

                             Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – AA instaurou, em 14.09.05, na comarca de Guimarães (com distribuição à 1ª Vara Mista), acção declarativa de condenação, com processo comum e sob a forma ordinária, contra BB e CC e mulher, DD, pedindo a condenação destes a restituírem à A. o valor pecuniário correspondente ao que ao imóvel identificado na p. i. vier a ser liquidado por arbitramento ou – a não ser entendido assim – em execução de sentença, tendo como mínimo o valor declarado na última transmissão referida (Esc. 4 000 000$00), acrescido de juros à taxa legal desde a citação.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:

                                               /

--- Em 10.10.88, arrematou em hasta pública o prédio id. na p. i., de que, então, era arrendatária habitacional;

--- Em 23.05.89, acompanhou o 2º R., seu filho, a C... para outorgar, segundo informação deste, escritura de compra que era necessária, depois de exercida a preferência, e com intervenção do 1º R. como representante do Tribunal, por designação do senhor juiz;

--- Porém, nessa escritura, o 1º R., amigo e colega de trabalho do 2º R., prestou-se ao papel de fingir a sobredita qualidade e vender-lhe esse prédio quando, ao invés, declarava, por tal escritura, que comprava o prédio para si próprio;

--- Cinco meses depois, cumprindo, novamente, instruções do 2º R., declarou vender a este o mesmo prédio, por Esc. 3 000 000$00, em escritura celebrada em V...;

--- A A. jamais teria assumido como suas as declarações feitas se não tivesse sido convencida de que outra era a realidade;

--- A escritura de compra e venda, posteriormente, celebrada entre os 2º/s RR. e EE foi o único negócio efectivamente querido, realizado sem o seu conhecimento e consentimento e em seu prejuízo, servindo o propósito de aqueles embolsarem o preço;

--- Instaurou, na 2ª Vara, uma acção em que foram declaradas nulas, por simulação, as escrituras públicas celebradas em C... e V...;

--- Porém, devido à transmissão, validamente, efectuada ao EE, que registou em seu nome e antes da declaração de nulidade o mencionado prédio, não pode este ser-lhe (à A.) restituído pelos RR.;

--- Mercê do ardiloso comportamento descrito, os RR. lograram enriquecer o seu património à custa de bem que só a si (A.) pertencia, devendo restituir-lhe aquilo com que, injustamente, se locupletaram, sendo que o valor do imóvel transmitido é, no mínimo, de Esc. 4 000 000$00.

       Os 2º/s RR. contestaram, deduzindo o incidente de impugnação do valor da acção, a que, considerando o peticionado pela A., atribuem o valor de € 19 951,92.

       Deduziram a excepção dilatória de caso julgado, a excepção peremptória inominada da subsidiariedade – aqui inverificada – da invocabilidade do instituto do enriquecimento sem causa como fundamento do accionado crédito da A. sobre os RR.. o qual, se reportado a tal fundamento, igualmente, se encontraria extinto por prescrição.

       Quanto à matéria fáctica aduzida pela A., aceitam-na como verdadeira na exacta medida em que coincida com o que emergiu provado na acção nº 296/2002, da 2ª Vara Mista desta comarca, a cuja reprodução procederam.

       Rememoram que ficou provado, naquela acção, que a A. quis, de livre vontade e por desígnio comum a si e aos contestantes, colocar na titularidade destes a propriedade do imóvel, o que concretizou mediante a celebração da escritura de C..., visando criar a aparência formal de que não se tratou de uma venda ou doação de mãe para filho.

       Com a pretendida transferência de propriedade, a A. visou fazer uma liberalidade, a qual é causa justificativa do correspondente enriquecimento dos contestantes, sem ocasionar a si qualquer empobrecimento.

       Salientam que, por alturas da arrematação, a A. apenas dispunha de Esc. 940 000$00, quantia que foi utilizada para a compra, sendo o restante entregue pelos contestantes.

       Por volta do ano de 1992, a A. pediu-lhes que lhe efectuassem a entrega daquele montante, alegando que dele precisava para pagar direitos de ingresso no Lar da ..., ao que os RR. acederam.

       Terminam pedindo a condenação da A., como litigante de má fé, em multa e indemnização a seu favor não inferior a € 2 500,00, por ter, conscientemente, alterado a verdade dos factos.

       A A. replicou, argumentando que a causa de pedir é a consequência da declaração de nulidade de dois actos simulados e da impossibilidade de essa declaração de nulidade poder levar à restituição do prédio; o pedido respeita ao pagamento do valor do prédio transmitido. Acrescenta que o direito reclamado neste processo é o que lhe foi reconhecido na acção precedente, cuja sentença transitou há menos de um ano.

       O 1º R. não contestou.

       Precedendo o despacho saneador, foi decidido o incidente de impugnação do valor da causa, vindo este a ser fixado em € 19 951,92.

       Foi, de seguida, proferido despacho saneador que, além do mais, julgou procedente a deduzida excepção dilatória de caso julgado, absolvendo-se, em consequência, os RR. da instância.

       Todavia, vindo a obter provimento o agravo interposto, pela A., de tal decisão, foi esta objecto de revogação.

       Prosseguindo-se, por isso, na elaboração do despacho saneador, foi julgada improcedente a deduzida excepção peremptória da prescrição do direito accionado pela A., saneando-se, no mais e tabelarmente, os autos.

       Simultaneamente, com arrimo na factualidade havida por provada no mencionado Proc. nº 296/2002 e que se deu por assente, passou a decidir-se de mérito quanto à pretensão deduzida contra o R., BB, o qual foi absolvido do pedido, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.), na parte remanescente e subsistente do objecto do processo, ou seja, do pedido formulado contra os RR. CC e mulher (Fls. 321 a 328vº).   

          Desta decisão interpôs novo recurso a A., por si qualificado de agravo, o qual, todavia, com restrição à decretada absolvição do pedido, foi admitido como apelação, com subida, a final, e com efeito meramente devolutivo.

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, foi proferida sentença, em 08.04.08, em que se decidiu:
A) – Julgando a acção parcialmente provada e procedente, o Tribunal condena os RR., CC e mulher, DD, a restituir à A., AA, a quantia de € 199,52, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 02.11.05 até integral pagamento;
B) – Julgando o incidente de litigância de má fé provado e procedente, o Tribunal condena a A., AA, na multa de cinco (5) UCs.

       Da mesma interpôs apelação a A., com esta subindo, conjuntamente, a apelação anteriormente admitida.

       Por acórdão de 05.02.09 (Fls. 402 a 430), a Relação de Guimarães decidiu: “…acorda-se em julgar procedente a apelação…,anulando-se o julgamento realizado e revogando-se a sentença proferida, o despacho saneador-sentença e o despacho de selecção da matéria de facto assente e de elaboração da base instrutória, devendo o M. mo Juiz «a quo» proceder à selecção da matéria de facto assente e elaborar a base instrutória da acção…dando regular prosseguimento à acção”.

       Baixados, de novo, os autos, procedeu-se a nova e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente b. i.

