Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96A035
Nº Convencional: JSTJ00031486
Relator: RIBEIRO COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
NEXO DE CAUSALIDADE
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
ABANDONO DE SINISTRADO
SEGURO OBRIGATÓRIO
INDEMNIZAÇÃO
LESADO
Nº do Documento: SJ199701140000351
Data do Acordão: 01/14/1997
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N463 ANO1997 PAG562
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 40/95
Data: 01/10/1995
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: M CORDEIRO DIR DAS OBG II 1986 PÁG244.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: DL 522/95 DE 1995/12/31 ARTIGO 6 N1 ARTIGO 19 C E ARTIGO 21 N2 A ARTIGO 25 N1 N2 ARTIGO 29 N1 A N2.
CPC67 ARTIGO 325.
CCIV66 ARTIGO 483 ARTIGO 497 ARTIGO 503 N1 ARTIGO 524 ARTIGO 829-A ARTIGO 1276 ARTIGO 1311.
DL 394/87 DE 1987/12/31 ARTIGO 1.
DL 408/79 DE 1979/09/25.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1993/01/27 IN CJSTJ 1993 TI PAG104.
ACÓRDÃO STJ DE 1994/12/07 IN BMJ N442 PAG155.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/04/04 IN CJSTJ 1995 TI PAG151.
Sumário : I - O fundamento do direito de regresso não é fazer repercutir uma responsabilidade, "qua tale", contra o civilmente responsável, mas levar o tomador do seguro, enquanto contraente relapso, a suportar as consequências danosas reportadas ao seu não cumprimento pontual do contrato.
II - O direito de regresso tem como devedor alguém que é titular de uma obrigação conexa ou contitular da mesma obrigação; o devedor será alguém que seja também responsável pelo acidente.
III - O direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com as circunstâncias especiais que o motivam: não basta que resultem da condução; impõe-se que sejam, por exemplo, consequência típica e adequada de uma condução por condutor alcoolizado, ou que resultem do abandono de sinistrado.
IV - O artigo 29, n. 1, do Decreto-Lei 522/85, de 25 de Setembro, consagra por forma explícita a possibilidade de o lesado, aproveitando-se de um contrato de que não é parte, exigir directamente da seguradora a indemnização a que tem direito, excluindo, inclusivamente, a possibilidade de, estando o pedido contido dentro dos limites do seguro obrigatório, esse pedido ser dirigido, quer unicamente, quer em litisconsórcio voluntário, contra a pessoa civilmente responsável.
O artigo 19 do mesmo diploma indica taxativamente os casos em que a seguradora, uma vez satisfeita a sua obrigação, pode exercer, quanto ao que pagou, um direito de regresso, o que significa que, fora deles, a seguradora assume em definitivo e por inteiro a respectiva responsabilidade, que não poderá fazer recair sobre ninguém mais.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No Tribunal Judicial de Ansião foi proposta por PORTUGAL PREVIDENTE, SA, acção declarativa com processo sumário em que pediu a condenação do réu A a pagar-lhe a quantia de 10730550 escudos, com juros legais desde a citação - valor pago pela autora com referência aos danos patrimonios e não patrimoniais sofridos por B num acidente de viação causado por culpa do réu, que conduzia um veículo seguro na autora e que não socorreu a vítima, apesar de se ter apercebido do acidente.
Na contestação o réu pediu a absolvição do pedido por as lesões sofridas pelo lesado terem resultado apenas do acidente e não de demora, que não houve, na prestação de assistência.
Saneado e condensado o processo, foi realizado o julgamento e proferida sentença que julgou a acção improcedente.
Em apelação da autora houve acórdão da Relação de Coimbra que confirmou o decidido na 1. instância.
Daqui veio a presente revista, onde a autora pede a revogação do assim decidido, fundada nas seguintes conclusões:
A) Abandono de Sinistrado, que era o crime previsto no então em vigor artigo 60 do C.E., verifica-se desde que o responsável por acidente de viação, não preste socorro à vitíma, ainda que esta tenha tido morte imediata em consequência do mesmo.
B) No caso presente dos autos, o Reú foi condenado pela verificação dum factualismo, que impôs a aplicação do artigo 60 do C.E. (crime de abandono de sinistrado).
