Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | QUIRINO SOARES | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO ARRENDAMENTO RURAL INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO | ||
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Nº do Documento: | SJ200309250022587 | ||
Data do Acordão: | 09/25/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1769/02 | ||
Data: | 01/20/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | 1. O arrendamento de prédio rústico para fins desportivos é um contrato de arrendamento rústico, não rural nem florestal (porque não destinado a exploração agrícola, pecuária ou florestal - cfr. artº. 1º, DL 385/88, de 25/10, e 2º, 1, DL 394/88, de 8/11), a que são aplicáveis, por força do artº. 6º, 1, RAU, "o regime geral da locação civil, bem como o disposto nos artigos 2º a 4º, 19º a 21º, 44º a 46º, 74º a 76º e 83º a 85º, 88º e 89º do presente diploma, com as devidas adaptações". 2. No período que decorreu entre a entrada em vigor do actual Código Civil e a entrada em vigor do RAU, tal arrendamento era qualificado de rústico não rural, para outros fins (que não sejam o exercício do comércio ou indústria pelo arrendatário) e regia-se pelas disposições gerais do arrendamento urbano e rústico não rural e pelas disposições gerais da locação que as não contrariassem. 3. Sob o regime legal anterior ao actual Código Civil, devia ser qualificado, como hoje, de arrendamento rústico não destinado a cultura, estranho ao regime proteccionista do inquilinato. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. "A" e marido B reivindicaram de "Grupo C", um terreno sito na freguesia de ..., Porto, onde a ré desenvolve a sua actividade desportiva. Apesar de o réu ter oposto a vigência de um contrato de arrendamento, a acção logrou êxito nas instâncias, do que vem, agora, pedida revista, nestes termos: a) as pessoas que, do lado do arrendatário, intervieram no escrito do contrato de arrendamento, fizeram-no, não em próprio nome, mas em representação do réu, conclusão que tanto pode ser tirada da mera interpretação do escrito como da existência de uma convenção verbal acessória contemporânea, a provar, em qualquer dos casos, e sem obstáculos legais, por prova testemunhal ou de presunções; b) a não se entender assim, sempre terá de aceitar-se que houve um outro contrato de arrendamento verbalmente celebrado, idêntico ao contrato escrito de 1913, com início na mesma data e com alteração de renda, por acordo entre os senhorios e o réu, de 50$00 para 150$00, em 1965, cuja prova se poderá fazer por meio de recibos; c) em todo o caso, os autores agiram com abuso de direito na forma de proibição do venire contra factum proprium. A parte contrária alegou, também. 2. Os factos provados são os seguintes: . B e A são titulares da inscrição nº. 89.542, a fls. 80vº do Livro G e nº. 89.541, a fls. 80 do mesmo Livro, da 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto; . respeitam aquelas inscrições a um terreno sito na freguesia de ..., Porto, omisso na matriz rústica e descrito sob os nºs. 43.479, a fls. 193 do Livro B-130 e 43.4821 a fls. 194 vº, do Livro B-13; . serviram de base a essas inscrições o legado de D (inscrição 89.542 e descrição 43.479) e sucessão por morte de E (inscrição 89.541 e descrição 43.482); . desde, pelo menos, 1913 aquele terreno, com todas as suas pertenças, pertence em comum às referidas D e E, por sucessão dos anteproprietários, que, entre si, em 1920, procederam à respectiva divisão, originando as descrições 43.479 e 43.482; . o B faleceu a 3 de Maio de 1990, tendo sido declarado por sentença de 23 de Setembro de 1991 que seus sucessores eram a co-autora A e os agora habilitados F e marido, G e marido e H; . o terreno e as suas pertenças vem sendo ocupado pelo réu, onde os respectivos associados vêm praticando desporto, designadamente ténis; . em 28 de Setembro de 1989, os autores requereram notificação judicial avulsa do réu, nos termos constantes de fls. 13 e vº, tendo ocorrido a notificação da ré em 9 de Outubro de 1989; . em 9 de Novembro de 1989, o réu procedeu ao depósito que figura a fls. 39 do processo; . em 13 de Maio de 1913, foi celebrado o contrato que constitui fls. 30 e verso, intervindo como arrendatários I, J e L; . em 4 de Agosto de 1923, foi registado no Governo Civil do Porto o aqui réu; . foram