Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | NORONHA DO NASCIMENTO | ||
Descritores: | EMPREITADA DEFEITOS DENÚNCIA IMÓVEL DESTINADO A LONGA DURAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200406030006942 | ||
Data do Acordão: | 06/03/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 2803/03 | ||
Data: | 09/30/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA. | ||
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Sumário : | I) Em inúmeros casos é impossível o respeito por qualquer ordem sequencial imposta pelos arts. 1220º e segs. do C. Civil, no tocante ao contexto de empreitada, muito especialmente quando estão em causa imóveis destinados a longa duração. II) Daí que os direitos indemnizatórios conferidos nos arts. 1223º e 1225º do C.C. devem ser vistos como direitos autónomos. III) Esta leitura das normas referidas é, hoje, confirmada pelo art. 12º da Lei nº. 24/96 de 31/7 (Lei de defesa do consumidor). IV) De qualquer modo e como pressuposto para o exercício das faculdades que a lei lhe confere, o dono da obra deve denunciar ao empreiteiro, no prazo legal, os defeitos que corporizam o cumprimento defeituoso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A Autora "A, Lda.", propõe acção com processo ordinário contra a Ré "B, Lda." pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 3.783.890$00 e juros de mora. Alega, para tanto, que aquele montante corresponde ao preço - não pago - da empreitada que a Autora levou a cabo a pedido e por contrato celebrado com a Ré. Contestou esta; sem negar a dívida em questão, a Ré deduziu reconvenção pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de 5.992.389$00, operando-se entretanto a respectiva compensação. Alega, em suma, que a empreitada efectuada pela A. foi defeituosa, que a Autora não corrigiu os defeitos denunciados e que a Ré se viu na necessidade de corrigir esses defeitos recorrendo a uma outra empresa a quem pagou aquilo que agora peticiona em reconvenção. Procedeu-se a julgamento, sendo a seguir proferida sentença que julgou procedente o pedido da A. e improcedente o pedido reconvencional da Ré. Inconformada apelou a Ré, sem êxito porém. De novo inconformada, recorre de revista a Ré para este Supremo Tribunal concluindo as suas alegações da forma seguinte: a) resulta dos autos que estamos perante uma manifesta urgência na eliminação dos defeitos da obra que tinha sido empreitada à Ré-recorrente pelo Município de Cascais (e subempreitada à Autora pela empreiteira "B, Lda.") já que o Município de Cascais exigia a entrega urgente das obras em questão; b) a Ré fixou à Autora-recorrida prazos para proceder à eliminação dos defeitos da obra mas a subempreiteira jamais os corrigiu; c) por isso, viu-se a recorrente na necessidade de recorrer a uma terceira empresa para que esta procedesse à eliminação de tais defeitos e à qual veio a pagar o que, agora, peticiona reconvencionalmente; d) com a eliminação dos defeitos a Ré despendeu 4.861.309$00 pagos a essa terceira empresa; o restante do que peticiona - ou seja 1.130.980$00 - foi gasto pela Ré com a manutenção dos espaços verdes; e) a correcção dos defeitos por terceiro, por manifesta urgência, titula a Ré-recorrente no direito de ser indemnizada; a manutenção dos espaços verdes com os gastos conexos titula-a também no direito indemnizatório a que alude o art. 1223º do C.Civil; f) foram violados os arts. 777º, 804º, 805º, 808º, 1223º do C.Civil. Pede, em conformidade, a procedência da revista, julgando-se procedente o pedido reconvencional. Contra-alegou a recorrida defendendo a bondade do decidido. Dá-se por reproduzida a matéria de facto provada em 1ª instância com o que lhe é aditado no acórdão do T. Relação de Lisboa (fls. 263 e 264) por força do princípio da aquisição processual (art. 713º, nº. 6 do C.P.C.). 1º) O Supremo Tribunal é um Tribunal de revista alargada; daí que, em regra, o S.T.J. só conheça de direito, cabendo às instâncias a fixação definitiva da matéria de facto. Esta não é questionada por nenhum das partes, pelo que podemos sintetizar facticamente este pleito da seguinte forma: a) o Município de Cascais empreitou à Ré a realização de uma série de obras de remodelação da frente marítima entre Cascais e Estoril; b) parte das obras foi subempreitada pela Ré à Autora; c) houve defeitos na execução da subempreitada pela A.; d) depois de muita troca de correspondência entre as partes e dispondo-se sempre a Autora a corrigir os defeitos detectados nas obras que realizou (mas só os que lhe cabiam e não outros que não foram da sua responsabilidade), a Ré encarregou um terceiro de proceder à eliminação dos defeitos, pagou-lhe, e peticiona agora da A., em reconvenção, a quantia paga a esse terceiro pela eliminação dos defeitos e ainda o que despendeu com uma outra empresa pela manutenção dos espaços verdes para além do prazo previsto. Face a esta factualidade as instâncias julgaram improcedente o pedido reconvencional pela razão fundamental de que a Ré não cumpriu a ordem sequencial imperativa imposta pelos arts. 1220º e sgs. do C.Civil (como todos os que se citarem sem indicação de diploma) sempre que há defeitos no cumprimento da empreitada. 