C) Pelas razões históricas, sistemáticas e literais, o legislador ao prescrever no artigo 19 do Decreto-Lei 522/85 a aplicação do direito de regresso em relação ao Abandono de Sinistrado, não desconhecia o sentido jurídico preciso e claro de tal conceito.
D) Sendo que, ao contrário do previsto para outras materialidades, o legislador não fez restrições ou condições para o exercício do direito de regresso (ver alínea f) do artigo 19 do Decreto-Lei 522/85).
E) É totalmente indiferente, como se referiu, saber se o abandono de sinistrado contribuiu ou não para o agravamento dos danos.
F) Quando na definição do regime jurídico do contrato de seguro, sempre o legislador de forma clara explicitou as materialidades em que o direito de regresso se referia ao agravamento do dano.
G) Violou, assim, o Acórdão proferido, e que ora se recorre a alínea c) do artigo 19 do Decreto-Lei 522/85.
"Ex adverso" defende-se a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
A matéria de facto que as instâncias apuraram é a seguinte:
1 - No dia 8 de Julho de 1988, pelas 20 horas, na estrada que liga Pousaflores a Chão de Couce, no lugar de Furadouro, ocorreu um acidente de viação (alínea
A);
2 - Nele foram intervenientes o veículo pesado de mercadorias de matrícula HL-08-51, conduzido pelo réu no interesse e sob direcção do seu proprietário Albino Marques Fernando, e o velocípede com o motor 1-Ans-03-49, conduzido por B (alínea B);
3- O HL circulava no sentido Pousaflores - Chão de Couce (alínea C);
4 - O velocípede com motor circulava no sentido Chão de Couce - Pousaflores (alínea D);
5 - Ao descrever uma curva que se desenvolvia para a sua esquerda, o HL ocupava a semi-faixa de rodagem esquerda, tudo atento o seu sentido de marcha (alínea E);
6 - O velocípede com motor circulava na semi-faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha (alínea F);
7 - O HL, circulando do modo referido em E), veio a embater com a carroçaria no velocípede (alínea G);
8 - O que ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do velocípede com motor (alínea H);
9 - Em consequência do embate o condutor do velocípede com motor caiu na valeta existente no lado direito da estrada, atento o seu sentido de marcha (alínea I);
10 - O reú, embora tivesse parado e tomado conhecimento do embate, não socorreu o ofendido, tendo reiniciado a sua marcha e vindo a parar tão só em Vendas de Maria - Alvaiázere (alínea J);
11 - Do embate resultaram para o B fracturas da
C6, traumatismo craneano, tendo feito astrodese da C5 e C6, enxerto do ilíaco, osteosíntese do fémur com placa parafusos e apresentando ainda tetraplagia espástica (alínea L);
12 - O B ficou totalmente incapacitado para o trabalho (alínea M);
13 - As lesões afectaram-lhe ainda de modo grave as suas capacidades intelectuais, de procriação e a possibilidade de utilizar o corpo (alínea N);
14 - O réu foi julgado no processo comum singular n. 56/89, na qualidade de arguido, tendo sido condenado por sentença já transitada, pela prática de um crime de ofensas corporais na pena de seis meses de prisão e 48 dias de multa e pela prática de um crime de abandono de sinistrado na pena de oito meses de prisão e 100 dias de multa - cfr. sentença de folhas 25 a
30 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea O);
15 - Em consequência das lesões sofridas o B sofreria tratamento hospitalar nos Hospitais de Aveiro, Caminha e no Centro de Alcoitão (alínea
P);
16 - Tendo sido submetido a intervenções cirúrgicas e, posteriormente, a tratamento de reabilitação (alínea Q);
17 - A autora ressarciu o B pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, no montante de dez milhões de escudos (alínea R);
18 - E efectuou ao Centro Hospitalar de Coimbra o pagamento de despesas hospitalares no montante de 730550 escudos (alínea S);
19 - O lesado, após o acidente, foi socorrido por pessoas que passaram no local (1.);
20 - E que de imediato telefonaram aos Bombeiros de Ansião pedindo uma ambulância (2.);
21 - Que desde logo se deslocou ao local do acidente, tendo transportado o lesado ao Centro Hospitalar dos Covões (3.);
22 - Onde foi assistido e tratado com os inerentes cuidados médicos, tendo ficado internado (4.).
