Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1981
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES SOEIRO
Descritores: CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
BOA-FÉ
Nº do Documento: SJ200609120019811
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. A incerteza sobre a pessoa a quem a prestação pode ser efectuada só legitima o recurso à consignação em depósito, como resulta do art. 841º nº 1 al. a) do C.Civil, quando for objectiva e não depender da culpa (negligência ou inépcia) do devedor.
2. Para os fins contidos no nº 2 do art. 16º do Dec. - Lei nº 522/85 de 31 de Dezembro, não pode considerar-se que a actuação do Fundo de Garantia Automóvel, ao ser citado para diversas acções e verificar ou ter possibilidade de verificar que o capital seguro se encontrava a esgotar, em virtude das aludidas acções intentadas por diversos lesados, sem nada ter vindo invocar nos autos, tenha sido isenta de má fé, naquele preciso sentido de ter agido com negligência, um vulgo "deixar andar" que não se pode repercutir nos legítimos interesses desses lesados.
3. Sendo a boa fé um princípio de actuação geral, pode ser, no que concerne à problemática contratual, dividida em dois postulados essenciais: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
4. Quanto a esta última, consiste em avaliar as condutas não apenas pela conformidade com os comandos jurídicos, mas também de acordo com as consequências materiais para efeitos de adequada tutela dos valores em jogo.
5. A boa fé constitui um princípio geral de Direito cuja aplicação no Direito das Obrigações se reconduz à imposição de comportamentos às partes, em ordem a possibilitar o adequado funcionamento do vínculo obrigacional, em termos de pleno aproveitamento da prestação, e evitar a ocorrência de danos para as mesmas partes.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


