Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09P0315
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDO FRÓIS
Descritores: PERSONALIDADE BORDERLINE
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PERIGOSIDADE CRIMINAL
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
CULPA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CÔNJUGE
DIREITO A ALIMENTOS
MAIORIDADE
Nº do Documento: SJ2009031903153
Data do Acordão: 03/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário : I - O Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV-TR) define o transtorno de personalidade “borderline” como «um padrão inerente de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, auto-imagem e afectos e acentuada impulsividade».
II - «O quadro engloba algumas manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, mas em geral os pacientes não saíram totalmente do estado considerado normal para serem enquadrados em tais classificações. A síndrome “borderline” é, portanto, um mosaico de sintomas menos acentuados de diversos transtornos» (cf. Arch. Gen. Psychiatry, 2001 58(6): 590-596 – The Prevalence of Personality Disorders in a Community Sample – Torgersen Svenn, in www.cienciasecognição.org).
III - O mesmo DSM-IV (4.ª ed., XXIII e XXIV), a propósito da utilização do diagnóstico clínico de uma perturbação mental para fins forenses, ensina que «Na maior parte das situações, o diagnóstico clínico de uma perturbação mental…não é suficiente para estabelecer a existência para fins legais de uma «perturbação mental», uma «incapacidade mental», uma «doença mental» ou um «defeito mental». Na determinação de quando um sujeito está dentro de uma determinada norma legal específica (por exemplo, competência, responsabilidade criminal ou incapacidade), é geralmente necessária informação adicional para além da contida no diagnóstico…. Isto pode incluir informação sobre incapacidades funcionais individuais e como estas incapacidades afectam aquelas capacidades particulares postas em questão. É precisamente porque incapacidades, capacidades e diminuições das capacidades variam amplamente dentro de cada categoria diagnóstica que a indicação de um diagnóstico particular não implica um nível específico de diminuição da capacidade ou incapacidade».
IV - O facto de o arguido ter uma personalidade de estrutura borderline não significa que, aquando da prática dos factos dados como provados, não tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e consciente, pois das características daquele tipo de personalidade, por si só, não resulta sempre e desde logo uma diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente.
V - Daí que inexista qualquer erro notório na apreciação da prova ao considerar-se, por um lado, que o arguido agiu com dolo directo e intenso, sendo a sua actuação reveladora de uma atitude persistente e fria e, por outro, que o mesmo apresenta uma personalidade de estrutura borderline, com característica limite e dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio e na contenção de pulsões, criando a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e stress.
VI - Não estando provados outros factos que o impusessem, o facto de o arguido sofrer daquele “transtorno” de personalidade não implica que o tribunal tivesse de considerar que (aquele) agiu “de forma impulsiva, sem completo domínio da vontade e com perturbação acentuada do comportamento devido à doença de que padece”, para concluir pela existência de uma imputabilidade diminuída.
VII - E, como refere Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 77), «não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo, parece, porém, não querer obstar à doutrina – também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado, de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g. em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos».
VIII - Sendo assim, mesmo que se provasse a existência de imputabilidade diminuída, esta não justificaria uma atenuação especial da pena, face à perigosidade do arguido [que, de acordo com o relatório da perícia, apresenta, ao nível da personalidade, traços ou características anti-sociais, ansiosos, e impulsividade, que determinam uma personalidade de estrutura borderline, com característica limite; denota um fraco investimento no contacto e identificação com os outros, dificuldades relacionais na gestão de conflitos, estabelecendo relações de forma superficial, sendo o modo comum de relacionamento o confronto e a rivalidade, factores estes que comprometem a sua socialização; apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio, e na contenção das pulsões, criando a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e stress] e à especial censurabilidade e perversidade.
IX - Aliás, a especial censurabilidade e a especial diminuição da culpa são inconciliáveis – cf., neste sentido, Ac. do STJ de 02-05-1996, Proc. n.º 70/96.
X - A nova circunstância qualificativa do homicídio constante da al. b) do n.º 2 do art. 132.º – introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09 – é a relação conjugal ou análoga e justificar-se-á face à evolução legislativa que tem tido em vista as situações de violência doméstica e os maus tratos familiares.
XI - Tendo em consideração que:
- o arguido e a vítima tinham casado um com o outro em 26-06-1982, ou seja, há mais de 25 anos (à data da prática do crime);
- essa relação conjugal de tantos anos impunha ao arguido o especial dever de não ter atitudes violentas para com sua mulher, mãe dos seus dois filhos, com 24 e 16 anos de idade;
- o arguido atingiu mortalmente a esposa, no interior da casa de habitação de ambos e dos filhos (casa de morada de família), numa ocasião em que sabia perfeitamente que ambos os filhos ali se encontravam, ciente de que ambos sentiam grande afecto pela mãe;
- quando o filho se aproximou dele, após o primeiro tiro, estando já a vítima agonizante, o arguido apontou-lhe a arma, culpando-o do sucedido, após o que desferiu um segundo tiro na vítima;
- após este segundo tiro, o arguido ainda disparou mais duas vezes sobre a vítima, tendo, antes disso, perseguido o filho, de arma empunhada;
- o filho apercebeu-se de toda a conduta do arguido e do estado da mãe;
- o arguido fez os disparos de forma a garantir a morte de sua mulher e mãe dos seus filhos, sendo certo que a filha tinha apenas 15 anos de idade, em formação de personalidade, precisando muito do apoio e carinho da mãe;
- o arguido bem sabia que, após o primeiro disparo, a vítima ficou totalmente desprevenida e incapaz de se opor àquele tipo de agressão;
é de concluir que a conduta do arguido – que agiu com manifesta superioridade em razão da arma – revela, não só completa insensibilidade, absoluta indiferença e manifesto desprezo e falta de respeito pela vida humana, mas também uma especial censurabilidade e perversidade, verificando-se a agravante qualificativa referida na al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
XII - Sendo sabido que os filhos têm direito a alimentos dos pais, o art. 2013.º do CC, ao elencar as causas de cessação dessa obrigação alimentar, não prevê, como tal, o atingir da maioridade, antes sendo necessário que a cessação daquela obrigação seja ordenada judicialmente.
XIII - E, na verdade, a jurisprudência vem entendendo que o facto de o filho atingir a maioridade não determina, por si só, o fim da referida obrigação alimentar. Esta pode e deve manter-se até que o alimentado complete a sua formação e possa autonomamente prover ao seu sustento – isto, naturalmente, dentro de um prazo razoável.
XIV - Tem vindo a considerar-se que a idade (média) com que se atinge aquela formação e a capacidade para, autonomamente, prover ao seu sustento, ronda os 25 anos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No 3º Juízo Criminal de Almada, no processo comum nº 100/07.6 PEALM, foi submetido a julgamento perante Tribunal Colectivo, o arguido:

AA, viúvo, filho de ... e de ..., natural da Sertã, nascido a 13/11/1958, pedreiro, residente na Praceta ..., nº 00 C, 1º Esq. Pragal, Almada, actualmente preso no Estabelecimento Prisional Regional de Setúbal.

Era-lhe imputada a prática de:

- Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131 e 132º nºs 1 e 2-b), e) e h), ambos do Código Penal; e

- Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º-1-c) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Deduziram pedido de indemnização civil contra o mesmo arguido:

- TF e SF, identificados nos autos, pedindo a condenação do arguido no pagamento a ambos os demandantes, das quantias de € 70 000,00, a título de dano da morte e de € 30 000,00, a título de dano não patrimonial pelo sofrimento causado à vítima; e ainda no pagamento ao demandante TF das quantias de € 25 000,00 a título de danos não patrimoniais e de € 2 696,00 a título de danos patrimoniais; e ainda no pagamento à demandante SG das quantias de € 25 000,00 a título de danos não patrimoniais e de € 15 000,00 a título de dano emergente, quantias essas acrescidas de juros de mora à taxa legal, desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento.

A final, foi proferida sentença que, além do mais:

A – PARTE CRIMINAL:

Julgou parcialmente procedente a acusação, porque parcialmente provada e condenou o arguido AA:

a) Como autor material e em concurso real:

- pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º nº1 e 2 b), ambos do C. Penal, na pena de 19 ( dezanove ) anos de prisão;

- pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º-1-c), da lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ( um ) ano de prisão.

b) Em cúmulo jurídico de tais penas, foi o mesmo arguido condenado na pena única de 19 ( dezanove ) anos e 6 ( seis ) meses de prisão.

B – PARTE CÍVEL:

Julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes TF e SG e, consequentemente:

Condenou o arguido a pagar aos mencionados demandantes a quantia (total) de € 123 196,00 (cento e vinte e três mil cento e noventa e seis euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a notificação para contestação de tal pedido ao arguido, sobre o montante de € 13 196,00 e à mesma taxa legal, desde a data do acórdão (da 1ª instância), sobre o montante de € 110 000,00.

Inconformado com tal condenação, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 05 de Novembro de 2008, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.

De novo irresignado com essa decisão, o arguido AA interpôs o presente recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo a revogação do acórdão condenatório e o reenvio do processo para que decida renovar a prova com elaboração de novos relatórios psiquiátricos (ao arguido) e audição dos respectivos peritos para que esclareçam a medida da imputabilidade do arguido ou o reenvio do processo para novo julgamento sobre a mesma questão.

Se assim se não entender, o tipo de crime que se mostra preenchido é o de homicídio simples; de qualquer forma a pena aplicada é exagerada, devendo ser aplicada pena não superior a 15 anos de prisão.

Quanto aos pedidos cíveis, pretende que á indemnização por danos emergentes – despesas de funeral – deveria ter sido deduzida a quantia recebida pelos demandantes do Estado Português; para o cálculo dos danos patrimoniais da demandante SF deve atender-se que a mãe ia prestar-lhe alimentos até aos 18 anos e não até aos 25 anos; o dano morte não deve ser fixado em quantia superior a 30 000,00 euros; e os danos morais dos demandantes em quantia não superior a 15 000,00 euros.

