Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P256
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES DE PINHO
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
RECURSO PENAL
PODERES DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200303060002563
Data do Acordão: 03/06/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T J CASCAIS
Processo no Tribunal Recurso: 127/02
Data: 10/21/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Rec.te: "A"
Rec.do: MP

1. No processo nº 127/02.4, do 2º Juízo Criminal da comarca de Cascais, e por acórdão de 21.10.2002 (fls. 466 a 482), foi condenado o arguido A, melhor identificado nos autos, nas penas a seguir indicadas:
- pela prática em autoria material de 12 crimes de roubo p. p. pelo art. 210º, nº 1 do CP na pena de 2 anos de prisão por cada um deles;
- pela prática em autoria material de um crime de roubo na forma tentada, p. p. pelos arts. 210º, nº 1 e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP na pena de 2 anos de prisão;
- pela prática em autoria material de um crime de roubo agravado na forma tentada, p. p. pelos arts. 210º, nº 2 e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP, na pena de 2 anos de prisão;
- pela prática em autoria material de um crime de burla p. p. pelo art. 217º, nº 1, do CP, na pena de 7 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 10 anos de prisão.
2. Não se conformando com a decisão, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (vide fls. 485), tendo oferecido as motivações que se estendem de fls. 486 a 489, que concluiu, pedindo a revogação do acórdão:
"I. Atendendo ao estado de dependência absoluta de substâncias psicotrópicas em que o recorrente se encontrava, a pena aplicada foi excessiva, violando o disposto no art. 71º, nº 2, al. d) do C. Penal.
II. A ilicitude do agente é mediana, pelo que deveria ser-lhe aplicada uma pena mais leve, violando o disposto no art. 71º, nº 1, al. a) do C. Penal.
III. A culpa é intensa, motivado, no entanto pela toxicodependência do recorrente, pelo que deve ser atenuada, por força do disposto no art. 71º, nº 2, al. d) do C. Penal.
IV. O acórdão do Douto Colectivo do Tribunal de Família e de Menores e da comarca de Cascais, não teve em conta na determinação da medida da pena, as condições pessoais do agente, nem ilicitude mediana do agente, pelo que violou o prescrito no art. 71º, nº 2, al. d) e al. a) do C. Penal."
3. Em resposta, o MP junto da 1ª instância teceu os considerandos que se compendiam de fls. 500 a 502, tendo concluído:
"1ª . Sendo a toxicodependência um comportamento socialmente criticável, impondo-se à generalidade das pessoas o dever de não sê-lo, é evidente que tal circunstância não pode ser considerada como uma atenuante;
2ª . O facto de o arguido ter 24 e 25 anos de idade - idade já totalmente madura - à data dos crimes não constitui igualmente uma atenuante, até porque a lei apenas considera como tal, especialmente, a idade inferior a 21 anos;
3ª . Por outro lado, o arguido cometeu os crimes no decurso de uma suspensão de execução de pena, revelando, pois, um comportamento que não se compadece com eventuais atenuantes genéricas, como as que alega;
4ª . Consequentemente, nenhuma norma foi violada, e, logo, o douto acórdão recorrido deve ser confirmado na íntegra."
4. Tendo subido os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, logo por despacho do Exmo. Desembargador Relator, de 3.12.2002 (fls. 511) foi determinado que os mesmos fossem presentes a conferência na sequência do posicionamento que se transcreve:
"Porque o recurso respeita a acórdão final proferido por Tribunal Colectivo e visa, clara e exclusivamente, o reexame de matéria de direito, como, aliás, se observa a fls. 510, a competência para dele conhecer não pertence a esta Relação, mas ao Venerando S.T.J. nos termos do art. 432º, al. d) do C.P.P.
Tal questão há-de ser apreciada em conferência - art. 417º, nº 3, a) e 419º, nº 3, do C.P.P.".
Sendo que, em sequência, e por acórdão de 10.12.2002 (fls. 513 a 515) se julgou o "Tribunal da Relação de Lisboa incompetente para conhecer o recurso interposto pelo arguido A do acórdão de 21 de Outubro de 2002 (fls. 466-482), por a competência para tal caber ao Supremo Tribunal de Justiça nos termos conjugados do disposto nos arts. 11º, nº 3, al. b), 427º, 432º, al. d) e 434º do C.P.P. (na redacção actualmente em vigor)", tendo-se ordenado a remessa dos autos a este STJ.
