Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1568
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
EFEITOS
EFICÁCIA REAL
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
RESERVA DE PROPRIEDADE
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
MÚTUO CONSENSO
PENHORA
BEM IMÓVEL
REGISTO PROVISÓRIO
CITAÇÃO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: SJ200309180015682
Data do Acordão: 09/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5863/02
Data: 10/29/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Resulta do tipo legal da compra e venda configurado nos artigos 874º e 879º do Código Civil que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço respectivo;
II - Trata-se, pois, de um contrato consensual quoad constitutionem, em que o aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades expresso na forma legal;
III - Flui igualmente da tipicidade legal da compra e venda a sua natureza de contrato real quoad effectum, na medida em que determina a produção imediata do efeito real de transmissão do direito de propriedade [cfr., aliás, os artigos 1317º, alínea a), e 408º, nº. 1, do mesmo Código] e, ainda, de contrato obrigacional, segundo o mesmo critério, na perspectiva dos efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço que dele derivam;
IV - A eficácia real do contrato de compra e venda pode, todavia, ser diferida ou meramente eventual se as partes estipularem, por exemplo, um pactum reservati dominii (artigo 409º) ou outra condição suspensiva;
V - O contrato aperfeiçoa-se em todo o caso, independentemente da produção dos efeitos aludidos, mercê do mútuo consenso dos contraentes, de modo que a obrigação de pagar o preço, nomeadamente, em nada influi na sua perfeição, e tão-pouco condiciona a eficácia translativa na falta de semelhantes estipulações.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. O "Banco A, S.A.", a que mais tarde sucedeu o "Banco B, S.A.", por fusão e incorporação daquele (cfr. fls. 305/307), instaurou no actual 2º juízo cível da comarca do Barreiro, em 14 de Maio de 1998, contra C e outros cinco réus, acção ordinária tendente a declarar que determinado prédio (1) - et pour cause penhorado em execução movida pelo autor ao 1º e 2º réus, onde os interessados vieram a ser remetidos para os meios comuns nos termos do nº. 4 do artigo 119º do Código do Registo Predial (2) - não pertence aos 3º, 4º e 5º réus, apesar de registado em nome deles (3)., por ter sido vendido aos 1º e 2º réus (4). pela 3ª ré e marido - os progenitores, como acaba de se notar, dos 4º e 5º réus -, mediante escritura pública, de 25 de Agosto de 1993, na qual os vendedores outorgaram representados por procurador.
Os 3º, 4º e 5º réus contestaram a transmissão da propriedade do imóvel para os 1º e 2º réus por força deste negócio, e, prosseguindo a acção os seus trâmites procedimentais, foi julgada procedente no saneador em 21 de Setembro de 2001.
Os contestantes apelaram sem sucesso, havendo a Relação de Lisboa confirmado integralmente a sentença.

2. Do respectivo acórdão, tirado em 29 de Outubro de 2002, trazem os mesmos réus a presente revista, cuja alegação sintetizam nas conclusões que se transcrevem:
«1ª No caso dos autos existe uma verdadeira alienação condicionada à suspensão da transferência do domínio até à percepção do preço (artº. 409º do Cód. Civil);
«2ª O comprador enquanto não pagar o preço é um possuidor precário, em nome do proprietário vendedor, pois o contrato de alienação é realizado sob condição suspensiva;
«3ª Enquanto não for pago o preço opera-se uma restrição dos efeitos do contrato, que, decorrido determinado lapso de tempo, poderá excluir, condicional ou definitivamente, a propriedade;
«4ª É efeito da compra e venda a transmissão da propriedade e a obrigação do pagamento do preço, não se operando aquela sem esta (artº. 879º do Cód. Civil), motivo por que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento e está em oposição com os fundamentos em que se apoia (artº. 668º/1/c/ do CPC);
«5ª Os recorrentes sempre foram deduzindo a falsidade ideológica do segmento da escritura pública celebrada em 25.8.93 no Cartório Notarial do B., em que se declarou o pagamento do preço, que nunca chegou a ser feito;
«6ª Donde, nesta perspectiva, verificam-se os pressupostos de contradição e de insuficiência fáctica condicionadores do recurso à medida prevista no artº. 729º/3/ do CPC, de ordenamento de ampliação fáctica e consequente baixa ao Tribunal recorrido;
«7.ª Em consequência, ocorre a nulidade prevista na alínea d. do artº. 668º do CPC (omissão de pronúncia sobre questão primordial) e impõe-se o remédio indicado no artº. 729º/3/ do CPC (ampliação fáctica e baixa do processo).»