Na respectiva motivação formula as seguintes conclusões:


1- Existe erro notório ou contradição insanável na fundamentação do douto acórdão (artigo 410, n° 2 do C.P.P)ao dar-se por provado que o arguido agiu de forma calma, sem qualquer constrangimento, perturbação ou emoção e com perfeito domínio da vontade e do entendimento, ou seja, que não agiu de forma impulsiva e dominado por uma grande emoção e por outro lado ao considerar que o arguido tem ao nível da personalidade, traços ou características anti-sociais, ansiosas e impulsividade, que determinam uma personalidade de estrutura borderline, com características limite. A personalidade borderline corresponde a uma patologia devidamente definida pela Organização Mundial de Saúde com sintomatologia bem conhecida. Não é possível afirmar que um acto de tamanha violência sobre pessoa chegada praticado por pessoa acometida da doença não tem nada a ver com ela quando os sintomas da doença são precisamente, entre outros, a impulsividade, a acção irreflectida e a deturpação da realidade. Assim, deveria ter sido dado por provado que o arguido agiu sem perfeito domínio da sua capacidade de se determinar de acordo com a norma, julgando-se em conformidade, ou, caso assim não se entenda, deverá ser reenviado o processo à 2a instância para que decida renovar a prova com elaboração de novos relatórios psiquiátricos e audição dos respectivos peritos que esclareçam sobre a medida da imputabilidade do arguido em virtude da sua doença, ou o processo ser reenviado para novo julgamento sobre a mesma questão, nos termos do artigo 426°, n°-2 do C.P.P:.

2- Não se mostra preenchido o tipo incriminador previstos pelas disposições conjugadas dos artigos 131° e 132°, n°s 1 e 2, ai. b) do Código Penal por não se verificar a especial censurabilidade ou perversidade na conduta do arguido que o tipo, ao recorrer aos exemplos-padrão, exige. Antes se mostra preenchido o tipo de homicídio simples previsto no artigo 131° do CP, porque a culpa do arguido não ultrapassa aquela a que é exigida por esta norma.

3- De qualquer forma, a pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio mostra-se superior aquela que a Lei determina ao ultrapassar a medida da culpa do arguido (artigo 40°, n° 2 do CP.), ao considerar exigências de prevenção especial que não existem e ao não ter ponderado devidamente as circunstâncias previstas no artigo 71°, n° 2 do CP., nomeadamente, ao não ter na devida conta a personalidade do arguido, a sua perfeita inserção social, a inexistência de qualquer conduta delituosa anterior, o bom comportamento posterior, o arrependimento e a confissão espontânea. A pena não deveria ter sido fixada em mais de quinze anos de prisão.

4- Á indemnização por danos emergentes, despesas de funeral, deveria ter sido deduzido a quantia recebida pelos demandantes do Estado Português, que nessa parte é a parte legitima para pedir o ressarcimento, e que sendo facto notório deveria ter sido considerada pelo Tribunal "a quo". Os danos patrimoniais da demandante SF não estão correctamente fixados ao atender-se que a mãe iria prestar-lhe alimentos até perfazer 25 anos. A idade atendível legalmente seriam 18 anos, devendo ser revisto o valor atribuído, em conformidade. O dano morte não deverá ser fixado em quantia superior a 30.000,00 € e os danos morais dos demandantes em quantia não superior a 15.000,00€.

Responderam o MºPº junto do Tribunal da Relação de Lisboa e os demandantes civis, pugnando pelo não provimento do recurso.

O MºPº alega, em resumo:

Inexistem os alegados vícios da decisão, previstos no artigo 410º-2-b) e c) do CPP pois o raciocínio lógico que serviu para o tribunal formar a sua convicção está bem patente na fundamentação, de forma clara e sem contradições.

É seguro concluir que ao arguido foi diagnosticada uma perturbação/ um transtorno de personalidade susceptível de tratamento, não se justificando a realização de novos exames periciais.

Não pondo o recorrente em causa a sua imputabilidade criminal - a qual se afigura decorrer do relatório de perícia psicológica de fls. 517/535, em conjugação com os demais relatórios juntos - antes pugnando pela realização de novos exames "que esclareçam sobre a medida da imputabilidade do arguido em virtude da sua doença", há que considerar que mesmo na hipótese de existência de imputabilidade diminuída, a mesma não justificaria uma atenuação especial da pena, desde logo em face do juízo pericial de perigosidade do arguido, constante das conclusões 9.4 e 9.5. da perícia de fls. 535 e do quadro global da sua conduta descrito no acórdão recorrido.
Citando Figueiredo Dias, "não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo parece, porém, não querer obstar à doutrina - também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado - de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, vg. em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos" (Pressupostos da punição, Jornadas de Direito Criminal, ed. CEJ, pag. 77)

Sendo este o pressuposto, a decisão recorrida entendeu, a nosso ver bem, que o arguido face ao conjunto da factualidade apurada revelou insensibilidade perante a vida humana daquela que era a sua esposa, e a probabilidade, pelo seu quadro psicológico, de poder vir a praticar factos idênticos, o que afasta, a nosso ver, qualquer possibilidade de uma atenuação especial da pena, antes evidenciando, ao nível da determinação da mesma, ponderação sobre acrescidas exigências de prevenção especial.

(No mesmo sentido se pronunciaram, vg. o Acórdão do TRL, desta 3ª Secção, datado de 28.11.2007, proa 6849/07, relatora Dr.ª Conceição Gonçalves; Ac do STJ de 30.04.2008, proc. 08P1220, relator Dr. Pires Graça, disponível em www.dgsi.pt)

Do enquadramento jurídico penal e da medida da pena

Na conclusão 3ª do recurso, alega o recorrente não se mostrar preenchido o tipo incriminador p. e p. pelos arts. 131° e 132° ns° 1 e 2-b) do CP, por não verificação da especial censurabilidade ou perversidade na conduta do arguido, mas apenas o tipo de homicídio simples p. e p. pelo art. 131° do CP.
E na conclusão 4°, pugna o recorrente pugna o recorrente por fixação de pena não superior a 15 anos de prisão.
Afigura-se não assistir razão ao recorrente.
Dão-se por reproduzidos os fundamentos, que se subscrevem, exarados no acórdão do TRL, a fls. 747 a 750, dos quais se destacará o segmento:
"Tal como se considerou na decisão recorrida, o dolo do arguido, na modalidade de directo é intenso; o grau de ilicitude dos factos é muito elevado, pelas circunstâncias em que o crime foi praticado - com arma de fogo a uma curta distância da vítima, com vários disparos efectuados, estando a vítima totalmente desprotegida, no interior da casa morada de família, onde se encontravam os filhos do casal, a confissão não foi total e é fraco o seu valor atenuativo e o arguido não demonstrou qualquer arrependimento, não tendo assim interiorizado a censurabilidade do seu acto."
(...)
Por último, a culpa do arguido é, sem dúvida, acentuada tanto mais que o arguido sabia que estava a tirar a vida mãe dos seus filhos por quem estes nutriam um forte afecto, mas por outro lado sofre alguma atenuação, ainda que ligeira, em consequência do distúrbio de ordem psicológica de que padece."
Tal como se alude no acórdão recorrido, afigura-se igualmente que a pena aplicada se mostra adequada á gravidade dos factos praticados e satisfaz de forma ajustada as finalidades da punição, não excedendo a culpa do arguido.

O recurso interposto pelo arguido deverá ser considerado improcedente.

Os demandantes civis concluem da forma seguinte:
CONCLUSÕES:
1. O Tribunal da Relação ajuizou bem ao considerar que o recorrente, na parte relativa ao pedido cível, não fundamentou as suas pretensões, limitando-se a fazer afirmações genéricas., e vagas, não concretizando ou alicerçando a sua motivação, em disposições legais, doutrinárias ou jurisprudenciais.
2. O tribunal a quo julgou bem ao manter a decisão proferida em primeira instância, para o que invocou a exaustiva e assertiva fundamentação deste acórdão decisório.
3. Nomeadamente entendeu que o douto acórdão recorrido fixou correctamente a indemnização pelas despesas do funeral, observando o princípio do pedido e o ónus da prova, dado que o recorrente não logrou requerer ao tribunal a produção de prova contrária, estando assim, ao abrigo do princípio da estabilidade da prova, impedido de invocar tal facto;
4. Igualmente e quanto á obrigação alimentar, deve manter-se que esta não cessa "ipso iure" do advento da maioridade, mas sim perdurar até o alimentado completar a sua formação e poder por si, autónomamente prover ao seu sustento;
5. Quanto ao dano da morte, na senda da actual jurisprudência, este foi correctamente valorado considerando a vida enquanto direito absoluto da pessoa humana, segundo uma concepção que dignifique os valores de um Estado de Direito pleno;
6. Deve considerar-se inexistente a fundamentação material e fáctica pelo arguido no recurso interposto para a relação, quanto aos danos morais;
7. No entanto, sem prescindir, sempre se dirá que a fundamentação aduzida no acórdão recorrido é irrepreensível, explicitando cabalmente os motivos que levaram a fixar tais valores, recorrendo á equidade, de acordo com os critérios do artº 494º, "ex vi" do artº 496º, nº 3 do CC, nos termos supra expostos.

O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal teve vista do processo nos termos do artigo 417º-1 do CPP e, em Parecer muito bem fundamentado, pronunciou-se pelo não provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º-2 do CPP.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

As questões suscitadas pelo recorrente e a decidir são as seguintes:

1 – A decisão recorrida padece dos vícios de erro notório na apreciação da prova ou de contradição insanável na fundamentação?

2 – Qualificação jurídica dos factos provados: crime de homicídio qualificado (como entenderam as instâncias) ou crime de homicídio simples (como entende o arguido/recorrente)?

3 - A pena relativa ao crime de homicídio a aplicar não deveria ser superior a 15 anos de prisão?

4 - A indemnização fixada é exagerada devendo, por isso, ser reduzida para € 30.000,00 quanto ao dano morte e para € 15 000,00 os danos morais dos demandantes, devendo para efeitos de danos patrimoniais da demandante SF relevar a idade de 18 anos e não de 25 como atenderam as instâncias?

