Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
045737
Nº Convencional: JSTJ00025611
Relator: LOPES ROCHA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
FALTA DE ADVOGADO
HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
DOLO
MOTIVAÇÃO
MOTIVO FÚTIL
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
PERDA DE INSTRUMENTO DO CRIME
Nº do Documento: SJ199411090457373
Data do Acordão: 11/09/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJSTJ 1994 ANOII TIII PAG239
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. PROVIDO.
Área Temática: DIR CONST - DIR FUND. DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/PESSOAS.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CONST89 ARTIGO 32 N3.
CP82 ARTIGO 14 N1 ARTIGO 72 ARTIGO 107 ARTIGO 109 ARTIGO 131 ARTIGO 132 N1 N2 C F.
CPP87 ARTIGO 61 ARTIGO 64 N1 A N2 ARTIGO 119 C ARTIGO 122 ARTIGO 127 ARTIGO 129 N1 N3 ARTIGO 134 N1 A N2 ARTIGO 141 ARTIGO 143 N2 ARTIGO 144 ARTIGO 219 ARTIGO 257 N2 ARTIGO 259 ARTIGO 399 ARTIGO 400 ARTIGO 401 ARTIGO 410 N2 ARTIGO 426.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO TC DE 1994/05/12 IN DR DE 1994/05/25.
Sumário : I - A nulidade prevista na alínea c) do artigo 119 do Código de Processo Penal, no que toca à ausência de defensor, pressupõe que a lei exige a respectiva comparência.
II - O direito de escolha (e de assistência) do defensor, prescrito pelo n. 3 do artigo 32 da Constituição, é o exercício pelo arguido, fora dos casos e fases em que a dita assistência é obrigatória.
III - Uma coisa é o dolo, outra a motivação do crime; pode, sem contradição, dar-se aquele como provado e esta não.
IV - A circunstância de ter-se esta como não provada não significa haver-se perpectado a infracção, por "motivo fútil".
V - As circunstâncias exemplificativamente enunciadas no n. 2 do artigo 132 do Código Penal representam graus de culpa; não constituem elementos do tipo criminal.
VI - "Sério risco" de utilização (artigo 107 do dito Código) é mais que a simples possibilidade de o instrumento servir para novos actos criminosos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - A, com os sinais dos autos, respondeu no Tribunal de Círculo de Alcobaça, em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo depois de pronunciado como autor material de um crime consumado de homicídio qualificado previsto e punido pelo artigo 132, ns. 1 e 2, alínea c) do Código Penal, com referência ao artigo 131 do mesmo diploma.
No processo B, também com os sinais dos autos, deduziu pedido cível contra aquele arguido pedindo a sua condenação no pagamento de oito milhões quinhentos e setenta e três mil quatrocentos e noventa e seis escudos, correspondente a indemnização por danos patrimoniais e morais, resultante da morte do seu marido, da autoria do mesmo arguido.
O arguido ofereceu contestação escrita, em separado, alegando, no tocante ao crime, todas as circunstâncias atenuantes ou dirimentes que a seu favor resultarem na audiência de julgamento; e, quanto ao pedido cível, que
é falso ser autor de disparo letal, impugnando, também, os montantes pedidos.
Pelo acórdão de folhas 297 a 301 dos autos, foi condenado como autor material de um crime de homicídio simples, por convolação, previsto e punido no artigo
131 do Código Penal, na pena de 13 anos de prisão.
Foi ainda condenado no pagamento à B da indemnização de cinco milhões novecentos e noventa e sete mil e seiscentos escudos, acrescidos de juros contados desde 30 de Março de 1993 e até integral pagamento.
O referido acórdão condenou-o também no pagamento de 2 ucs de taxa de justiça, mínimo de procuradoria e de mais custas no processo criminal; e quanto às custas relativas ao pedido de indemnização decidiu ficarem a cargo do arguido e da lesada na proporção de vencido.
Enfim, o acórdão declarou perdidas a favor do Estado todas as armas e munições apreendidas, porquanto uma delas foi instrumento do crime e as restantes oferecem suficiente perigosidade para, nas mãos do arguido, poderem ser usadas para a prática de outros crimes, tal perda acarretando, também, a da respectiva documentação e licença de uso e porte.
2 - Inconformados com o decidido, interpuseram recurso para este Supremo Tribunal o Ministério Público e o arguido.
3 - Nas conclusões da sua motivação, o Magistrado do
Ministério Público diz o seguinte:
3.1. Não foi inteiramente correcto o enquadramento jurídico-criminal operado no douto acórdão recorrido, no que concerne à autoria material, por banda do arguido, de um crime de homicídio voluntário simples, previsto e punido no artigo 131 do Código Penal.
3.2. No caso presente, o comportamento do arguido, determinado a matar uma pessoa que não conhecia (nem os familiares) e com quem nunca falara, denota a mais elevada e absoluta falta de sensibilidade básica no plano de todos os valores, revelando, por isso, especial censurabilidade e cometendo, assim, o crime previsto no artigo 132, n. 1, do mesmo Código;
3.3. A qualificação do crime se radica também no motivo fútil, aferindo-se este pela sua própria irrelevância e pela falta de razão mínima susceptível de justificar a desproporcionadissima conduta do arguido perante a completa pacividade da vítima, consubstanciada no facto de a morte ter sido determinada - apenas e só - por a vítima, face ao apedrejamento da porta do carro, ter saído do mesmo para averiguar o que se passava, radicando-se ainda, no espírito ávido e no desejo veemente de matar por matar, revelado pelo arguido, pelo que o crime pode ser qualificável pela previsão do artigo 132, n. 2, alínea c);
3.4. Tendo presente todo o exposto quanto à medida da pena e os parâmetros consignados no artigo 72 do Código
Penal sem deixar de sublinhar a negação dos factos assumida pelo arguido e que, a seu favor só invocável a ausência de antecedentes criminais, que é diferente do bom comportamento anterior, é de aplicar ao agente uma pena de dezassete anos de prisão, como autor do sobredito crime de homicídio voluntário qualificado;
3.5. No douto acórdão violou-se o disposto no artigo
132, ns. 1 e 2, alínea c) do Código Penal.
