Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P1672
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: RECURSO PENAL
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200205160016725
Data do Acordão: 05/16/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3562/01
Data: 02/06/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Por acórdão de 6 de Fevereiro de 2002, a Relação de Coimbra rejeitou o recurso do assistente A, e negou provimento ao interposto pelo arguido B, ambos do acórdão do Colectivo de Oliveira do Bairro que condenou o arguido com autor de um crime de homicídio qualificado na forma tentada (art.ºs 22.º, 23.º, n.º 2, 73.º, n.º 1, a) e b), 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, f) e i), do Código Penal), na pena de 7 anos de prisão e o absolveu do crime do crime de detenção de arma proibida, condenando-o ainda a pagar ao assistente e demandante civil a quantia de 10470000 escudos, com juros à taxa anual de 7% contados desde a data da notificação do pedido até efectivo pagamento.
A rejeição fundou-se i. a., em ilegitimidade do respectivo recorrente no tocante à impugnação relativa à medida da pena imposta ao arguido, nomeadamente, porque «a medida desta não o afecta em nenhum dos pedidos feitos, porque também não é da medida punitiva, mais ou menos grave, que resulta um maior ou menor quantitativo da indemnização que tenha direito, pois "...de modo algum uma pena mais severa redundaria num eventual êxito em matéria civil."»
Do decidido recorre a este Supremo Tribunal o identificado assistente, insistindo na sua legitimidade para o recurso nos termos condensados nesta súmula conclusiva:
1. Questionando-se com o presente recurso, precisamente, a questão de saber se o assistente tem ou não legitimidade para recorrer desacompanhado do M.P., quando apenas discorde da medida da pena, a sua não admissão por força do entendimento perfilhado pelo Ac STJ de 30.10.1997, implicaria a atribuição de força obrigatória geral a um acórdão para fixação de jurisprudência que, pela letra expressa da lei, a não tem.
2. O aqui recorrente constituiu-se assistente nos presentes autos, pagou a taxa devida e, não se limitando a aderir à douta acusação do M.P., deduziu acusação pelos mesmos factos e por outros que não importaram uma alteração substancial daqueles.
3. Podem constituir-se assistentes, para além de outros, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
4. O interesse do ofendido-assistente é um interesse meramente penal, está relacionado com o objecto da tutela penal, sendo por isso também - diversamente da parte civil cujo objectivo é apenas o de conseguir a reparação do dano sofrido segundo as regras do direito privado - um interesse da comunidade que se traduz na defesa do objecto jurídico da tutela penal.
5. Daqui decorre o estatuto do assistente - não alterado nos seus princípios pela sua maior dependência relativamente ao M.P. criada pelas mais recentes alterações legislativas - que, em certas fases do processo, actua com ampla autonomia, estando então apenas relacionado com o tribunal, sendo-lhe concedidas múltiplas possibilidades de tratamento do objecto do processo, como co-participante na administração da justiça penal.
6. A legitimidade do assistente para recorrer assenta, na medida em que ele é aí sujeito processual principal, na circunstância de ter ficado vencido, por não haver obtido a decisão mais favorável aos interesses que a lei quis proteger com a incriminação e de que ele também é titular ou portador.
7. A legitimidade do assistente recorrer para reapreciação da medida da pena, ainda que desacompanhado pelo M.P., não vai contra o normativo constitucional que entrega o exercício da acção penal a um órgão do Estado que é o M.P.; de facto, cabendo o jus puniendi em exclusivo aos Magistrados Judiciais, tendo o M.P. deduzido acusação no desempenho de uma função que é exclusivamente sua, aquela norma constitucional não obsta a que o assistente, enquanto colaborador do M.P. que pode desenvolver com alguma autonomia actividade no sentido de conformar o sentido da decisão final, sujeite à reapreciação do tribunal de segunda instância, ainda que desacompanhado daquele, a decisão proferida.
8. O assistente, enquanto titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, ao recorrer de uma decisão, tem também em vista as finalidades visadas com a aplicação das penas e das medidas de segurança, mormente a protecção dos bens jurídicos violados pela conduta do agente por, na sua perspectiva, a pena fixada não assegurar adequadamente essas finalidades.
9. Acresce que a possibilidade ampla do recurso para o assistente é aquela que melhor satisfaz o princípio da legalidade, em especial quando referido ao M.P., por assim se exercer controlo eficaz sobre o juízo do M.P. em não recorrer .
10. O douto acórdão recorrido violou, nomeadamente, as normas dos artigos 69°, n° 2, alínea c), e 401° do Cód. Proc. Penal.