Vejamos então:

É a seguinte a matéria de facto provada:


1- O arguido AA casou em 26/06/1982 com BB, nascida em 11/12/1957 e, dessa relação, nasceram dois filhos: TF e SG , de 24 e 16 anos, respectivamente.
2- O casal residia, juntamente com os filhos, na Praceta ..., nº. 00-C, 1º Esqº., no Pragal, em Almada e, há cerca de dois ou três anos que o relacionamento entre o casal vinha a deteriorar-se, sendo frequentes as discussões entre o arguido AA e BB, motivados por divergências de ordem financeira.
3- Tais discussões decorriam em frente dos filhos, os quais tomavam o partido da mãe, o que contrariava o arguido.
4- No dia 17 de Setembro de 2007, entre as 19h30m e as 20h00m, o arguido foi buscar a sua esposa, BB, ao trabalho, como o fazia habitualmente, dirigindo-se ambos para a sua residência.
5- Nessa ocasião, o arguido encontrava-se revoltado com o facto de ter tomado conhecimento, dias antes, de que BB abrira uma conta bancária em seu nome e em nome dos filhos.
6- Chegados a casa, no interior da qual se encontravam os seus filhos, BB dirigiu-se para casa enquanto o arguido permaneceu no exterior desta.
7- Pouco tempo depois, o arguido chegou a casa, quando BB se encontrava no interior da cozinha a fazer o jantar, o arguido dirigiu-se ao quarto onde tinha guardada uma pistola, de marca “Star”, de calibre 6,35, que havia adquirido em data indeterminada, mas há cerca de dez anos.
8- De seguida, o arguido municiou e colocou o carregador na arma e dirigiu-se à cozinha onde se encontrava BB.
9- De imediato, o arguido aproximou-se de BB, de arma em punho e, quando se encontrava de frente para esta e a uma distância não superior a 2,5 metros da mesma, apontou a referida arma para a zona da cabeça e efectuou um disparo, atingindo-a.
10- Acto contínuo, o filho de ambos, TF, que se encontrava no seu quarto, alertado pelo estrondo do disparo, dirigiu-se, a correr, à cozinha, apercebendo-se, nesse momento, do sucedido, ao ver a sua mãe inanimada, caída no chão.
11- Ao aperceber-se da presença do filho, o arguido apontou a arma na direcção do mesmo dizendo-lhe: “O culpado disto és tu!”.
12- De imediato, TF, horrorizado com o sucedido, e temendo pela sua vida, fugiu para o corredor.
13- Nesse momento, o arguido apontou, de novo, a arma na direcção da cabeça de BB, que já se encontrava inanimada, no chão, e efectuou um outro disparo.
14- Entretanto, TF regressou à cozinha e o arguido, de novo, ao aperceber-se da sua presença, apontou-lhe a arma que trazia perseguindo o filho até ao quarto, para onde este fugiu e onde se refugiou.
15- De seguida, o arguido regressou à cozinha, apontou, de novo, a arma na direcção do corpo caído de BB e efectuou um terceiro disparo.
16- Acto contínuo, TF regressou à cozinha e para tentar tirar a arma da mão do arguido, saltou por cima deste, caindo ambos, de joelhos, no chão.
17- Após ter agarrado o arguido, TF não logrou conseguir tirar-lhe a arma, pelo que optou por fugir para o corredor.
18- Acto contínuo, o arguido, que se encontrava na cozinha, apontou, de novo, a arma na direcção do corpo de BB, que se encontrava inanimada e caída no chão, e efectuou um quarto disparo.
19- O arguido, com os disparos efectuados e referidos em 13, 15 e 18 dos factos provados logrou atingir, por mais duas vezes, BB, na região frontal.
20- De seguida, o arguido saiu de casa, vindo a deslocar-se às instalações da Divisão de Almada da P.S.P., no Pragal, onde declarou ter praticado os factos e entregou a arma que tinha na sua posse.
21- Entretanto, BB foi socorrida no local por equipa de emergência médica, alertada por chamada telefónica efectuada por TF.
22- Transportada para o Hospital Garcia de Orta, onde chegou cerca das 21h10m, apresentava-se em estado comatoso, com hemorragia incontrolável.
23- Não obstante terem-lhe sido ministrados os necessários cuidados médicos, BB veio a sucumbir às graves lesões sofridas, após paragem cárdio-respiratória.
24- Em resultado dos disparos efectuados pelo arguido, BB foi atingida por três projécteis, que lhe causaram múltiplas feridas ao nível da região cervical superior, faces direita e esquerda, submentiona e região mastoideia, hemorragia incontrolável ao nível da orofaringe, hematoma perio-orbitário esquerdo e choque hipovolémico, causando infiltração epicraniana na região frontal esquerda, fractura do rochedo direito, fractura multi-esquirolosa dos ossos da região malar esquerda e laceração dos vasos do pescoço na sua porção superior, lesões estas descritas no relatório de autópsia, junto a fls. 166 e 167 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido
25- A lesão traumática dos vasos do pescoço, referidas em 24 dos factos provados e sofridas por BB, em consequência do impacto dos projécteis que a atingiram, foram causa directa, necessária e exclusiva da sua morte, a qual ocorreu, cerca da 01h50m do dia 18 de Setembro de 2007.
26- Ao apontar e disparar, a uma distância não superior a 2,5 metros, a pistola contra BB, o arguido previu e quis que os projécteis disparados atingissem a vítima em órgãos vitais que provocassem a sua morte.
27- A pistola utilizada pelo arguido não estava manifestada nem registada como o arguido bem o sabia.
28- O arguido não era titular de licença de uso e porte de arma e sabia que, nessas condições, não lhe era permitida a detenção da respectiva pistola.
29- O arguido agiu, em todas as descritas circunstâncias, de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas respectivas condutas são proibidas e punidas por lei.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes TF e SG.
30- A vítima, BB é mãe de TF e de SG , sendo estes solteiros.
31- BB nasceu em 11/12/1957, tendo, à data do seu falecimento, 49 anos de idade.
32- A vítima nutria afecto e carinho profundos pelos seus filhos TF e SF, sentindo estes - que, à data do falecimento da mãe tinham, respectivamente, 24 e 15 anos de idade -, a falta da mãe, sofrendo profundo desgosto, em consequência da morte desta, por manterem grande afecto e carinho pela mãe.
33- BB era uma mulher saudável, trabalhadora e cuidava da casa e da alimentação, diariamente, zelando pelo bem estar da família a quem se dedicava inteiramente, sendo extremamente dedicada e carinhosa para com os seus filhos.
34- Trabalhava como empregada doméstica auferindo mensalmente a quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta Euros).
35- O arguido/demandado trabalhava como pedreiro auferindo um vencimento que rondava os € 700,00 (setecentos Euros) mensais e contribuía para as despesas da casa com parte desse valor.
36- BB apercebeu-se de toda a actuação do arguido/demandado a apontar-lhe a pistola e a disparar, apercebeu-se da intenção deste em lhe tirar a vida e sentiu o impacto de, pelo menos, o primeiro projéctil que foi contra si deflagrado, circunstâncias estas que lhe causaram sofrimento.
37- O demandante TF estava em casa quando o arguido/demandado deflagrou os disparos com arma de fogo contra a sua mãe, apercebendo-se do sucedido desde o primeiro disparo.
38- Durante todo o tempo, TF sabia que a sua mãe precisava de socorro e, com a conduta supra descrita do arguido/demandado, seu pai, ficou impossibilitado de a prestar, o que lhe causou profundo desgosto e sofrimento.
39- TF tinha uma relação muito próxima com a sua mãe e, em consequência da morte desta, perdeu o sono, o apetite, anda triste e chora frequentemente.
40- TF, devido ao seu estado emocional, teve apoio de um psicólogo.
41- Este demandante despendeu a suportou as despesas com o funeral de sua mãe, BB, que ascenderam a € 2 696,00 (dois mil seiscentos e noventa e seis Euros).
42- A demandante SG, à data, com 15 anos de idade, também estava em casa quando ocorreram os factos e apercebeu-se do sucedido e, juntamente com o irmão, após o arguido/demandado, se ausentar, tentou socorrer a mãe, virando-a para cima para que pudesse respirar e viu a gravidade das lesões que apresentava, o que lhe causou grande desgosto e sofrimento.
43- Em consequência da conduta do arguido e da perda da sua mãe, SG ficou com sentimentos de medo e insegurança, fecha as portas e janelas, perdeu o sono e o apetite e chora frequentemente.
44- Também esta demandante é assistida por um psicólogo, por forma a tentar ultrapassar os medos e os traumas resultantes da situação.
45- Esta demandante teve que sair da escola que frequentava, mudou-se para Coimbra, para habitar com os tios, onde reside actualmente.
46- Em consequência destas mudanças, a demandante perdeu amigos, contactos, rotinas e perdeu para sempre o apoio e o carinho da sua mãe, com quem tinha um relacionamento muito próximo de amor e de afecto.
47- Está matriculada no 9º ano de escolaridade e necessita de manuais e material escolar, no que despende anualmente uma média de € 400,00 (quatrocentos Euros).
48- Com vestuário, calçado e alimentação esta demandante gasta, em média, cerca de € 1 800,00 (mil e oitocentos Euros) por ano.

Factos atinentes às condições pessoais do arguido e antecedentes criminais
49- O arguido é viúvo e, à data dos factos, vivia juntamente com a sua entretanto falecida esposa e dois filhos.
50- O arguido é iletrado e, antes de ter sido preso preventivamente, exercia a profissão de pedreiro, na qual auferia cerca de € 700,00 (setecentos Euros) por mês.
51- O arguido revela um percurso de vida cujo estilo de vida e comportamento se tem vindo a pautar pela adesão aos normativos sociais e jurídicos.
52- A nível interpessoal é uma pessoa introvertida, passiva e com dificuldades em expressar os seus problemas internos.
53- Apresenta, ao nível cognitivo, um funcionamento intelectual global de nível médio, sem indicadores de deterioração mental ou de deterioração mnésica, apresentando, todavia, dificuldades na focalização da atenção de grau moderado.
54- Apresenta, ao nível da personalidade, traços ou características anti-socais, ansiosos e impulsividade, que determinam uma personalidade de estrutura borderline, com característica limite.
55- Denota um fraco investimento no contacto e identificação com os outros, dificuldades relacionais na gestão de conflitos, estabelecendo relações de forma superficial, sendo o modo comum de relacionamento o confronto e a rivalidade, factores estes que comprometem a sua socialização.
56- Apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio e na contenção das pulsões, criando a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e de stress.
57- Não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais ao arguido.
58- O arguido é considerado, no seu círculo de amigos, como uma pessoa pacata, trabalhadora e educada.

B) SÃO OS SEGUINTES OS FACTOS NÃO PROVADOS

A - que, antes da actuação do arguido tida como provada, BB disse a AA que “este devia ter desaparecido de casa há mais tempo” e “que não iria mais fazer-lhe o comer ou lavar-lhe a roupa” e que ele “devia sair de casa para que esta refizesse a vida com outra pessoa”;
B - que o arguido, no momento inicial, em que se aproxima da sua esposa, BB, quando esta se encontrava na cozinha, efectuou dois disparos sucessivos;
C - que todos os quatro disparos efectuados pelo arguido com a arma de fogo atingiram corporalmente BB;
D – que BB sentiu o impacto de todos os projécteis que foram contra si deflagrados e que sofreu fortes dores durante o período de tempo que decorreu desde que foi atingida pelos projécteis até aquele em que veio a falecer;
E - que o arguido não teve consciência do acto que praticava porque se encontrava num estado de exaltação que lhe retirou o domínio da sua capacidade de ajuizar o desvalor da sua conduta e das consequências que dela adviriam;
F – que a família era para o arguido todo o seu projecto de vida, sem a qual não vislumbrava hipótese de continuar a viver;
G – que BB, dias antes do sucedido, levantou todo o dinheiro existente na conta conjunta de ambos e abriu uma nova conta, só em seu nome, para depositar o referido dinheiro, ficando o arguido com a certeza de que a sua mulher o traía com outro homem.