4 - Concluindo a sua motivação diz, por seu turno, o recorrente A:
4.1. Sendo a assistência por defensa no primeiro interrogatório do arguido detido obrigatória, a circunstância da ausência do mesmo aquando da sua realização que se constata nos autos integra nulidade insanável prevista na alínea c) do artigo 119 do Código de Processo Penal;
4.2. Os autos indiciam largamente - e o arguido disso foi reiterado porta-voz - que os depoimentos por ele prestados à Polícia Judiciária lhe foram extorquidos mediante intolerável e inqualificável coacção física e moral como o atestam as graves lesões físicas que nele foram detectadas;
4.3. Esta circunstância é causa de nulidade de tais interrogatórios "ex vi" do disposto no artigo 32, n. 6 da nossa Lei Fundamental - nulidade que enferma também o próprio interrogatório perante a Meritíssima Juíza realizado em 11 de Junho de 1992;
4.4. Estas nulidades acarretam obrigatoriamente a nulidade de todo o processado posterior, que deve ser repetido;
Caso assim se não entenda,
4.5. Porque preconceituosamente orientada no sentido da incriminação do arguido, a investigação a que se procedeu mostra-se eivada de gravíssimas omissões, algumas de diligências elementares do que resulta serem manifestamente inidóneas e insuficientes os elementos de prova carreados para os autos em termos de com o necessário grau de certeza vincularem a culpabilidade do arguido;
4.6. Ao consagrar simultaneamente que "não se lograra a prova da motivação do crime" e que o arguido agiu com dolo directo, o douto acórdão encerra grosseira e insanável contradição na sua fundamentação;
4.7. O douto acórdão, em sede de determinação da medida concreta da pena, pondera a circunstância da "elevada ilicitude da conduta do arguido" que extrai apenas e somente do tipo de crime que lhe vem imputado, com o que incorre na violação do princípio "ne bis in idem";
4.8. Em sua fundamentação lê-se no douto acórdão que contribuíram para a convicção do tribunal os depoimentos de duas testemunhas (uma delas anda zangada com o arguido - a 4 folhas 294, verso) que mais não disseram afinal que atribuir a um ou dois filhos do arguido, determinada versão dos factos prejudicial ao arguido, com isso violando as normas dos artigos 129 n.
1 e 134, n. 1, alínea a) do Código de Processo Penal, que tem como legal cominação a nulidade de tais depoimentos indirectos e obviamente a sua não valoração como prova contra o arguido;
4.9. Os vícios referidos sumariamente nas conclusões
5., 6., 7. e 8., quer pelo seu número quer pela sua gravidade, impossibilitam uma boa decisão da causa e por isso, não operando o princípio "in dubio pro reo", alegado em 06 da contestação, aconselham o reenvio do processo para novo julgamento e relativamente à totalidade do seu objecto - conforme preceitua o artigo
426 do Código de Processo Penal;
4.10. Porque nada tem a ver com o presente processo, no
âmbito do qual nem sequer tinham sido legalmente apreendidas, as armas identificadas a folha 133 deveriam ter sido sem mais devolvidas. A não se entender assim, antes decretando o seu perdimento a favor do Estado, com omissão, aliás, de qualquer fundamento legal, viola o douto acórdão as normas dos artigos 107 a 109 do Código Penal.
5 - Contra-motivando o recurso interposto pelo arguido, o Magistrado do Ministério Público conclui que o mesmo deve sr julgado completamente improcedente.
6 - Recebidos os recursos neste Supremo Tribunal, foram juntas as alegações escritas por quem, na 1. Instância, tinha declarado delas não prescindir (o Ministério
Público) mas foi suscitada a questão do prosseguimento do processo para a audiência com alegações orais, o que foi decidido por acórdão de folha 250.
Nas alegações escritas apresentadas pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal conclui-se que deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido e condenar-se o mesmo como autor de um crime de homicídio qualificado, em pena severa, de acordo com a intensa ilicitude e grande culpa demonstrada.
Corridos os vistos, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais.
Cumpre agora apreciar e decidir.
8 - São os seguintes os factos declarados provados pelo
Tribunal Colectivo:
8.1. No dia 14 de Maio de 1992, cerca das dezanove horas, Ramiro Pereira Gomes da Costa dirigiu-se acompanhado de Maria Fernanda da Costa Ramos, para um local situado no Lugar de Vale Carrascoso, Pedreira, ao volante da viatura automóvel Opel Kadett 1.7 D, matricula Sl-01-45;
8.2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar levou o veículo por si conduzido para o interior de um pinhal situado junto à Estrada Nacional n. 1342 que serve a localidade de Boieira;
8.3. Esse veículo ficou ali parado envolvido nas partes laterais e traseira, por vegetação;
8.4. Entretanto, o arguido Ribeiro encontrava-se ali perto munido de uma arma de caça calibre 12 de dois canos justapostos, marca Felix Sarrasquete, com o número de série 106044;
8.5. Algum tempo depois do Ramiro e da acompanhante estarem parados, dentro da viatura, no aludido local, o
Ribeiro arremessou uma pedra contra a porta do lado direito daquela viatura;
8.6. De imediato o Ramiro saiu de dentro dela para ver o que se passava, deslocando-se para a sua traseira;
8.7. O arguido encontrava-se a cerca de seis metros dele, no meio dos arbustos e na direcção aproximada de sul para norte;
8.8. Nessa situação disparou um tiro com a arma que transportava na direcção do Ramiro;
8.9. Em resultado desse disparo este foi atingido na face e no crânio por inúmeros chumbos que lhe provocaram laceração do encéfalo com hemorragia craniana;
8.10. Tais lesões constituíram causa directa e necessária da sua morte que adveio de imediato;
8.11. Foi propósito, voluntário, do arguido suprimir a vida do Ramiro, tendo usado para o efeito um instrumento que sabia idóneo para, nomeadamente, causar a morte a qualquer pessoa que por ele fosse atingido;
8.12. O Ramiro à data da sua morte, tinha cinquenta e cinco anos de idade;
8.13. Exercia a profissão de vendedor e, no ano de
1992, até 14 de Maio, auferia 475581 escudos líquidos.