passados pelo senhorio os recibos de renda que constituem fls. 33 a 37; . há cerca de 100 anos atrás, um grupo de cidadãos do Porto fundou um clube para se dedicar à prática de ténis; . tal grupo de cidadãos contactou os herdeiros de M para celebrarem um contrato de arrendamento; . o contrato de arrendamento referido veio a ser feito, tendo por objecto o terreno referido; . tal contrato foi substituído por outro, e posteriormente pelo de 13 de Maio de 1913; . os intervenientes no contrato de 13 de Maio de 1913 sabiam que o arrendamento se destinava ao clube, que era gerido por uma comissão composta por aqueles intervenientes; . tal gestão consistia na utilização do terreno referido, ali desenvolvendo a actividade do clube aqui réu, até à data do seu reconhecimento; . até Dezembro de 1981, inclusive, as rendas fora pagas directamente aos senhorios pelos diferentes e sucessivos representantes do réu; . I pagava a renda em nome do réu e com dinheiro deste; . o pagamento da renda por I, em nome do réu e com dinheiro deste, era do conhecimento dos senhorios; . em 1965, a renda mensal foi alterada de 50$00 para 150$00; . nessa data, a renda nova foi negociada por sócios do réu diferentes de I, de L e de J; . em princípios de 1982, B recusou-se a receber a renda e a emitir o recibo; . o réu apenas executou as seguintes obras: após 1978, substituiu o piso do campo de ténis, que era de terra batida, por pó de tijolo e saibro e limpou uma zona de silvado existente nas instalações; após 1989/90, remodelou a área dita de balneário, instalada numa dependência que sempre existira no local, passando esta a ser servida por dois chuveiros; adaptou a cozinha que também sempre ali existira a sala de convívio/bar e implantou uma sanita nas instalações; . o réu, que tem cerca de 20 sócios, participou unicamente em três torneios, inter-clubes, nos anos de 1989/90 a 91/92, e, destes, em nenhuma final; em 1987/88 uma familiar de um sócio recebeu aulas de ténis nas instalações dos autos e já após 1990 há quem por vezes receba lições de ténis, se as condições meteorológicas forem boas; . B chegou a propor ao réu que assinasse um documento obrigando-se a entregar as instalações restituindo-as 90 dias após a notificação que para o efeito recebesse; . como contrapartida de tal declaração o autor marido não incomodaria o réu enquanto fosse vivo; . o réu não aceitou esta proposta; . o réu foi notificado em 9 de Outubro de 1989 de um requerimento dos autores para notificação judicial avulsa do mesmo réu para, no prazo de 20 dias, abrir mão do terreno, construção e espaços anexos, deles fazendo entrega aos autores, livres e desocupados; . o réu depositou na ... em 9 de Novembro de 1989, a quantia de 21.600$00, a titulo de pagamento das rendas relativas aos anos de 1982, 1983, 1984, 1985, 1986, 1987, 1988 e 1989, do terreno aqui em causa, resultando aquela importância do cálculo de 96 meses a 150$00, mais 50% de agravamento (96 X 150 = 14.400$00) (+ 50% = 21.600$00), pelo motivo de o senhorio se ter recusado a receber as rendas atempadamente e ficando à ordem do Juiz de Direito (fls. 39); . o denominado contracto de arrendamento, datado de 13 de Maio de 1913, através do qual D, E, como senhorios, e I, J e L, como arrendatários, acordaram a cedência do terreno e prédio urbano sito na Rua ... nº. ..., também com serventia pela Rua ..., sendo o terreno destinado a court de ténis e o prédio para guardar os apetrechos do mesmo, pelo prazo de três anos, a começar em 13 de Maio de 1913 e a findar, portanto, em 12 de Maio de 1916, devendo considerar-se prorrogado por períodos sucessivos de um ano enquanto por qualquer das partes não houver despedida com antecipação legal, contém, entre outras as cláusulas 38 e 58, respectivamente, com o seguinte teor: 38 - todos os reparos que o prédio arrendado carecer para a sua conservação e limpeza serão feitos à custa dos senhorios no interior e no interior dos arrendatários; 58 - os arrendatários terão direito de se utilizarem da água da bica sita nas traseiras dos 4 chalets, que precisarem para seu uso dentro da propriedade. . foram passados cinco recibos de renda a I, todos eles no valor de 150$00 (cada um), pela renda do campo de ténis sito na Rua ..., referentes aos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 1981, e passados no dia 1 do mês respectivo e imediatamente anterior; . I faleceu no dia 11 de Março de 1958; . L faleceu em 27 de Maio de 1963. 