Prova-se documentalmente ainda o seguinte:
- Efectuado o cúmulo jurídico das penas parcelares acima discriminadas, como consta da certidão de folhas
159 v. e 160, foi o aqui Réu condenado no citado processo-crime, na pena única de onze meses de prisão e 123 dias de multa à taxa diária de 300 escudos e na multa global de 1000 escudos, o que perfaz a multa global de 37900 escudos, com a alternativa de
82 dias de prisão, ficando inibido de conduzir por 30 dias, tendo-lhe sido suspensa a execução da pena de prisão de 11 (onze) meses por cinco anos, o que tudo, como se referiu, transitou em julgado;
- Por último o capital seguro era de cem mil contos (folha 8 e 9).
O acidente a que os autos respeitam aconteceu em 8 de Julho de 1988, data em que o montante do capital obrigatoriamente seguro, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel era de 12000000 escudos por lesado, com o limite de 20000000 escudos no caso de coexistência de vários lesados; assim resultava do artigo 6, n. 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro - ao qual pertencerão as normas que em seguida se mencionarem sem outra indicação -, na redacção dada pelo artigo 1. do Decreto-Lei 394/87, de 31 de Dezembro.
A autora, na sua qualidade de seguradora responsável pelo acidente a que os autos respeitam, pagou ao lesado 10730550 escudos.
As preocupações de índole social subjacentes ao regime de seguro obrigatório - introduzido entre nós pelo Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro, depois substituído pelo actualmente vigente Decreto-Lei 522/85
- colocaram as seguradoras na posição de primeiras e, muitas vezes, únicas responsáveis pelos danos decorrentes de acidentes de trânsito.
Que assim é, resulta desde logo do artigo 29, n. 1, e do artigo 19.
Do primeiro, porque consagra de forma explícita a possibilidade de o lesado, aproveitando-se de um contrato de que não é parte, exigir directamente da seguradora a indemnização a que tem direito, excluindo, inclusivamente, a possibilidade de, estando o pedido contido dentro dos limites do seguro obrigatório, esse pedido ser dirigido, quer unicamente, quer em litisconsórcio voluntário, contra a pessoa civilmente responsável.
Do segundo, porque indica taxativamente os casos em que a seguradora, uma vez satisfeita a sua obrigação, pode exercer quanto ao que pagou um direito de regresso, o que significa que fora deles a seguradora assume em definitivo e por inteiro a respectiva responsabilidade, que não poderá fazer recair sobre ninguém mais.
Este regime traduz, em princípio, uma desresponsabilização daquele que seria, em termos correntes, a pessoa civilmente responsável, porque dentro dos limites previstos no artigo 6, n. 1, apenas responderá a seguradora; esta desresponsabilização vai ao ponto de, havendo falência da seguradora obrigada por seguro válido e eficaz, a seguradora ser substituída pelo Fundo de Garantia Automóvel, que apenas poderá exercer os seus direitos de credor subrogado contra esta, e nunca contra o civilmente responsável - artigos 21, n. 2, alínea a) e 25, n. 1 e 2.
Esta ideia de desresponsabilização daquele que seria o civilmente responsável não cede perante a possibilidade de a seguradora fazer intervir o tomador do seguro, nos termos previstos no artigo 29, n. 2.
É, neste campo, importante atentar em que se prevê a intervenção de quem seja tomador do seguro, e não de quem for responsável civilmente - o que não coincide necessariamente; isto quer dizer que tal intervenção encontra o seu fundamento na responsabilidade contratual, e não na responsabilidade extracontratual.
A lei não diz que forma de intervenção é esta, sendo de considerar, desde logo, que se está a remeter para, de entre os incidentes de intervenção de terceiros previstos no CPC, aquele ou aqueles que se mostrarem pertinentes; e perfila-se, então, como adequado o chamamento à autoria - artigo 325 do CPC -, destinado a facilitar o exercício do direito de regresso previsto, com determinados pressupostos, no artigo 19, alínea e), que respeita, precisamente, ao tomador do seguro.