8.14. Contribuía com trinta mil escudos do seu ordenado para as despesas domésticas.
8.15. Com a morte do marido ficou a lesada, sua mulher, em situação económica difícil, sofreu grande desgosto e viu-se na situação de desamparo;
8.16. Por efeito da morte daquele gastou com o funeral
88600 escudos, com a campa, 406000 escudos e com o transporte da ambulância, 3000 escudos;
8.17. Noutras ocasiões, o arguido arremessou pedras contra veículos automóveis que estacionavam no pinhal acima referido;
8.18. Negou ele a autoria do disparo que vitimou o
Ramiro, dizendo que nesse altura se encontrava a cerca de três quilómetros de distância do local onde ele teve lugar;
8.19. Não tem antecedentes criminais e goza de consideração no meio em que está inserido;
8.20. É pobre, vive dos rendimentos provenientes da exploração de um pequeno rebanho de cabras que pastoreia e, por vezes do seu trabalho que presta a outrem, como cabouqueiro;
8.21. Fez a terceira classe e habitava com a mulher e seis filhos contribuindo alguns deles para o sustento do lar;
8.22. Não conhecia a vítima ou pessoas da família desta nem tão pouco a sua acompanhante e tinha consigo, em sua casa, além da espingarda atrás identificada, mais três armas de fogo;
8.23. A vítima vinha mantendo com a aludida acompanhante encontros amorosos em vários locais, mas era a primeira vez que frequentavam o local da ocorrência do crime.
9 - Como resulta do relatado em supra pontos 3 e 4, são as seguintes as questões de direito a resolver:
9.1. (suscitados no recurso do Ministério Público): a) Se foi ou não inteiramente correcto o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, no artigo 131 do Código Penal; b) Se, em caso negativo, a especial censurabilidade da conduta do arguido e a circunstância de ter sido determinado por motivo fútil, que emerge da factualidade que o Tribunal de 1 instância considerou provado, levará a qualificar a conduta do arguido como subsumível ao tipo legal do homicídio qualificado do artigo 132, n. 1, alínea c), do mesmo Código; c) Se, nesta última hipótese, atentos os parâmetros do artigo 72, ainda do mesmo Código e considerando que o arguido apenas tem a seu favor a ausência de antecedentes criminais, se justifica a aplicação ao mesmo de uma pena de dezoito anos de prisão.
9.2. (Suscitadas no recurso do arguido): a) Se o processo enfermo de nulidade insanável por no seu primeiro interrogatório perante a autoridade policial, não ter podido ser assistido por defensor; b) Se existiu os vícios de erro notório de apreciação da prova de insuficiência para a decisão da matéria de facto provado e de contradição insanável na fundamentação; c) Se existe violação da lei no que concerne à determinação da medida da pena; d) Se o perdimento das armas identificadas a folha
133 dos autos foi decretado sem fundamento legal, com consequente violação dos artigos 107 e 109 do
Código Penal.
10 - Suscitada a questão (prévia) da nulidade insanável prevista no artigo 119, alínea c), do Código de
Processo Penal o que, a proceder determinará os efeitos previstos no artigo 122 do mesmo Código; e que a proceder qualquer dos vícios referidos no n. 2 do artigo 410, também do mesmo Código, poderia colocar-se a questão do reenvio a que se refere o seguinte artigo
426, impõe-se que o exame de tal questão e de tais vícios tenha prioridade sobre o exame da questão de fundo.
11 - Quanto à invocada nulidade insanável resultante da ausência de defensor no primeiro interrogatório de arguido, o recorrente labora em erro.
Com efeito, o interrogatório de folha 69 - 7. têm lugar perante um inspector da Polícia Judiciária mas, na data assinalada (9 de Junho de 1992) no auto, o arguido ainda não se encontrava detido.
A sua detenção só foi ordenada após o interrogatório, como se vê do despacho lavrado a folha 71.
Cumprido o artigo 269 do Código de Processo Penal
(folha 73) foi o arguido mandado apresentar no Tribunal
Judicial de Porto de Mós, com os autos (folha 74) e o
Magistrado do Ministério Público, considerando legal a detenção, promoveu se procedesse no seu primeiro interrogatório do arguido detido para decisão quanto à medida de coacção a aplicar, em 11 de Junho de 1992
(folha 75).
Seguiu-se neste mesmo dia, o seu interrogatório a cargo da Meritíssima Juíza daquela comarca que, sob promoção do Ministério Público, considerando legal a detenção, nos termos do artigo 257, n. 2 do Código de
Processo Penal, decidiu que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo em regime de prisão preventiva. Nesse interrogatório, o arguido foi assistido por defensor oficioso, como resulta do auto de folha 76.