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 08.11.10) sentença com o seguinte segmento decisório:

       “Em face do exposto, o Tribunal:
A) – Julgando a acção parcialmente provada e procedente:
a) – Absolve o R. BB do pedido formulado pela A., AA;
b) – Condena os RR., CC e mulher, DD a restituir à A., AA, o que vier a ser liquidado com referência ao valor do imóvel em 23.05.89, deduzido dos montantes que os primeiros entregaram à segunda para que esta pudesse exercer o direito de preferência, bem como das contribuições fiscais, seguros e reparações várias que suportaram;
B) – Julga o incidente de litigância de má fé não provado e improcedente.
       Tendo apelado a A. e os 2º/s RR., a Relação de Guimarães, por acórdão de 10.04.12 (Fls. 733 a 739), julgou improcedente o recurso da A. e procedente a apelação dos 2º/s RR., em consequência do que, revogando a sentença recorrida e na improcedência da acção, absolveu os RR.-apelantes dos pedidos, tendo, ainda, condenado a A., como litigante de má fé, na multa de 5 UCs e na indemnização de 5 UCs a favor dos 2º/s RR., a título de reembolso com despesas de honorários.
       Daí a presente revista interposta pela A., visando a revogação do acórdão impugnado, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:
                                           /   

1ª – O acórdão recorrido revogou a sentença da 1ª instância, julgando procedente o recurso dos 2º/s RR. e improcedente o recurso da A., porque, apesar de declarada com trânsito em julgado a simulação de dois negócios de transmissão de um imóvel e de também estar reconhecido que por o prédio ter, depois, sido transmitido a terceiro de boa fé, não podia o mesmo reverter para o património da A., mas apenas o seu valor, não podia o tribunal condenar esses RR. no pagamento desse valor porque esse direito estava a ser exercido de forma abusiva, porque "as simulações estão de acordo com a vontade real" dos simuladores, de onde concluiu também que a A., ao formular esse pedido, litigava de má fé, que o conhecimento das “restantes questões de recorrer” (sic) “da autora” está prejudicado por essa decisão, e que o 1º R. foi correctamente absolvido;

2ª – A decisão é inaceitável, enfermando, aliás, de nulidades várias, desde logo por não demonstrar conhecer as anteriores decisões do Tribunal da Relação de Guimarães a que nem no relatório se faz a menor menção (autos a fls. 149, 171, 250, 265, 332, 347, 419), porque não foi demonstrado – nem isso legalmente relevaria, aliás – que o resultado final dos actos simulados fosse comum aos simuladores (a A. sustentava uma compra e venda, enquanto os 2º/s RR. sustentavam uma dação em cumprimento – e não se provou uma nem outra, mas apenas o propósito de operar a transmissão do imóvel), a A. não litigou de má fé (como, de resto, já a sentença concluíra face ao decidido no acórdão da Relação, deste mesmo processo, a fls. 419) nem o primeiro R. foi bem absolvido, ocorrendo, ainda, e por isso, omissão de pronúncia quanto às questões que se consideraram prejudicadas pela análise das abordadas, e, daí, a nulidade a que alude o art°. 668° n° 1, d) do Código de Processo Civil;

3ª – Entre a A., ora recorrente – que adquiriu por compra, em praça e no exercício do direito de preferência, determinado prédio, de que era arrendatária – e os RR. do processo ocorreu, anteriormente, uma outra acção na qual foi decidido, com trânsito em julgado, declarar nulas, por simulação relativa, duas escrituras públicas (a primeira, celebrada, em C..., em 23.05.89, em que a A. declarou vender ao 1º R. o referido prédio, a segunda, celebrada, em V..., em 18.10.89 e em que o 1º R. declarou vender aos 2º/s o mesmo imóvel), mas foi julgado improcedente um outro pedido, de declaração de nulidade de uma terceira venda, esta entre os segundos RR. e um terceiro, alheio ao presente processo, celebrada, em Guimarães, em 16.04.98, fundando-se a impossibilidade da procedência do pedido, nesta parte, no facto de não se ter provado que o adquirente soubesse dos vícios do direito dos transmitentes e no de ter registado a transmissão antes do registo da acção;

4ª – A decisão do primeiro processo transitou em julgado e nela se julgou não ter sido provado se os negócios dissimulados eram onerosos ou gratuitos, ou seja, se o pretendido era uma compra e venda ou uma doação, porque nem a onerosidade nem a gratuitidade da transmissão se provaram apesar de os RR. adquirentes negarem o carácter oneroso da transmissão, o mesmo não se provou (sentença junta com a p.i. fls. 365, 367, 368);

5ª – Na presente acção, a A. demanda os mesmos 1º e 2°s RR. que demandara na anterior, pedindo agora a sua condenação solidária, nos termos do n° 1 do art°. 289° do Código Civil a pagarem-lhe o valor do imóvel transmitido, por força daquelas vendas simuladas, uma vez que a devolução do próprio imóvel não é possível face à improcedência do terceiro pedido formulado na anterior acção;

6ª – Neste processo, no primeiro despacho saneador, em sede de audiência preliminar foram os RR. absolvidos da instância por se ter julgado verificada a excepção dilatória do caso julgado, mercê da sentença da precedente acção, mas essa decisão viria a ser revogada por douto acórdão do Tribunal da Relação, de 30/11/2006, nos autos, que entendeu que a decisão anterior não formou caso julgado quanto ao pedido ora formulado nem a A. "estava impedida de usar de causa de pedir e de pedido só longinquamente concorrentes";

7ª – Produzido novo despacho saneador - de que foi interposto recurso de agravo, recebido com efeito devolutivo - de novo se insistiu neste numa formulação, mais mitigada embora, de que ocorre entre as duas acções caso julgado que condiciona a segunda, pois decidiu-se agora que:

a) – Estão já provados os mesmos factos que foram "elencados na fundamentação da sentença proferida no processo n° 226/2002 da 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, transitada em julgado em 6/5/2005";

b) – Está já provado, em consequência da precedente decisão transitada em julgado que a A. quis fazer uma doação do prédio em causa, aos 2°s. RR, de onde decorre também que o 1º R. deve ser já absolvido pois da sua intervenção nenhum proveito resultou visando "alcançar a transmissão do prédio da A. para o segundo réu, contornando as disposições legais que regem as doações" pois "os dois negócios jurídicos combinados visam ocultar uma doação";

8ª – Produzida, depois, sentença veio esta, considerando sempre erradamente estar provado que o negócio dissimulado era uma doação da A. aos 2°s. RR., a condenar os 2°s. RR., a pagar à A. 199,52 € correspondentes a uma alegada dívida deles para com a A. e condenando ainda a A. como litigante de má fé, por ter negado aquele propósito de doar o prédio aos 3°s. RR. omitindo os factos provados na precedente acção;

9ª – Dessa decisão foi interposto recurso de apelação - julgado na Relação conjuntamente com o agravo do saneador (conclusão 7a) - que revogou a decisão ordenando a reformulação da base instrutória e o julgamento dos autos após esse aditamento de factos;