C) A FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL (MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO) é a seguinte:

A convicção do tribunal quanto aos factos provados formou-se com base na globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e de acordo com a livre convicção que o tribunal formou sobre a mesma, sempre tendo em atenção as regras da experiência comum, e atendendo-se à prova pericial, documental e oral que foi produzida, aferindo-se, quanto a esta, da razão de ciência e da isenção de cada um dos depoimentos prestados.
Concretizando.
O arguido prestou declarações, admitindo parte dos factos tido como provados. Declarou, em síntese, e designadamente, que residia juntamente com a esposa e dois filhos, na residência indicada nos autos e que o relacionamento entre o casal vinha a deteriorar-se, há cerca de dois ou três anos, não existindo já qualquer contacto íntimo com a esposa, vivendo desconfiado de que esta o traía. Que, na noite que antecedeu a prática dos factos, discutiu com a esposa por questões relacionadas com dinheiro, que se prendiam, designadamente, com o facto de, em Agosto de 2007, ter tomado conhecimento de que esta havia levantado o dinheiro da conta bancária conjunta, sendo a esposa quem geria o orçamento familiar. No dia dos factos, foi buscar a sua esposa ao trabalho, como o fazia habitualmente e, quando chegaram a casa, e no momento em que a esposa se encontrava a preparar o jantar, esta disse-lhe que era a última vez que preparava a refeição para o arguido, razão pela qual, sem saber o que lhe passou pela cabeça, foi ao quarto buscar uma arma que já possuía há cerca de dez anos, regressou à cozinha e, encontrando-se a esposa de frente para si, a uma distância de cerca de 2,5 metros, efectuou, pelo menos, três disparos, sendo todos eles seguidos. Declarou ainda que os seus filhos encontravam-se em casa e que o seu filho TF dirigiu-se à cozinha e disse-lhe para “não fazer aquilo”, ao que o arguido, que já tinha a arma no bolso lhe disse que o filho era o culpado do sucedido. Mais declarou não saber o que lhe passou pela cabeça e não querer matar a esposa.
Para além das declarações do arguido o Tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos provados, no depoimento seguro, consistente, lógico e coerente da testemunha TF que, de forma sentida, e revivendo os factos por si presenciados, descreveu os mesmos ao Tribunal da forma como resultaram assentes.
Declarou, em síntese, que era a sua mãe quem geria o dinheiro que o casal auferia e que, há já algum tempo que o arguido deixou de contribuir para as despesas da casa, tendo o mesmo hábitos de consumo excessivo de álcool e tabaco. A sua mãe trabalhava diariamente, mesmo aos fins de semana, e procurava esconder o dinheiro do arguido para que este não o gastasse e, na 6ª feira que antecedeu os factos, a sua mãe abriu uma conta bancária, colocando os filhos como segundos titulares, para concretizar um plano de poupança com o dinheiro por si auferido durante os fins de semana.
Declarou ainda que, sobretudo no fim do mês, eram frequentes as discussões entre o casal, caracterizando o seu pai como um pai ausente, que não dava atenção aos filhos nem lhes tinha respeito.
Na noite dos acontecimentos, descreveu, da forma como resultou provada, a actuação do arguido, designadamente, a sequência dos disparos por este efectuados – referindo, designadamente, que, após o primeiro disparo, quando a testemunha chegou à cozinha, viu a sua mãe inanimada, no chão, e o arguido aos pés da mesma, com a arma apontada - , bem como a perseguição do arguido contra a sua pessoa sob a ameaça da arma. Declarou que o arguido actuou de uma forma muito fria e muito calma, referindo que não se apercebeu de qualquer discussão entre os seus pais, nos momentos imediatamente anteriores aos acontecimentos, e que, se a mesma tivesse ocorrido, certamente que a testemunha se teria apercebido.
Fazendo uma apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento da testemunha TF, que apresentaram versões dos acontecimentos não totalmente concordantes, o Tribunal deu credibilidade ao depoimento da referida testemunha que, de forma segura, sentida e consistente, descreveu os factos por si presenciados, deles revelando conhecimento directo, apresentando um discurso perfeitamente lógico e coerente.
O arguido, admitindo os factos cuja prática não podia negar, apresentou um discurso desculpabilizante que não encontrou qualquer suporte na restante prova produzida.
A convicção do tribunal quanto à pistola utilizada pelo arguido, usada no cometimento dos factos, assentou no depoimento da testemunha Nuno ..., agente da P.S.P. que foi abordado pelo arguido na Esquadra, quando este ali se apresentou, levando consigo a referida arma e que procedeu à apreensão da mesma, documentada no auto de apreensão junto a fls. 8 dos autos, conjugado com o teor da informação junta a fls. 85 dois autos.
O número de projécteis com que BB foi atingida, as consequências sofridas e o nexo de causalidade entre estas e a morte, provaram-se com base, por um lado, no teor do depoimento da testemunha TF que, de forma segura, declarou que, após o primeiro disparo, viu a sua mãe já estendida no chão e inanimada, e, por outro lado, no teor dos elementos clínicos juntos a fls. 2, 147 a 159, bem como no teor do relatório de autópsia junto a fls. 166 e 167 dos autos, do qual resulta que, no corpo da vítima, ficaram alojados três projécteis, estando um na face externa do rochedo direito, outro, fragmentado na face lateral esquerda do pescoço e um terceiro na região etmoidal. Para prova da data do óbito da vítima BB foi considerado o teor do documento junto a fls. 146 dos autos.
Foram igualmente relevantes para a convicção do Tribunal o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 120 dos autos (fotografias do local dos factos) e do relatório pericial junto a fls. 220 e 221 dos autos.
A prova dos factos atinentes ao dolo do arguido, fez-se a partir da análise do conjunto da prova produzida, em confronto com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da actuação desenvolvida pelo arguido e das circunstâncias em que agiu, designadamente, tendo em conta a circunstância de utilizar uma arma de fogo e o facto de o arguido ter efectuado quatro disparos em direcção da cabeça da vítima, atingindo-a a uma distância não superior a 2,5 metros da mesma, pelo que, mais do que prever como possível que os projécteis disparados pudessem atingir a vítima e causar-lhe a morte, quis, o arguido, que os mesmos a atingissem, como atingiram, por forma a tira-lhe a vida, como tirou. Com efeito, sendo o dolo um elemento de índole subjectiva, que pertence ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida, cabendo ao julgador – socorrendo-se, nomeadamente, das regras da experiência comum da vida, daquilo que constitui o princípio da normalidade – retirar desse contexto a intenção por ele revelada e a si subjacente. Foi esta a operação que o tribunal realizou.
Relativamente aos factos referentes ao pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes TF e SF Fernandes, a sua prova assentou nas declarações do demandante TF e ainda das testemunhas Cristina .... (tia dos demandantes que tem a cargo a menor SF Fernandes, e que relatou a dedicação de BB aos seus filhos, o estado emocional desta demandante e do seu irmão, desde os acontecimentos), Paula .... (pessoa para quem a vítima trabalhava e que confirmou a dedicação desta ao trabalho e o seu vencimento mensal), Maria ... (amiga da vítima e que relatou a relação próxima que esta tinha com os filhos), Isabel ...., Gina ..., Luís ...., Maria F... He... (testemunhas que privam com os demandantes e que confirmaram o sofrimento, os traumas e as mágoas por eles sentidas após os factos), bem como nas regras da experiência comum, em face da situação vivenciada pela vítima – sendo natural que esta, vendo o arguido a apontar-lhe a pistola e a disparar, apercebeu-se da intenção deste em lhe tirar a vida, sendo notório que, face a tais circunstâncias, após ser alvejada, a vítima representou a morte e sofreu com isso - e pelos demandantes, e também no teor do relatório médico de fls. 466 e 467, e ainda no teor das certidões de nascimento e de casamento, onde consta o averbamento do óbito, juntas a fls. 101 e 163, da habilitação de herdeiros de fls. 462 a 465 e dos documentos juntos a fls. 286 a 291 e 468 dos autos. Relativamente ao montante médio das despesas da demandante SF em material escolar, alimentação e vestuário, o Tribunal igualmente socorreu-se das regras da experiência comum e da normalidade da vida, tendo em conta o montante referido e o preço médio de tais bens.
Relativamente aos factos referentes às condições de vida e aos aspectos da personalidade do arguido, os mesmos provaram-se a partir a partir das suas declarações e nos depoimentos das testemunhas Maria .... (médica psiquiatra que elaborou o relatório médico junto a fls. 508 dos autos, confirmando o teor do mesmo e concretizando que a sua elaboração teve por base duas sessões com a duração de uma hora cada, realizadas com o arguido), José ..., Luís ..., Isidoro ... e Joaquim ..., colegas de trabalho do arguido, bem como no teor do relatório social do arguido, junto a fls. 471 a 476 e no teor do relatório pericial psicológico junto a fls. 516 a 535).
Por último, a ausência de antecedentes criminais do arguido mostra-se certificada a fls. 327.