3. O acordo escrito de 1913, que a ré opõe como título que legitima a detenção do prédio reivindicado, é, sem discordância, um contrato de arrendamento. Sem pretendermos, pelo menos para já, comprometermo-nos com uma classificação rigorosa, vem a propósito, todavia, dizer que, com os dados de facto trazidos ao processo, esse acordo, escrito em impresso destinado a "Contracto de Arrendamento" (como consta ao alto da folha), e outorgado por D e E, "como senhorias", e I, J e L, "como arrendatários", ocupa, hoje, entre as modalidades daquela espécie contratual, o lugar destinado ao arrendamento rústico, não rural nem florestal (não rural porque não destinado a exploração agrícola, pecuária ou florestal - cfr. artº. 1º, DL 385/88, de 25/10, e 2º, 1, DL 394/88, de 8/11), a que são aplicáveis, por força do artº. 6º, 1, RAU (1), "o regime geral da locação civil, bem como o disposto nos artigos 2º a 4º, 19º a 21º, 44º a 46º, 74º a 76º e 83º a 85º, 88º e 89º do presente diploma, com as devidas adaptações". Rústico porque a componente rústica do seu objecto mediato aparenta ser a mais valiosa - cfr. artº. 2º, RAU), como se deduz da descrição do prédio (docs. de fls. 5 a 12); da importância maior que, nos dois anteriores contratos (em tudo iguais ao controvertido), foi atribuído ao terreno, para a fixação da renda; e, também, do próprio teor dos recibos de renda, que sempre se referiram, e não por acaso, ao "campo de ténis". Se recuarmos no tempo, constataremos que, no que respeita aos contratos com idêntico objecto mediato, o RAU foi inovador, e foi-o porque o Código Civil, na sua originária versão (que vigorou até ao início de vigência do RAU), os sujeitava (no extinto artº. 1083º) "às disposições desta secção (destinada, também, ao arrendamento urbano), e também às normas das secções I a VI (respeitantes ao regime geral da locação civil) no que não estejam em oposição com as desta". Assim, e seguindo o ensino de Pereira Coelho (em Direito Civil, Arrendamento e Filiação - sumários das lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas, em 1977-1978, fls. 41 e 42), arrendamentos do tipo daquele que nos ocupa eram, sob o regime instalado pelo actual Código Civil (depois, alterado pelo RAU), "rústicos não rurais para outros fins (que não sejam o exercício do comércio ou indústria pelo arrendatário)", e regiam-se "pelas disposições gerais do arrendamento urbano e rústico não rural e pelas disposições gerais da locação que as não contrariem". Em suma, arrendamentos como o dos autos, isto é, arrendamentos de prédios rústicos para fins desportivos, foram tratados, desde a entrada em vigor do actual Código Civil até à entrada em vigor do RAU, da mesma maneira que os arrendamentos urbanos. A legislação (dispersa legislação) que, em matéria de arrendamento, precedeu o actual Código Civil, e por este revogada (designadamente, Código Civil de 1867, Decreto de 12 de Novembro de 1910, Decreto 5.411, de 17 de Abril de 1919 - Lei do Inquilinato, Lei 1662, de 4 de Setembro de 1924 - alterações à Lei do Inquilinato, artºs. 36º e segs., da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948 - arrendamento urbano, e, finalmente, Lei 2114, de 15 de Junho de 1962 - arrendamento rural), não era tão clara a respeito da arrumação do esquema negocial em causa dentro do vasto conjunto de modalidades de arrendamento (veja-se a notícia que, do problema, vem dada, nesse velho e ainda hoje tão precioso Noções Fundamentais de Direito Civil, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, pág. 550, nota 1 - 6ª edição revista e ampliada). Em todo o caso, os dados do problema mantiveram-se constantes por todo aquele período, mesmo depois da entrada em vigor da Lei 2114, que, como se disse, regulou especialmente o contrato de arrendamento rural. Perante a indefinição dos textos legislativos, as posições variaram entre enquadrar o negócio numa categoria híbrida de arrendamentos urbanos por assimilação (Revista de Legislação e Jurisprudência, 84º, 20 e segs.; acórdão do STJ de 24.11.51, BMJ 31º/427), ou na modalidade, todavia não expressamente contemplada pelo legislador, dos arrendamentos rústicos não destinados a cultura (acórdão da Relação do Porto de 26.03.54, favoravelmente comentado na extinta Revista dos