O Fundo de Garantia Automóvel, integrado no Instituto de Seguros de Portugal, com sede na Avenida de Berna, n.°.., Lisboa, intentou acção, com processo especial, de consignação em depósito, contra AA, viúva, por si e na qualidade de representante legal de seus filhos menores, BB e CC; DD, viúva, por si e na qualidade de legal representante de seu filho menor EE; FF e mulher GG; HH; II, por si e como legal representante de suas filhas menores JJ e KK; Centro Nacional de Pensões e Hospital de S. Pedro Pescador, alegando, que no dia 31/03/1995, no I.C. 1, em Tougues, Vila do Conde, ocorreu um acidente de viação que consistiu no embate entre os veículos QS e CL/L-118181, alegadamente causado por um veículo desconhecido.
Em consequência desse acidente faleceram LL; MM; NN e OO, tendo sofrido ferimentos HH, ocorrendo elevados danos em ambos os veículos.
Os requeridos AA e DD intentaram já contra o Requerente, em Tribunal, uma acção que correu termos pelo 1° Juízo, deste Tribunal, com o n° 106/96, na qual foi este condenado a pagar-lhes, respectivamente, as importâncias de 19.172.600$00 e 17.660.600$00;
Os requeridos FF e mulher intentaram também acção contra o Requerente, que teve o n° 260/97 do 2° Juízo deste Tribunal, e na qual pedem a condenação do Requerente a pagar-lhes a importância de 18.215.000$00;
Também o requerido HH intentou contra o requerente uma acção sumária que tem o n°. 360/97, e que corre termos pelo 3° Juízo deste Tribunal, na qual pede a condenação deste a pagar-lhe a importância de 11.900.000$00.
Ainda com base no mesmo acidente de viação, os quintos requeridos (viúva e filhas de OO) intentaram também neste Tribunal acção sumária que correu pelo 1° Juízo sob o n° 24/98, em que pedem a condenação do ali R., ora requerente, a pagar-lhes a quantia de 54.676.600$00.
Na acção acabada de referir (24/98 do 1° Juízo) o sexto requerido, Centro Nacional de Pensões, deduziu intervenção pedindo o reembolso subsídios por morte e pensões de sobrevivência aos familiares da vítima OO, no valor de 1.171.330$00 que depois ampliou para 2.190.840$00.
As acções supra referidas (acção n° 260/97, acção n° 360/97 e acção n° 24/98), foram todas apensadas à acção n° 465/99 (anteriormente 248/96) do 1º Juízo, tendo-se procedido ao julgamento conjunto.
Na referida acção n° 465/99 do 1º Juízo foi já proferida sentença, que condenou o R., ora requerente, a pagar aos autores nos processos apensos as seguintes quantias:
PP e filhas - 36.176.600$00, reduzido para 32.246.424$00;
HH - 7.833.000$00, reduzido para 6.982.149$00; FF e mulher - 10.215.000$00, reduzido para 9.105.407$00;
Centro Nacional de Pensões (C.N.P.) - 1.869.040$00, reduzido para 1.666.017$00.
O sétimo requerido prestou assistência ao quarto requerido, pela qual reclama 11.880$00, que não se contesta.
Os danos apurados em consequência do acidente dos autos atingem o total de 92.938.720$00.
A data do sobredito acidente (31/3/95) a responsabilidade do requerente limitava-se à quantia de 35.000 contos por lesado e ao máximo global de 50.000 contos no caso de coexistência de vários lesados, montantes do seguro obrigatório então vigente, verificando-se que a soma dos danos apurados (que atinge 92.938.720$00) ultrapassa largamente o capital pelo qual pode responder o requerente (50.000.000$00, impondo-se o rateio desse capital pelos vários lesados (art. 16° do DL 522/85, de 31/12).
Na acção sumária que correu pelo 1° Juízo sob o n° 106/96, o requerente não tinha dados que lhe permitissem requerer a intervenção dos demais lesados e, por outro lado, quando foi citado para as restantes acções n° 260/97, n° 360/97 e n° 24/98, já na primeira acção (n.° 106/96), havia sido proferido despacho saneador (em 17/9/1996) e até já se tinha iniciado a produção de prova (em 10/3/1997), pelo que não era possível obter a apensação das acções referidas.
O direito dos lesados não foi apreciado num único processo por razões que não são da responsabilidade do requerente mas é agora possível e desejável que a junção de todos esses credores se faça na presente acção de consignação.
O requerente está impedido, por desacordo dos requeridos, de fazer esse rateio, pelo que se impõe o recurso à presente consignação em depósito.
O requerente entende que não está em mora, por ser evidente que se encontra numa situação de impossibilidade de cumprimento. Pretende o requerente consignar em depósito o montante do capital da sua responsabilidade, no total de 50.000.000$00, julgando-se, a final, subsistente o depósito e extinta obrigação (art. 1024° do Código de Processo Civil).
O ISSS, legal sucessor do Centro Nacional de Pensões, veio contestar, alegando que aceita receber o montante que o FGA se propõe pagar nesta consignação após rateio e recurso a uma regra três simples, e que perfaz a quantia de 1.000.522$00 (5.015,52 euros).

Contestaram, igualmente, os requeridos FF e esposa e HH, alegando a excepção de caso julgado, já que a presente acção tem a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, sendo as mesmas partes, da anterior acção de consignação em depósito instaurada pelo FGA, a qual foi julgada improcedente.
Por outro lado, o FGA não providenciou em tempo útil, a intervenção principal de todos os lesados, não requereu a apensação de todas as acções pendentes, nem suscitou nos autos a questão da limitação da responsabilidade.
Assim, a inadequada actuação processual por parte do FGA leva a que o mesmo tenha de pagar mais do que o proporcionalmente devido, já que não podem ser prejudicados os restantes lesados: o FGA terá assim de pagar aos lesados titulares da sentença já transitada em julgado, a quantia que lhes foi fixada judicialmente e, independentemente disso, terá de proceder ao rateio, pelos demais interessados da quantia de 50.000.000$00, acrescida dos juros que entretanto se venceram desde a citação até efectivo pagamento.
Contestaram, ainda, II, alagando que o FGA tinha conhecimento da existência de outros lesados e nada fez, nem suscitou a questão da limitação do capital, pelo que não estava de boa fé.
Por outro lado, alega que a dívida do FGA para com eles ainda não está judicialmente estabelecida, já que está em recurso no STJ, pelo que falta o requisito essencial para que se possa lançar mão deste tipo de acção.
Em reconvenção alega que é potencial credora da quantia de 32.246.424$00, acrescida dos respectivos juros de mora a contar desde a citação, no montante global de 42.474.282$00.
Termina pedindo a procedência da reconvenção e a improcedência da presente acção de consignação em depósito.