10ª – Procedeu-se, por fim, a novo julgamento, sendo, a final, produzida sentença que julgou a acção parcialmente provada e procedente, absolvendo o 1º R. do pedido (por se entender que "não foram os negócios em que o demandado teve intervenção que determinaram a impossibilidade de restituição em espécie") e condenando os 2º/s RR. "a restituir à Autora (...) o que vier a ser liquidado com referência ao valor do imóvel em 23 de Maio de 1989, deduzido dos montantes que os primeiros entregaram à segunda para que esta pudesse exercer o direito de preferência, bem como das contribuições fiscais, seguros e reparações várias que suportaram";

11ª – Dessa decisão interpôs a A. recurso de apelação, por entender que a sentença não aplicou correctamente o direito aos factos, violando pelo menos as regras dos artigos 289° n° 1, 497°, 479°, 562°, 566 n° 2, 847 n° 1, b) 1270 n° 1 e 2 do Código Civil, bem como do artigo 46° n° 2 do Código de Processo Civil, e foi no âmbito desse recurso que foi produzido o acórdão agora sob censura;   

12ª – De facto, sendo actos simulados a transmissão do prédio da A. para o 1º R. e deste para os 2°s RR. e porque os 2°s RR. (embora agindo de má fé, por saberem ter adquirido o prédio por um acto simulado), transmitiram o prédio a terceiro de boa fé, a declaração de nulidade daquelas duas primeiras transmissões não pode ter o efeito normal (cfr. o Ac. Rei. Évora de 11/2/89 in Col. Jur. 1982, 1, 358) que seria a restituição do prédio ao património da A. mas tem seguramente como efeito, o pagamento do valor correspondente ao que tiver sido prestado, nos termos do art°. 289° n° 1 do Código Civil, ou seja, o valor do imóvel;

13ª – A situação concreta resultou da conjugação dos três negócios referidos (a primeira escritura em que 1° R. "adquiriu" o prédio à A., a segunda escritura em que o 1º R. "vendeu" o prédio aos 2º/s RR., a terceira escritura na qual os 2º/s RR. venderam o prédio a um terceiro) e só com esses três negócios, em conjugação e complemento, era possível o resultado final, sendo os primeiros dois lógica e ontologicamente condicionantes do sucesso do terceiro, de onde se segue que o 1° R. não podia ser absolvido do pedido já que é pelo menos, corresponsável pela restituição, pois só a intervenção dele nas duas primeiras escrituras permitiu aos 2°/s RR. condições de legitimidade formal para outorgar a última;

14ª – Por outro lado, não é aceitável fixar-se o valor do imóvel, a restituir, por reporte à data da celebração da primeira escritura, 23 de Maio de 1989, quer porque a seguir a essa houve outra venda, igualmente simulada, em 28 de Outubro de 1989, e não há razões para distinguir, entre as duas quer porque, nos termos do artigo 566° n.° 2 do Código Civil, a indemnização em dinheiro deve reportar-se à "data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal", isto é, à data da terceira das transmissões;

15ª – Não se justifica, sequer, que se relegue para execução de sentença a fixação do valor do imóvel, porque, no processo, precedendo arbitramento e sem qualquer reclamação das partes, o tribunal já o fixou, em reposta ao quesito 15°, nem que a tal valor seja deduzido o valor de quaisquer obras efectuadas pelos 2º/s RR. porque o valor arbitrado em resposta ao quesito 15° o foi precisamente no pressuposto, afirmado pelo perito único que avaliou o prédio, de que o cálculo partiu do princípio do valor para efeitos de IMI e como se "não tivesse sofrido obras", (fls. 472 a 479);

16ª – Não é ainda aceitável decidir-se, como se decidiu, que o valor a atribuir ao prédio devia ser deduzido de quaisquer montantes designadamente de qualquer empréstimo - de resto não provado sequer - de contribuições fiscais, de seguros ou de reparações, porque, ao decidir-se assim, o tribunal no fundo está a proceder a uma compensação não objecto do pedido, e fora dos casos em que a lei admite (artigo 847° n° 1 alínea b) do Código Civil), bem como porque, agindo os 2º/s RR. de má fé, por bem saberem que a aquisição do prédio por si ( ) fora obtida por um negócio simulado e não querido, não lhes é aplicável, como a sentença sustentou e aplicou, o artigo 1270° n° 1 e 2 do Código Civil, mas antes o artigo 1271° e porque, por fim, o dever de restituir decorre da nulidade do negócio e não do enriquecimento sem causa;

17ª – Mesmo que se entendesse, porém, haver lugar a qualquer compensação ou a um encontro de contas, ambas as partes deviam repor à contraparte tudo aquilo com que tivessem enriquecido, sendo a A. credora, pelo menos, além do valor do prédio, dos frutos civis que ele pudesse ter produzido pelo tempo em que os RR. o ocuparam e até ao momento em que o venderam, tais como rendas reais ou potenciais, perda de possíveis negócios e outros proveitos, conforme prescrito pelo artigo 479° do Código Civil;

18ª – A A. não litigou de má fé, nem alterou a verdade bem de si sabida nem agiu com abuso de direito porque sempre assentou o seu comportamento processual na decisão da precedente acção, segundo a qual em relação a nenhuma das vendas se provou "se o negócio efectivamente desejado pelos simuladores (A. 1º e 2º/s RR.) seria oneroso ou gratuito. Isto é, não resultou demonstrado se a acordada transmissão (...) constitui uma compra e venda (...) ou se foi antes uma doação " isto porque "a tese da dação em cumprimento do negócio dissimulado, invocada na contestação dos 2°s. RR. não vingou (...)". Quem, pois, "fez tábua rasa dos factos que foram objecto de julgamento no processo n° 296" e "alterou" a "verdade dos factos" (autos a fls. 327 verso) foram os recorridos, 2°s RR.;

19ª – Os factos dados como provados no precedente processo não formam neste caso julgado visto que não só o impede a decisão do acórdão da Relação já produzido, como o art0. 672° do Código de Processo Civil (que impõe tal força obrigatória apenas dentro do processo em que as decisões foram tomadas), e o art° 671° (que somente às decisões, e não aos seus fundamentos, de facto ou de direito, liga a produção dos efeitos do caso julgado - cfr. os Acs. do STJ de 28/06/94 in BMJ 438, 402 e Col. Jur. STJ 1994, 2, pág. 159), só podendo falar-se de trânsito em julgado em relação ao mérito da causa (cfr. o Ac. Rei. de Coimbra de 21/06/94 in Col. Jur. 1994, pág. 40);

20ª – A decisão sobre a litigância de má fé assenta no preconceito de que a A. quis doar o prédio em causa aos 2°s. RR., por força do decidido na precedente acção, mas nem as partes - nenhuma delas - a alegaram, sucedendo, mesmo, que a decisão da primeira acção, ao contrário, exclui expressamente esse intuito liberatório, porque nela nenhum propósito de doar se demonstrou, nem sequer em termos de facto, como resulta da única passagem que ao assunto se refere (ponto 6 dos factos assentes e doc. de fls. 13 a 85): "A Autora, em momento anterior à celebração da escritura referida em 4) acordou com os segundos réus transferir para estes a titularidade da propriedade da casa e imóvel em causa, aceitando celebrar a escritura pública de 23.05.1989 em C... para concretizar essa transferência de propriedade";