Tribunais, 72º, 162 e segs.; cfr., ainda, o acórdão STJ de 7.7.39, comentado na RLJ 73º/76, por Alberto dos Reis). A primeira tese (arrendamento urbano por assimilação) baseava-se na ideia de que, não podendo ser classificados de rústicos, por o respectivo destino não ser a cultura, nem, tão pouco, arrendamentos para o exercício do comércio ou indústria, aqueles contratos teriam de cair na alçada dos preceitos comuns relativos ao arrendamento urbano para habitação, já que tertium genus non datur, isto é, o arrendamento de prédios rústicos ou era rural (destinado a cultura do terreno) ou para o exercício do comércio ou indústria; fora disso, só havia lugar para o regime do arrendamento urbano. A segunda tese (arrendamento rústico não destinado a cultura) repousava nesta outra ideia de que a classificação dos contratos de arrendamento assenta na natureza do imóvel locado, e não no fim do contrato, como parecia admitir a outra tese. A opção por uma ou outra das indicadas teorias não era indiferente, visto que, na área do arrendamento rústico, não se encontravam "os privilégios que a legislação reguladora dos arrendamentos urbanos concede aos respectivos locatários" (citado número da Revista dos Tribunais, pág. 195). A boa razão estaria, no entanto, do lado daqueles que optavam pela qualificação de arrendamento rústico não destinado a cultura. A assimilação propugnada pela RLJ (2) era forçadíssima, quase aberrante, esbarrava, p. ex., com o comando expresso do artº. 86º, da Lei 2030 ("As disposições desta lei em matéria de arrendamento só se aplicam aos contratos relativos a prédios urbanos, salvo o disposto no artigo 79º"), e estendia ao difuso fenómeno da locação de prédios rústicos para fim diferente da cultura, um conjunto de privilégios de recente criação, especificamente ordenados à protecção do arrendatário de prédios urbanos. Quiçá por uma questão de cautela perfeitamente compreensível os outorgantes não dispensaram, no caso, a observância do formalismo imposto pelo artº. 2º, do Decreto de 12 de Novembro de 1910 (aplicável ao arrendamento urbano), tendo preenchido o modelo de impresso de "contracto de arrendamento" que estaria em uso, na época, que, depois, assinaram, com as testemunhas, perante o notário. Em todo o caso, a referência, quanto ao formalismo do arrendamento rústico, era, então, o Código Civil de Seabra (1867), que não sujeitava o contrato a qualquer formalidade. Esta menção às normas legais sobre formalismo negocial vigentes na data do contrato tem a importância que resulta de a lei reguladora das condições de validade formal (e, também, substancial) do contrato ser a vigente à data da sua outorga nos termos do artº. 12, nº. 1 e 2, 1ª parte, CC (3). Como, porém, as partes adoptaram a forma mais solene (a especialmente prevista para o arrendamento urbano), acaba por nem interessar, pelo menos aqui, uma definitiva tomada de posição sobre a qualificação do arrendamento (se urbano, por assimilação, como alguns diziam, se rústico não rural, como outros contradiziam). E muito menos interessará saber qual dos sucessivos regimes legais mencionados (desde o velho Decreto de 1910) é o aplicável à definição actual do conteúdo da relação jurídica derivada do contrato. Isso, se houver necessidade de ser feito, terá de o ser com base na regra da 2ª parte do citado nº. 2, do artº. 12º, CC, e à luz das alterações que o objecto mediato do contrato tenha, porventura, sofrido. O que, agora, interessa é, com efeito, saber se a ré ocupa a posição de arrendatária naquele contrato de arrendamento, pois isso bastará para o êxito da defesa, seja qual seja o regime jurídico do contrato. É, no entanto, com os instrumentos actuais de interpretação do negócio jurídico e com as actuais regras de direito probatório material, que terão de ser abordados os argumentos maiores do recurso, quais sejam o de que os três "arrendatários" do contrato de 1913, actuaram, não em nome individual, mas em representação da ré, ou o de que, do mesmo contrato, faz parte uma cláusula não escrita respeitante à transmissão para a ré da posição jurídica dos arrendatários, ou, ainda, o de que, ao lado daquele contrato escrito, e com a mesma data, existiu um outro, meramente consensual, entre os mesmos outorgantes, no qual os "arrendatários" intervieram em nome e representação da ré, e cuja prova está feita com