2º) Estamos perante uma subempreitada (modalidade de subcontrato) prevista no art. 1213º à qual são aplicáveis as normas legais que regem a empreitada. Nos contratos de compra e venda e empreitada, o legislador autonomizou o regime legal do incumprimento defeituoso dando-lhe uma configuração específica. Na verdade, para além da dicotomia cumprimento = incumprimento obrigacional, há um tentium genus (o cumprimento defeituoso) que consoante as circunstâncias ora se aproxima do cumprimento ora do incumprimento. Se o defeito no cumprimento é tão irrelevante que não afecta o equilíbrio e o conteúdo prestacional deve ter-se a obrigação por cumprida; se, ao invés, o defeito é tão grave que o fim prestacional é profundamente afectado, a obrigação deve ter-se por incumprida. No comum dos contratos o cumprimento defeituoso não aparece autonomizado e é tratado em conjunto nas normas legais que regulam aquela matéria (cfr. o nº. 1 do art. 799º); mas na compra e venda e na empreitada há todo um regime autónomo que delimita os efeitos, as sequelas e os direitos advenientes do cumprimento defeituoso. É o que se passa com a venda de coisa defeituosa (arts. 913º e segs.) e com os defeitos de obras na empreitada (arts. 12118º e segs.). 3º) É tradicional o entendimento segundo o qual, na empreitada, o direito creditício do dono da obra está condicionado pelo respeito da ordem sequencial que os arts. 1220º, 1221º, 1222º estabelecem; o que significa que não respeitando essa ordem sequencial mais não resta ao dono da obra senão conformar-se com a improcedência do seu direito. Não cremos que uma interpretação tão formalista e inflexível das normas referidas seja viável face aos textos legais; interpretação que (diz a experiência judiciária) corresponde, por força do seu carácter restritivo, a uma permanente espada de Democles sobre a cabeça do dono da obra. Desde logo, o cumprimento da referida ordem sequencial mostra-se impossível em variados casos, nomeadamente quando estão em causa imóveis de longa duração (art. 1225º) que implicam por vezes especificidades que fogem à linearidade daquela ordem sequencial. Daí que já se tenha entendido que o direito indemnizatório conferido no art. 1225º é autónomo e auto-suficiente em relação àquela ordem sequencial (cfr. neste sentido o Ac. S.T.J., Acs S.T.J. - Col. Jurispr., do ora relator e Ac. S.T.J. de 10/1/02 relatado por Nascimento Costa). Em segundo lugar, a leitura feita naqueles arestos deste Tribunal aparece coonestada pela própria lei de defesa do consumidor aplicável a inúmeros (mas não a todos) casos de empreitada pleiteados em juízo. Na verdade, a lei nº. 24/96 de 31/7, que define o regime-regra de defesa do consumidor sempre que lhe são prestados serviços ou bens, estabelece no seu art. 12º o leque de direitos conferidos àquele (em tudo similares aos que os arts. 1221º, 1222º e 1223º do C.Civil concedem) sem exigir qualquer precedência sequencial de forma a condicionar logicamente o exercício dos direitos. O próprio direito indemnizatório (que o C.Civil) prevê nos arts. 1223º e 1225º) está perfeitamente autonomizado no nº. 4 do art. 12º, confirmando a tendência generalizada de desvincular o exercício dos direitos de qualquer ordem sequencial que, na prática, serve para garrotar a posição jurídica do consumidor ou - no dizer do C.Civil - do dono da obra. A exigência normativa que o art. 12º compreensivelmente faz, situa-se a outro nível: referimo-nos ao ónus que impende sobre o consumidor de denunciar o defeito dentro de certo prazo. Mas isso corresponde a um princípio geral sempre que há incumprimento defeituoso e que se destina também a salvaguardar a posição do faltoso; já o C.Civil impunha esse ónus quer na empreitada defeituosa quer na venda de coisa defeituosa. É certo que a lei do consumidor não se aplica ao caso em apreço por força da norma excludente do seu art. 2º; mas a sua importância radica no facto de ela conter normas que recusam definitivamente a tese da ordem sequencial dos direitos e legitimam uma releitura das normas correspondentes do C.Civil. Ademais grande parte dos contratos de empreitada está hoje sujeita à lei de defesa do consumidor; basta que a obra se destine a uso não profissional do dono da obra. O que significa, por conseguinte, que nestas hipóteses o regime mais favorável da Lei nº. 24/96 se sobrepõe ao iter labiríntico do C.Civil. 