O autor e recorrido "Banco B, S.A." pronuncia-se pela confirmação do acórdão em revista.

3. A acção visa, na realidade, ilidir a presunção de titularidade do domínio do aludido prédio emergente do registo predial em favor dos 3º, 4º e 5º réus, para efeitos de conversão em definitivo do registo da penhora a que o imóvel foi sujeito na acção executiva há momentos referenciada.
Flui neste conspecto da sumária alegação de recurso e suas conclusões - reprodução, grosso modo, com adaptações logístico-circunstanciais, da alegação já apresentada à Relação de Lisboa - que o tema a decidir se apresenta delineado na mesma singeleza de contornos, despida de novidades argumentativas, que definiram o objecto do recurso de apelação.
Como das conclusões extractadas bem transparece, trata-se, em resumo, da questão de saber se o contrato de compra e venda só se aperfeiçoa, operando a transmissão da propriedade da coisa, com o pagamento do preço.
II
A Relação considerou assente a matéria de facto apurada já na 1ª instância, para a qual, por não alterada nem impugnada, desde já se remete, ao abrigo do nº. 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das alusões já aduzidas e de outras eventualmente pertinentes.
E, partindo desses fundamentos de facto para o direito aplicável, o acórdão sob revista, sopesando a questão posta, vem em derradeiro termo a dar-lhe resposta negativa de forma a suscitar inteira concordância.
1. Desde logo pondera o aresto em primeiro lugar os aspectos do problema sub iudicio especificados nas conclusões da respectiva alegação - ora reeditados na revista; cfr. supra, 1, 2. e 3. - para concluir que se configuram como questões novas, não colocadas nem apreciadas na 1ª instância, e nessa medida insusceptíveis de recurso (5).
Mesmo, porém, a considerar-se não se tratar de questões novas, as mesmas seriam de todo o modo improcedentes, posto que, não tendo sido estipulada no contrato de compra e venda do prédio aos 1º e 2º réus qualquer cláusula de reserva de propriedade ou condição suspensiva, o efeito translativo da propriedade se operou por força do artigo 879º, alínea a), do Código Civil (6).

2. Sendo esta indubitavelmente a solução correcta, repete-se, permitimo-nos por nossa parte aditar apenas uma nótula ilustrativa.
2.1. Consoante o disposto no artigo 874º do Código Civil, a «compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço» (frisados agora).
Um contrato que «tem como efeitos essenciais», estipula o artigo 879º: «a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) a obrigação de entregar a coisa; c) a obrigação de pagar o preço.»
Resulta, portanto, da tipicidade legal na compra e venda que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio sobre a coisa, por conseguinte, um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço.
Flui por outras palavras do tipo legal da compra e venda, impressivamente, que se trata de um contrato consensual quoad constitutionem, isto é, quanto ao aperfeiçoamento do vínculo, que se atinge, por consequência, mediante o acordo de vontades das partes - o «mútuo consenso» de que falava o nº. 2 do artigo 643º do Código de Seabra (7) -, sem prejuízo, obviamente, da observância da forma legal a que eventualmente esteja sujeita a emissão das declarações de vontade.
De modo algum se pode, em contraponto, qualificar a compra e venda tipificada nos citados preceitos do Código Civil adentro da categoria dos contratos reais, segundo o mesmo critério (Realverträge, na terminologia alemã; v. g., o mútuo, o comodato, o depósito), cuja perfeição dependeria, além do acordo de vontades, ainda da entrega da coisa, ou mesmo, perspectivando a posição dos recorrentes, da entrega da soma monetária que consubstancia o preço (8).
Não se concebendo, todavia, como contrato real quoad constitutionem, a compra e venda é já um contrato real quoad effectum, quer dizer, sob o ângulo da sua eficácia imediata.