Isto mostra que o fundamento deste direito de regresso não é fazer repercutir uma responsabilidade, "qua tale", contra o civilmente responsável, mas levar o tomador do seguro, enquanto contraente relapso, a suportar as consequências danosas reportadas ao seu não cumprimento pontual do contrato.
De tudo há que reter a ideia, a nosso ver fundamental, segundo a qual o artigo 19 faculta à seguradora o exercício de diversos direitos de regresso, que adiante concretizaremos.
Em direito civil as sanções, entendidas como os dispositivos normativos destinados a obviar à violação de normas jurídicas, podem agir de forma preventiva, repressiva ou reparadora; assim se passa, respectivamente, com os preceitos contidos nos artigos 1276, 1311 e
483 do CC - cfr. Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, 1986, págs. 244-246.
As sanções civis pecuniárias podem participar destas duas últimas naturezas - repressivas quando visam constranger o devedor ao cumprimento, reparadoras quando procuram compensar o credor ou o lesado pelos prejuízos sofridos pela ofensa ao seu direito.
Como meios de coerção ao cumprimento, as sanções pecuniárias podem ter origem legal - cfr. o artigo 829-A do CC - ou contratual - caso de "multas" estipuladas em contratos de empreitada em função do atraso na conclusão da obra.
Num caso e noutro são puramente acessórias à obrigação principal; não são um seu substitutivo ou sucedâneo.
Já as sanções reparadoras - que tanto podem ser indemnizações a fixar de acordo com uma valoração concreta dos prejuízos segundo metodologia legalmente fixada, como podem representar uma quantificação pré-fixada por contrato para compensação dos prejuízos sofridos - podem ser tidas como obrigações principais, integrantes do núcleo essencial da obrigação, quer como seu único e originário conteúdo, quer como prestação pecuniária substitutiva ou complementar da obrigação inicial; estas hipóteses verificam-se, sucessivamente, na responsabilidade extra-contratual e nas duas modalidades de responsabilidade contratual - casos de incumprimento definitivo e de simples mora.
Estas considerações visam encontrar o lugar sistemático que o chamado "direito de regresso" ocupa no plano das sanções civis pecuniárias.
Por ele visa-se obter o reembolso, total ou parcial, de uma obrigação que se satisfez, este reembolso tanto tem lugar à custa de alguém que faz parte de uma relação jurídica estabelecida com o seu credor e que tem conexão com uma outra em que o agora credor foi devedor, aí tendo sofrido o prejuízo cujo ressarcimento agora busca, como pode ter lugar à custa de alguém que participava com o ora credor na relação jurídica onde ocorreu o prejuízo, aí partilhando ambos a mesma posição devedora plural.
A primeira destas duas alternativas tem lugar quando
A, faltando ao cumprimento para com B da entrega pontual de uma máquina que lhe vendera, por virtude de atraso de C no cumprimento do acordo que com ele fizera para o fornecimento da mesma, pede a C o pagamento do que teve de pagar a B como indemnização por não ter cumprido em devido tempo.
A segunda ocorre quando, em sede de responsabilidade contratual, o devedor solidário pede dos seus condevedores o que pagou ao credor comum para além da parte que lhe competir, ou quando, em sede de responsabilidade extra-contratual, o responsável que pagou quer repercutir na esfera jurídica dos outros responsáveis o que a estes couber, na medida das suas culpas e das consequências delas advenientes - artigo
524 e 497 do CC.
De tudo pode retirar-se a ideia segundo a qual o direito de regresso tem como devedor alguém que é titular de uma obrigação conexa ou contitular da mesma obrigação.
Aqui chegados, há que começar a perceber o que diz o artigo 19.
O seu corpo afirma a existência de um direito de regresso por parte da seguradora que satisfez a indemnização.
Logo, aquilo que o devedor deste direito de regresso tem que satisfazer começa por coincidir no todo ou em parte, ressalvados acréscimos legais que entretanto ocorram, com a indemnização que a seguradora pagou.
E quem é o devedor deste direito de regresso?
Somos imediatamente levados a pensar no referido artigo 497, o que nos aponta a seguinte solução de princípio:
- o devedor será alguém que seja também responsável pelo acidente.