4º) A recorrente "B, Lda." pede quantias diferentes correspondentes a coisas totalmente diferentes: uma, reporta-se ao que pagou a um terceiro pela eliminação dos defeitos que a Autora não corrigiu; outra, reporta-se ao que despendeu pela manutenção alongada dos espaços verdes em função da recepção tardiamente justificada do dono da obra. Vejamos separadamente os dois aspectos. Em relação às despesas correspondentes à eliminação dos defeitos por terceiro a recorrente não poderá ser ressarcida delas atento o conjunto de factos provados. Repare-se que a 2ª instância - no uso, aliás, dos seus poderes de apreciar e valorar a matéria de facto - concluiu (através da análise de toda a correspondência trocada entre empreiteira e subempreiteira) que a Autora-recorrida nunca se recusou a corrigir os defeitos que lhe fossem imputáveis mas, porque havia deficiências de variada proveniência (algumas não imputáveis à Autora), exigia a definição prévia de quais eram, afinal, as que resultaram da sua conduta. Foi essa determinação que nunca se fez; e a Ré-recorrente, à revelia de qualquer definição prévia dos defeitos da obra imputáveis à Autora avançou para uma eliminação global daqueles. Vale isto por dizer, em bom rigor, que a Ré não permitiu à Autora a possibilidade de eliminação dos defeitos subjacentes a qualquer ónus de denúncia. Na verdade, independentemente de se saber se os direitos contemplados nos arts. 1221º e segs. obedecem ou não a uma ordem sequencial, e mesmo que se entenda que o direito indemnizatório do dono da obra está autonomizado, uma coisa é certa: o dono da obra deve denunciar os defeitos ao empreiteiro como forma de permitir a este a correcção do seu cumprimento defeituoso e como pressuposto essencial a que - não corrigindo ele esse cumprimento - possa o dono da obra exercer as faculdades que a lei lhe confere. No caso, foi isso que faltou. Ficou sempre por saber quais os defeitos que corporizavam o cumprimento defeituoso da Autora-subempreiteira, de modo a poder estabelecer o leque de defeitos que ela devia eliminar. Ou seja, e dito de outra forma, independentemente do tempo que se foi alongado na correspondência e contra-correspondência que os contraentes foram reciprocamente enviando, nunca se fixou ou soube o catálogo de defeitos a corrigir. Ao tomar a iniciativa de eliminá-los por sua conta e risco, a Ré excedeu os limites do cumprimento defeituoso invadindo e estendendo a defeitos que nada têm que ver com a subempreitada da A., a sua iniciativa de eliminação; como isso mesmo ficou suspenso no ar em prova indefinidamente indeterminada (sendo que o respectivo ónus cabia à Ré) nada mais restará, neste particular, senão concluir pela correcção da decisão das instâncias. O que equivale a dizer que o montante peticionado reconvencionalmente pela Ré em relação àquilo que foi pago a terceiro para eliminar os defeitos da subempreitada não tem qualquer viabilidade na sua procedência. 5º) Temos porém, ainda um outro pedido: o montante despendido pela Ré na manutenção dos espaços verdes por força da recepção tardia da obra pela dona desta. Supomos que, aqui, a situação é diferente. A recepção da obra pelo dono foi provisória, ou seja, com reservas, o que significa que a Ré-empreiteira continuou a responder pelos defeitos encontrados (art. 1219º, nº 1). Esse atraso adveio de defeitos na execução que a Autora aceitou e por força dos quais a obra se prolongou a um ponto tal que a dona não a recebeu no prazo acordado. Significa isto, por conseguinte, que a Ré-empreiteira teve que continuar a suportar a manutenção dos espaços verdes por força de uma sub-empreitada que se não concluiu e enquanto o Município de Cascais (dono da obra) não recepcionou sem reserva a obra em questão. Com a continuação de uma manutenção de espaços verdes que não estava prevista despendeu a Ré o montante 1.130.980$00. Tal quantia insere-se na indemnização por falta do cumprimento atempado a que a Autora estava adstrita, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque o direito indemnizatório concedido no art. 1223º conexiona-se com as regras gerais do incumprimento contratual e como tal deve ser visto como um direito autonomizado como aquele outro que é conferido pelo art. 1225º; aliás, a referência expressa aos "termos gerais" do direito expressamente consignada naquela norma, reforça, esta mesma interpretação. Em segundo lugar, porque os danos referidos englobam-se perfeitamente no nexo causal tal como o art. 563º o define, aplicável quer à responsabilidade contratual quer à extra-contratual. Na norma do art. 563º consagra-se a variante negativa da causalidade adequada, muito próxima da teoria da equivalência das condições: é causa adequada a condição sem cuja ocorrência o dano provavelmente não teria ocorrido, a menos que a condição seja totalmente indiferente à produção do dano. Do que se deixa exposto, infere-se que o cumprimento defeituoso da A. - independentemente da determinação concreta dos defeitos que lhe são imputáveis mas que (tal como ela aceita) existem - provocou um alongamento na recepção definitiva da obra que trouxe consigo despesas de manutenção que a Ré se viu obrigada a suportar. São estas despesas que caem por inteiro no âmbito da previsão do art. 1223º. Nesta parte procede, por conseguinte, o pedido reconvencional da Ré-recorrente. Termos em que se julga parcialmente procedente a revista da Ré, condenando-se a Autora a pagar-lhe a quantia de 1.130.980$00 e juros respectivos à taxa legal desde a citação, operando-se a respectiva compensação com o crédito da Autora, devendo converter-se em euros o montante encontrado a final. Custas por A. e R. na proporção em que decaíram. Lisboa, 3 de Junho de 2004 Noronha do Nascimento Moitinho de Almeida Bettencourt de Faria |