21ª – Ainda que assim não fosse, errado, seria sempre o pressuposto de que os factos demonstrariam que a A. pretendia doar o prédio e esse era o negócio dissimulado, pois a lei proíbe-o de todo (art°. 241° n° 2 do Código Civil): "se o negócio dissimulado for de natureza formal só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei", significando a expressão "forma exigida por lei" não que o acto dissimulado deva obedecer aos mesmos requisitos de forma (escritura pública) do acto ostensivo, mas antes que é condição de validade do acto ( ) dissimulado que neste a intenção de doar tenha sido expressamente afirmada, o que de todo não sucedeu (cfr. Vaz Serra, RLJ 103, pág. 361, Mota Pinto, Teoria Geral III ed. pág. 478 e o Ac. Rei. Porto de 13/12/83 in Col. Jur. 1983, V, pág. 229);

22ª – O acórdão recorrido não alterou a matéria de facto, pelo que está provado que quer a transmissão do prédio da A. para o 1º R. quer a transmissão deste para os 2°s RR. são actos simulados, cujo carácter oneroso - apesar de afirmado pela A. (compra e venda) e pelos 2°s RR. (dação em pagamento) - ou gratuito se não apurou, e que os 2°s RR. transmitiram o prédio a terceiro de boa fé, pelo que a declaração de nulidade daquelas duas primeiras transmissões só pode ter como consequência, em vez da restituição do prédio ao património da A., o pagamento do valor correspondente ao que tiver sido prestado, nos termos do art°. 289° nº1 do Código Civil, ou seja, o valor do imóvel;

       Termos em que na procedência do recurso, deve revogar-se a decisão recorrida, inclusivamente no segmento em que condenou a A. como litigante de má fé, e julgar-se a acção inteiramente provada e procedente, condenando-se os RR. no pedido, ou seja, a pagarem à A. o valor do imóvel alienado correspondente ao que ele tinha ao tempo da última das transmissões declaradas nulas, com juros contados desde a citação, para se fazer JUSTIÇA.

       Contra-alegando, defendem os recorridos a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                *

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                                 /

1 – A A. nasceu no dia ……….. (A);

2 – A A. casou com FF, em ……….. (B);

3 – A A. enviuvou, em ……….. (C);

4 – Desde 01.12.92, a A. reside, a título permanente, no Lar de 3ª idade da ..., nesta cidade de Guimarães (D);

5 – O 2º R.-marido, CC, nasceu, em ……….., e é filho da A. e de seu falecido marido (E);

6 – O dissolvido casal formado pela A. e pelo falecido FF viveu, conjuntamente com os seus filhos, durante mais de 30 anos, no prédio urbano situado na Rua …  nº/s …, … e …, Guimarães, inscrito na matriz urbana sob o art. … da freguesia de C... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº …, no qual 7 dos seus filhos, um dos quais o 2º R., lá nasceram (F);

7 – A A. e o marido tomaram o prédio descrito em 6 de arrendamento à respectiva proprietária, Dª GG, pagando uma retribuição mensal pela respectiva ocupação, que, ultimamente, se fixava em Esc. 800$00 (€ 3,99) por mês, a pagar na “F...”, sita na Rua ..., nesta cidade (G);

8 – Através da execução ordinária nº 58/86, que correu termos pela 1ª secção do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Guimarães, o prédio urbano descrito em 6 foi vendido em hasta pública, tendo, aí, sido arrematado, em 10.10.88, por um terceiro, pela quantia de Esc. 2 300 000$00 (H);

9 – A A. esteve presente na hasta pública e, na qualidade decorrente do referido em 7, exerceu o seu direito de preferência, tendo-lhe sido reconhecido o respectivo direito de haver para si o dito prédio em substituição do arrematante, vindo o mesmo a ser-lhe adjudicado, conforme decisão judicial proferida nos mesmos autos (I);

10 – Posteriormente, a A. veio a levar ao registo predial a inscrição a seu favor de tal aquisição, por arrematação em hasta pública do prédio em causa, através da inscrição Ap. 34/161288 (J);

11 – Após a compra, a A. continuou a viver no prédio referido em 6, até ao momento referido em 4, aí comendo, dormindo, passando as suas horas de lazer, confeccionando as suas refeições, recebendo correio, vizinhos, familiares e amigos (k);

12 – O 2º R. foi quem, por a A. não ser pessoa habituada a tratar de burocracia de aquisição de bens, e por ele para isso ter a necessária desenvoltura e conhecimentos, acompanhou a A. no referido processo de aquisição do prédio, ajudando-a, levando-a ao Tribunal, levantando na Caixa Geral de Depósitos dinheiro para a aquisição do prédio, aconselhando-a e acompanhando-a em tudo (L);

13 – Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de C..., no dia 23.05.89, a A. declarou vender ao 1º R., que declarou aceitar pelo preço de Esc. 3 000 000$00, o prédio descrito em 6 (M);

14 – Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de V..., no dia 18.10.89, o 1º R. declarou vender ao 2º, que declarou aceitar, pelo preço de Esc. 3 000 000$00, o prédio descrito em 6 (N);

15 – O 1º R., BB, era colega de trabalho do 2º R. e prontificara-se, a pedido e cumprindo instruções deste, a intervir como outorgante nas escrituras referidas em 13 e 14 para, através da primeira, fingir que estava a comprar à A. o prédio quando, na verdade, não comprou, não quis comprar, nem pagou à A. qualquer preço e para, logo de seguida, através da segunda, fingir que vendia ao 2º R.-marido, quando não vendeu, não quis vender e não recebeu qualquer preço (O);

16 – Por escritura pública celebrada no 2º Cartório Notarial de Guimarães, no dia 16.04.98, os 2º/s RR., CC e mulher, DD, declararam vender a EE, pelo preço, já recebido, de Esc. 4 000 000$00 (€ 19 951,92), o prédio descrito em 6, o que este declarou aceitar (P);

17 – Em 16.06.02, a A., AA, intentou contra BB, CC e mulher, DD, EE e mulher, HH, acção ordinária que correu termos na 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, sob o nº 296/2002, pedindo a condenação dos RR. a:
a) – Verem declaradas nulas e de nenhum efeito as transmissões operadas pelas três escrituras públicas e contratos que lhes subjazem e reconhecerem essas nulidades;
b)  - Entregarem-lhe, de imediato, o prédio em causa, livre e devoluto, por este lhe pertencer;
c)  - Pagarem-lhe, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a importância de € 25 000,00, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação;
d) – Verem cancelados todos os registos relativos aos actos anulandos e quaisquer outros desses eventualmente derivados;

Quando assim não se entenda,
e) - Condenados os 2º/s RR. a pagarem-lhe o preço por eles efectivamente embolsado pelos negócios referidos, de Esc. 16 000 000$00 (€ 79 807,66), acrescidos de juros à taxa legal desde a citação (Q);