Quanto aos factos não provados, não ficou o tribunal com a convicção sobre a sua veracidade, ou porque não foi produzida qualquer prova convincente que os confirmasse - tal sucedeu com os factos vertidos nas alíneas A e D, tendo em consideração, nomeadamente, as declarações da testemunha TF, que mereceu credibilidade, e que referiu que a sua mãe se encontrava a fazer o jantar para toda a família e que não se apercebeu de qualquer discussão entre o casal, tendo, inclusivamente, estado, momentos antes, a conversar com a sua mãe que lhe disse não ter trocado qualquer palavra com o arguido, no trajecto do seu trabalho para a sua residência (facto A), bem como que, quando ouviu o primeiro disparo foi à cozinha e viu a sua mãe inanimada no chão, sendo que não foi produzida qualquer outra prova da qual resultasse que BB ficou consciente após esse disparo (facto D) -, ou porque da prova produzida, no seu conjunto e após a respectiva análise crítica, infirmou-os - tal sucedeu com os factos constantes das alíneas B (infirmado pelo depoimento consistente da testemunha TF supra referido), C (infirmado pelo teor do relatório de autópsia junto aos autos), E (infirmado pelo teor do relatório pericial psicológico junto aos autos e pelas próprias declarações do arguido e do depoimento de TF, do qual resultou que os disparos não foram sucessivos e imediatos, tendo o arguido, inclusivamente, perseguido o filho com a pistola que empunhava, tendo aquele, nesse espaço de tempo, possibilidade de reflectir sobre a sua conduta, optando, ainda assim, por efectuar mais três disparos em direcção da sua esposa que se encontrava a agonizar, caída no chão. Não colhe a versão do arguido, claramente defensiva e interessada, quando nas suas declarações afirmou que não tinha intenção de matar a esposa e perdeu o controle sobre si mesmo, dado desconfiar que a esposa o traía. Ora, esta versão carece de lógica em face das posições e da distância em que se encontrava o arguido de BB, sendo que, nesta parte, o arguido admite que estava a cerca de 2,5 metros quando disparou, Por outro lado, resultou do depoimento da testemunha TF, que a sua mãe era dedicada à família, excluindo qualquer possibilidade de esta ter algum relacionamento extra-conjugal, sendo a preocupação da mesma providenciar pelo bem estar e pelo sustento da família e colmatar a ausência e o distanciamento afectivo do seu pai, aqui arguido. No que toca ao estado psíquico do arguido, é entendimento deste Tribunal que, apesar das circunstâncias fácticas apuradas relativamente aos conflitos familiares do arguido e do seu estado de impulsividade, tais circunstâncias, analisadas no seu conjunto em conexão com a ocorrência da morte de BB, não convencem sobre a alegada perda de juízo crítico ou afectação da capacidade de discernimento do arguido, circunstâncias que igualmente nem sequer vêm referenciadas no relatório médico-psiquiátrico dos autos), F e G (infirmado pelo depoimento da testemunha TF (alínea G) e pelas regras da experiência comum e da normalidade da vida, perante a actuação do arguido (alínea F).

OS FACTOS E O DIREITO:

Cumpre agora apreciar e decidir as questões suscitadas neste recurso e atrás elencadas.

1ª Questão: A decisão recorrida padece dos vícios de erro notório na apreciação da prova ou de contradição insanável na fundamentação?

Como decorre do artigo 412º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido, que se define o âmbito do recurso.

É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

E o conhecimento oficioso pelo STJ verifica-se por duas vias: uma primeira que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º-2 do CPP; e outra que poderá verificar-se em virtude de nulidade de decisão, nos termos do estatuído no artigo 379º-2 do mesmo diploma legal.

Por outro lado, definindo os poderes de cognição deste STJ, estatui o artigo 434º do citado CPP que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º-2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Na verdade, enquanto antes de 01.01.1999 estava estabelecido um sistema de “revista ampliada”, após a reforma da Lei 59/98, de 25 de Agosto, deixou de ser possível recorrer para o STJ com fundamento da existência de qualquer dos vícios referidos nas várias alíneas do artigo 410º-2 do CPP.

Anteriormente, o Supremo tinha poderes de intromissão em aspectos fácticos, mesmo nos casos em que o conhecimento se restringia a matéria de direito, embora de forma mitigada pois o reexame da matéria de facto apenas poderia ter lugar através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e podendo o recorrente invocar como fundamento do recurso os vícios referidos.

Após a reforma de 1998, o STJ pode ainda conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP, não a pedido do recorrente, isto é, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios – cfr. Acs. deste STJ de 12.09.2007 (que aqui seguimos de perto) in Proc.2583/07 – 3ª; de 17.01.2001, de 25.01.2001, de 22.03.2001, in CJSTJ 2001, I, pág 210, 222 e 257; de 04.10.2001 in CJSTJ 2001, III, 182, de 24.03.2003 in CJSTJ 2003, I, 236, de 27.05.2004 in CJSTJ 2004, II, 209, de 30.03.2005 in Proc. 136/05 – 3ª, de 03.05.2006 in Processos 557/06 e 1047/06, ambos da 3ª secção, de 20.12.2006 in CJSTJ 2006, III, 248, de 04.01.2007 in Proc. 2675/06 – 3ª, de 08.02.2007 in Proc. 159/07 – 5ª, de 15.02.2007 in Processos 15/07 e 513/07, ambos da 5ª secção, de 21.02.2007 in Proc. 260/07 – 3ª, de 02.05.2007 in Processos 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3ª secção e ainda Simas Santos e Leal Henriques, CPP anotado, 2ª edição, II volume, pág. 967, onde se refere: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do artigo 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.

Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ, de 19.09.1995, in DR I Série-A, de 28.12.1995 e BMJ 450, 71 (acórdão 7/95) que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º-2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

Como se disse, o arguido/recorrente invoca, na respectiva motivação e conclusões (designadamente a constante do número 1) a violação do disposto no artigo 410º-2 do CPP ou seja, neste segmento, invocou os vícios da matéria de facto – erro notório na apreciação da prova e contradição insanável na fundamentação - previstos naquele normativo.

Porém, como decorre claramente do atrás se expôs, o recurso para este Supremo Tribunal é restrito á matéria de direito, embora o STJ possa conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP nos termos (supra) referidos: por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

Ora, da análise do acórdão recorrido, do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo (designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo, designadamente em julgamento ou, como diz Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 339 … vedada a consulta a outros elementos do processo, nem é possível a consideração de quaisquer outros elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida. …”) não se indicia a existência de qualquer um daqueles vícios.

Na verdade, daquele texto considerado nos termos referidos e indicados no citado artigo 410º-2 do CPP, não se indicia quer a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, quer erro notório na apreciação das provas ou seja erro de que todos se apercebam directamente ou que a decisão esteja eivada de clara contradição insanável na fundamentação.

Isto é, da decisão recorrida, considerada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum não se indicia erro grosseiro na decisão da matéria de facto, erro patente, que não escapa à observação do homem de formação média (neste sentido, cfr. entre muitos outros, os Acs. deste STJ de 06.04.1994 in CJSTJ, II, Tomo 2, pág. 186; de 17.12.1997 in BMJ 472, pág. 407; de 03.06.98 in Proc. 277/98 e de 15.07.2004 in Proc. 2150/04 – 5ª).

Do texto da decisão recorrida considerada nos termos referidos não resulta de forma evidente uma conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou.

Aliás, resulta claro da motivação do recorrente que este afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre certos factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo-se o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP, sendo ainda certo que, no caso em apreço, está bem explícita na decisão recorrida a forma como o Tribunal adquiriu e formou a sua convicção que está bem fundamentada, objectivada e logicamente motivada.

Como resulta do texto da decisão recorrida, o tribunal criou e fundou a sua convicção nas provas produzidas em audiência, provas essas que enumera e cuja análise crítica faz e valora quer em função do seu valor legal probatório (caso da prova pericial) quer das regras normais da experiência e da livre convicção (do tribunal).

O raciocínio lógico que serviu para o tribunal formar a sua convicção consta da motivação, de forma clara e sem contradições, tendo o tribunal concluído que o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas não eram permitidas e eram punidas por lei (não tendo concluído, como alega o recorrente, que o arguido “agiu de foram calma, sem qualquer constrangimento, perturbação ou emoção e com perfeito domínio da vontade e do entendimento”).

Mas, como bem refere o acórdão recorrido, em qualquer dos casos “ …Não está em contradição com o facto provado, com base na perícia feita à personalidade do arguido, de que o arguido apresenta ao nível da personalidade, traços ou características anti-sociais, ansiosos e impulsividade que determinam uma personalidade de estrutura “borderline”, com característica limite, não só porque da referida perícia não resulta, como pretende o recorrente, um qualquer juízo valorativo sobre a maior ou menor imputabilidade do arguido, nunca posta em causa nos autos, como dela também não resulta que no dia dos factos o arguido tenha agido dominado pela impulsividade ou ansiedade, que é característica de personalidades que padecem de transtorno “borderline”, que podem nem se reflectir na prática de ilícitos. …”.

Ora, apesar de o arguido ter uma personalidade de estrutura borderline não significa que, aquando da prática dos factos dados como provados não tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e consciente pois das características daquele tipo de personalidade (borderline) por si só, não resulta sempre e desde logo, uma diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente.

Daí que inexista qualquer erro notório na apreciação da prova ao considerar-se – por um lado - que o arguido agiu com dolo directo e intenso, sendo a sua actuação reveladora de uma atitude persistente e fria e – por outro lado – considerar-se que o arguido apresenta, ao nível da personalidade, uma personalidade de estrutura “borderline”, com característica limite e que apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio e na contenção de pulsões, criando a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e stress.

E daí que inexista também qualquer contradição entre tais factos pois, como se disse, o facto de o arguido padecer de um transtorno de personalidade tipo “borderline” não impede que, aquando da prática dos factos dados como provados, tivesse capacidade para agir como agiu e para determinar a sua conduta de forma livre e consciente pois daquele tipo de personalidade não resulta sempre e desde logo, uma diminuição da capacidade de discernimento e de determinação do agente.

Por isso, e não estando provados outros factos que o impusessem, o facto de o arguido sofrer daquele “transtorno” de personalidade não implica que o tribunal tivesse de concluir – como pretende o recorrente – de que (aquele) agiu “de forma impulsiva, sem completo domínio da vontade e com perturbação acentuada do comportamento devido á doença de que padece”, para concluir pela existência de uma imputabilidade diminuída.

Por isso, dos factos provados e não provados não resulta qualquer contradição entre si ou entre eles e a respectiva fundamentação, sendo correcta a conclusão extraída dos factos provados, pelo tribunal a quo, de que o arguido é responsável criminalmente.

Por isso também, inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova.

Assim, concluímos pela inexistência, no douto acórdão recorrido, dos vícios previstos no artigo 410º-2 do CPP, designadamente os alegados pelo recorrente.

E, porque, como se disse, o recurso para este Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, não sendo possível recorrer-se para o STJ com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, o recurso não é admissível com este fundamento.

Por isso, neste segmento, o recurso é manifestamente improcedente, pelo que terá de ser rejeitado.


E não se justifica a renovação da prova, no tribunal “a quo”, com elaboração de novos relatórios psiquiátricos e audição dos respectivos peritos para que se esclareça a medida da imputabilidade do arguido, como este pretende (conclusão 1ª, in fine).

É que, do relatório pericial não resulta – como pretende o recorrente – que o mesmo, aquando da prática dos factos, agiu sem perfeito domínio da sua capacidade de discernimento e de determinação, ou na sequência de um comportamento impulsivo.