os recibos de renda. . A natureza formal do negócio, quer ela derive da lei, quer de convenção, quer seja o resultado de escolha circunstancial das partes, não impede o recurso a qualquer espécie de prova, designadamente, a testemunhal, na averiguação do sentido e alcance (a interpretação) das declarações que o compõem. Necessário é que o resultado da interpretação, assim alcançado, encontre, no texto do documento, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artº. 238º, 1, CC). E não é esse, com certeza, o caso da pretendida intervenção representativa (em nome de) dos três arrendatários, intervenientes no contrato. Nisso, não há como não concordar com o acórdão impugnado. Nada, naquele escrito, permite apoiar a ideia de que aqueles três pioneiros do ténis no Porto contrataram em nome de, em representação da ré. Terá sido, aliás, por a ré ainda se não encontrar, à data, validamente constituída (isto é, oficialmente reconhecida como associação desportiva, com personalidade jurídica) que os três assumiram a posição de arrendatários. Essa é, aliás, a explicação que a própria ré dá no articulado da contestação (artº. 12º). A tentativa de demonstração de que os três fundadores agiram em representação e por conta da ré, para além de deparar com o obstáculo intransponível que é a falta, em absoluto, do mínimo de suporte no texto do documento, sempre estaria votada ao insucesso, uma vez que, à data, a ré não existia como pessoa de direito, dela havia, tão só, o embrião orgânico, só mais tarde reconhecido pela ordem jurídica, e, nestas circunstâncias, seria uma impossibilidade jurídica a outorga dos necessários poderes representativos. Em vez da impossível ideia representativa, poderia, antes, configurar-se uma outra de actuação daqueles três pioneiros por conta (só por conta, e não, também, em nome, ou representação) de uma associação a constituir, numa espécie de gestão de negócios, a que seriam aplicáveis as regras do mandato sem representação, tal como, hoje, se encontra estipulado no artº. 471º, CC. Mas, se a ideia da representação, como se viu, não é boa, tão pouco o será estoutra. Vem a propósito recordar que, na época, não era tão nítida como hoje é, a distinção entre mandato e representação voluntária e entre aquele (mandato) e a procuração. No título II, do livro II, da parte II, do Código Civil de 1867, dedicado aos contratos em particular, o contrato de mandato era intitulado de mandato ou procuradoria, numa evidente assimilação das duas figuras jurídicas (mandato e procuração, ali sugestivamente denominada procuradoria), assimilação que se concretiza e desenvolve no correspondente articulado. Só com o pioneiro estudo de Ferrer Correia, intitulado A Procuração na Teoria da Representação Voluntária, e publicado em 1948 (Boletim da Faculdade de Direito, vol. XXIV, pág. 253 e segs.), é que a distinção conceitual e a diferente função económico-jurídica daqueles dois negócios foram postos em evidência, segundo os padrões mais tarde acolhidos pelo actual Código Civil. Embora a figura jurídica da negotiorum gestio não fosse de todo desconhecida, à época, pelo menos nos meios académicos, seria, em todo o caso, de muito duvidosa legalidade/validade a intervenção dos três arrendatários como mandantes sem representação da futura associação desportiva, numa época em que, como se disse, eram indistintas as figuras e as funções do mandato e da procuração. O que, em vez disso, se passou, e está implícito no articulado da contestação (cfr. artº. 13º), foi o conhecimento, por parte das senhorias, dos motivos determinantes da declaração negocial dos arrendatários: a futura constituição do clube de ténis, que passaria a ser, então, o verdadeiro ocupante do prédio arrendado e, por isso mesmo, o arrendatário. Não se trata, aqui, de uma qualquer cláusula verbal contrária ou adicional ao conteúdo do contrato escrito de arrendamento, relativamente à qual se poderiam pôr obstáculos, quer no aspecto da validade (à luz do regime consagrado no artº. 222º, CC, que, na falta de disposição semelhante do Código Civil de 1867, nada obsta a que se aplique como norma integradora daquele velho regime, perante o qual, como vimos, deve ser aferido tudo o que respeita à validade formal e substancial dos negócios realizados durante o seu período de vigência), quer no aspecto do direito probatório