Termos em que deverá o douto acórdão recorrido ser revogado, determinando-se o reenvio do processo para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra afim de ali ser apreciado o recurso interposto pelo assistente quanto à medida da pena aplicada ao arguido, com o que se fará Justiça.
O MP junto do Tribunal a quo respondeu em defesa do julgado no sentido da rejeição do recurso.
O mesmo aconteceu com o arguido.
Subidos os autos, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto secundou a posição assumida pelo seu homólogo no tribunal recorrido.
Embora, com o devido respeito, o caso no Supremo Tribunal se não configure como de rejeição - uma vez que é essa mesma rejeição que constitui o objecto do recurso - entendeu o relator, não obstante, que aquele seria de conhecer em conferência, por aplicação extensiva do disposto no artigo 419.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal, uma vez que, discutindo-se apenas a legitimidade do recorrente, se trata, afinal, da discussão de uma causa extintiva do procedimento criminal erigida em objecto único do recurso, capaz de pôr termo ao processo.
Daí que os autos tenham vindo à conferência.
2. Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
Na decisão vai seguir-se em parte, a fundamentação do acórdão da Relação do Porto de 14/10/92, proferido no recurso n.º 9240412, com o mesmo relator, citado com algum desenvolvimento por José António Barreiros (1) e publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo 4, págs. 272 e seguintes e que, com mais fidelidade ao texto original, por conter menos gralhas, se encontra informatizado, em texto integral, na base de dados jurisprudenciais da DGSI/MJ (www.dgsi.pt), concernente à Relação do Porto e também os fundamentos do já decidido em acórdão deste Supremo Tribunal, igualmente relatado por quem ora relata este, em 22/11/01, no recurso n.º 1798/01-5.
Não tem sido uniforme a jurisprudência acerca da legitimidade do assistente para efeitos de recurso seja acerca da espécie e (ou) medida da pena imposta na sentença, seja de outros aspectos da decisão.
É hoje geralmente admitido sem reservas que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de eminente interesse público e, por isso, pela Constituição, o exercício da acção penal é entregue a um órgão do Estado - o Ministério Público (Constituição da República Portuguesa - artigo 219.º, n.º 1; Código de Processo Penal - artigos 48.º a 50.º ).
Como se colhe em Luís Osório, (2) esta constatação do actual estado das coisas situa-se no topo de uma evolução regressiva quanto à intervenção dos particulares no exercício da acção penal: tal exercício parece ter pertencido, primitivamente, apenas àqueles, mas tal evolução tem-se dado no sentido de restringir esses poderes.
Comentando o artigo 11.º do Código de 1929 o Autor citado dá nota que a regra da admissão do particular a exercer conjuntamente com o Ministério Público a acção penal encontra o seu fundamento, principalmente, se não exclusivamente, na história.
Ao dar-se competência ao Ministério Público para acusar todos os crimes públicos, teve-se receio de tirar ao ofendido o direito de acusar e, por isso, se lhe deixou, como correlativo, contra a possível falta de interesse do Ministério Público.
Fora essa razão histórica, que no entendimento do citado Autor, pouco válida já se mostrava - pois o Ministério Público "tem-se desempenhado bem da sua função" - só havia o motivo de "reforçar a acusação" que, segundo o mesmo entendimento, não era suficiente para manter uma disposição com a latitude daquele artigo 11.º
Porém - advertia - "o indivíduo que foi ofendido com um crime não parece a pessoa mais própria para incarnar o interesse geral da repressão do crime" sendo certo no entanto que "os motivos que levaram o nosso legislador a manter o sistema existente e afastar-se dos outros geralmente referidos no estrangeiro, baseia-se na demonstração que a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, pois que se bem que eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtue a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do Juiz".
Faz ainda notar o insigne processualista (3) que "a útil colaboração do ofendido está nas informações que ele pode trazer ao processo".
Aquela utilidade de intervenção dos particulares no processo penal é sufragada pelos nossos processualistas e penalistas actuais, com destaque para os Professores Castanheira Neves (4) e Figueiredo Dias (5) acentuando este último: "para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio "social" em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido (6) da decisão final".
O Professor Germano Marques da Silva (7) considera mesmo aquela intervenção como uma "excelente e democrática instituição" partindo da consideração de que, se o crime ofende primordialmente interesses da comunidade, não pode fazer-se olvidar que, em grande número de crimes, quem primeiro lhe sofre o mal é o particular e, por isso, a sua participação activa no processo, "além do interesse da sua colaboração com o Ministério Público, particularmente no domínio probatório, (8) representa uma forma de participação na actividade processual, permitindo ao ofendido o convencimento da efectivação da justiça no caso".