Do relatório pericial psicológico do arguidofls. 516 a 535 dos autos, cujas conclusões constam da matéria de facto provada no acórdão recorridoconsta, além do mais, o seguinte:
… 9. CONCLUSÕES
9.1. AA apresenta, à data da observação, um colorido emocional hostil, com uma certa angústia aparentemente reactiva à sua situação de reclusão e consciência dos factos por si praticados e relatados. Os factos pelos quais se encontra acusado são descritos de uma forma defensiva, com juízo crítico, revelando uma apreciação com objectividade simultaneamente uma capacidade de elaboração pessoal adequada.
9.2 Ao nível cognitivo o examinado apresenta um funcionamento intelectual global de nível médio, sem indicadores de deterioração mental ou de deterioração mnésica, apresentando todavia dificuldades na focalização da atenção de grau moderado, eventualmente compatível com a situação de tensão perante a realização de exame pericial.
9.3. Da avaliação psicológica realizada sobressai ainda uma organização da Personalidade, entendida aqui como Maneira de Ser, com traços ou características anti-sociais, ansiosos, e impulsividade que nos remete para uma estrutura da personalidade do tipo borderline / limite.
9.4. A socialização encontra-se comprometida, uma vez que se verifica um fraco investimento no contacto e identificação com os outros, dificuldades relacionais na gestão de conflitos. As relações estabelecidas, são-no de forma superficial, sendo o modo comum de relacionamento o confronto e rivalidade.
9.5. Em relação à perigosidade, e tendo em conta que nos encontramos perante uma Personalidade/Maneira de Ser que apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio, e na contenção das pulsões, somos da opinião de que de facto, existe independentemente de quadro psicopatológico, a possibilidade de vir a ocorrer uma desorganização e comportamentos impulsivos, nomeadamente em circunstâncias potenciadoras de tensão e stress”.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV-TR) - citado pelo MºPº na sua resposta - define o transtorno de personalidade “borderline” como “um padrão inerente de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, auto-imagem e afectos e acentuada impulsividade”.
A personalidade “borderline” surge classificada dentro do grupo dos transtornos de personalidades emocionalmente instáveis.
“O quadro engloba algumas manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, mas em geral os pacientes não saíram totalmente do estado considerado normal para serem enquadrados em tais classificações. A síndrome “borderline” é, portanto, um mosaico de sintomas menos acentuados de diversos transtornos” (cfr. Arch Gen Psychiatry, 2001 58(6): 590-596 – The Prevalence of Personality Disorders in a Community Sample – Torgersen Svenn; in www.ciênciasecognicao.org, igualmente citado pelo MºPº na referida peça processual).
O mesmo DSM – IV, 4ª Edição, XXIII e XXIV (citado pelo ilustre PGA neste STJ, no seu douto Parecer) - a propósito da utilização do diagnóstico clínico de uma perturbação mental para fins forenses - ensina que “Na maior parte das situações, o diagnóstico clínico de uma perturbação mental … não é suficiente para estabelecer a existência para fins legais, de uma «perturbação mental», uma «incapacidade mental», uma «doença mental» ou um «defeito mental». Na determinação de quando um sujeito está dentro de uma determinada norma legal específica (por exemplo, competência, responsabilidade criminal ou incapacidade), é geralmente necessária informação adicional para além da contida no diagnóstico … . Isto pode incluir informação sobre incapacidades funcionais individuais e como estas incapacidades afectam aquelas capacidades particulares postas em questão. É precisamente porque incapacidades, capacidades e diminuições das capacidades variam amplamente dentro de cada categoria diagnóstica que a indicação de um diagnóstico particular não implica um nível específico de diminuição da capacidade ou incapacidade” (sublinhado nosso).
Ora, como resulta claro do teor da motivação deste recurso, o recorrente não põe em causa a sua imputabilidade criminal.

O que entende é que sofrerá de imputabilidade diminuída pois, segundo ele, agiu “de forma impulsiva, sem completo domínio da vontade e com perturbação acentuada do comportamento devido á doença de que padece”.

Só que, como refere Figueiredo Dias in “Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, ed. CEJ, pág. 77 “não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo, parece, porém, não querer obstar à doutrina – também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado, de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isto sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, vg em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos”.

Sendo assim, como entendemos que é, mesmo que se provasse a existência de imputabilidade diminuída, esta não justificaria uma atenuação especial da pena, face á perigosidade do arguido (constante das conclusões 9.4 e 9.5 da perícia de fls. 535 e do quadro global da sua conduta descrita no acórdão do tribunal 2ª quo”) e à especial censurabilidade e perversidade.
Aliás, a especial censurabilidade e a especial diminuição da culpa são inconciliáveis (neste sentido cfr. Ac. STJ de 02.05.1996 in Proc. 70/96).

A decisão recorrida, face a todos os factos provados, considerou que o arguido agiu com especial censurabilidade e perversidade e revelou insensibilidade perante a vida humana da esposa e a probabilidade – face ao seu quadro psicológico – de poder vir a praticar factos idênticos, razões suficientes para não permitirem uma atenuação especial da pena, antes justificando, em sede de determinação da pena, uma ponderação sobre as exigências de prevenção especial que se mostram acrescidas (neste sentido, cfr. Ac. STJ de 30.04.2008 in Proc 08P1220 in www.dgsi.pt).

Por isso, como atrás se disse, não se justifica a renovação da prova, no tribunal “a quo”, com elaboração de novos relatórios psiquiátricos e audição dos respectivos peritos para que se esclareça a medida da imputabilidade do arguido.

O recurso improcede, pois, neste segmento.

2ª Questão: Qualificação jurídica dos factos provados: crime de homicídio qualificado (como entenderam as instâncias) ou crime de homicídio simples (como entende o arguido/recorrente)?

No acórdão recorrido qualificaram-se os factos provados como integrando a prática de um crime de homicídio qualificado (p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131 e 132º-2-b) do CP).

E isto, porque se considerou que o crime foi cometido pelo arguido contra o (seu) cônjuge e a conduta daquele, face às circunstâncias concretas apuradas, revela especial censurabilidade e perversidade.

O recorrente, porém, entende que a factualidade provada não permite fazer aquele enquadramento jurídico, não podendo considerar-se que a conduta do arguido revele especial censurabilidade e perversidade pois agiu em estado de exaltação e padece de doença psiquiátrica que determina imputabilidade diminuída e reduz a culpa pelo que o crime que se mostra preenchido é o de homicídio simples (artigo 131º do CP).

Quid juris?

Para a qualificação do crime de homicídio, o legislador português combinou um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos chamados exemplos-padrão.

Assim, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “ especial censurabilidade ou perversidade “ do agente referida no nº1 do art. 132º do C. Penal; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2.

Elementos estes cuja verificação, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador.

Deste modo, devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º nº2 – neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, pag. 26.

Segundo defende o mesmo autor, in ob. cit., pag. 27, «muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º nº 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada».

E, a fls. 29, «o pensamento da lei é, na verdade, o de pretender imputar à “ especial censurabilidade “ aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “ perversidade “ aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas».

Assim, as circunstâncias agravantes qualificativas do artigo 132º do Código Penal, sendo, como são, elementos da culpa (e não do tipo legal de crime), não são de funcionamento automático (cfr. neste sentido também Teresa Serra in Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990, pág.60), pelo que pode verificar-se qualquer delas e, apesar disso, concluir-se que o agente não agiu com especial censurabilidade ou perversidade (neste sentido, cfr. Ac. STJ de 20.03.1985, BMJ 345, 248).

Portanto, uma vez que aquelas circunstâncias não operam automaticamente, é indispensável determinar se, no caso concreto, qualquer daquelas circunstâncias (que se verifique) preenche ou não o elemento qualificante da especial censurabilidade ou perversidade e justificam uma sanção que não cabe na moldura incriminadora do homicídio simples (cfr. Acs. STJ de 04.07.1996 in CJ Acs. STJ, IV, Tomo 2, pág. 222; e de 11.12.1997, BMJ 472, 154).

Importa, portanto, determinar se, no caso em apreço, a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade nos termos referidos no artigo 132º do CP.

As instâncias concluíram que sim pois consideraram que a factualidade provada integra a qualificativa da alínea b) do nº 2 do citado artigo 132º do Código Penal, atendendo não só ao facto de o agente “ter praticado o facto contra cônjuge” mas também atendendo à conduta global do mesmo agente/arguido.

A alínea b) do nº 2 do citado artigo 132º foi introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.

Esta nova circunstância qualificativa do homicídio é a relação conjugal ou análoga e justificar-se-á face à evolução legislativa que tem tido em vista as situações de violência doméstica e os maus tratos familiares.

No caso em análise, para além da vítima ser cônjuge do arguido, a conduta global do agente revela especial censurabilidade ou perversidade.

Na verdade, ficou provado que o arguido e a vítima tinham casado um com o outro em 26.06.1982, ou seja, há mais de 25 anos (à data da prática do crime).

Essa relação conjugal de tantos anos, impunha ao arguido tinha o especial dever de não ter atitudes violentas para com sua mulher, mãe dos seus dois filhos TF e SG, com 24 e 16 anos, respectivamente.

O arguido atingiu mortalmente a esposa, no interior da casa de habitação de ambos e dos filhos (casa de morada de família), numa ocasião em que sabia perfeitamente que ambos os filhos ali se encontravam e sabendo ainda que ambos eles sentiam grande afecto pela mãe.

Acresce que, quando o filho se aproximou dele, após o primeiro tiro, estando já a vítima agonizante, o arguido apontou-lhe a arma, culpando-o do sucedido, após o que desferiu um segundo tiro na vítima.

Após este segundo tiro, o arguido ainda disparou mais duas vezes sobre a vítima tendo, antes disso, perseguido o filho, de arma empunhada.

O filho apercebeu-se de toda a conduta do arguido e do estado da mãe.

O arguido fez os disparos de forma a garantir a morte de sua mulher e mãe dos seus filhos, sendo certo que a filha tinha apenas 15 anos de idade, em formação de personalidade, precisando muito do apoio e carinho da mãe.

O arguido bem sabia que após o primeiro disparo, a vítima ficou totalmente desprevenida e incapaz de se opor àquele tipo de agressão.

A descrita conduta do arguido – que agiu com manifesta superioridade em razão da arma - revela, não só completa insensibilidade, absoluta indiferença e manifesto desprezo e falta de respeito pela vida humana, mas também, uma especial censurabilidade perversidade.