18 – Por sentença proferida em 27.01.05, no Proc. id. em 17, transitada em julgado, o pedido da A. foi julgado parcialmente procedente, declarando nulas, por simulação relativa, as escrituras públicas celebradas em 23.05.89 e 18.10.89, respectivamente, em C... e em V..., indicadas na p. i., ordenando o cancelamento dos registos fundados naqueles actos e absolveu os RR. de todos os demais pedidos formulados (R);

19 – Através da inscrição G-1 – Ap. 04/051289, CC viu inscrita a seu favor, no registo predial, a aquisição do mesmo prédio, por compra ao 1º R., BB (S);

20 – Na escritura de 18.10.89, celebrada em V..., o 2ºR.-marido CC, de acordo com a 2ª R. DD, nada quis comprar ao 1º R. BB, nem lhe pagou qualquer preço (T);

21 – EE fez registar a seu favor a aquisição referida em 16, pela inscrição predial G2 – Ap. 17092002 (U);

22 – O registo predial da acção referida em 17 foi efectuado, em 21.02.03, pela inscrição F-2 Ap. 38 (W);

23 – O valor do prédio descrito em F) é, no mínimo, de Esc. 4 000 000$00 (€ 19 951,92) (15º);

24 – Em 10.10.88, a A. estava de relações cortadas com os seus sete filhos, à excepção do seu filho CC, 2º R., e de uma sua filha emigrada no Brasil, de nome II (16º);

25 – Quando a A. soube que a casa onde habitava ia ser vendida em hasta pública, receou que fosse comprada por pessoa com quem viesse a ter problemas (17º);

26 – A A. confidenciou os seus receios aos 2º/s RR. (18º);

27 – A A. não dispunha da totalidade do valor necessário para efectuar a compra (19º);

28 – A A. e os 2º/s RR. compareceram, no dia e hora designados para a hasta pública judicial anunciada (20º);

29 – O 2º R. depositou o preço da arrematação, utilizando a quantia que a A. disponibilizou para o efeito, e desembolsou o restante (23º);

30 – A A., em momento anterior à celebração da escritura referida em 13, acordou com os 2º/s RR. transferir para estes a titularidade da propriedade da casa e imóvel em causa, aceitando celebrá-la para concretizar essa transferência de propriedade (24º);

31 – Depois da celebração da escritura referida em 13, foram os 2º/s RR. quem suportou contribuições fiscais, seguros e reparações várias, autorizando, de acordo com a A., que o imóvel fosse por ela ocupado enquanto o desejasse (26º);

32 – Os 2º/s RR. entregaram à A. um cheque no valor de Esc. 900 000$00, datado de 29.07.92, montante que esta depositou, no dia 30 do mesmo mês e ano, nas suas contas nº/s ... e ... da Caixa Geral de Depósitos, agência de Guimarães (28º).

                                              *

3 – Muito embora tal não tenha sido exarado, expressamente, decorre, inequivocamente, do acórdão recorrido que a Relação de Guimarães teve, igualmente, por provado, por presunção judicial, que a operada transmissão, da A. para o seu filho e 2º R. CC, da propriedade sobre o imóvel questionado nos autos foi acompanhada de um verdadeiro “animus donandi” da sua parte, tendo tal transmissão, bem como a que a antecedeu, de si para o 1º R., obedecido a um prévio plano por si gizado, em conluio com os 2º/s RR., de transmissão do mencionado direito de propriedade, através de correspondente doação àquele seu filho, desse modo contornando as implicações legais dum acto com tal natureza (Cfr., designadamente, o preceituado no art. 2 162º, nº1, do CC).

       O mencionado meio de prova consta de previsão legal (arts. 349º e 351º, ambos do CC), mostrando-se, no caso, admissível (Cfr. citado art. 351º e 393º, nº3, do CC), não sofrendo qualquer dúvida que à Relação – como Tribunal de instância – que não a este Supremo – como mero Tribunal, em princípio (aqui não exceptuado), de revista – assiste a correspondente faculdade de utilização, que este Supremo só poderá impedir se a mesma se não contiver – o que, aqui, não sucede – no trilho do correspondente “iter” ou percurso e raciocínio lógico ante os demais factos provados (Cfr., por todos, o Ac. deste Supremo, de 12.07.07 – Proc. 07S921.dgsi.Net).

       Assim, a factualidade que se deixou exarada será objecto de apreciação e decisão por parte deste Supremo, tendo, também, em consideração o mencionado facto decorrente da sobredita presunção judicial.

                                               *

4 - Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[3]) –, constata-se que as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso são, em síntese, as seguintes:

                                              /

I – Se o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 668º, nº1, al. d), 1ª parte;

II – Se os RR. estão obrigados a restituir à A. o valor do prédio questionado nos autos; na afirmativa,

III – Se tal valor deverá ser reportado à data da 3ª transmissão;

IV – Se o mesmo valor deverá sempre ser, no mínimo, de Esc. 4 000 000$00, dispensando a sua ulterior liquidação;

V – Se tal valor deverá ser objecto de qualquer dedução (resultante, nomeadamente, de empréstimo concedido à A., contribuições fiscais, seguros ou reparações); em qualquer caso,

VI – Se deverá manter-se a condenação da A., como litigante de má fé.

       Apreciando:

                                            *

5I – No entender da recorrente, o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 668º, nº1, al. d), 1ª parte – omissão de pronúncia – uma vez que não conheceu de todas as questões por si suscitadas e relacionadas com a sustentada obrigação de restituição do valor mencionado em II de 4 antecedente.

       Constata-se, no entanto, que tal ficou, exclusivamente, a dever-se ao facto de a Relação ter considerado a inexistência de tal obrigação, do que, em seu entender, resultou prejudicado o conhecimento das questões que da admissão da existência dessa obrigação fossem dependência, o que – como irá ver-se – nos merece concordância, ainda que com diferente fundamentação quanto aos 2º/s RR.

       Assim, resultando prejudicado o conhecimento de tais questões, por situadas a jusante da que foi objecto de apreciação e decisão em sentido oposto ao propugnado pela recorrente, improcede a arguida nulidade, atento o preceituado no art. 660º, nº2.

                                                     /

II – O abuso de direito[4]consubstancia um limite ao exercício dos direitos subjectivos, sendo um instrumento de controlo da autonomia privada, quando esta é efectivada através do livre exercício do poder conferido pela ordem jurídica ao titular de um direito subjectivo.

       Esta limitação foi acolhida no art. 334º do CC, que dispõe que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

       Resultando, assim, da fórmula legal três tipos de limites: a boa fé; os bons costumes; e o fim social ou económico do direito.

       Quanto à boa fé: neste preceito, consagrou o legislador a boa fé no seu sentido objectivo, ou seja, enquanto padrão ético de conduta. O que quer dizer que, no exercício de um direito subjectivo, enquanto momento relacional, o sujeito jurídico deve actuar com honestidade – “honeste agere” –, como pessoa de bem, não devendo ter um comportamento que, face à sociedade, seja visto inequivocamente como desonesto: não é aceitável, designadamente, que o titular do direito o exerça com base numa actuação ilícita (“tu quoque”), possibilitando-se, nesse caso, uma reacção tradicionalmente designada por “exceptio doli ”.