Adverte porém este mesmo Autor (9) que "a intervenção do particular no processo pode ser factor perturbador, pois não é de esperar dele a objectividade e imparcialidade que devem dominar o processo penal e também por isso importa acautelar os termos da sua intervenção...".
É na sequência destas ideias que o actual Código vem consagrar um estatuto de equilíbrio em que são ponderadas as virtudes e os inconvenientes apontados.
Tal estatuto encontra a sua demarcação essencial no artigo 69.º daquele diploma que, na parte que ora interessa dispõe que "compete em especial aos assistentes... interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito n.º 2 alínea c). Desta disposição há que aproximar a de carácter geral, relativa aos recursos e referida no artigo 401.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, respectivamente: "Têm legitimidade para recorrer... o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidos". "Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir."
Da simples leitura destas disposições, resultam de imediato, algumas ilações importantes:
Em primeiro lugar, a nítida distinção de campos de actuação, neste domínio, entre o Ministério Público e os assistentes: enquanto o primeiro sujeito processual apontado pode recorrer de "quaisquer decisões" (artigo 401.º, n.º 1, alínea a) , o segundo está limitado às decisões "contra ele proferidas".
Limitação comum: a existência de interesse em agir.
Cabe, pois, aqui, uma rápida precisão de conceitos, por vezes confundidos, acerca de distinção entre os pressupostos processuais da legitimidade e do interesse em agir.
De notar, neste campo, e antes de mais, que o citado artigo 401.º só a um leitor desatento oferece confusão de tais pressupostos. Com efeito, no n.º 1, alíneas a) e d), o legislador elenca os casos de legitimidade para o recurso. Todos eles, porém, limitados pela exigência do n.º 2 do mesmo preceito: existência de interesse em agir.
Daqui pode inferir-se que, não obstante a verificação do pressuposto da legitimidade, o direito de recorrer não está automaticamente preenchido. Basta que nas hipóteses - em qualquer das hipóteses - previstas no n.º 1, se verifique a circunstância limitativa do n.º 2.
E a inversa também é verdadeira: pode qualquer sujeito processual gozar de legitimidade para recorrer - designadamente, o assistente em relação a um decisão contra si proferida e que o afecte directamente - que, nem por isso, está automaticamente garantido o direito ao recurso: Basta que a situação concreta não deva subir ou não necessite da intervenção correctiva do tribunal superior. (10)
E na verdade, as duas figuras são doutrinalmente inconfundíveis.
Na definição de Antunes Varela (11) o interesse em agir (também conhecido por interesse processual ) consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. "O autor tem interesse processual, quando a situação de carência em que se encontra, necessita da intervenção dos tribunais".
Mas, o autor pode ser titular da relação material litigada e ser consequentemente a pessoa que, em princípio, tem interesse na apreciação jurisdicional dessa relação, e não ter, todavia, em face das circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção.
"Uma coisa é, de facto, a titularidade da relação material litigada, base de legitimidade das partes; outra substancialmente distinta, a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir" (12).
Transpondo estes conceitos (que por abrangentes se aplicam, devidamente adaptados, em processo penal) e considerando as particularidades do nosso caso, temos como líquido que ao assistente não falha o "interesse em agir".
Com efeito, para fazer valer o seu invocado ponto de vista, outra via lhe não restava que não fosse a utilização do meio processual de que lançou mão: o recurso. Não havia outra possibilidade, face ao disposto no artigo 666.º do Código de Processo Civil, "ex vi" do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
O problema está, sim, e em consequência do exposto, em saber se o mesmo assistente tem legitimidade para o efeito. O que, no fundo, implica também que se indague se, tendo em conta o objecto do recurso, a decisão recorrida "foi contra ele proferida" - artigo 401.º n.º 1, alínea c) - ou se, tendo em conta o respectivo estatuto processual, se pode entender que tal decisão o "afecta" (artigo 69.º, n.º 2, alínea c).
Em termos de processo civil o conceito de legitimidade emanado do artigo 26.º do respectivo Código e aceite doutrinalmente - consagrada que foi quase unanimemente a tese de Barbosa de Magalhães - afere-se pelo interesse em demandar ou contradizer, tendo em conta a relação jurídica tal como é configurada por A. e R. nos articulados.