A nulidade prevista na alínea b) do artigo 119, no que toca à ausência de defensor, pressupõe que a lei exija a respectiva comparência. Ora, a presença de defensor é obrigatória no primeiro interrogatório judicial do arguido detido (cf. artigo 64, n. 1, alínea a) e nos demais casos ali previstos, determinando o n. 2 do mesmo artigo que, fora dos casos previstos no número anterior, pode o tribunal nomear defensor oficioso ao arguido, oficiosamente ou a pedido deste, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido). Mostram os autos que foi dado cumprimento ao disposto no artigo
141 do referido Código.
Tratando-se de primeiro interrogatório não judicial de arguido detido, a assistência de defensor só tem lugar se este, depois de informado sobre os direitos que lhe assistem, o solicitar (artigo 143, n. 2, ibidem); regime este que se aplica aos subsequentes interrogatórios de arguido preso e aos interrogatórios de arguido em liberdade quando feitos pelo Ministério
Público e pelos agentes de polícia criminal (cf. artigo
1, n. 1, alíneas b), c) e d), e artigo 144, também do mesmo Código).
No auto de folhas 69 - 70 consta que o arguido desejou prestar o seu depoimento de livre vontade, voluntariamente prescindindo de defensor e ainda que lhe foram indicados e explicados os deveres e direitos em termos do artigo 61 do Código de Processo Penal. E no interrogatório feito pela Meritíssima Juíza a quem foi apresentado (auto de folha 76), não invocou qualquer falsidade do auto de folha 69, relativamente
às aludidas menções: seria essa a ocasião adequada para o fazer, perante Magistrado judicial a quem cumpria verificar a legalidade da detenção, para mais encontrando-se assistido por defensor oficioso nomeado.
Por conseguinte, não é exacto que se encontrasse detido a quando do interrogatório feito pela autoridade policial e, ainda que assim não fosse, a presença de defensor, não sendo obrigatória, só teria lugar se ele a solicitasse, o que não se mostra que tenha acontecido. Não se mostra violado o artigo 32, n. 3, da Constituição da República, na medida em que o direito a escolher defensor e a ser por ele assistido tem de ser exercido pelo arguido fora dos casos e fases em que essa assistência é obrigatória.
Acresce que o arguido, podendo fazê-lo (cf. artigos
219, 399, 400 e 401, n. 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal) não interpôs recurso da decisão da
Meritíssima Juíza que mandou que ele aguardasse os ulteriores termos do processo em regime de prisão preventiva, depois de ter considerada válida a detenção efectuada.
Improcede, pelo exposto, a alegada nulidade insanável a que respeitam as quatro primeiras conclusões da motivação do seu recurso.
12 - Passemos agora ao exame dos alegados vícios do artigo 410, n. 3 do Código de Processo Penal.
Começaremos por recordar que todos esses vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Quer isto dizer, desde logo, que não é permitido ao
Tribunal de recurso socorrer-se de outros elementos do processo, designadamente do inquérito ou da instrução, em ordem a adquirir convicção diferente daquela a que chegou o Tribunal "a quo", que deve apreciar a prova na sua globalidade, conforme dispõe o artigo 127 do Código de Processo Penal, isto é, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção salvo, eventualmente, o caso de prova vinculada.
É neste sentido a jurisprudência constante deste
Supremo Tribunal, ilustrada, entre outros, pelos acórdãos de 29 de Novembro de 1989, Rec. n. 40255 e de
19 de Dezembro de 1990, Rec. n. 41327.
Jurisprudência essa que tem merecido a concordância do
Tribunal Constitucional, como pode ver-se nas referências feitas no recente acórdão de 12 de Maio de
1994, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Maio de 1944, página 10849 e seguintes.
Concretizando: o Supremo Tribunal de Justiça não pode substituir-se ao Tribunal recorrido apreciando provas que constem dos autos, eventualmente perturbadoras da convicção que este último chegou em matéria de facto.
Só pode pronunciar-se sobre a suficiência ou insuficiência da matéria de facto apurada, da existência ou não de contradição insanável na funamentação ou de erro notório na apreciação da prova, este de tal modo evidente que o homem médio o detecte com facilidade; e tudo isto, se a existência destes vícios emanou do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não podendo servir-se, para o efeito e de qualquer registo de prova que tenha sido feito na primeira instância.
12.1. Vejamos então se existem os vícios a que se referem as conclusões 5. a 9. da motivação do recorrente (v. supra, pontos 4.5. a 4.9.).
A alegada insuficiência da prova, segundo o recorrente, resultaria de a investigação da Polícia Judiciária se ter preconceituosamente orientado no sentido da incriminação do arguido e mostrando-se eivada de gravíssimas omissões, algumas de diligências elementares, do que teria resultado a inidoneidade e a insuficiência de elementos de prova carreados para os autos em termos de com o necessário grau de certeza inculcarem a culpabilidade do arguido.
Nada disso resulta do texto do acórdão recorrido, que tem o cuidado de fundamentar a convicção a que chegou em terreno fáctico através da indicação dos meios de prova, dizendo muito claramente que formou tal convicção com base em apreciação crítica e conjugada dos respectivos meios. E teve ainda o cuidado de acrescentar que, negando o arguido a prática do delito, foi ele comprovado com as declarações que prestou perante o T.I.C., não as confirmando, alegando coacção física e moral sobre si exercida por elementos da
Polícia Judiciária, "justificação que não logrou convencer o Tribunal da validade da sua rogativa".
Quer isto dizer que, na imediação com os factos, ao
Tribunal não passariam despercebidas as questões suscitadas pelo arguido quanto à administração das provas que levaram à sua pronúncia, examinando-se e concluindo que as mesmas não lograram convencê-lo.