Nas alíneas a), d) e f) - que contemplam, sucessivamente, aquele que causou dolosamente o acidente, aquele que responde civilmente por danos decorrentes de queda de carga mal acondicionada e aquele que não cumpriu o dever de submeter o veículo a inspecção periódica - o devedor é alguém que, na falta do contrato de seguro, seria civilmente responsável pelo acidente, a título de responsabilidade extra-contratual; nos dois primeiros casos há culpa efectiva, no terceiro há, face à técnica legal usada na alínea f), uma culpa presumida.
O direito de regresso existe, verdadeiramente, nesta configuração, na medida em que a seguradora, primeira e principal responsável por força do artigo 29, vem pedir de co-responsáveis o reembolso do que já pagou por virtude de obrigação comum.
Na alínea b) os devedores de regresso são os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente; também aqui não é difícil encontrar fundamento para a sua qualificação como responsáveis civis, na medida em que, normalmente - e ao menos nesse caso e nesse âmbito existe um vínculo de prévia responsabilização -, serão abrangidos pela previsão do artigo 503, n. 1, do CC; e o fundamento do direito de regresso estará em que a circulação do veículo é alheia à vontade do seu legítimo detentor, com quem a seguradora contratou; neste caso a circulação do veículo é, ao contrário da sistemática generalidade dos casos possíveis, contrária à vontade deste e alheia ao espírito subjacente ao contrato. Daí que, pagando por força da função social do seguro obrigatório, seja legítimo o direito de regresso.
Na alínea e) o devedor era chamado à responsabilidade a um outro título - o de responsabilidade contratual para com a seguradora, por ter dado origem a uma situação de suspensão do contrato da qual resultava a sua responsabilização pelo que a seguradora fosse levada a pagar.
É um caso de direito de regresso integrado no âmbito de relação jurídica conexa.
Em qualquer destes casos há um fio condutor comum: o de a indemnização paga pela seguradora ser também,
"ab origine", conteúdo de responsabilidade própria do devedor de regresso.
Claramente diferente é o que se passa com a restante alínea c).
Surgem aqui como devedores de regresso o condutor sem habilitação legal, o condutor sob influência de álcool, estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos e o condutor que haja abandonado o sinistrado.
A condução efectuada em qualquer daquelas circunstâncias e o abandono de sinistrado não são, só por si, causadores de prejuízos.
Se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não deve aquele direito ser estendido a consequências que não têm que ver com as circunstâncias especiais que o motivam.
Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com aquelas circunstâncias; não basta que resultem da condução; impõe-se que sejam, por exemplo, consequência típica e adequada de uma condução por condutor alcoolizado, ou que - e com isto chegamos ao núcleo central da questão versada nesta revista - resultem do abandono de sinistrado a que houve lugar.
Chegamos, deste modo, a conclusão igual à que foi adoptada nos acórdãos proferidos por este STJ em 27 de Janeiro de 1993 - Col. Jur. - STJ 1993-I-104 - e em
7 de Dezembro de 1994 - BMJ n. 442, pg. 155. E diverge-se do entendimento seguido por este mesmo STJ no acórdão de 4 de Abril de 1995 - Col. Jur. - STJ 1995-I-151 -, que assenta na ideia da sanção civil, que nos parece, pelas razões indicadas, consentânea com a noção de direito de regresso.
Os factos provados não habilitam a concluir que o abandono de sinistrado cometido pelo réu haja contribuído para a produção ou para o agravamento dos danos sofridos pela vítima do acidente.
Nem a recorrente pretende que se julgue, neste particular, de modo diverso.
A sua tese assenta, simplesmente, em razões jurídicas opostas àquelas a que aderimos, decorrendo a sua improcedência de tudo o que deixámos dito.
Apenas se dirá ainda que a forma como entendemos a lei não significa que o legislador do Decreto-Lei 522/85 desconhecesse o conteúdo jurídico do crime de abandono de sinistrado; simplesmente, o direito de regresso previsto no artigo 19, alínea c), está no plano das consequências civis de um crime, e não no âmbito da sua regulamentação em direito penal.
Pelo exposto, nega-se a revista, com custas pela recorrente.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1997.
Ribeiro Coelho,
Herculano Lima,
Aragão Seia.