Em última análise, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito os sujeitos da relação material controvertida.
Em termos estritamente penais o conceito terá de ser devidamente adaptado tendo em conta a titularidade exclusiva da acção penal por parte do Estado e a indisponibilidade do seu objecto.
É que, face a tais princípios, não fará sentido falar em "sujeitos da relação material controvertida" ou no "interesse em demandar" já que aquela relação material está "apropriada" pelo Estado representado pelo Ministério Público e este "interesse" é sempre (mesmo nos casos de intervenção de particulares), um interesse público.
Daí que, com Leal Henriques e Simas Santos (13) se entenda que a legitimidade, excepcionando os recursos interpostos pelo Ministério Público, pressupõe por parte do recorrente um interesse directo na impugnação do acto, concebendo-se tal pressuposto processual como "uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão através de recurso".
Ou, com o Cons. Gonçalves da Costa (14) que a legitimidade processual é "uma certa posição das partes, em face da relação material controvertida que lhes permite ocuparem-se em juízo do objecto do processo".
Estes conceitos, algo vagos e genéricos, embora possam dar alguma indicação para a questão que nos propusemos, são ainda insuficientes.
Na verdade, ao conteúdo genérico do mencionado pressuposto processual, a lei fez corresponder as expressões já mencionadas "contra si proferidos" ou "decisões que os afectem".
Avançando um pouco no desvendar do sentido destas fórmulas verbais, o Professor Germano Marques da Silva (15) entende como decisões que afectam o assistente aquelas que contrariem as posições processuais por ele assumidos.
Ora, ao deduzir acusação ou ao aderir à deduzida pelo Ministério Público o assistente não toma posição quanto à espécie e medida da pena aplicável, isto é, tal matéria exorbita da posição processual que ali assume que, no fim, visa a condenação (qualquer que ela seja) do arguido.
O que fica dito não dispensa, porém, que se indague aqui de um pressuposto de fundo essencial: a determinação dos fins das penas ou seja da actividade punitiva do Estado.
Do resultado dessa tarefa sairá indeclinavelmente a chave da questão: se nessa função punitiva do Estado entrarem em consideração os interesses dos particulares ofendidos, isto é se dos fins das penas constar, de algum modo, de forma directa, ou mesmo indirectamente, uma qualquer satisfação ao assistente ou titular do interesse juridicamente protegido, então, não pode subsistir qualquer dúvida de que, qualquer que tenha sido a pena aplicada, aquele "terá uma palavra a dizer" já que a decisão, ao não contemplar a pena reclamada, o pode afectar ou contra si pode ser proferida. Neste caso, o ofendido assistente terá em face do processo, melhor, do objecto do processo, uma posição que justifica que ele possa atacar a decisão por via de recurso, um interesse directo na impugnação. Numa palavra, terá legitimidade para recorrer.
Caso contrário, é manifesto que, nessa vertente, o objecto processual lhe é alheio, a decisão o não afecta e nunca será, qualquer que ela seja, contra si proferida. Em suma será "parte ilegítima" para atacar esse segmento da sentença (espécie e medida da pena).
Ora, percorrendo os autores mais autorizados (16), em caso algum se descortina como justificação para as cominações penais a satisfação ou sequer a consideração dos interesses privados das vítimas.
E se assim é, impõe-se a conclusão que já acima adiantamos: o assistente, porque portador de interesses alheios àquelas "ideias e exigências transcendentes" que o Estado visa com a aplicação das penas, carece de legitimidade para atacar a sentença na parte em que esta fixa a espécie e medida da pena por não o afectar e não ser contra ele proferida.
Uma tal conclusão se atingiria também por via da atenta localização processual do assistente ante a posição do Ministério Público, titular da acção penal, mormente em casos, como o dos autos, em que está em causa, não, um crime semi-público, ou, mesmo, particular, em cujo procedimento o assistente ou ofendido assume, em regra, protagonismo decisivo, como flui, designadamente dos artigos 49.º e 50.º do Código de Processo Penal - já que é sua a iniciativa processual - antes, o procedimento por crime público em que, sem excepções, os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo - art.º 69.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Assim, o caso é de clara, ampla e irrestrita titularidade da acção penal pelo Ministério Público, tal como emerge com carácter geral do artigo 48.º do mesmo diploma, que atribui a titularidade da acção penal àquele órgão do Estado.