Vieram, ainda, contestar DD, AA, defendendo-se por excepção, invocando que
estamos perante uma situação de caso julgado que acarreta a absolvição da instância.
Alegam ainda que nada há que impeça que lhes satisfaça a sua indemnização, já que não se verificam os pressupostos referidos no art. 841° do Código Civil.
Em reconvenção alegam que aos montantes que lhes são devidos e foram fixados judicialmente, acrescem juros de mora, à taxa legal, sobre o respectivo capital até efectivo pagamento.
Termina pedindo a procedência do pedido reconvencional e a improcedência da presente acção de consignação em depósito.
Respondeu o FGA pugnado pela improcedência das excepções invocadas, bem como dos pedidos reconvencionais, concluindo como na petição.

Elaborou-se despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as arguidas excepções e, se procedeu à selecção dos factos considerados assentes e dos controvertidos, que passaram a integrar a base instrutória.
Foram interpostos recursos das decisões sobre as excepções invocadas. Apresentaram-se alegações.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e respondeu-se à matéria da base instrutória, o qual não foi objecto de qualquer reclamação.
Proferiu-se sentença em que se julgou a acção especial de consignação em depósito procedente e as reconvenções parcialmente procedentes.

Inconformados os Réus II, herdeiros de FF e outros e DD e outras interpuseram recursos de agravo e apelação para a Relação do Porto, não tendo sido dado provimento aos recursos de agravo e sendo, por sua vez, confirmada a sentença recorrida.
De novo, inconformados, vieram os Réus HH e outros, DD e AA e II e outras interpor recurso de revista para este S.T.J.