5. Tendo os autos ido com vista ao Exmo. Procurador Geral Adjunto nos termos do art. 416º do CPP, pronunciou-se o mesmo Magistrado nos termos seguintes:
"(...) Na verdade, não obstante o acórdão desta Relação que sustenta entendimento diferente, seguimos a orientação constante dos Acs. (entre muitos outros) de 19 de Dezembro de 2002 - Proc. nº 4509/02 - 5ª Secção e de 20 de Março de 2002, Proc. nº 137/02 da 3ª Secção, pelos fundamentos deles constantes, para os quais, e com a devida vénia, nos remetemos.
Assim e em conclusão, tendo o recurso sido dirigido à Relação é este o Tribunal material e hierarquicamente competente para conhecer do recurso, ao qual, consequentemente, deverão ser devolvidos os autos".
6. Cumprido o art. 417º, nº 2, do C.P.P., e colhidos os competentes vistos, foram os autos a conferência face à questão prévia suscitada, e que cumpre apreciar, conhecer e decidir.
Apreciando.
7. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 10.12.2002, considerando que o presente recurso versa exclusivamente matéria de direito, declarou-se incompetente para dele conhecer e determinou a remessa dos autos a este STJ para tal fim. E isto por, no seu entender, resultar do disposto nos arts. 11º, nº 3, al. b), 427º e 432º, al. d), do CPP, a competência deste STJ.
É indiscutível que o presente recurso versa apenas o reexame da matéria de direito, mas tal facto não impõe, de modo nenhum, o recurso directo e obrigatório para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, com a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, ocorreu significativa alteração no esquema dos expedientes ordinários de impugnação das decisões judiciais, vincando-se e vingando o regime-regra do recurso para as Relações, consagrado no art. 427º do CPP, exceptuados os casos de recurso directo para o STJ.
Das decisões da 1ª instância recorre-se assim, e por norma, para a Relação, sendo este o regime-regra, entendendo-se que o único caso de recurso "per saltum" expressa e legalmente imposto se confina ao da decisão do tribunal de júri, em que se recorre para o STJ.
Tal entendimento sobre este regime-regra não deixa de emergir da própria Exposição dos Motivos da Proposta de Lei 59/98, dos fundamentos que lhe subjazem e das considerações que propicia, considerações e argumentos de certo modo referenciados no posicionamento assumido pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto nos autos, que referencia de um modo particular os Acs. do STJ de 19.12.02 (proc. 4509/02-5ª) e de 20.3.2002 (proc. 137/02-3ª), e ainda expostos e desenvolvidos por Simas Santos e Leal-Henriques quer em "Recursos em Processo Penal", 5ª edição, 2002, quer no Código de Processo Penal Anotado, 2ª edição, 2º vol. 2000.
Referem aqueles autores que hoje se consente "o recurso para a Relação das decisões finais do tribunal colectivo, em que se discutam questões de facto, de facto e de direito ou (...) só de direito, neste caso se tiver sido essa a opção do recorrente" (Recursos..., pág. 124), mais se escrevendo que "a possibilidade do recurso directo para o STJ dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432º, d)), não impede a Relação de conhecer dos recursos dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, restritos ao reexame da matéria de direito que para ela forem interpostos (no dizer da Lei - art. 411º, nº 4) (...). Assim, o recurso dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando somente a matéria de direito, pode ser interposto, conforme a escolha dos recorrentes, ou para a Relação ou para o STJ" (Código de Processo Penal Anotado, pág. 916 e 917).
E não se diga que o art. 432º, al. d), porque imperativo para o S.T.J. quanto à limitação dos seus poderes de cognição, é limitativo da competência da Relação, obstaculizando e impedindo-a de conhecer de tais recursos quanto restritos à matéria de direito, quando é inquestionável resultar da própria lei que a Relação conhece de facto e de direito, e nada justificar o estabelecimento, aqui e nestes casos, de uma excepção ao regime-regra.
Aliás nem sequer se justifica que se entenda tal art. 432º, al. d) como um cercear da possibilidade de opção do recorrente, coagindo-o ao recurso per saltum, e retirando-lhe aquelas vantagens, que a opção lhe acarreta, de ter possibilidade de, em muitos casos, obter "a efectivação de terceiro grau do recurso para o S.T.J." (idem).
O recurso per saltum, nestes casos, é meramente facultativo, dependendo da opção do recorrente.
Aliás "as relações, salvo quanto às deliberações do tribunal de júri, não sofrem qualquer limitação ao conhecimento do direito, qualquer que seja a natureza do tribunal recorrido e a gravidade da infracção", devendo "conhecer de todo o tipo de recursos de decisões finais de primeira instância que para ali sejam encaminhados", estando na disponibilidade do interessado a escolha do tribunal ad quem (Ac. STJ, de 7.12.2000 - proc. 2807/00-5ª).