Como assim, cumpre-lhe a prossecução penal que se efectiva através do exercício da acção penal e da representação da acusação no processo em juízo. (17)
Mas, se é o Ministério Público o titular - neste caso, titular exclusivo - da acção penal, se lhe compete também em exclusivo, representar a acusação e se, em contraponto, o assistente é in casu mero colaborador subordinado, não se vê bem onde ancorar a pretensão de, por único alvedrio deste, contra o entendimento do titular da causa, e necessariamente movido por motivações que, por válidas e compreensíveis que possam ser, não prescindirão da contemplação do processo penal à lupa de interesses pessoais, sejam eles ou não de cariz puramente material, mas, em qualquer caso, distintos do interesse público que subjaz à causa penal, emancipá-lo do seu estatuto subordinado, para, em suma, lhe permitir a assunção, a partir de certo momento - que será o da conformação definitiva do MP com a decisão proferida - de titular efectivo da causa penal, invertendo claramente os papéis de cada um deles.
O que viria a erigir, a final, nestes casos, o interesse pessoal em motor da acção penal, em detrimento da assumida objectividade do MP, titular efectivo da causa, com todos os perigos e inconvenientes facilmente adivinháveis, como seria, por exemplo, a possibilidade de instrumentalização da causa penal, facilmente posta ao dispor da simples vindicta.
Nesta perspectiva, naturalmente de afastar, não poderá deixar de ter-se o assistente (18) como não afectado pela decisão que decide da medida concreta da pena aplicada contra o seu entendimento, ou, por outra via, de entender-se que tal decisão não é contra ele proferida..
Pois, tendo em conta os interesses públicos subjacentes à dinâmica da causa penal, mormente desencadeada por crimes públicos, o interesse relevante para aferição da legitimidade para recorrer é - só pode ser - o do titular dela, numa palavra, do Ministério Público.
Pode mesmo ir-se mais longe e sustentar que, em casos como o presente, o assistente careceria de interesse em agir, já que, não sendo sua a titularidade da acção, repousa sobre os ombros de quem tem a responsabilidade de a levar até ao fim, nomeadamente quanto ao acerto da medida da pena aplicada, a responsabilidade da condução do processo (de que o assistente está exonerado nessa exacta medida, e, assim, para garantia da legalidade não precisa aquele de tomar qualquer iniciativa processual, movendo o recurso e lançar mão da respectiva demanda, pois o MP tem o dever funcional de o fazer).
Num caso como este, com efeito, e como ressalta das transcritas conclusões da motivação, estando apenas em causa, imediatamente, a medida concreta da pena, e nada mais, dificilmente se poderia afirmar por banda do assistente um «concreto e próprio» interesse [em agir] no recurso, conforme a doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/99, deste Supremo Tribunal.
A possibilidade de recurso autónomo por banda do assistente - art.º 69.º, n.º 2, c), do CPP - refere-se, pois, e tão só, às situações processuais em que aquele é directamente afectado, a decisão directamente o desfavorece, enfim, atinge algum «concreto próprio interesse» seu, digno de protecção e é, nessa medida, contra si proferida, o que, sem estar inteiramente arredado na acção penal por crime público, naturalmente com mais frequência, terá oportunidade de acontecer quando o procedimento criminal é instaurado nos termos dos artigos 49.º e (ou) 50.º, do CPP, citados.
A doutrina do falado acórdão uniformizador n.º 8/99 deste Supremo Tribunal, de 30.10.97, DR, I Série de 10/8/99 (19), ao exigir «um concreto e próprio interesse em agir» ao assistente para recorrer parece, mesmo, na lógica das coisas, ir ao encontro deste entendimento.
Na verdade, se, como se viu e é sabido, o interesse em agir é um pressuposto processual distinto e autónomo do da legitimidade - de resto como emerge, do citado artigo 401.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal: "1. Têm legitimidade para recorrer..." 2. "Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir" - uma de duas: ou tal acórdão uniformizador se limitou, nesse ponto, a consagrar declarativamente o que já está positivado, e, em tal caso, a sua formulação é de reduzida ou nula utilidade, ou, ao invés, veio concretizar uma configuração específica - mais exigente - do aludido pressuposto, quando se trata de conferir ao assistente direito ao recurso para, em caso de condenação, atacar a espécie e medida da pena.