material, e, designadamente, das normas que proíbem a prova testemunhal se tiver por objecto o referido tipo de cláusulas (cfr. artº. 394º, 1, CC). Por outro lado, a ideia serôdia de configurar um outro contrato, paralelo, informal, com o mesmíssimo conteúdo do escrito, não passa de uma inocente confabulação da ré. Aceitar, sequer, a discussão, nessa base, seria permitir que a controvérsia regressasse ao princípio, esquecendo que há regras, como a da preclusão (489º, 1, CPC), a respeitar e a não esquecer. As primitivas senhorias assinaram o contrato sabendo bem que os arrendatários o destinavam ao clube de ténis, e, pelos anos fora, até que, no ano de 1982, o falecido B resolveu pôr um fim na situação, sempre os sucessivos senhorios aceitaram o pagamento das rendas em nome da ré (que era em nome da ré que os pagadores se lhes apresentavam), sabendo que era esta quem ocupava o prédio e que era desta o dinheiro que recebiam. Depois da outorga do contrato, são, assim, abundantes as demonstrações de que os primitivos arrendatários cederam informalmente a sua posição contratual à ré, de que os sucessivos senhorios sabiam que era esta ré, e não os signatários do contrato de arrendamento, quem ocupava o prédio, e, finalmente, de que os senhorios cedo reconheceram a ré como a verdadeira arrendatária. Não só tiveram conhecimento da cedência, mas, também, reconheceram a ré como beneficiária dessa cedência, colocando-a no lugar dos primitivos arrendatários. Disso são inequívocas demonstrações os seguintes factos provados: - um grupo de cidadãos do Porto contactou os herdeiros de M para celebrarem um contrato de arrendamento que tinha como objecto o terreno em causa; - os intervenientes no contrato (portanto, quer os senhorios, que eram os citados herdeiros de M, quer os arrendatários, que constituíam a comissão que geria o já existente mas ainda não reconhecido clube) sabiam que o arrendamento se destinava ao dito clube, quando este fosse oficialmente reconhecido como tal; - até Dezembro de 1981, inclusive, as rendas foram pagas directamente aos senhorios pelos diferentes e sucessivos representantes da ré; - I, um dos fundadores do clube e signatário do contrato, em nome do qual sempre os recibos de renda foram passados, mesmo depois da sua morte, pagava a renda em nome da ré e com dinheiro desta, sendo isso do conhecimento dos sucessivos senhorios; - o aumento de renda, feito em 1965, foi negociado, com os senhorios, por sócios da ré diferentes dos signatários do contrato de arrendamento. Que mais seria preciso para, sem margem para qualquer dúvida razoável, concluir que foi sempre do conhecimento dos senhorios a cedência informal feita pelos primitivos arrendatários à ré da respectiva posição contratual e que a ré foi reconhecida pelos sucessivos senhorios como arrendatária, porque beneficiária de tal cedência? A questão é, pois, a de saber se a cedência é válida e é eficaz face ao senhorio, tendo em conta os sucessivos regimes legais que passaram sobre a situação. Não é, como se vê, uma questão de representação, nem, tão pouco, de assunção (pela ré) das obrigações contraídas pelos três primitivos arrendatário (como mandantes sem representação), ao estilo do vigente artº. 595º, CC (para que remete o artº. 471º, do mesmo Código, relativo à gestão de negócios), mas, tão somente, uma questão de cessão, feita pelos três arrendatários, do local tomado de arrendamento à ré. A resolução do problema insere-se, pois, inteiramente, na disciplina do arrendamento, sendo-lhe estranhas, portanto, as normas que regulam o mandato. Nos termos do supracitado artº. 12º, 1 e 2, 1ª parte, CC, a validade da cessão, deve ser aferida pela lei que vigorava ao tempo, e que, como já se disse, era o Decreto 5411, de 17.04.19, onde campeava o princípio da consensualidade, para o arrendamento de prédios rústicos (não destinados a comércio ou indústria) e, para o arrendamento de prédios urbanos e para o comércio e indústria, a regra da forma escrita (artº. 44º). A validade substancial da cessão estava inteiramente coberta pelo artº. 31º, e § único, do citado Decreto, onde se equiparava "para todos os efeitos" a cessão à sublocação e se dava ao sublocatário inteira liberdade para sublocar (artº. 31º: "Se no contrato não houver cláusula alguma proibitiva de sublocação (e é o caso), o arrendatário poderá sublocar livremente, ficando