Não envolvendo nem determinando qualquer exclusividade ou um sentido único, o art. 432º, d), na verdade, deverá antes ser entendido como um reafirmar da particular natureza interventiva do S.T.J., que só se pronuncia sobre matéria de direito, salvo no recurso per saltum das decisões do júri.
Mas não nos alongando nos vários argumentos aduzidos por aqueles autores e pelo MP no presente processo, apenas nos limitamos a sublinhar a referência às alegações escritas (visando os recursos restritos à matéria de direito) na tramitação unitária consagrada, daí tirando as devidas ilações (411º, nº 4, 412º, nº 2, 417º, nº 5), e a referenciar o art. 414º, nº 7, e o julgamento conjunto dos vários recursos, e direccional daí resultante.
Muito embora haja vozes discordantes, o certo é que com as alterações havidas se ultrapassou o entendimento, que vingava no Código de 1987, de que "os recursos ordinários seriam interpostos do tribunal singular para o tribunal da Relação e do tribunal colectivo e do tribunal do júri para o Supremo Tribunal de Justiça" (Recursos, pág. 123), tudo agora apontando no sentido do regime-regra acima expendido, e na competência das Relações para conhecer das decisões do tribunal colectivo mesmo que versem exclusivamente matéria de direito. O que dependerá da opção do recorrente que, como no caso em apreço (vide fls. 485 e 486), se endereçar tal recurso à Relação, inquestionavelmente manifesta uma vontade de que seja a mesma Relação a decidir e a pronunciar-se, com as eventuais vantagens que naturalmente poderão advir da adopção do regime-regra.
Um entendimento que manifesta uma certa aproximação ao regime concebido para o processo civil (art. 725º), e que tem vindo ultimamente a ter acolhimento maioritário neste S.T.J., como aliás resulta dos vários acórdãos proferidos sobre esta matéria (Acs. STJ de 11.10.00 - proc. 1892/00-3ª; de 7.3.01 - proc. 120/01-3ª; de 10.5.01 - proc. 689/01-5ª; de 24.5.01 - proc. 157/01-5ª; de 7.12.00 - proc. 2807/00-5ª; de 18.10.00 - proc. 2193/00-3ª; de 19.10.00 - proc. 2698/00-5ª; de 11.4.2002, in Colect. Jur. Ano X, Tomo II, 2002, pág. 162).
Um posicionamento que é expressa e claramente exposto no referido acórdão de 11.4.2002, cuja leitura, diga-se, não é de todo em todo nada despicienda, e de onde resulta que "o recurso de acórdãos do tribunal colectivo, visando apenas o reexame da matéria de direito, tanto pode ser interposto directamente para o STJ, como para a respectiva Relação", como o não é também despicienda a dos Acs. do STJ de 19.12.02 e de 20.3.02 (procs. 4509/02-5ª e 137/02-3ª), acima referenciados, pela profundidade dos considerandos aduzidos.
Ora no caso em apreço, como resulta expressa e claramente dos autos, o recorrente endereçou o seu recurso para a Relação de Lisboa que, não obstante isso, e como se alcança do acórdão de fls. 513 a 515, não só declarou a incompetência do Tribunal da Relação (fls. 515) como ordenou a remessa dos autos a este Supremo Tribunal "por a competência para tal caber ao Supremo Tribunal de Justiça" (idem).
Pelo que se impõe concluir que a Relação, que deveria ter-se limitado a não conhecer do recurso por no seu entendimento ocorrer uma situação que não lhe daria competência, foi mais além do que lhe era permitido, e violou as leis da hierarquia.
Na verdade, sem lei que o permitisse, atribuiu competência para conhecer o recurso a este Supremo Tribunal de Justiça, que é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, e remeteu-lhe o processo (vide Ac. STJ de 18.1.2001, proc. 3899/00-5ª). Conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, infringindo as regras da competência em razão da hierarquia, pelo que o seu acórdão está ferido de nulidade insanável nos termos das disposições conjugadas dos arts. 379º, nº 1, c), 425º, nº 4, 119º, al. e) do CPP (proc. nº 3899/00-5ª; 632/99-3ª).
Assim, e decidindo.
8. Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o Acórdão de 10.12.2002 da Relação de Lisboa, determinando-se a remessa dos autos à mesma Relação por ter sido a instância escolhida pelo recorrente, e consequentemente a competente para apreciar o recurso interposto.

Lisboa, 6 de Março de 2003
Borges de Pinho
Pires Salpico
Flores Ribeiro (vencido, por entender que, em face do disposto, no art. 432º do C.P.P. não é de admitir opção.)