Ora, tendo em conta tudo o que se disse, mormente quanto à necessidade de postergação de qualquer veleidade de instrumentalização do processo penal por interesses privados e ou pessoais de quem quer, só esta última pode ser a teleologia da falada exigência processual do «concreto e próprio interesse em agir», que, bem vistas as coisas, melhor e mais claramente traduzido teria sido com a expressão «concreto e próprio interesse», do que a usada no acórdão «concreto e próprio interesse em agir». (20)
Sob pena, até, de, a ser de outro modo, se ter de haver, sempre - verificado que fosse um interesse em agir concreto e próprio - como legitimada a intervenção do assistente mesmo em decisões que o não afectassem ou contra si não tivessem sido proferidas, confundindo e misturando os dois pressupostos processuais e se fazer tábua rasa, da exigência de legitimidade, e, assim, do estatuído n.º 1 do artigo 401.º, o que, por aberrante e inaceitável, nos teria de levar a ter como afastada tal «doutrina uniformizadora», como claramente seria então permitido pelo artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Ora, como se viu, o recorrente não passa da vaga e genérica invocação da sua pretensa legitimidade, para mais tendo deixado no tinteiro a demonstração, que sempre seria insuficiente, do falado «concreto e próprio interesse» em lançar mão do recurso.
O que tudo vale para concluir que, na qualidade de assistente, carece de legitimidade para o recurso que interpôs, limitado que é o objecto deste à mera discordância relativa à quantificação concreta da pena aplicada, com a qual se conformaram o Ministério Público e o próprio arguido.
Improcedem deste jeito todas as conclusões da motivação.
3. Termos em que negam provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam a fracção impugnada do acórdão recorrido.
O recorrente, pelo decaimento, vai condenado no pagamento de 6 Uc de taxa de justiça.
Lisboa, 16 de Maio de 2002.
Pereira Madeira,
Simas Santos (não acompanha inteiramente a nota 20),
Abranches Martins.
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(1) Cfr. Sistema e Estrutura do Processo Penal Português II, 1997, págs. 200 e segs.
(2) Comentário ao Código de Processo Penal Português, 1º volume páginas 192.
(3) Obra citada, páginas 196.
(4) Sumários de Processo Criminal, páginas 137.
(5) Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal in Jornadas de Processo Penal, edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 10.
(6) Em itálico agora.
(7) Do Processo Penal Preliminar, páginas 425.
(8) Itálico da responsabilidade do relator.
(9) Obra e loc. cit.
(10) Como seria o caso, por exemplo, de se tratar de um mero lapsus calami que o próprio tribunal recorrido pudesse suprimir.
(11) Manual de Processo Civil, páginas 170.
(12) Obra citada, páginas 172.
(13) Recursos em Processo Penal, 2ª edição páginas 37.
(14) Jornadas de Processo Penal, citado páginas 411.
(15) Obra citada, páginas 427 - 428.
(16) Assim, por exemplo, Claus Roxin Problemas Fundamentais do Direito Penal edição Vega/Universidade, páginas 32 ao afirmar que as penas se justificam, "apenas e sempre, pela necessidade de protecção preventivo-geral e subsidiária de bens jurídicos e prestações". Cavaleiro de Ferreira por seu turno assinala ( Lições de Direito Penal, Parte Geral II Penas e Medidas de Segurança, páginas 46 ) que "convém deixar claro que, se a pena realiza naturalmente fins de prevenção, quer geral, quer especial, é na sua natureza retribuição ou repressão, e não devem ser ultrapassados os limites que a justiça, com base nesse critério, estabelece". E, por seu turno, Figueiredo Dias ( Direito Penal 2 Parte Geral - As Consequências Jurídicas do Crime, páginas 30 ) "... o sistema sancionatório pode adaptar-se, antes de tudo à trilogia que se põe na base da concepção do direito penal substantivo: retribuição e prevenção geral de intimidação, como fins que justificam e dão sentido às penas, repressão de todos os crimes e punição ( castigo ) dos agentes respectivos como funções que ao Estado cumpre realizar sem lacunas, por regra em nome de ideias e de exigências transcendentes".
(17) Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I vol., 2.ª edição, págs. 266, citando Cavaleiro de Ferreira.
(18) Em acção desencadeada por crime público, repete-se.
(19) Que, em geral, se mantém actual.
(20) Mesmo com esta formulação, o acrescento com a exigência de « concreto e próprio interesse » não consegue superar o qualificativo de excrescência de duvidosa utilidade, de resto, conforme foi posto em relevo numa das declarações de voto que acompanham o aresto, já que, como se viu, a legitimidade do assistente para recorrer passa sempre pelo pressuposto de a decisão ter sido «contra si» proferida, ou, por outra via, tem de tratar-se de «decisão que o afecte», expressões que, claramente, contemplam aquela formulação, assim, de algum modo, tornada redundante.