porém sempre responsável para com o senhorio pelo pagamento da renda e mais obrigações derivadas do arrendamento"; § único: A cessão do direito ao arrendamento é equiparada para todos os efeitos à sublocação"). Nesta perspectiva de aparentemente absoluta equivalência daqueles dois negócios (sublocação e cessão), a classificação do arrendamento (se rústico, se urbano) seria, por isso, fundamental para a resolução do problema da validade formal da cedência, uma vez que a sublocação, como subcontrato, obedece aos mesmos requisitos prescritos para a espécie principal. Mas, ao contrário do que o transcrito § único deixava perceber, a cessão do direito ao arrendamento, era, já naquela época, um verdadeiro contrato de transmissão da posição jurídica do arrendatário, e não um simples subcontrato, como é a locação (cfr. Galvão Telles, em Arrendamento - Lições ao Curso Jurídico de 1944-45, pág. 226 e segs.). Conforme já, então (nos idos de 40, do século passado), e, precisamente, sob a vigência do Decreto 5411, ensinava Galvão Telles "a equiparação estabelecida no § único do artº. 31º não é afinal para todos os efeitos; mas só para aqueles que sejam compatíveis com a específica natureza da cessão, que não estejam em antítese com a sua índole própria". Nesta perspectiva, que entendemos como a correcta, não obstante a opinião contrária de Pinto Loureiro (4), e, porventura, de P. Lima e A. Varela, no Código Civil Anotado, tomo II, pág. 324, 1ª edição, devem entender-se como compatíveis com a específica natureza da cessão as normas, vigentes à época, sobre a admissibilidade e liberdade de sublocação, sobre as condições da sua eficácia relativamente ao senhorio (notificação, em se tratando de arrendamento urbano, p. ex. - artº. 32º, Decreto 5411), acerca dos efeitos da sublocação ilegal ou ineficaz sobre a relação locatícia. Mas já não, entre outras, as que versam sobre os requisitos de forma, dada a substancial diferença entre as duas realidades jurídicas, diferença que justifica, plenamente, que as razões que estão na origem da forma prescrita para o arrendamento urbano (e, por isso, para o subarrendamento) já se não justifiquem para a cessão da posição contratual do locatário. Ora, a cessão do direito ao arrendamento não estava então, tal como, hoje, não está (cfr. artº. 425º e 1059º, 2, CC), sujeita à forma prescrita para o contrato principal. Os requisitos de forma da cessão da posição contratual, assim como os de substância, aferem-se e aferiam-se pelo respectivo negócio causa, que, no caso, seja qual tenha sido (doação, compra e venda), não se mostra que implicasse qualquer desvio da vigente regra da consensualidade. Por isso, seja qual seja a classificação atribuída ao arrendamento em causa, sempre a dita cessão seria formalmente irrepreensível. É claro que um entendimento diferente, como o de Pinto Loureiro, sobre o sentido do citado 31º, § único, obrigaria à prévia definição da modalidade de arrendamento implicada, visto que, em tal hipótese, a cessão, absolutamente identificada com a sublocação, seria, ou não, um negócio formal, conforme o arrendamento, e, portanto, o subarrendamento, fosse classificado de arrendamento urbano por assimilação (como acima dito) ou simples arrendamento rústico não rural. A dita cedência informal (dos três primitivos arrendatários para a ré) seria boa ou não (sob o ponto de vista da forma), conforme a qualificação que, segundo os valores coevos, fosse de atribuir ao contrato escrito de 1913: arrendamento rústico (não rural), como, antes, deixamos sugerido, ou arrendamento urbano (por assimilação). Mas, como se disse, não é a esta encruzilhada para que nos levam os caminhos do processo. A solução do problema do processo e do recurso (saber se a ré ingressou na posição jurídica dos três primitivos arrendatários) dispensa a definitiva opção entre aquelas duas modalidades de arrendamento. A cessão informal feita pelos três pioneiros à ré foi válida, como se vê. E, se for exacta a qualificação do arrendamento como rústico não rural, nem seria precisa a notificação das senhorias para ser eficaz perante elas, visto que, à data, a sublocação (e, por via dela, a cessão da posição do locatário) era, não só livre, como ficou dito, mas também eficaz perante o senhorio, sem necessidade de notificação. Mas, ainda que o melhor qualificativo fosse o de