Concluíram os primeiros pela seguinte forma:
1. O conceito de boa-fé acolhido pelo art° 16° do DL 522/85 traduz a ideia de que assim actuará a Seguradora (ou FGA) que, investigando seriamente, e concluindo, que, com grande probabilidade, não há senão determinados lesados já conhecidos, lhes paga a totalidade do capital ou, pelo menos, parte substancial desse mesmo capital ;
2. Se, assim tendo agido, e se demonstrar que, para além de ter realizado uma investigação séria, agiu correctamente no plano judicial e processual, não lhe tendo sido possível " defender" o capital seguro, através do recurso, sucessivamente, às figuras da Intervenção principal de todos os lesados (conhecidos ou incertos), da apensação das acções ou da introdução de um Articulado superveniente, não pode ser-lhe exigido que pague senão o que faltar para o limite de capital, ou nada mesmo lhe poderá ser exigido se o mesmo capital se tiver esgotado .
3. Agindo assim, com efeito, in casu, o FGA teria actuado como o bonum pater famílias , porque, no momento em que pagou " a mais " (a um ou mais lesados), actuaria de boa fé, e no desconhecimento da existência de outros lesados, porque nada apontava para a sua existência no momento do pagamento.
4. Na hipótese dos autos, as Instâncias deram todo o relevo ao facto de o FGA não ter podido deduzir a Intervenção Principal dos demais lesados, após ter sido citado para a acção n° 106/96 , em virtude de, nessa altura (02 de Abril de 1996) desconhecer quer a sua existência quer a extensão integral dos danos (resposta aos Quesitos n° 1 e 2 ).
5. Porém, esses factos, em si, são, de todo em todo irrelevantes , já que se acha demonstrado , insofismavelmente, que o FGA poderia desde aquele momento ( 02 / 04 / 96 ) e até o inicio da audiência de discussão e julgamento do mesmo processo n° 106/96 , ocorrido em 06 de Novembro de 1997, ter suscitado a questão da limitação do capital.
6. Com efeito, depois de ter sido citado para diversas acções, entre a data da sua citação para acção sumária n° 106/96 (2 de Abril de 96 ) e antes do inicio da respectiva audiência, em 6/ 11/97 (cerca de um ano e meio ... ), o FGA poderia, como bondosamente ensina o douto Acórdão citado, ter requerido a apensação das diversas acções ou, na pior das hipóteses, ter requerido , em Articulado superveniente , até 06/11/96, que , fossem conhecidos como Factos novos, as proposituras das diversas acções, por forma a ver acautelado o capital.
7. Isto, desde logo, porque, só por manifesta negligencia ou incompetência dos seus serviços de pré-contencioso, o FGA terá deixado de associar toda aquela sucessão de pedidos (a atingirem, na totalidade, mais de 80.000 contos...) ao acidente que dera azo à primeira acção ( 106/96 ).
8. E depois porque, mesmo que de tal conexão se tivesse apercebido muito mais tarde, sempre estaria em tempo de, usando a diligencia, o conhecimento e a sagacidade do bonum pater famílias, ter agido, em sede processual, com a tempestividade e através dos meios idóneos, tendo em vista a necessidade de " repartir o mal pelas aldeias ".
9. Não o tendo feito - e podendo tê-lo feito - o FGA não agiu de boa fé, sendo, por conseguinte muito ( mas mesmo muito ) difícil de entender como é que a sua tão prolongada quão reiterada inépcia pôde acarretar , por um lado o claro atropelo ao principio do caso julgado formado no P° 106/96 ) e , por outro lado , um atirar das consequências de tal inépcia para as costas dos lesados, ao fim de 11 anos ...
10. As instâncias violaram os comandos dos art° 16° n° 1 do DL 522/85, o principio geral de boa fé (art° 762° n°2CCivil),oart°9°n°3e841°CCivil.

Por sua vez, os segundos concluíram a minuta de recurso, alegando, que:

1°- A consignação em depósito não era o meio para ultrapassar os erros processuais da responsabilidade do recorrido;
2°- A presente consignação em depósito devia ter sido rejeitada dada a obrigatoriedade do depósito da prestação dever ser integral e por conseguinte os juros de mora, até àquela data deverem ter sido prestados adicionalmente como capital efectivamente depositado;
3º- Não é verdade que nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação as aqui recorrentes não tenham posto em causa a prova produzida, sendo que os quesitos formulados e a respectiva resposta não são suficientes para decidir pela procedência da presente acção, muito pelo contrário, resulta na sua improcedência, sendo certo que, existem naquela documentação matéria suficiente para que as respostas, tivessem sido negativas;
4º- Os dois os processos transitaram em julgado, pelo que as aqui recorrentes têm o direito de receberem as quantias em que o recorrido foi condenado em acção própria, bem assim, os outros interessados na acção que resulta dos processos apensados e unificados;
5°- O artigo 16° n°2 do Dec. Lei n°522/85 de 31 de Dezembro, não exige que o recorrido tivesse tido conhecimento de todos os interessados ou da totalidade dos danos;
6°- A presente acção de consignação deveria ter sido apensa ao processo executivo e respectivos embargos que correm os seus termos com o n°384-A e B/99, pelo 1° Juízo Cível do Tribunal de Vila do Conde, pelo que se deverá suspender a presente instância até ao trânsito em julgado da decisão naquele processo de embargos;
7º- A sentença recorrida violou os artigos 7630 n°1, 841° e 846° do C.C. e 654°, 671°, 712° n°1 alínea b) e 1025° n°2 alínea b) do C.P.C. e art°16° n°2 do Dec. Lei n° 522/85 de 31 de Dezembro.

