Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
080776
Nº Convencional: JSTJ00013275
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: CÂMARA MUNICIPAL
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: SJ199110030807762
Data do Acordão: 10/03/1991
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N410 ANO1991 PAG684
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional:
Jurisprudência Nacional:
Sumário : A Câmara Municipal, como orgão de uma autarquia, é dotada de personalidade judiciária para efeitos de demandar ou ser demandada, não obstante carecer de personalidade jurídica.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1 - "O Trabalho - Companhia de Seguros, S. A.", moveu a presente acção com processo ordinário contra a Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 2278732 escudos acrescida de juros de mora desde a citação, - importância essa correspondente aos prémios de seguro vencidos e não pagos.
A ré contestou que lhe estaria a ser indevidamente exigida a importância de 5060 escudos e que não seriam devidos juros moratórios.
Por outro lado excepcionou a sua ilegitimidade, visto ser o Município o verdadeiro titular das relações jurídicas invocadas; excepcionou a incompetência do tribunal comum, em razão da matéria; e arguiu a nulidade dos contratos de seguro.
Houve réplica. A autora reduziu o seu pedido de 5060 escudos, e no saneador foram julgadas improcedentes as excepções invocadas e a ré foi condenada no pedido (reduzido nos termos indicados), e como litigante de má fé.
A ré recorreu, mas a Relação confirmou a sentença, menos quanto à condenação por má fé, - que revogou.
Desse acórdão recorre a ré, pedindo a sua revogação, com a sua absolvição da instância ou do pedido. Na sua alegação formula as seguintes conclusões:- a) O Municipio de Vila Nova de Poiares é uma autarquia local na forma de pessoa colectiva territorial pública e a Câmara Municipal é apenas um orgão dele; b) a Câmara não tem personalidade jurídica nem património próprio, e a Companhia de Seguros a demanda por dívidas do Município; c) foram violados os artigos 237, 250 e 252 da Constituição da República, os artigos 1 e 43 n. 1 da
Lei 100/84 de 29 de Março e os artigos 5 e 8 do Código de Processo Civil.
A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.
2 - No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
O Trabalho - Companhia de Seguros, S.A, celebrou com a
Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares 15 contratos de seguro dos ramos de acidentes de trabalho e de automóveis (folhas 7 a 21), e a Câmara se comprometeu a pagar os respectivos prémios de seguro.
A Câmara, no entanto, apesar de instada, não pagou esses prémios, que somam 2273672 escudos.
3 - Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
A recorrente começa por considerar que foram violados os artigos 237, 250 e 252 da Constituição da República.
Mas tal não se verifica.
O artigo 237 apenas nos diz que as autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de orgãos representativos que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas. Entre as autarquias do continente se contam os municípios,
(artigo 238 n. 1) cujos orgãos representativos são a assembleia municipal e a Câmara Municipal e, facultativamente, o conselho municipal, (artigo 250).
A câmara municipal é o orgão executivo colegial do município, (artigo 252, todos da Constituição da República).
Ora através da presente acção não se põe em causa qualquer desses princípios, pois que não é negada a existência do município nem a sua composição.
A Constituição, no entanto, vai mais longe e remete para a lei comum a definição das atribuições e da organização das autarquias, bem como a determinação da competência dos respectivos orgãos, (artigo 239).
Deste modo foi publicada a Lei 79/77 de 25 de Outubro que regulou a estrutura, o funcionamento e a competência das autarquias, diploma esse que veio a ser revogado, (no que respeita à matéria referente às freguesias e municípios), pelo Decreto-lei 100/84 de 29 de Março. Em tal Decreto-Lei se mantem que o município
é uma pessoa colectiva dotada de orgãos representativos
(artigo 1 n. 2) e que a câmara municipal, constituida por um presidente e pelos vereadores é o seu orgão executivo colegial, (artigo 43 n. 1).
A recorrente diz que o acórdão recorrido violou os artigos 1 n. 2 e 43 n. 1 deste Decreto-Lei. No entanto tal não parece, porquanto não é posta em causa a personalidade jurídica do município, nem é negado que a câmara municipal seja um orgão dessa pessoa colectiva.
O que se diz é que a Câmara Municipal de Vila Nova de
Poiares "tem personalidade e capacidade judiciárias para demandar e ser demandada em juízo" (folhas 100 verso).
A circunstância da câmara municipal ser um orgão do município e não ter personalidade jurídica não obsta a que demande e possa ser demandada. Basta que tenha personalidade judiciária, a qual consiste na susceptibilidade de ser parte (artigo 5 n. 1 do Código de Processo Civil).
Essa personalidade há-de resultar da própria lei, sem sombra para quaisquer dúvidas.
Ora no caso presente é isso mesmo o que sucede.