       Por outro lado, o direito deve ser exercido de forma a não causar danos desnecessários a terceiros – “alterum non laedere” –, sob pena de haver lugar a responsabilidade civil.

       Por fim, o direito deve ser exercido de maneira a não defraudar a confiança criada, caso contrário a situação reconduzir-se-á àquilo que, comummente, se vem designando como “venire contra factum proprium”.

       Neste tipo de abuso de direito estão também englobadas as situações denominadas por “supressio” e “surrectio”, correspondentes a omissões prolongadas que consolidam a confiança de que o direito não vai ser exercido, quando, posteriormente, ele vem mesmo a ser exercido, e, ainda, os casos das inalegabilidades formais.

       Quanto aos bons costumes: Esta referência traduz uma forte aproximação do jurídico ao social, ou seja, o legislador busca os padrões sociais vigentes em cada momento como parâmetros delimitadores do exercício do direito, ficando ao critério do aplicador utilizar, em cada momento, os costumes sociais como baliza para o exercício do direito.

       Quanto ao fim social ou económico do direito: O poder conferido pela ordem jurídica – direito subjectivo – está também delimitado pelos fins para os quais foi conferido, cabendo, pois, ao intérprete, face às circunstâncias do caso concreto, indagar se a pessoa jurídica actuou para alcançar fins diversos dos fins típicos do seu direito.

       Mas, não será demais advertir que só haverá abuso de direito quando a actuação do titular exceder clamorosamente, isto é, de forma inadmissível, os limites acolhidos no art. 334º do CC, sendo necessário algum cuidado por parte do aplicador de forma a que este mecanismo de segurança ou válvula de escape do sistema não se transforme num instrumento de inaceitável intromissão na autonomia privada por parte dos tribunais, a tudo servindo de panaceia. De contrário, acabará por verificar-se uma inevitável falta de credibilidade determinante da futura inaplicabilidade do instituto.[5]

III – No acórdão recorrido, foi entendido que nenhuma obrigação de restituição do valor do prédio impende sobre qualquer dos RR.

       Posição que perfilhamos, ainda que – como já ficou acentuado – com diferente fundamentação quanto aos 2º/s RR.

       Ponderando parte da relevante factualidade provada, com apelo ao constante da sentença da 1ª instância:

       “ A A. era arrendatária do prédio urbano situado na Rua … , nº/s …, … e …, Guimarães…, posição jurídica que lhe facultou o exercício do direito de preferência na arrematação em hasta pública levada a cabo no processo de execução ordinária nº… e por via da qual viu ser-lhe adjudicado pela quantia de Esc. 2 300 000$00 (…) Contudo, a A. não dispunha do montante integral para o exercício de tal direito, tendo sido auxiliada pelo R. seu filho, que pagou o preço, desembolsando a parte restante (…) Posteriormente, porventura por se encontrar incompatibilizada com cinco dos seus sete filhos, a A. acordou com os RR. CC e DD transferir para os mesmos a titularidade daquele imóvel (…) Para concretizar tal propósito, aceitou celebrar com um colega do seu filho, o R. BB, em 23.05.89, escritura pública na qual declarou vender-lhe tal prédio pelo preço de Esc. 2 600 000$00, que aquele declarou aceitar, sendo certo que tais declarações não corresponderam, num e noutro caso, à verdadeira intenção das partes, que não visaram a transmissão do imóvel nem o pagamento de qualquer contrapartida (…) Em Outubro do mesmo ano, o R. BB declarou vender aos RR. CC e DD, pelo preço de Esc. 3 000 000$00, o imóvel em causa, tendo em vista concretizar o plano gizado anteriormente com a A. de o fazer ingressar no património dos segundos. Também neste caso, não houve qualquer pagamento (…) Durante o período que decorreu entre a arrematação e o ingresso no Lar da 3ª idade …, em Guimarães, em 01.12.92, a A. manteve-se a viver no prédio em causa, não pagando qualquer montante pela ocupação, mormente depois de 23.05.89. Em contrapartida, os RR. CC e DD, desde aquele primeiro momento, passaram a exercer actos de posse correspondentes à posição de proprietários, designadamente, suportando encargos com impostos, seguros e reparações (…) Em 16.04.98, os RR. CC e DD declararam vender o prédio em questão a EE, pelo preço de 4 000 000$00, aquisição que este registou a seu favor, em 17.09.02”.

       Acrescendo, ainda, com relevância e entre o mais, que:

--- A A., em momento anterior à celebração da escritura outorgada em C..., acordou com os 2º/s RR. transferir para estes a titularidade da propriedade da casa e imóvel em causa, aceitando celebrá-la para concretizar essa transferência de propriedade;

--- Depois da celebração da mesma escritura, foram os 2º/s RR. quem suportou contribuições fiscais, seguros e reparações várias, autorizando, de acordo com a A., que o imóvel fosse por ela ocupado enquanto o desejasse.

       Perante a factualidade provada e o mais que ficou ponderado, entenderam, una voce, as instâncias que, não obstante a nulidade da compra efectuada pelo R. BB à A. e na impossibilidade – decorrente do preceituado no art. 291º, nº1, do CC – de restituição à A. do imóvel objecto mediato de tal contrato, o mesmo R. não está obrigado, nos termos do preceituado no art. 289º, nº1, parte final, do CC, a restituir-lhe o valor correspondente. O que fundamentaram no facto de ocorrer abuso do respectivo direito por parte da A., já que o R. BB nada pagou, nada recebeu, limitando-se a facilitar a transmissão que os demais pretendiam.

       Como enfatizou a 1ª instância (Fls. 616), “Permitir que a A. exigisse deste R. a reposição da sua situação patrimonial consubstanciaria abuso de direito…, na medida em que a mesma quis a transmissão do prédio para o filho, usando aquele para alcançar este fim e nada fez nos anos que se lhe seguiram para reverter tal situação”´.

       Dito doutro modo: a pretensão da A., ora, em análise extravasa, manifesta e clamarosamente, dos limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes a que foi feita desenvolvida referência em II supra, sendo, pois, ilegítima, o que impõe que não possa ser acolhida, como – bem – decidiram as instâncias, sob pena de – na feliz expressão tantas vezes utilizada pelo saudoso Prof. Antunes Varela – se conferir protecção legal a quem “faz o mal e a caramunha”…

                                                     /

IV – Mostra-se adquirido, nos autos, que a “compra e venda” formalizada pela escritura pública de 18.10.89, em V..., enferma da nulidade prevista no art. 240º, do CC, uma vez que na mesma confluíram os três requisitos da simulação, cumulativamente, exigidos pelo nº1 do mesmo art.: 1 – divergência intencional entre a vontade real e vontade declarada; 2 – acordo entre declarante e declaratário que determine a falsidade da declaração (acordo simulatório ou “pactum simulationis”); e 3 – intenção, intuito ou propósito de enganar ou prejudicar terceiros (“animus decipiendi” ou “animus nocendi” – ainda que não tenha havido intenção fraudulenta, isto é, de prejudicar terceiros – “animus nocendi” –, caso mais frequente, haverá simulação se existir o intuito ou propósito de, simplesmente, enganar terceiros – “animus decipiendi”).