Finalmente, as terceiras concluíram o seu recurso, invocando, que:

1. A consignação em depósito deverá ser indeferida liminarmente, pois o depósito da prestação devida pelo FGA não foi integral, já que nenhum juro foi depositado, quando já eram devidos, pelo menos sobra a quantia dos cinquenta milhões de escudos, conhecendo o FGA a data das citações dos diversos processos, bem como as respectivas taxas legais de juro..
2. A presente consignação em depósito não pode sobrepor-se e violar desse modo o caso julgado referente ao processo n.° 465/99, 1.° Juízo, de Vila do Conde, tendo as Recorrentes direito a receber o montante que lhes foi fixado nesse acção, ou seja, 32.246.424$00, acrescido dos respectivos juros legais.
3. O Acórdão recorrido violou o previsto nos artigos 762°, 763°, n.° 1, 841 e 846°, todos do C. Civil, o comando do artigo 16°, n.° 2 do D.L. 522/85, de 31 de Dezembro.

Nas contra alegações, a recorrida defende a manutenção do julgado.

Foram colhidos os vistos.

Decidindo.

2. Foi considerada provada, pelas Instâncias, a seguinte factualidade:

A. Em 31/03/95, no IC 1, em Tougues desta comarca, ocorreu um acidente de viação que consistiu no embate entre os veículos QS e CL/L118181, causado por um veículo desconhecido.
B. Em consequência desse acidente faleceram LL, MM, NN, e OO, os três primeiros passageiros do QS e o último condutor do mesmo veículo, tendo sofrido ferimentos HH, também passageiro do QS, ocorrendo elevados danos em ambos os veículos.
C. Em virtude do dito acidente de viação, os primeiros (viúva e filhos de LL) e segundos (viúva e filho de MM) requeridos, em coligação, deduziram contra o requerente, neste tribunal, acção sumária que correu pelo 1° Juízo sob o n° 106/96, em que pediam a condenação do ali Réu ora requerente, a pagar-lhes, respectivamente, as quantias de 26.972.600$00 e de 22.660.000$00.
D. Na referida acção, foi já proferida sentença, transitada em julgado, que condenou o aqui requerente, a pagar-lhes, respectivamente, as quantias de 19.172.600$00 e 17.660.600$00.
E. Também com base no mesmo acidente de viação, os terceiros requeridos (pais e únicos herdeiros de NN) intentaram neste tribunal acção sumária que correu pelo 2° Juízo sob o n° 260/97, em que pedem a condenação do ora requerente, a pagar-lhes a quantia de 18.215.000$00.
F. Igualmente com base no mesmo acidente de viação, o quarto requerido (passageiro do QS, ferido no acidente) intentou neste tribunal acção sumária que correu pelo 3° Juízo sob o n° 360/97, em que pede a condenação do ora requerente, a pagar-lhe a quantia de 11.900.000$00.
G. Ainda com base no mesmo acidente de viação, os quintos requeridos ( viúva e filhas de OO) intentaram neste tribunal acção sumária que correu pelo 1° Juízo sob o n° 24/98, em que pedem a condenação do ora requerente, a pagar-lhes a quantia de 54.676.600$00.
H. Na acção acabada de referir (24/98 do 1° Juízo) o sexto requerido, Centro Nacional de Pensões, deduziu intervenção pedindo o reembolso dos subsídios por morte e pensões de sobrevivência aos familiares da vitima Manuel Moreira Lopes, no valor de 1.171.330$00, que depois ampliou para 2.190.840$00.
I. As acções referidas em E), F), G) e H) foram todas apensadas à acção n° 465/99 (anteriormente 248/96) do 1 ° Juízo, entre Março e Maio de 1998, tendo-se procedido ao julgamento conjunto.
J. Na referida acção n° 465/99 do 1° Juízo foi já proferida sentença, transitada em julgado, que condenou o ora requerente a pagar aos Autores nos processos apensos as seguintes quantias: PP e filhas-36.176.600$00, reduzido para 32.246.424$00; HH 7.833.000$00, reduzido para 6.982.149$00; FF e mulher - 10.215.000$00, reduzido para 9.105.407$00; CNP 1.869.040$00, reduzido para 1.666.017$00.
L. O Hospital de S. Pedro Pescador na Póvoa de Varzim prestou assistência ao requerido HH, cujo custo ascende a 11.880$00.
M. Na acção referida em C) foi proferido despacho saneador, especificação e questionário em 17/09/96 e a respectiva produção de prova teve início em 10/03/97.
N. O ora requerente foi citado para a acção referida em E) em 1/07/97, para a acção referida em F) em 20/ 10/97 e para a acção referida em G) em 26/01/98 e notificado do pedido referido em H) em 26/06/98.
0. Na data em que o F.G.A foi citado para a acção referida em C) proposta pelos dois primeiros requeridos - 02.04.96 - não tinha conhecimento da identificação de todos os lesados e da extensão integral dos danos, sendo certo que o valor dessa acção era de 49.632.600$00.
P. O F.G.A não tinha dados que lhe permitissem requerer a intervenção dos demais lesados na acção referida em C).