O indicado Decreto-Lei 100/84, depois de identificar o município como uma pessoa colectiva e de indicar os seus orgãos, define a competência de cada um destes.
E no que respeita à câmara municipal diz competir-lhe,
(além de outras funções que aqui não interessa referir), "efectuar contratos de seguro" e "instaurar pleitos e defender-se neles, podendo confessar, desistir ou transigir, se não houver ofensa de direitos de terceiros", (artigo 51 n. 1, alineas e) e f).
Não diz o legislador que seja o município a instaurar os pleitos e a defender-se neles.
Fala apenas na câmara.
Por outro lado confere à Câmara, (não obstante os pleitos dizerem respeito ao município), o poder de confessar, transigir ou desistir do pedido.
Sem dúvida que, quando uma câmara é demandada ou demanda, fá-lo na qualidade de orgão executivo do município, pois que não tem actividade autónoma, finanças próprias ou quaisquer funções estranhas ao município.
O mesmo se diga quando adquire bens móveis ou imóveis, quando aceita doações, legados ou heranças, quando aliena bens do município, embarga e ordena a demolição de quaisquer obras, (artigo 51 n. 1 alineas j), l) e m) e n. 2 alinea g)). Todos os seus actos são actos do município e, como tal, é neste que se vão produzir os respectivos efeitos. Não se torna necessário dizer em qualquer dos actos praticados pela câmara que ela os realiza "em nome e no interesse do município", porquanto isso mesmo deriva da lei. A câmara faz parte integrante, (como seu orgão executivo), da pessoa colectiva, - que é o município.
O orgão representativo, por excelência, do município é a câmara municipal. É ela que executa as deliberações da assembleia municipal, que outorga contratos, que toma deliberações em determinadas matérias, que concede licenças, que ordena vistorias e despejos sumários, etc. Por isso não admira que o legislador lhe concedesse personalidade e capacidade judiciárias, quer activas, quer passivas.
A personalidade judiciária pode existir, sem a entidade que a detem goze de personalidade jurídica. O artigo 6 e seguintes do Código de Processo Civil indicam situações desse tipo. Às mesmas só haverá que acrescentar a estabelecida pelo Decreto-Lei 100/84 no seu artigo 51 n. 1 alinea f).
Deste modo não foram violados os artigos 5 e 8 do
Código de Processo Civil, pois que aí não se exclui a possibilidade de existirem entidades sem personalidade juridica que possam ser demandadas judicialmente. É certo que no artigo 8 se estabelece que, "no caso de pessoa colectiva ou sociedade que não se ache legalmente constituída", a acção só pode ser proposta contra ela ou só contra as pessoas que, segundo a lei, tenham responsabilidade pelo facto que serve de fundamento a demanda, ou simultaneamente contra a pessoa colectiva ou sociedade e as pessoas responsáveis.
Todavia tal preceito não é aplicável ao caso vertente, porquanto o município de Vila Nova de
Poiares se encontra - que o saibamos - legalmente constituído, assim como a Câmara Municipal.
Deste modo não há violação de qualquer dos indicados preceitos.
4 - A jurisprudência já tomou posição sobre a matéria defendendo que a Câmara Municipal, apesar de ser um orgão do Município, tem capacidade judiciária (confere acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Fevereiro de 1983, no recurso n. 17989, e de 14 de
Abril de 1983, publicados nos Acórdãos Doutrinários n.
262, páginas 1140, e acórdão da Relação de Coimbra de
03 de Maio de 1988 proferido no agravo 38/88).
Considerou-se que, sendo a Câmara Municipal o orgão indissociável do Município e imputando-lhe a lei, directamente, os actos por ela praticados e as consequências deles, "onde e quando age o orgão, age a própria pessoa colectiva, não sendo incorrecto aceitar-se, nestes termos, a personalização juridica do orgão". "O que acontece é que quando a lei atribui uma tal competência a uma Câmara Municipal está necessariamente a reconhecer-lhe personalidade judiciária, que constitui, necessaria e exactamente, a susceptibilidade de ser parte" (indicado acórdão da
Relação de Coimbra). "Os efeitos de direito de qualquer intervenção do orgão, (Câmara Municipal), são directamente imputados à pessoa colectiva, (Município).
Demandar em juizo a pessoa colectiva in nomine ou o orgão executivo dela, - que praticou o acto ou facto donde emerge a pretensão, - é nitidamente indiferente para aferir da legitimidade ou da regularidade da instância quanto a ente demandado", (acórdãos do
Supremo Tribunal Administrativo acima referidos).
E, sendo assim, bem andou a Relação em confirmar, neste ponto, a decisão da primeira instância.
Nos termos expostos se acorda em negar revista, sem custas por delas estar isenta a recorrente.
Lisboa, 3 de Outubro de 1991.
Pereira da Silva,
Maximo Guimarães,
Tato Marinho.