Não pode agora este Supremo Tribunal, como se disse, adquirir convicção contrária, substituindo-se à apreciação feita na primeira instância e aos resultados expressos na descrição da matéria de facto, com base nas provas indicadas ao acórdão.
Improcede, por conseguinte, a conclusão 5. da motivação do recurso, tendente a convencer da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada.
E melhor sorte não tem o alegado na conclusão 8., onde se diz terem sido violados os artigos 129, n. 1 e 134, n. 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
É certo (conste da acta da audiência de julgamento) que foram ouvidos como testemunhas José Ascenso Coelho
Martins e Américo Correia Bonifácio e que o acórdão recorrido cita as suas declarações como elementos, conjuntamente com outros, que contribuíram para a convicção a que chegou em matéria de facto.
Mas não violou com isso as referidas disposições.
Com efeito, o artigo 129, n. 1 diz apenas que se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar esta a depor, o que aconteceu. Só se o não fizer, diz o mesmo artigo, é que o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontrados.
Segue-se que o Tribunal, tendo chamado essas pessoas
(filhos do arguido) a depor, afastou a convicção do n.
1 do citado artigo e, assim, podia legalmente apreciar o respectivo contributo probatório. Aliás, a tanto também não obsta o disposto no n. 3 desse mesmo artigo, porquanto as testemunhas não se recusaram a depor e estavam em condições de indicar a pessoa ou a frente através das quais declaradamente tomaram conhecimento dos factos.
Também é certo que os filhos do arguido se recusaram a depor, como consta da acta, depois de advertidos, pelo
Tribunal, de que não eram obrigados a depor, em termos do n. 2 do artigo 134 do Código de Processo Penal, que assim não foi violado nem imputa nulidade. E em parte alguma da decisão recorrida se indicam esses filhos como elemento de prova a considerar pelo Tribunal.
De resto, também não se diz no acórdão que as declarações das referidas testemunhas tenham constituído elemento decisivo para a convicção do
Tribunal. Já se disse que este formou a sua convicção no conjunto dos elementos probatórios, sem ter destacado em particular uns aos outros desses elementos.
Improcede, pelo exposto, a citada conclusão.
12.2. A conclusão 6. da motivação propõe-se convencer este Supremo Tribunal da evidência de "grosseira e insanável contradição na fundamentação", por o acórdão recorrido ter declarado que não se logrou prova da motivação do crime mas que o arguido agiu com dolo directo.
Não lhe assiste razão e a critica feita, neste particular, esquecer que motivação do crime e dolo são categorias distintas.
O dolo é uma forma de imputação que se preenche com a representação do facto e com a intenção de o realizar, quando directo (Código Penal, artigo 14, n. 1).
Em doutrina, distingue-se entre a vontade e o móbil. A primeira é a faculdade de se determinar a acção, a intenção é a vontade orientada para um fim, ou seja para o cometimento de um acto proibido pela lei. O móbil é o sentimento que determina à acção e que para uma mesma infracção varia segundo os indivíduo e as circunstâncias. Melhor dizendo, a situação é sempre exigida para as infracções caracterizadamente dolosas,
é sempre a vontade consciente de praticar o facto ilegal. Daí que o móbil se defina pela relação ao delinquente enquanto a intenção se define pela relação
à infracção.
Excepcionalmente, o móbil é integrado pelo direito, se a lei o exige em elemento constitutivo da infracção de tal modo que, para este existir, é necessário provar tanto a intenção ordinária como o móbil particular exigido pela lei, então qualificado de dolo especial, com repercussão na pena. Não é o caso dos artigos 131 e
132 do Código Penal. Neste último, o móbil aparece como uma circunstância agravante qualificativa, determinando uma pena mais grave do que no homicídio simples.
Os motivos e objectivos do agente, a atitude interna que se reflecte no acto e a medida de infracção do dever, são circunstâncias que relevam para a avaliação da formação da vontade do mesmo agente, atenuado ou aumentado o grau de responsabilidade do crime. Entre os motivos é uso distinguir os estímulos externos e os móbiles internos (neste último caso, o ódio, o ânimo de lucro, a codícia, a compaixão, a justa cólera, por exemplo). Interessa para a individualização da pena apurar o grau de força do motivo e indagar do seu valor
ético.
Sendo a culpabilidade uma atitude interna deficiente relativamente ao direito, que encontra expressão numa acção típica e antijurídica, tal deficiência pode verificar-se em menor ou maior grau, servindo de medição o maior ou menor valor dos motivos da formação da vontade. Por isso, a culpabilidade, como o injusto são conceitos graduáveis. Mas aqui já estão para além dos ponteiros do dolo, tratando-se de circunstâncias, ou seja, de particularidades que acompanham um facto, que, quando intencional ou doloso, pode apresentar-se na sua pureza, ou seja, desacompanhado dessas particularidades.
É certamente por isso que o Código Penal alemão, em sede de cálculo da pena, apronta a culpabilidade do agente como o seu primeiro fundamento e manda que o
Tribunal, para o efeito, tome em consideração as circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis, entrando então em linha de conta, entre outros, os móbeis e os fins provados pelo mesmo agente (parágrafo 46).
Como escreve Clans Boyin, "há que distinguir a culpa como fundamento da pena e a culpa como critério da pena.
A primeira respeita à questão de saber quais são os pressupostos de que depende a existência da culpa e, com ela, em regra, também a existência de responsabilidade penal. Na culpa como conceito sistemático de direito penal, trata-se desta culpa como fundamento da pena, do "se" da pena, da previsão legal a que está ligada a aplicação da pena.