3. - Análise do objecto das revistas -

A questão que, fundamentalmente se coloca nos presentes autos é, atenta a pluralidade de lesados e a limitação a 50.000.000$00 do capital disponível por parte do Fundo de Garantia Automóvel, ora recorrido, nos termos dos artigos 6º, 16º nº 1 e 23º do Dec. - Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, o primeiro artigo com a redacção que lhe foi dada pelo Dec. - Lei nº 18/93, de 23 de Janeiro, em vigor ao tempo do sinistro a que se reportam os autos, e, na eventualidade constante no nº 2 do aludido art. 16º de a recorrida se encontrar de boa fé, resulta do nº 1 do mesmo preceito legal não dever a mesma recorrida pagar discricionariamente a algum ou alguns dos lesados até ao esgotamento do capital que garante. Tem de proceder a rateio e, assim, à regulação global da indemnização entre todos eles.
Assim, cumpre indagar se para atingir tal desiderato o meio processual ajustado será a acção especial de consignação de depósito e, sendo-o, em tese, se o recorrido, considerando o nº 2 do citado art. 16º do diploma legal acabado de citar, pode fazer uso de tal meio processual, nomeadamente por se encontrar de boa fé.

Quanto à primeira questão, e, tendo presente o disposto nos arts. 841º e segs. do C.Civil, constata-se que são duas as categorias que legitimam a consignação em depósito, na lição de Antunes Varela, (1) uma é a da mora do credor; outra, a da impossibilidade de o devedor, sem culpa sua, efectuar a prestação (ou efectuá-la com a necessária segurança) por qualquer outro motivo relativo à pessoa do credor.
Não figura entre os pressupostos da consignação a dúvida sobre a existência da obrigação.
Segundo o Ilustre Autor que vimos acompanhando e, tendo presente o que se preconiza no art. 1030º do C.P.C., o carácter duvidoso do direito a que aí se faz referência é o proveniente de motivos referentes à pessoa do credor, como expressamente se diz na al. a) do art. 841º do C.Civil, e não ligada á existência objectiva do direito.
Aquele preceito legal da lei adjectiva corresponde ao art. 760º do Código de Seabra, que estabelecia que, havendo vários credores, mas desconhecer-se, sem culpa do devedor, o respectivo direito, considerou-se, na linha do pensamento de Vaz Serra (2)não ser necessário prevê-lo especialmente no C.Civil de 1966, porquanto encontrava-se incluído na al. a) do nº 1 do art. 481º do C:Civil.
No entanto, a incerteza sobre a pessoa a quem a prestação pode ser efectuada só legitima o recurso á consignação, como resulta do texto e do espírito do art. 841º nº 1 al. a) do C.Civil, quando for objectiva e não depender da culpa (negligência ou inépcia) do devedor. (3)