Conforme este outro critério consideram-se, na verdade, duas classes de contratos: os contratos reais, com eficácia real ou translativos - dingliche Verträge, na literatura jurídica germânica -, e os contratos obrigacionais.
Estes últimos geram apenas efeitos pessoais ou obrigacionais (v. g., a locação - segundo o entendimento quiçá dominante -, o mandato).
Enquanto os primeiros se caracterizam pela produção de efeitos reais, tais a constituição, transmissão ou extinção de direitos reais, exactamente (9). Neste sentido depõe inclusive o artigo 408º do Código Civil: «A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei» ( nº. 1).
O nosso direito perfilhou assim a solução da eficácia real imediata desses contratos consagrada no Cód. Civil, já acolhida como regra no Código de Seabra (artigo 715º), em detrimento da eficácia meramente obrigacional oriunda da tradição romanística, a que o Código Civil alemão, por exemplo, se mantém nuclearmente fiel (10).
Determinadas figuras contratuais podem, em todo o caso, originar as duas sortes de efeitos. É precisamente o caso da compra e venda, da qual derivam efeitos meramente obrigacionais - a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço - e o efeito real da transmissão da propriedade (11).
O contrato aperfeiçoa-se, porém, independentemente da produção desses efeitos, mediante o mútuo consenso dos contraentes. A obrigação de pagar o preço, por exemplo - recordem-se, a propósito as conclusões dos recorrentes -, é apenas um efeito obrigacional do contrato, passe a redundância, em nada influindo na sua perfeição e tão-pouco condicionando a eficácia translativa.
Este efeito real, por seu turno, de transferência do domínio sobre a coisa, do vendedor para o comprador, verifica-se desde logo pela mera celebração do contrato e no momento desta - artigo 408º, nº. 1, aliás por remissão especialíssima do artigo 1317º, alínea a), a norma justamente vocacionada para a definição do momento de aquisição do direito de propriedade por modo de contrato.

2.2. Pois bem. Revertendo à compra e venda sub iudicio, quer encarando-a na sua veste de contrato consensual quoad constitutionem, quer na de contrato real quoad effectum, sempre o efeito real da transmissão da propriedade do prédio em causa, da titularidade dos 3º, 4º e 5º réus para a esfera jurídica dos 1º e 2º réus, se produziu pelo acordo de vontades dos contraentes exteriorizado no acto da escritura.
É certo que o princípio da transferência imediata da propriedade por mero efeito do contrato de compra e venda, que flui dos artigos 874º, 879º, alínea a), 1317º, alínea a), e 408º, nº. 1, não é princípio de ordem pública, observa-se (12), que as partes não possam afastar - sem curar das excepções legais que declaradamente admite.
A eficácia real do contrato pode ser diferida ou meramente eventual, como no caso paradigmático de as partes convencionarem um pactum reservati dominii (artigo 409º, do Código Civil) ou outra condição suspensiva (13).
Nenhuma semelhante cláusula foi, todavia, aposta ao contrato de compra e venda em causa, sublinha a Relação, sendo a matéria de facto assente efectivamente omissa a esse respeito, pelo que o efeito translativo se operou por mero efeito do contrato, tal como vem decidido.
E isto ainda que o preço acordado - correspondente a um direito dos vendedores, cujo reconhecimento judicial entretanto alcançaram (cfr. supra, nota 6) - não tenha sido por eles recebido nesse acto, como alegam.
III
Improcedem em face do exposto todas as conclusões da alegação de recurso.
A decisão recorrida, designadamente, não incorreu em qualquer nulidade, seja por oposição entre os fundamentos e a decisão, seja por omissão de pronúncia, e muito menos em erro de julgamento, tão-pouco se vislumbrando justificação alguma, salvo o devido respeito, para a pretendida ampliação da matéria de facto.
O acórdão da Relação de Lisboa em revista merece, bem ao invés, integral concordância, seja quanto à decisão, seja no tocante aos seus fundamentos, para os quais com a devida vénia se remete, negando-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 18 de Setembro de 2003
Lucas Coelho
Santos Bernardino
Moitinho de Almeida
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(1) O prédio misto, composto de parte rústica e parte urbana, sito no lugar da ..., freguesia de Santo António da Charneca, concelho do Barreiro, descrito na Conservatória do Registo Predial desta localidade sob o nº. 11.416, a fls. 54 do livro B-38, e inscrito no artigo 28º, Secção Q, da matriz rústica e no artigo 190º da matriz urbana.