Por isso, se conclui que se verifica agravante qualificativa referida na alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal e que os factos provados integram a prática de um homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º nº1 e 2 b) do C. Penal.

Daí que a qualificação jurídica dos factos provados, feita na decisão recorrida, não mereça censura.

Ou, como bem refere o Exmº PGA junto deste STJ, “não sendo questionada a imputabilidade do arguido, nem estando estabelecida uma relação directa entre a perturbação mental daquele e a reacção homicida, não merece censura a qualificação do homicídio”.

Razão por que improcede a segunda questão.

3ª Questão: A pena a aplicar e relativa ao crime de homicídio, não deveria ser superior a 15 anos de prisão (como pretende o recorrente atenta a confissão que fez dos factos, o arrependimento que considera ter sido demonstrado ao longo do julgamento, o facto de ter já 50 anos de idade, a ausência de antecedentes criminais e a doença do foro psíquico de que padece).

Assente a qualificação jurídica dos factos provados como integrando a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131 e 132º nºs 1 e 2-b), ambos do Código Penal, há que apreciar a medida da pena respectiva (pois, relativamente ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º-1-c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual o arguido também foi condenado, não é suscitada qualquer questão, designadamente quanto á qualificação e subsunção jurídica dos factos provados e quanto á medida da pena aplicada)

O crime de homicídio supra referido é punível, em abstracto, com pena de prisão de 12 a 25 anos.

Quanto a este crime foi aplicada a pena concreta de 19 anos de prisão.

Vejamos, então.

Actualmente, todos estão de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis.

Porém, há quem defenda que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista.

Outros ainda, distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa, estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção.

Mas a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum de pena, o recurso de revista seria inadequado.

Só assim não será – e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, p.ex, tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, pág.211; e Ac. deste STJ, 3ª Secção, in Proc. 2555/06).

Nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.

Daí que não haja pena sem culpa - nulla poena sine culpa.

Mas, por outro lado, a culpa constitui também o limite máximo da pena – (cfr. Ac STJ de 26.10.00 in Proc. 2528/00, desta 3ª Secção: “a culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura que funciona, a um tempo, como um fundamento e um limite inultrapassável da medida da pena”).

Isto mesmo resulta claro do estatuído no artigo 40º-2 do C.P.: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Além disso, como se disse, há que atentar nas exigências de prevenção, quer geral, quer especial.

Com o recurso à prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.

Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente delitivo em ordem a uma sua integração digna no meio social” (Cfr. Ac. desta 3ª Secção deste Supremo Tribunal, de 26.10.00, in processo nº 2528/00).

Citando Figueiredo Dias (obra supra citada, pág. 214) “ … a culpa e prevenção são, assim, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena”.

E, mais adiante (pág. 215) “ …a exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção …”.

A este respeito, é pertinente citar aqui o acórdão do STJ de 1/03/00, in processo nº 53/2000, desta 3ª Secção “ … a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, os seus limite mínimo e máximo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade da protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo, este logicamente não pode ser outro que não o mínimo da pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção … se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e, se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena legal aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social …”.

E é pertinente também referir o entendimento deste STJ, mesmo nos casos de imputabilidade diminuída (cfr., p. ex. Acs. STJ de 16.06.2005 in Proc. 1561/05 – 5ª e de 17.12.2005, in Proc. 2967/05 – 5ª): Se nos casos de imputabilidade diminuída, as conexões objectivas de sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e aquele deve, por isso, ser considerado imputável, então as qualidades especiais do seu carácter entram no objecto do juízo de culpa e por elas o agente tem de responder: se essas qualidades forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante elas fundamentarão uma agravação da culpa e um aumento da pena; se, pelo contrário, elas fizerem com que o facto se revele mais digno de tolerância e de aceitação jurídico-penal, estrá justificada uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena (sublinhado nosso).

Por seu turno, estatui o nº 2 do mesmo artigo 71º do CP que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Importa ter em atenção a moldura penal correspondente ao crime em questão, praticado pelo arguido/recorrente:

- 1 crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º-1 e 2-b), do C.P.: pena de prisão de 12 a 25 anos.

Por outro lado, importa também ter presente que, quanto à medida desta pena parcelar, a decisão recorrida refere expressamente:


… O arguido agiu, in casu, de forma deliberada, livre e consciente de serem os seus actos proibidos e das consequências dos mesmos para a ordem jurídica e social.
Na determinação da pena de prisão aplicada pelo crime de homicídio foram ponderadas pelo tribunal a quo todas as circunstâncias previstas no art.° 7P do C. Penal e foi fixada tal pena em 19 anos de prisão, portanto, 6 anos abaixo do seu limite máximo.
Tal como se considerou na decisão recorrida, o dolo do arguido, na modalidade de directo é intenso; o grau de ilicitude dos factos, é muito elevado, pelas circunstâncias em que o crime foi praticado - com arma de fogo a uma curta distância da vítima, com vários disparos efectua dos, estando a vítima totalmente desprotegida, no interior da casa de morada de família, onde se encontravam os filhos do casal, a confissão não foi total e é fraco o seu valor atenuativo e o arguido não demonstrou arrependimento, não tendo assim interiorizado a censurabilidade do seu acto.
Por outro lado, são fortíssimas as exigências de prevenção deste tipo de crime, a exigirem uma punição que reponha rapidamente a ordem jurídica violada e restabeleça a paz social e com isso a confiança dos cidadãos no sistema de justiça e prementes as exigências de prevenção especial posto que o arguido, sofrendo de um transtorno de personalidade, poderá ver em consequência dos factos e da rejeição pelos filhos, agravada a tendência, quer para o suicídio, muito comum neste tipo de patologias, quer para a prática de actos ilícitos semelhantes.
Por último, a culpa do arguido é, sem dúvida, acentuada, tanto mais que o arguido sabia que estava a tirar a vida à mãe dos seus filhos por quem estes nutriam um forte afecto, mas por outro lado sofre alguma atenuação, ainda que ligeira, em consequência do distúrbio de ordem psicológica de que padece.”.
Há, ainda que atentar que:

- O grau de ilicitude é muito elevado (o arguido disparou 4 tiros sobre a vítima, a curta distância, sendo que após o primeiro disparo já a vítima estava imobilizada e totalmente desprotegida);
- O modo de execução do crime foi gravoso, não podendo deixar de se ter presente a superioridade do arguido em razão da arma utilizada em relação à vítima;
- O dolo directo do arguido, apresentando-se, em todas as circunstâncias, com intensidade acentuada, sendo a sua actuação reveladora de uma atitude persistente, decidida e fria, e com absoluta indiferença pela vítima, ao insistir na sua intenção de garantir que lhe tiraria a vida;
- As condições pessoais do arguido que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas.
- Milita a favor do arguido a circunstância de não ter antecedentes criminais.
- Que o arguido apresentou um discurso desculpabilizante, evidenciador de uma incapacidade de auto-censura pelo seu comportamento delituoso.
Há ainda que ter presente que dos factos provados não consta a confissão do arguido. Na verdade, da leitura atenta da matéria de facto assente não se vê que ali conste que o arguido tenha confessado – total ou parcialmente – os factos.
Assim como não consta da mesma matéria de facto provada, o arrependimento do arguido.
Sendo assim – e ao contrário do pretendido pelo recorrente – é óbvio que não pode valorar-se qualquer daqueles factos.
É certo que quer na decisão recorrida, no segmento respeitante à determinação da medida da pena – citando ou remetendo para o acórdão da 1ª instância – refere-se expressa e designadamente que “ … a confissão não foi total e é fraco o seu valor atenuativo e o arguido não demonstrou arrependimento, não tendo assim interiorizado a censurabilidade do seu acto. …”.
Ora, não estando provados tais factos, não podem os mesmos relevar para efeitos da medida da pena.
Ponderando, pois, tudo quanto se deixou dito – designadamente a culpa do arguido, as exigências de prevenção especial e geral, a elevada ilicitude dos factos sobretudo por causa do modo de execução dos mesmos, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo (directo), a respectiva moldura penal abstracta, a personalidade do arguido manifestada nos factos, as suas condições pessoais e económicas e a ausência de antecedentes criminais consideramos um pouco excessiva a pena parcelar aplicada (de 19 anos de prisão), relativa ao crime de homicídio qualificado, considerando adequada e justa uma pena de 18 anos de prisão.

Por isso se altera essa pena parcelar, fixando-a em 18 anos de prisão (relativamente á pena respeitante ao crime de detenção ilegal de arma, como se disse, não é questionada nem a qualificação e subsunção jurídica dos factos provados nem a pena - parcelar – aplicada).

Relativamente á pena a fixar em cúmulo jurídico, há que ter em conta, no seu conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos dois crimes (no caso, agora, 19 anos de prisão) e, como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos dois referidos crimes (no caso, agora, 18 anos de prisão) – cfr. artigo 77º-2 do CP.

Ora, observando os critérios estabelecidos nos artigos 77º e 78º do Código Penal e ponderando os factos (provados) e a personalidade do arguido, julga-se adequada e justa, a pena única de 18 anos e 6 meses de prisão que, por isso, agora se aplica.

Assim, também neste segmento, o recurso procede em parte.

4ª Questão:

a) - Deveria ter sido descontado o montante recebido pelos demandantes por parte do Estado, a título de despesas de funeral?
b) - Nos danos patrimoniais relativos á demandante SF deverá considerar-se a idade de 18 anos e não a de 25 anos como consideraram as instâncias?
c) Quanto ao dano “morte”, a indemnização fixada (em 45 000,00 €) é exagerada devendo, por isso, ser reduzida para € 30.000,00?
d) E deve ser reduzida para € 15 000,00 a indemnização pelos danos morais dos demandantes?
a) - Começando por apreciar o primeiro aspecto referido (desconto do montante recebido a título de despesas de funeral, pelos demandantes, do Estado Português) diremos desde já e sem necessidade de outras considerações que não está provado que os demandantes civis tenham recebido do Estado Português qualquer quantia a título de despesas de funeral.

Tanto basta para que, por isso, não pudesse descontar-se qualquer montante que, diga-se, o recorrente nem sequer concretiza.

Acresce que, sendo embora sabido que o Estado Português paga certas quantias a título de despesas de funeral – direito abstractamente previsto - é necessário alegar e provar que, no caso concreto, os demandantes receberam efectivamente uma quantia para as despesas do funeral e qual o respectivo montante.

Ora o recorrente foi devida e oportunamente notificado para contestar os pedidos cíveis deduzidos e nada alegou quanto ao aspecto em causa, nem ofereceu qualquer prova nesse âmbito.