Diferentemente, a culpa como medida da pena respeita à previsão legal a que está ligada a medida judicial da pena e, portanto, ao "conjunto dos factos que são relevantes para o grau da pena no caso concreto".
Devem separar-se os dois conceitos, porque têm pressupostos diversos. "Enquanto na culpa como fundamento da pena se averigua a capacidade de culpa e a possibilidade de conhecimento da proibição, a culpa como critério da medida da pena depende sobretudo dos factos designados no parágrafo 46. O tratamento deles tem o seu lugar adequado na teoria da medida da pena.
No entanto, a culpa como fundamento da pena e a culpa como critério da medida da pena não se encontram, lado a lado completamente isoladas uma da outra. Quando a personalidade ao apelo normativo, que decide da existência da culpa, se apresenta diminuída, em termos do parágrafo 21, ela repercute-se também na culpa como critério da medida da pena. Por outro lado, elementos da culpa como "por egoísmos" ou "por realeza de sentimentos" podem ser empregados pelo legislador, em casos excepcionais, para fundamentação da culpa, embora nada tenham a ver com a permeabilidade ao apelo normativo, antes designam graus qualificados de culpa.
Nestes casos, a punibilidade não tem lugar logo que existe a simples culpa, mas só quando existe um grau qualificado de culpa".
Em criminologia costuma atribuir-se grande importância
às motivações do acto criminoso.
O ser humano, e, por conseguinte, o delinquente, actua com o desígnio de atingir uma finalidade, tem, por conseguinte, uma motivação.
As investigações da criminologia empírica têm identificado quatro grupos principais de finalidades visadas pelos delinquentes: o desejo de acção, a apropriação, a dominação e a agressão.
Todos estes meios e tantos outros podem ser indispensáveis à prática do acto. A ausência de um ou de outro destes elementos pode comprometer a acção. Em cada um dos casos o delinquente escolhe, raciocina.
Este raciocínio jamais é perfeito na prática.
Alguns delinquentes concebem um verdadeiro plano estratégico, complexo e refinado, mas podem negligenciar um pormenor que conduz ao insucesso.
Outros, limitam-se a explorar uma oportunidade, tentando racionar de modo a prevalecer-se de todas as vantagens oferecidas. Em todos os casos, o raciocínio é limitado pelas próprias inteligência, paciência, prudência, competência e cultura. Mas, do mais fruste ou imprudente até ao mais competente, raciocínio sempre no termo de opção: fazer ou não fazer, antes de como fazer.
Sobre o que precedentemente se expõe, podem ver-se, sucessivamente, "Droit pénal général", 3. Edição, de
Philippe Salvage, Trens Universitários de Grenoble, páginas 48 e seguintes; de Hans-Heinrich-Jescheck,
"Tratado de Derecho Penal" (versão espanhola, em tradução de Manzamars Samaniego, Editora Comando, páginas 384 e 803, 4. Edição); de Rovim, "Culpa e Responsabilidade", na Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Ano I, n. 4, página 433); e de Lygia Négrier
- Dormont/S. Tzitzir, "Criminologie de l'Acte et
Philosophie Pénale", Litec (páginas 7 e 8).
Ora, quando no acórdão recorrido se escreve "que os factos apurados comprovam que o arguido matou intencionalmente, o Maurício Costa", e "fê-lo mas não se logrou prova da motivação do seu acto e esta circunstância afasta a qualificação do crime, pois que a ausência de prova do motivo criminoso não pode ser confundida com a futilidade da sua prática"; e ainda que "não se vislumbrando, no conjunto de factualidade descrita e em resultado da sua apreciação, outras circunstâncias qualificativas, cumpre concluir que o arguido só pode responder pela autoria material de um crime de homicídio simples, previsto e punido no artigo
131 do Código Penal", não se verifica a contradição insanável que o recorrente pretende ver na sua motivação. O Tribunal limitou-se a dizer que a prova apreciada em audiência lhe não permitiu adquirir uma convicção segura sobe o motivo ou motivos que teriam determinado o recorrente à prática do acto, daí o ter afastado a qualificação do artigo 132, em especial no tocante ao motivo fútil. O que se compreende por o arguido ter negado a prática do facto e só ele estaria, naturalmente, em condições de esclarecer e revelar a sua motivação.
NÑo tendo o Tribunal conseguido, em sede fáctica, descobrir a motivação do arguido para a prática do acto, acusado, como vinha (folhas 1 a 5 dos autos), de ter praticado um crime de homicídio qualificado, previsto e punido no artigo 132, n. 1, e 2, alínea c) do Código Penal, compreende-se, até certo ponto, que se tenha decidido pelo afastamento da qualificação, não obstante ter concluído que ele agiu intencionalmente, com o propósito de matar. E dizem "até certo ponto" porque teremos de voltar ao assunto quando apreciarem o recurso do Ministério Público.
Por enquanto estamos ocupados com a questão da alegada contradição insanável da fundamentação, que não se verifica, porquanto, como aliás se ponderou, dolo e motivação são conceitos distintos e, no caso concreto, esta última não é elemento integrante do tipo. Com efeito, as circunstâncias do artigo 132, reveladoras, a título exemplificativo, da especial censurabilidade ou perversidade do agente, não são elementos do tipo mas graus de culpa, sem a excluir.
Por outras palavras e retomando a lição de Royin, a punibilidade por aquele artigo só deve ter lugar quando exista um grau qualificado de culpa. Não tendo o
Tribunal conseguido apurar a motivação do agente, foi levado a apurar em função do artigo 131, que se basta com a culpa dolosa, assim não incorrendo em contradição. A crítica que pode fazer-se ao decidido é de outra natureza e tem que ver com outra ordem de razões, não necessariamente cingidas à questão da motivação.