Aqui chegados, isto é, depois de concluir que, em abstracto, o meio processual empregue (da consignação em depósito) é o ajustado, atento os normativos constantes dos arts. 841º nº 1 al. a) do C.Civil e 1030º do C.P.C., é altura de indagar se o recorrido, considerando o nº 2 do citado art. 16º do Dec. - Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, pode fazer uso de tal meio processual, nomeadamente por se encontrar de boa fé.
Sobre esta questão já se pronunciou este S.T.J. no Acórdão, 13.12.2000, junto aos autos a fls. 161 e segs.
Transcreve-se:
"Rejeitada a imposição de litisconsórcio necessário activo em hipóteses como a vertente ou tal, pelo menos, ultrapassado neste caso, a pluralidade de lesados e de acções impede a fixação da indemnização devida a cada um por forma a assegurar que o montante garantido seja repartido por todos na devida proporção.
Para alcançar este objectivo, impõe-se conseguir a apensação dessas acções , quando consentida pelo art° 275° CPC, ou, então, lançar mão do incidente de intervenção principal provocada , previsto nos seus art°s 351° e 356°.
Assim não se procedendo, haverá, pelo menos, que referir nos articulados - mesmo a disso ser caso, em articulado superveniente, a existência de vários lesados ; que suscitar, nessa conformidade, a questão da limitação da garantia ( n° 2 art° 342° CC ) ; e que zelar, depois, pelo seu tratamento jurídico adequado.

Só assim assegurando o recorrente (no caso, o FGA) o seu proclamado direito e o seu reconhecido dever de impor o respeito pelo rateio previsto na lei (...) subsiste , quando de tal se não cuide, o risco de formação de caso julgado a sobrepor-se ao direito substantivo que impede responsabilidade superior ao capital garantido .

Em caso de menos feliz actuação processual - concretamente , em razão da falta de oportuna suscitação da questão da limitação do capital por que é responsável - e por força de caso julgado (...) , o recorrente ( no caso, o FGA ) pode (...) ter mesmo de pagar mais do que o proporcionalmente devido . O que (...) não pode é prejudicar por isso os restantes lesados.
Não existe, em boa verdade, o esgrimido risco de os restantes credores ficarem prejudicados com o cumprimento da sentença transitada: o que, realmente, subsiste é o de privilegiar um lesado, não em detrimento dos outros, mas com excesso do capital garantido que só a adequada actuação processual já descrita pode efectivamente prevenir. "
Na linha do Acórdão acabado de transcrever, na parte que interessa à economia da revista em apreço, constata-se, facilmente que foi formado caso julgado no Proc.106/96, a que se alude na matéria de facto dada como provada, pela razão de ter ocorrido flagrante falta de actuação do recorrido F.G.A., nomeadamente por não ter vindo aos autos dar notícia, designadamente em articulado superveniente ou requerimento avulso para o efeito admitido, da existência de mais lesados para além dos constantes na primeira acção interposta, porquanto o aludido recorrido foi citado para as outras subsequentes acções, anteriormente ao mencionado transito em julgado.