E, em julgamento, nenhuma prova foi feita de que qualquer dos demandantes civis tivesse recebido qualquer quantia do Estado, para pagamento de despesas do funeral.

Por isso, neste aspecto, o recurso não pode proceder.

b) – Passando à apreciação do segundo aspecto acima referido, diremos que não assiste razão ao recorrente.

Na verdade, quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm entendido que o direito a alimentos dos filhos em relação aos pais subsiste para além da maioridade e enquanto aqueles não completarem a sua formação (num prazo razoável).

Além disso, sendo sabido que o filho tem direito a alimentos dos pais – o que o recorrente não põe em causa – o artigo 2013º do Código Civil ao elencar as causas de cessação dessa obrigação alimentar, não prevê, como tal, o atingir a maioridade, antes sendo necessário que a cessação daquela obrigação seja ordenada judicialmente.

E, na verdade, a jurisprudência vem entendendo que o facto de o filho atingir a maioridade não determina, por si só, o fim da referida obrigação alimentar. Tal obrigação pode e deve manter-se até que o alimentado complete a sua formação e possa, por si só, autonomamente, prover ao seu sustento. Isto, naturalmente, dentro dum prazo razoável.

Por isso, vem-se entendendo que a idade – média – com que se atinge aquela formação e a capacidade para, autonomamente prover ao seu sustento, ronda os 25 anos.

Daí que não mereça censura a decisão recorrida ao ter considerado que a demandante SG teria direito a alimentos da mãe até àquela idade e não apenas até à maioridade.

Por isso, também neste segmento, o recurso não pode proceder.

c) – Conhecendo do terceiro aspecto supra enunciado (montante da indemnização pelo dano mort e fixado em € 45 000,00 deve ser reduzido para € 30 000,00?).

A vida é um bem que não tem preço. É o bem supremo, o mais valioso.

É passível de reparação ou compensação pecuniária – cfr. artigo 496º-3, 2ª parte, do Código Civil.

Estatui o nº 3 do artigo 496º do Código Civil (danos não patrimoniais) que “ o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494 (grau de responsabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – parêntesis nosso); no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior (cônjuge, filhos ou outros descendentes e, na falta destes, os pais – parêntesis nosso).

As circunstâncias referidas no citado nº 3 do artigo 496º do C. Civil integram a gravidade da lesão – V. Serra, RLJ, 113º, 96.

Para determinar o montante de indemnização por danos não patrimoniais, há que atender à sensibilidade do indemnizando, ao sofrimento por ele suportado e à sua situação sócio-económica. E há também que tomar em linha de conta o grau de culpa do agente, a sua situação sócio-económica e as demais circunstâncias do caso.

Nos casos de danos não patrimoniais, a indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico ou miserabilista (como se refere no acórdão de 17.01.2008, deste Supremo Tribunal, in proc.7B4538).

Como decorre da matéria de facto assente e supra transcrita, provou-se ser o facto lesivo levado a cabo – dolosamente - pelo arguido, que causou a morte da vítima (mulher do arguido e mãe dos demandantes).

E ainda que esta, à data do óbito tinha 49 anos de idade, era pessoa saudável, trabalhadora e dedicada à família.

Face aos valores que vêm sendo arbitrados por este Supremo Tribunal, entendemos – cfr. Acs. deste STJ (v. g. no processo 0935/05 – 1, por acórdão de 19.05.05 foi fixada uma indemnização de 75.000,00 €; cfr. ainda. Acs. deste STJ de: 27.04.05 – vítima com cerca de 50 anos de idade e auferindo o vencimento mensal de 428,97x14 meses – indemnização de 50.000,00 €; de 05.05.2005, Proc. 0864/05 – 2 – indemnização de 50.000,00 €; de 24.11.05 in processo 2831/05 – 5 – a vítima tinha 33 anos de idade e era trabalhador, alegre e saudável – indemnização de 50.000,00 €; de 24.01.06 in processo 3941/05 – 6 – a vítima tinha 34 anos de idade, com um futuro prometedor – indemnização de 50.000,00 €; de 31.01.2006 in processo 3769/05 – 1 – indemnização de 50.000,00; de 14.12.2006 in processo 3737/06 – 6 – indemnização de 51.411 €; de 11.01.2007 in processo 4433/06 – 2 – a vítima era um jovem de 18 anos, cheio de vitalidade – indemnização de 50.000,00 € acrescida de 9.000 € pelo sofrimento entre o facto e a morte, passadas horas; de 25.01.2007, in processo 4654/06 – 7 – a vítima tinha 25 anos, era um jovem saudável que estava a concluir a licenciatura e faleceu no dia seguinte ao do sinistro – indemnização de 49.880,00 €; de 17.04.2007 in processo 0225/07 – 7 – indemnização de 50.000,00 €; e de 26.04.2007 in processo 0827/07 – 2 – indemnização de 50.000,00 €), – que o montante fixado na decisão recorrida se afigura justo e equilibrado.

Daí que seja mantido.

Razão por que, também neste segmento, o recurso não pode proceder.

d) – Apreciando o quarto e último aspecto supra elencado (deve ser reduzida para € 15 000,00 a indemnização pelos danos morais dos demandantes, fixada em 25 000,00 € para cada um?):

Resulta claro da matéria de facto assente que a morte de BB, mãe dos demandantes, ocorreu em circunstâncias de enorme violência.
A agonia da vítima foi intensa.
A sua morte deixou nos demandantes, seus filhos, uma profunda dor e vazio, e continuará a ser causa de sofrimento para aqueles, que com ela (e com o arguido) viviam na mesma casa.

Os demandantes estão, para sempre, privados da sua companhia, do seu afecto e carinho.

Em consequência, sentem profunda dor, revolta e consternação, acentuados pelas circunstâncias em que aquela morte ocorreu.

Ora, a prova dos elementos objectivos e subjectivos do crime cometido pelo arguido na pessoa da sua mulher BB, mãe dos demandantes TF e SG e a condenação daquele pelo mesmo crime, conduz, inevitavelmente, à sua responsabilidade patrimonial pelos danos patrimoniais e não patrimoniais peticionados pelos demandantes, resultantes da actividade criminosa.

Com efeito, nos termos do artº 483º do código civil: “quem com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de terceiro, constituiu-se na obrigação de indemnizar, pelos danos decorrentes da sua actuação”.

São assim requisitos desta obrigação de indemnização, o facto ilícito, o nexo de imputação subjectiva, o dano e o nexo de causalidade.

O facto ilícito é, aqui, o próprio crime.

No juízo de censura susceptível de formular sobre o agente traduz-se o nexo de imputação subjectiva.

O dano corresponde aos prejuízos para terceiros resultantes do facto ilícito.

Por fim, o nexo de imputação objectiva consiste na ligação entre este e aqueles.

In casu, manifestamente, todos estes requisitos estão preenchidos, pelo que não há qualquer dúvida quanto à obrigação de indemnização por parte do arguido em relação aos danos provocados pelo seu crime de homicídio.

Relativamente aos danos não patrimoniais próprios (dos filhos da falecida), há que ter em atenção que a indemnização pelos danos não patrimoniais visa, simultaneamente, compensar o lesado e sancionar o lesante.

E, como refere alguma jurisprudência, equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim um critério para correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

Visa a lei, no dano não patrimonial, proporcionar ao lesado uma compensação para os sofrimentos que a lesão lhe causou, contrabalançando o dano com a satisfação que o dinheiro lhe proporcionará (Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª Ed., pág. 115).

Como se refere no Ac. deste STJ de 16.04.91, in BMJ 406, 618 “O artigo 496º do C. Civil fixou-se definitivamente não numa concepção materialista da vida, mas num critério que consiste que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada, adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado. Assim, será o tribunal que, equitativamente, terá de fixar quais os danos relevantes e qual a indemnização que lhe corresponderá, de harmonia com as circunstâncias de cada caso, o que importará numa certa dificuldade de cálculo, com o inerente risco de nunca se estabelecer indemnização rigorosa e precisa

Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, (CC Anot., Vol. I, 2ª Ed., pág. 435) o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado...segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”

Também Leite de Campos (A Indemnização do Dano da Morte, pág. 12) ensina que nos danos não patrimoniais “a grandeza do dano só é susceptível de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade. É insusceptível de determinação exacta, por o padrão ser constituído por algo qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação. Aqui, mais do que nunca, nos encontramos na incerteza, inerente a um imprescindível juízo de equidade.”

Sem se cair em exageros, a indemnização, como refere certa jurisprudência, “deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico” impondo-se que a jurisprudência caminhe seguramente para indemnizações não miserabilistas.

Decorre da matéria de facto assente que a morte de BB, deixou nos demandantes, seus filhos, uma profunda dor pois que aquela com eles convivia e era-lhes dedicada.

Sofreram enorme tristeza e dor.

Não havendo sucedâneo para a vida, não há igualmente preço para compensar a sua perda, sendo o montante indemnizatório, aqui, apenas uma ténue compensação para uma morte violenta, provocada por um homicídio.

Com a indemnização em causa, pretende-se lançar mão de um expediente compensatório pela lesão do direito, de molde a proporcionar aos ofendidos alegrias que compensem a dor, tristeza ou sofrimento ocasionado pelo facto danoso.

Perante a gravidade das lesões sofridas pela vítima, mãe dos demandantes e respectivas consequências, sobretudo a nível de intensidade da dor sofrida, consideramos justo e adequado o montante arbitrado de € 25 000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, isto é, pelo sofrimento dos demandantes pelo desaparecimento de sua mãe Nazaré.

Daí que, nenhuma censura nos mereça, por se nos afigurar justa, equilibrada e conforme ao juízo de equidade, a indemnização de € 25 000,00 atribuída a cada um demandantes/filhos, pela morte de sua mãe BB.

Por isso, se mantém.

Pelo exposto, o recurso improcede também nesta parte.

DECISÃO

Nos termos expostos acorda-se em:

1- Rejeitar o recurso no segmento atinente aos vícios da matéria de facto imputados ao acórdão recorrido;
2- Conceder parcial provimento ao recurso na parte respeitante à medida da pena relativa ao crime de homicídio qualificado, que agora se fixa em 18 anos de prisão e na parte respeitante à medida da pena única, que agora se fixa em 18 anos e 6 meses de prisão.
3- No mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas (parte criminal e parte cível) pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Lisboa, 19 de Março 2009


Fernando Fróis (relator)
Henriques Gaspar