arrendamento urbano por assimilação, ainda assim a cessão não teria perdido eficácia. Com efeito, à época da maioria dos factos atrás referidos como reveladores do conhecimento e consentimento da cedência (equiparada, nos termos sobreditos, à locação, e, por isso, livremente negociável), à dita época, vigorava o disposto no artº. 59º, 2º parágrafo ("É dispensada a notificação se o senhorio consentir expressamente em determinada sublocação ou reconhecer o sublocatário como tal") da Lei 2.030. Se não houve, e não houve mesmo, por parte das senhorias, um consentimento expresso para a cessão, não há que duvidar, em contrapartida, que sempre houve, da parte delas, um inequívoco reconhecimento da ré como beneficiária da cessão, reconhecimento que foi como que anunciado no pleno conhecimento dos motivos que determinaram a contraparte (os ditos três pioneiros) a realizar o contrato e, depois, plenamente confirmado pela consciente e reiterada aceitação da mudança operada no estatuto jurídico do clube e do pagamento da renda em nome da ré, com dinheiro dela. Nestas circunstâncias, uma norma como a do artº. 1049º, CC, se outra não houvesse, seria um inescapável referencial de solução do caso (e no mesmo sentido), não, naturalmente, o artigo de lei em si, mas o seu conteúdo, perfeitamente ajustado ao restante regime do citado Decreto 5411. Contra o reconhecimento (que, relembramos, só seria indispensável, se fosse de qualificar o contrato como de arrendamento urbano), é possível argumentar com o teor dos recibos da renda, porque nunca passados em nome da ré, mas sempre no de um dos primitivos arrendatários, I, mesmo para além da morte dele. Mas o argumento, respeitável, acaba por ser reversível, e, para tanto, basta conjecturar sobre a razão pela qual, apesar da morte daquele primitivo arrendatário, os recibos não passaram para o nome dos outros dois co-arrendatários, ou, então, para os herdeiros do falecido. Não terá sido, precisamente, a consciência de que era a ré a arrendatária, que motivou aquele procedimento do senhorio? Não terá sido apenas para conservar uma formal referência aos termos escritos do contrato que o senhorio não modificou o escrito dos recibos da renda, apesar de saber que era em nome da ré que ela era paga, e que era a ré quem detinha o "campo de ténis"? Concluímos, divergindo, em absoluto, das instâncias, que o contrato de arrendamento de 1913, celebrado entre celebrado entre D e E, como senhorios, e I, J e L, como arrendatários, continua vigente, tendo, como senhorios os actuais proprietários e, como arrendatária a ré. Esta tem, portanto, um título que legitima a ocupação que vem fazendo do prédio reivindicado. . Como se viu, procuramos e conseguimos não tomar, aqui, uma definitiva opção pela modalidade de arrendamento de que se trata. Fizemo-lo por duas razões de peso. Uma é a de que, à economia do processo (que é de reivindicação, nos termos do artº. 1311º, CC), basta, em princípio, a discussão sobre se há, ou não há, arrendamento. Sem mais. A outra razão liga-se à primeira, e tem a ver com o facto de a qualificação do arrendamento ter passado, desde o início, à margem do contraditório, sendo, por isso, provável que (tal como deixamos sugerido atrás) não estejam no processo todos os dados relevantes para uma qualificação de tamanhas consequências no futuro das relações entre as partes. . Uma última consideração, prevenindo infundadas perplexidades. As razões do recurso são isso mesmo: razões, argumentos. A autêntica questão do recurso é a de saber se a ré é, ou não, arrendatária. Foi esta a questão decidida, com base em argumentação jurídica diferente da invocada, mas sem desvio do objecto do processo (cfr. artº. 664º, CPC (5)). 4. Pelo exposto, concedem a revista, e, em consequência, absolvem a ré do pedido. Custas, aqui e nas instâncias, pelos autores. Lisboa, 25 de Setembro de 2003 Quirino Soares Neves Ribeiro Araújo Barros ______________ (1) Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL 321-B/90,de 15/10, e alterado pelos DL 278/93, de 10/8, Lei 13/94, de 11/5, DL 163/95, de 13/7, Lei 89/95, de 1/9, DL 257/95, de 30/9, Lei 135/99, de 28/8, DL 64-A/00, de 22/4, DL 329-B/00, de 22/12 e Leis 6/01 e 7/01, ambas de 11/5. (2) Revista de Legislação e Jurisprudência. (3) Código Civil. (4) Tratado da Locação, vol. II, pág. 202. (5) Código de Processo Civil. |