Improcede, por conseguinte, a conclusão 6. da motivação do recorrente.
12.3. Relativamente à conclusão 7., entendemos que não
é correcta nem fundamentada a análise expressa na mesma.
Com efeito, o acórdão recorrido, depois de optar pela subsunção dos factos no artigo 131, conclui pela elevada ilicitude da conduta do arguido.
Não se entregou a um simples discurso de retórica jurídica, divorciado dos factos, e a alusão ao bem jurídico protegido no tipo legal tem o sabor de um argumento relevante para avaliação do grau de ilicitude, de uma espécie de premissa para o subsequente desenvolvimento do raciocínio.
Pode conceder-se que a formulação constante do acórdão, neste particular, não será das mais felizes, na medida em que pode sugerir tratar-se de um corolário decorrente do próprio preceito incriminador. Mas o acórdão tem de ser apreciado na sua totalidade, não sendo licito isolar uma fase do discurso para o criticar em moldes pretendidos pelo recorrente. Não deve esquecer-se a correlação dessa fase com anterior pronúncia sobre factos considerados provados e a correspondente subsunção no tipo legal. Bem interpretado, extrai-se a conclusão de que os julgadores relacionaram o juízo sobre o elevado grau de ilicitude, não com a descrição abstracta da norma, mas com os factos descritos anteriormente e valora-los como reveladores desse grau. Corrobora esta interpretação a alusão à conduta do arguido, revelada nos factos provados e esta conduta é a conduta em concreto e não in abstracto. E foi ela que autorizou um juízo sobre a elevada ilicitude e não qualquer consideração extraída dos valores protegidos no tipo legal. Logo, o Tribunal não violou o princípio ne bis in idem, assim improcedendo também a conclusão 7. da motivação do recorrente.
12.4. Improcedendo as conclusões apreciadas, não há qualquer razão para ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, ao abrigo do artigo 426 do Código de
Processo Penal, como quer o recorrente na conclusão 9. da sua motivação.
Relativamente à conclusão 10. (perdimento de outras armas além da que serviu para a prática do crime), dependente, como está, do exame da questão de fundo, será considerada após este exame, a que se procederá de seguida, no contexto da apreciação do recurso do
Ministério Público.
13 - Como se disse anteriormente (v. supra, ponto 9), a questão suscitada naquele recurso é a do enquadramento dos factos no artigo 131 ou no artigo 132, em especial a prova do motivo fútil.
Em que pese o brilho argumentativo da motivação do recurso do Ministério Público, acompanhado, neste
Supremo Tribunal pelo Excelentíssimo Procurador-Geral
Adjunto, o acórdão recorrido, na medida em que se declarou incapaz para descortinar a "motivação do arguido para o acto", por falta de prova, não merece censura, na parte em que consideraram não poder confundir-se essa ausência de prova com a "futilidade" a que se refere a alínea c) do n. 2 do artigo 132 do
Código Penal.
Como anteriormente se ponderou essa e outras circunstâncias exemplificativas descritas na norma são elementos da culpa e não do tipo legal. Como tal, têm que resultar dos factos tidos como provados que as revelem com aquele grau de certeza e moral indispensável à formação da convicção do julgador.
Quando não se sabe que motivo determinou o agente
à prática do acto ilícito, é impossível qualificá-lo normativamente, quer como torpe quer como fútil, aliás haveria aí um salto lógico: do nada não pode tirar-se uma conclusão ou uma argumentação existencial positiva.
Para mais, o Tribunal não concluiu pela ausência de motivo, coisa diferente da falta de prova da motivação.
Por outras palavras: o acórdão não diz que o agente agiu sem motivo, o que seria, aliás, praticamente impossível, já que, como acima se ponderou, existe sempre uma motivação na decisão da "passagem ao acto", como é próprio de seres humanos conscientes e não de meros autómatos.
Num dos arestos citados pelo Ministério Público nas suas alegações (cf. folha 345) diz-se, muito justamente, que "desconhecendo-se os motivos da actuação, mas conhecendo-se que houve um qualquer motivo, não pode considerar-se existir motivo fútil, até por imposição do princípio in dubio pro reo"
(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1991).
Tal não significa que não possa avaliar-se a conduta do arguido como reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, para a qualificação dos factos como crime de homicídio qualificado, à luz do artigo 132 do Código
Penal.
Na verdade, o elemento da qualificação reside fundamentalmente na revelação dessa especial censuralidade ou perversidade. E as circunstâncias do n. 2 do artigo nada mais constituem do que exemplos ou critérios para orientarem o julgador na decisão sobre a existência desse elemento da qualificação.
Trata-se de uma técnica legislativa a que a doutrina tem chamado "exemplo - padrão", "exemplificação da norma" ou "exemplos - tipo", imprimida no direito penal alemão (Regelbeispiele). Como tais, o julgador não é obrigado a tê-los em conta, até porque não são de funcionamento automático. Inversamente, pode decidir-se pela qualificação, mesmo que os factos concretos o não autorizem a concluir pela verificação de circunstâncias subsumíveis nesses "exemplos - tipo". Bastarão, para tanto, que a particular conformação dos factos possa caber na cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade. Não é por acaso que no artigo 182 se contém a frase "se a morte for causada em circunstâncias que revelam...", que não pode deixar de apontar para qualquer circunstância permissiva dessa
"revelação" ainda que não conste do elenco dos exemplos - padrão.
E, deste ponto de vista, não podemos deixar de dar razão ao Ministério Público.