       Não sendo tal simulação absoluta – hipótese em que o negócio por tal viciado colorem habet, substantiam vero nullam, deve a mesma ser caracterizada como relativa – caso em que o negócio celebrado colorem habet, substantiam vero alteram. Na realidade, sob a capa do negócio ostensivo, aparente, simulado – compra e venda – alberga-se um outro, latente, oculto, encoberto, dissimulado, disfarçado ou camuflado, que foi o verdadeiramente querido pelas partes – doação.

       Esta dicotomia emerge do preceituado no art. 241º, nº1, do CC, nos termos do qual “Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado”. Como, a propósito expende o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos[6], “Na configuração da simulação há que distinguir, por um lado, a aparência criada e, por outro, a realidade negocial”. Correspondendo àquela o negócio simulado e a esta o negócio dissimulado.

       Porém, o nº2 do mesmo art. adverte-nos para uma restrição. É que “Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.

       Aqui, e a propósito, tendo surgido grande divisão doutrinal.

       Mas demos a “palavra” ao Prof. Pedro Pais de Vasconcelos (“Ob. citada”, pags. 590 a 593), dada a brilhante síntese por si efectuada sobre tão complexa temática: “São duas as soluções extremas que podem ser adoptadas nesta questão e que merecem ser confrontadas: uma é a de fazer sobrevaler a publicidade emergente da forma à validade e outra, a contrária, de fazer prevalecer a validade (favor negotii) sobre a publicidade. A primeira é adoptada pela doutrina alemã e, em Portugal, pelo Assento de 1952, por BELEZA DOS SANTOS e por HORSTER; a segunda é seguida por ANTUNES VARELA, no CC Anotado e maioritariamente pelos tribunais portugueses (…) A opção pela invalidade parece, à primeira vista, assegurar melhor a publicidade e, com ela, os interesses dos terceiros. Todavia, em concreto, tal não sucede necessariamente. Assim, no caso, por ex., de uma simulação para enganar e prejudicar preferentes, em que se manifesta uma doação para ocultar uma compra e venda, a solução da nulidade obsta ao exercício da preferência e acaba por beneficiar os simuladores e prejudicar os preferentes. Mais justo parece ser admitir a validade formal e proteger os terceiros através da responsabilidade civil, nos moldes gerais: a simulação é ilícita e os danos causados a terceiros pela falta de publicidade ou pela falsa publicidade emergente intencionalmente da simulação seriam ressarcíveis de acordo com as regras da responsabilidade civil “ (arts. 227º e 483º) “(…) É conatural da simulação o intuito de enganar terceiros, de lhes ocultar algo de relevante no negócio através da criação duma falsa aparência que pode incidir sobre a identidade das partes, sobre o preço, sobre o tipo, sobre o conteúdo, ou sobre um outro elemento do negócio. A forma adoptada no negócio, tal como os simuladores lhe dão aparência, nunca pode revelar a totalidade do negócio real dissimulado. Essa revelação seria incompatível com a simulação e só poderia ser conseguida sem ela. Não pode, pois, haver simulação relativa sem que algo do negócio dissimulado falte ou seja diferente no negócio simulado. Assim sendo, a exigência de que a forma adoptada cubra a totalidade do negócio conduzirá necessariamente à nulidade. É este o fundamento da opção da doutrina alemã, da doutrina de BELEZA DOS SANTOS e do Assento de 1952. (…) A opção do actual CC, no art. 241º, nº2, é mais favorável à validade formal. Permite que o negócio dissimulado beneficie da forma adoptada no negócio simulado; isto é, permite que o negócio real oculto (negócio dissimulado) beneficie da forma adoptada na criação da aparência. Este preceito não deve ser interpretado no sentido de exigir que a parte oculta do negócio revista a forma legalmente exigida. Tal constituiria um contra-senso, porque só poderia suceder sem a simulação. (…) Uma solução intermédia, adoptada por parte importante da Doutrina portuguesa, segue o camionho de apreciar a relevância da falta de forma em relação à parte oculta do negócio. O problema da validade formal do negócio dissimulado suscita-se com grande delicadeza quando a lei exige a forma solene da escritura pública para o negócio e essa forma foi observada no negócio tal como aparente (negócio simulado), mas não revestiu a parte oculta do negócio. A Doutrina tem abordado a questão numa perspectiva análoga à da forma dos pactos acessórios, tal como regida no art. 221º: para a validade formal do negócio dissimulado seria necessário demonstrar que a parte oculta do negócio não estava abrangida pela «razão determinante da forma». Nesta linha, se a forma legalmente exigida fosse a da escritura pública, o negócio dissimulado só poderia ser formalmente válido se a parte oculta do negócio, em si mesma considerada, não fosse abrangida pela razão de ser da exigência legal de forma. Esta é, com naturais cambiantes e particularidades, a posição de CASTRO MENDES, de OLIVEIRA ASCENSÃO e de CARVALHO FERNANDES. MENEZES CORDEIRO prefere a referência analógica ao art. 238º do CC. (…) Todavia, este modo de encarar a questão é ainda muito restritivo da validade formal do negócio dissimulado, que acaba por resultar quase sempre inválido, salvo quando a parte oculta do negócio tenha uma importância meramente secundária. E, no entanto, a lei é francamente menos exigente no que concerne à validade formal dos negócios tácitos. O respeito pela exigência legal de forma não impede que o Cod., no art. 217º, nº2, a propósito dos negócios tácitos, admita a validade formal «desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz». Neste caso também a publicidade fica prejudicada, sacrificada à subsistência do negócio, sem que a lei distinga quanto à razão de ser da forma. (…) Parece ser preferível a solução de considerar formalmente válido o negócio real (dissimulado), desde que a forma que a lei exige para a sua validade tenha sido observada no negócio aparente (simulado) independentemente da parte do negócio que tenha sido oculta e do regime formal que, em si mesma, justificaria e da razão de ser da exigência legal de forma. Os elementos do contrato real (dissimulado) que não estejam cobertos pela forma do negócio aparente (simulado) ficam inevitavelmente expressos, e tornam-se assim aparentes e cognoscíveis, na sentença que declara a simulação, cuja forma é mais solene que a da escritura pública, e cuja certidão serve de base ao registo do acto real (dissimulado). A forma soleníssima da sentença satisfaz a exigência de publicidade, a qual só fica prejudicada em relação ao tempo que medeia entre a ocorrência da simulação e a prolação da sentença e o seu registo. Esta solução é conforme com o princípio do favor negotii. (…) É verdade que da falsa publicidade emergente da simulação anterior à sua declaração judicial e registo podem resultar danos para terceiros, mas esses danos, uma vez provados, podem ser indemnizados. A simulação é um acto ilícito que dá lugar à obrigação de indemnizar os danos causados à contraparte, nos termos gerais do art. 227º do CC, e os danos causados a terceiros, nos termos gerais do art. 483º do CC. Os interesses de terceiros que tenham sido prejudicados com a omissão da publicidade que da simulação resulta podem ser acautelados com o regime da responsabilidade civil”.