É que, conforme bem se salienta na alegação de recurso dos recorrentes HH e outros o facto de as Instâncias terem dado como provado:
- na data em que o FGA foi citado para a acção referida em c) ( 02/04/96) não tinha conhecimento da identificação de todos os lesados e da extensão integral dos danos
- e que o FGA não tinha dados que lhe permitissem requerer a intervenção dos demais lesados na acção referida em c) tais factos , ainda que verdadeiros, são de todo em todo irrelevantes.
Na verdade, a questão não está em saber se, em 2 de Abril de 1996, quando foi citado para os termos da acção n°106/96, o FGA tinha ou não conhecimento da existência de outros lesados e poderia, assim, ter requerido ou não, na contestação a intervenção de tais lesados.
O que importa saber é até que momento o FGA poderia ter obstado à formação de caso julgado, naquele processo (106/96), fornecendo ao Tribunal elementos que lhe permitissem ratear entre todos os lesados os 50.000 contos.
E, quanto a isto, o processo revela-nos que o FGA foi citado sucessivamente para as várias acções, referenciadas na factualidade dada por assente, tendo tomado, consequentemente conhecimento da possibilidade de vir a ser condenado em quantia superior aos tais 50.000 contos.
Nesse circunstancialismo, estranha-se que o F.G.A. não tenha reportado essas acções para que veio a ser, posteriormente citado, ao acidente que fora causa de pedir no Proc.106/96 e não tenha actuado processualmente por forma a que não viesse a ocorrer o caso julgado naquele primeiro processo, designadamente utilizando os mecanismos adjectivos a que já se fez referência.

Assim, a actuação do recorrido Fundo de Garantia Automóvel não se compagina com a afirmação produzida "supra" de que a incerteza sobre a pessoa a quem a prestação pode ser efectuada só legitima o recurso á consignação, como resulta do texto e do espírito do art. 841º nº 1 al. a) do C.Civil, quando for objectiva e não depender da culpa (negligência ou inépcia) do devedor.
O F.G.A. contribuiu, com a sua omissão, na actuação processual que (não) empreendeu, para que não ocorresse, com rigor e segurança, a identificação dos diversos lesados no sinistro e pelos quais o capital de 50.000.0000$00 seria rateado.
Assim sendo, para os fins contidos no nº 2 do art. 16º do Dec. - Lei nº 522/85 de 31 de Dezembro, não pode considerar-se, como não se considera, que a sua actuação tenha sido isenta de má fé, naquele preciso sentido de ter agido com negligência, um vulgo "deixar andar" que não se pode repercutir nos legítimos interesses dos lesados, ora recorrentes.
Com efeito, na lição de Meneses Cordeiro (4), consistindo a boa fé num princípio de actuação geral, poderá ser, nomeadamente no que concerne à problemática contratual, dividida em dois postulados essenciais: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
Quanto a esta última, consiste em avaliar as condutas não apenas pela conformidade com os comandos jurídicos, mas também de acordo com as consequências materiais para efeitos de adequada tutela dos valores em jogo. Este princípio, segundo Luís Teles de Menezes Leitão (5), realiza-se de acordo com os seguintes vectores: a conformidade material das condutas, a idoneidade valorativa e o equilíbrio no exercício das posições.
A boa fé constitui, assim, na lição dos Ilustres Autores citados, um princípio geral de Direito cuja aplicação no Direito das Obrigações se reconduz à imposição de comportamentos às partes, em ordem a possibilitar o adequado funcionamento do vínculo obrigacional, em termos de pleno aproveitamento da prestação, e evitar a ocorrência de danos para as mesmas partes.
A actuação, assim, do F.G.A., na forma apontada, repercutiu-se, negativamente nos legítimos interesses dos lesados, sendo tal conduta passível, como se concluiu, de causar danos às partes.
Vai, assim, concedida a revista.

4. Nestes termos, acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, revogando o Acórdão recorrido, pelo que se absolvem os Réus do pedido contra si deduzido na acção de consignação de depósito que lhes foi movida pelo Fundo de Garantia Automóvel.
Não são devidas custas.

Lisboa, 12 de Setembro de 2006
Borges Soeiro
Pinto Monteiro
Faria Antunes
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(1) In, Das Obrigações em Geral", 7 ª ed., vol. II, pag. 189.

(2) In, "BMJ" 40/ 36-37 e 153.

(3) Antunes Varela, "ob. citada", pag. 190 e Pires de Lima e Antunes Varela, in "C.Civil, Anotado", 2ª ed. II vol., pag. 112.

(4) In "Boa Fé", pag. 1234 e segs.

(5) In, "Direito das Obrigações", Tomo I, 3 ª ed., pag. 59.