(2) Com efeito, efectuada a penhora, o respectivo registo ficou provisório por natureza atendendo ao facto de o imóvel se encontrar inscrito a favor dos 3º, 4º e 5º réus, os quais, citados para os efeitos do nº. 1 do citado artigo, declararam que o prédio lhes pertencia em compropriedade por sucessão de seu falecido marido e pai (cfr. a subsequente nota 3), vindo a resolução do conflito de titularidades, justamente, a ser remetida para os meios processuais comuns, em conformidade com o nº. 4 do artigo 119º do Código do Registo Predial.
(3) Aquisição, registada mediante apresentação nº. 10, de 25 de Setembro de 1995, em comum, por óbito de D, casado em comunhão geral com a 3ª ré - reza a certidão do registo a fls. 11 - e pai dos 4º e 5º réus (cfr. o ponto nº. 3 da matéria de facto considerada assente no saneador/sentença). A fim de evitar equívocos não deixará de se esclarecer que nessa decisão, e noutros passos do processo - cfr. na petição inicial, desde logo, os artigos 3º, 4º, 5º, 7.º e 8.º, e a formulação do pedido, - se alude aos mesmos réus designando-os como 2º, 3º e 4º réus, em contraste com a ordem por que vêm identificados no rosto do petitório, aqui observada.
(4) Alienação igualmente objecto de registo, provisório por dúvidas, mediante apresentação nº. 18, de 9 de Maio de 1997, a favor destes - cfr. a mesma certidão a fls. 12 e o ponto de facto nº. 6 da sentença da 1ª instância.
(5) Citam-se nesse sentido os artigos 676º, nº. 1, 684º, nº. 3, e 690º, do Código de Processo Civil; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 395; e a jurisprudência deste Supremo Tribunal representada pelo acórdão de 22 de Fevereiro de 1994, «Boletim do Ministério da Justiça», nº. 434, pág. 615.
(6) E isto - acrescenta a Relação de Lisboa - sem falar de que os recorrentes aceitaram esse contrato na medida em que intentaram acção contra a sua procuradora na escritura respectiva - como se provou -, na qual obtiveram vencimento através do acórdão deste Supremo Tribunal, de 1 de Março de 2001, na revista nº. 3548/00, que condenou a ré a pagar-lhes a soma - correspondente ao preço da venda que a mesma não lhes entregou - de 10.000.000$00 e juros desde a data da celebração do contrato.
(7) Acerca do mecanismo de «encontro e fusão» dessas exteriorizações do querer no aperfeiçoamento do contrato, pelas quais cada sujeito em presença evidencia a vontade de «um contrato com certo conteúdo», cfr., por todos, Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Reprint da 3ª edição de 1965, Lex, Lisboa, 1995, págs. 67 e seguintes.
(8) Sobre a distinção entre contratos consensuais e reais quoad constitutionem, veja-se Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, pág. 301, nota 3; A. Trabucchi, Instituzioni di Diritto Civile, 16ª ed., Padova, 1968, págs. 706 e seguintes.
(9) Em torno desta outra distinção, também Antunes Varela, op. cit., págs. 300 e segs.; Trabucchi, ibidem.
(10) «Artigo 715º (Alienação de coisas certas e determinadas). Nas alienações de coisas certas e determinadas, a transferência da propriedade opera-se entre os contraentes, por mero efeito do contrato, sem dependência de tradição ou de posse, quer material, quer simbólica, salvo havendo acordo das partes em contrário.». Sobre o tema, com outro desenvolvimento, Antunes Varela, op. cit., págs. 301 e seguintes.
(11) Trabucchi, op. cit., págs. 710 e 773.
(12) Antunes Varela, op. cit., págs. 304 e seguintes.
(13) O mesmo se diga, considerado o respectivo regime legal, da venda de bens futuros e de bens alheios como futuros (artigos 408º, nº. 2, 880º e 893º). Uma resenha de situações similares pode ver-se em Trabucchi, op. cit., págs. 708/710.