       Esta longa e, porventura, fastidiosa transcrição – de que entendemos dever penitenciar-nos – evidencia que, no caso dos autos (seguindo, aliás, a posição maioritária da jurisprudência deste Supremo – Cfr., designadamente, os Acs. de 07.02.02 , de que foi relator o saudoso Cons. Neves Ribeiro - –COL/STJ – 1º/77, de 17.06.03, de que foi relator o Cons. Ribeiro de Almeida – COL/STJ- 2º/112 e de 09.10.03, muito exaustivo e de que foi relator o Cons. Oliveira Barros – COL/STJ – 3º93), tem de haver-se por inteiramente válido o dissimulado negócio de doação, porquanto – remetendo para o que se deixou transcrito – o mesmo foi formalizado por escritura pública, forma adoptada para a celebração do simulado negócio jurídico de compra e venda, tendo, pois, sido observada a forma legalmente exigida para o negócio dissimulado de doação (Cfr. arts. 875º e 947º, nº1, ambos do CC).[7]

       Assim, passando, por via disso, os 2º/s RR. a ser titulares do direito de propriedade incidente sobre o questionado prédio objecto mediato de tal doação, nenhuma obrigação de restituição, à A., do respectivo valor sobre os mesmos impende, quedando, pois, prejudicado o conhecimento das questões supra enunciadas sob III, IV e V de 4 supra (art. 660º, nº2).

                                                      /

V – A recorrente insurge-se, igualmente, contra a respectiva condenação como litigante de má fé.

       Sem razão, mais uma vez.

       Dispõe o art. 456º : “ 1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. 3…”

       As partes, recorrendo a Juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas ao dever de cooperação, mormente com o Tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à Verdade e ao Direito, sob pena de a protecção jurídica que reclamam não corresponder à realidade, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os Tribunais.

       Daí que o legislador, no art. 266º, nº1, imponha aos magistrados, partes e mandatários o dever de cooperarem com vista à justa composição do litígio.

       O art. 266º-A reafirma tal princípio ao aludir ao dever de actuação com boa fé processual, inerente ao dever de cooperação.

       A actuação processual do litigante de boa fé postula uma actuação verdadeira, uma informação correcta no tempo e modo processuais ajustados, não se compadecendo com subterfúgios e “meias verdades”, que mais não visam senão uma egoísta defesa de posições próprias que, prejudicando o opositor, acabam por não conduzir o Tribunal à correcta percepção da realidade e, logo, a correr o risco, assim induzido, de decidir mal.

       Uma das condutas em que se exprime a litigância de má fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, um objectivo censurável.

       Trata-se de litigar com má fé material.

       Tendo a má fé, antes da reforma processual de 95/96[8], como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse, a dita reforma mudou tal estado de coisas, considerando reveladora de má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave. E pressuposto essencial da punição como litigante de má fé é que algum dos comportamentos previstos nas quatro als. do nº2 do art. 456º possa ser imputado, a título de dolo ou negligência grave. É que, como já ficou salientado, as partes devem litigar em Juízo de forma leal, cooperante, visando a defesa dos direitos próprios, mas sem porem em causa o fim último da Justiça, que é a descoberta da verdade material, visando alcançar a solução justa, tudo de acordo com aquele conjunto de princípios que exprimem a litigância de boa fé.

       No caso dos autos, constata-se que, como resulta de quanto ficou exposto, não pode deixar de ser considerado que a recorrente-A., consciente e intencionalmente, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, para além de que, também consciente e intencionalmente, alterou a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa. Assim tendo, por outro lado, praticado omissão grave do dever de cooperação e feito um uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de conseguir um objectivo ilegal e de impedir a descoberta da verdade.

       Com efeito, e designadamente, a recorrente-A.:

--- Fez, conscientemente, tábua rasa de factos que foram objecto do julgamento no Proc. nº 296/2002 e dos quais resultava que foi interveniente no acordo simulatório que teve em vista transmitir para os 2º/s RR. o imóvel que fora vendido em hasta pública e a si adjudicado após exercício de direito de preferência, reiterando os argumentos então esgrimidos;

--- Continuou a viver no referido imóvel, até ao ingresso no lar de 3ª idade, mediante autorização dos 2º/s RR., o que não faria qualquer sentido se a mesma, então, se considerasse, ainda, dona do imóvel, como pretendeu fazer crer;

--- Pretendeu fazer crer que a escritura pública outorgada em C... não lhe foi lida, contra o que, na mesma, é referido e constitui imperativo legal;

--- Não dá qualquer explicação para o facto de haver sido paga de Esc. 940 000$00 pelos 2º/s RR., quando é certo que, na sua tese, deveria a mesma, bem pelo contrário, pagar a tais RR. o montante por estes adiantado para perfazer o valor da adjudicação judicial do imóvel – Esc. 2 360 000$00.

       Assim – e muitos mais factos de conhecimento, necessariamente, pessoal poderiam, a propósito, ser convocados –, por inteiramente conforme aos pertinentes ditames legais, mantém-se a decretada condenação da recorrente-A. como litigante de má fé.

       Improcedendo, pois, as conclusões formuladas pela recorrente.

                                                  *

6 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

                                                  /

      Custas pela recorrente.

                                                  /

Lisboa,  28 de Maio de 2013   

Fernandes do Vale (Relator)

Marques Pereira

Azevedo Ramos

_________________
[1]  Processo distribuído, neste Tribunal, em 02.10.12.
[2]  Relator: Fernandes do Vale (41/12)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Marques Pereira
   Cons. Azevedo Ramos
[3]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[4]  Cfr., sobre esta temática, MENEZES CORDEIRO, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Vol. II, pags. 719 e segs
[5]  Esta perfunctória e sumária abordagem do instituto do abuso de direito visa apenas uma melhor compreensão do que, de seguida, virá a ser explanado.
[6]  In “Teoria Geral do Direito Civil”, 7ª Ed., pags. 584.
[7]  Sobre esta temática, cfr., igualmente, Prof. I Galvão Telles, in “Manual dos Contratos em Geral”, Refundido e Actualizado, pags. 179 a 182; Prof. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” (1976), pags. 357 a 362; Prof. Heinrich Ewald Horster, em “Simulação. Simulação Relativa. Formalismo Legal”, CDP (Cadernos de Direito Privado) nº 19, pags. 3 e segs; Prof. Vaz Serra, in RLJ, Anos 111º/246, 113º/60 e 114º/317; e Prof. Henrique Mesquita, in RLJ, Ano 129º/271.

[8]  Cfr. Cons. Rodrigues Bastos, in “NOTAS ao CPC”, Vol. II, 3ª Ed., pags. 221