Com efeito, e volvendo à matéria de facto provada na decisão recorrida, a conduta do arguido revela especial censurabilidade ou perversidade. Não se apurou qualquer justificação ou explicação plausível para o crime, já que a vítima nada fez que levasse o arguido a agir da maneira descrita no acórdão. Não houve sequer troca de palavras nem o arguido a conhecia. É manifesta a frieza de ânimo do mesmo arguido, que aponta uma arma perigosa
à cabeça da vítima em local ermo e sem possibilidade de defesa para esta, tendo-se passado subitamente, após ter atirado uma pedra à viatura onde se encontrava a mesma vítima, acto que igualmente se apresenta como inexplicável.
Avulta, pois, a gratuitidade do acto e, conjugada esta avaliação com ausência de circunstâncias razoavelmente explicativas de conduta tão brutal, inesperada e de tão graves consequências, não pode deixar de concluir-se que estamos em presença de uma mentalidade perversa, a merecer um juízo de censura mais elevada do que poderia fazer-se se acaso se dispusesse de factos que permitissem encontrar razão ou razões de algum modo esclarecedoras da decisão de matar.
Posto isto, também não é forçar as coisas admitir que, face à matéria de facto provada, e nas peculiares circunstâncias descritas nesta sede, a conduta do arguido caberia na alínea f) do n. 2 do citado artigo
132 (utilização de "meio insidioso", como defende o
Ministério Público), mas a primeira razão (subsunção na cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade) é absorvente.
14 - Pelas razões expostas, procede o recurso do
Ministério Público quanto à qualificação do crime como homicídio qualificado previsto e punível no artigo 132 do Código Penal.
Resta determinar o quantum da pena que lhe deve ser aplicada, dentro da moldura abstracta daquele artigo
(12 a 20 anos), em atenção aos critérios do artigo 72 do mesmo Código.
Contra o arguido milita, desde logo, a circunstância do elevado grau de ilicitude de facto, que deve ser ponderada na medida em que não faz parte do tipo de crime (as circunstâncias determinantes da qualificação, no artigo 132, são elementos da culpa, como já anteriormente se referiu).
O dolo directo com que actuou é também intenso e particularmente repreensível foi o modo de execução do crime (agressão violenta com instrumento perigoso, aliada ao elemento surpresa, seu carácter inesperado e imprevisível para a vítima, reduzindo a nada, praticamente, as possibilidades de defesa).
Foram graves as consequências do crime para os familiares da vítima.
Em relação aos sentimentos manifestados na preparação do crime e aos fins ou motivos que o determinaram, nenhum facto relevante se provou que permita favorecê-lo e, tendo negado os factos, também não lhe aproveita a atenuante da confissão.
Relativamente à conduta anterior ao crime não se vê que possa constituir uma atenuante de relevo, não bastando a inexistência de antecedentes criminais. Aliás, neste particular, deu-se como provado que o arguido, noutras ocasiões, arremessava pedras contra veículos automóveis que estacionavam no pinhal em que foi praticado o crime.
É débil o valor atenuativo da prova de que goza de consideração no meio em que está inserido.
No que concerne à conduta posterior ao crime, revela-se que não se provou que o arguido algo tenha feito para reparar as suas consequências.
Os factos revelam que se trata de uma personalidade defeituosa, propensa à violência e caracterizada por marcada insensibilidade relativamente a valores tão importantes como a vida humana e ao sofrimento causado.
Em seu favor apenas se provou, com relevância atendível, que é pobe e com habilitações escolares rudimentares.
Assim, perante a culpa revelada e no quadro circunstancial descrito no acórdão impugnado, tem-se como justa, adequada e proporcionada uma pena de quinze anos de prisão.
15 - Relativamente ao perdimento das armas não se provou terem servido para a prática do crime ou a ela destinadas e que pela sua natureza e circunstâncias do caso ponham em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública ou ofereçam sérios riscos de serem utilizadas para o cometimento de novos crimes, requisitos comulativos do artigo 107 do Código Penal, entende-se que não se justifica a decisão que decretou o seu perdimento. A este propósito, o acórdão limitou-se a invocar uma possibilidade (de, nas mãos do arguido, poderem ser usadas para outros crimes), todavia insuficiente para se poder concluir pela existência dos "sérios riscos" de utilização a que se refere aquele preceito. Trata-se de um juízo especulativo, insusceptível de predizer com exactidão eventos futuros e aquela expressão pressupõe uma adequada distribuição de probabilidade. Enfim, dado não se ter provado que as ditas armas fossem instrumentos, objectos ou produtos do crime, a decisão de perdimento também não pode legitimar-se à luz do preceituado no artigo 109 do mesmo Código.
16 - A questão da indemnização cível não foi discutida ou objecto de controvérsia em qualquer dos recursos, pelo que sobre ela não tem este Supremo Tribunal de se pronunciar.

17 - Pelo exposto, decidem: a) Negam provimento ao recurso do arguido A, salvo no tocante ao perdimento das armas que não serviram para a prática do crime, que lhe serão restituídas se não tiverem de ser apreendidas por outras razões; b) Conceder provimento ao recurso do Ministério
Público e condenar o arguido na pena de 15
(quinze) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido no artigo 132, n. 1, do Código Penal.
O arguido pagará 4 ucs de taxa de justiça fixando-se a procuradoria em 1/3.
A aplicação da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, será apreciada na 1. instância, para não privar o recorrente de duplo grau de jurisdição, como vem sendo entendido neste Supremo Tribunal.
Lisboa, 9 de Novembro de 1994.
Lopes Rocha;
Teixeira do Carmo;
Ferreira Vidigal;
Amado Gomes.
Decisão impugnada:
Acórdão de 3 de Junho de 1993, do Tribunal de Círculo de Alcobaça.