Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | MÁRIO PEREIRA | ||
| Descritores: | JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO TRABALHADORA GRÁVIDA DEVER DE LEALDADE PRÁTICA DISCIPLINAR ÓNUS DA PROVA | ||
| Nº do Documento: | SJ200704180042784 | ||
| Data do Acordão: | 04/18/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Sumário : | I - Encontrando-se a trabalhadora grávida aquando da instauração do processo disciplinar e se o parecer da Comissão para Igualdade no Trabalho e no Emprego for desfavorável ao despedimento, este só pode ser efectuado após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo - art. 24.º n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 4/84 de 5 de Abril na redacção do anexo ao DL n.º 70/2000 de 4 de Maio. II - Face à estrutura e princípios que regem os termos do processo disciplinar e a acção de impugnação de despedimento no Código do Trabalho (vg. os arts. 411.º, n.º 1, 415.º, n.ºs 2 e 3 e 435.º, n.º 3) e aos princípios gerais do ónus da prova constantes do art. 342.º do CC, os factos integradores da justa causa são constitutivos do direito do empregador a despedir o trabalhador, ou, na perspectiva processual da acção de impugnação do despedimento, impeditivos do direito à reintegração ou indemnizatório que o trabalhador nela acciona, incumbindo ao empregador o respectivo ónus da prova. III - Integra justa causa de despedimento o comportamento da trabalhadora que exerce habitualmente funções de operadora de caixa registadora que, dirigindo-se à caixa destinada às compras dos funcionários do hipermercado em que laborava, procedeu à aquisição de produtos que retirou de expositores da loja sem nada por eles pagar e com recurso a vales de desconto que apenas podiam ser descontados em produtos distintos daqueles que adquiriu apesar de, no cumprimento das ordens e instruções do seu empregador, sobre si recair a específica obrigação de impedir que os vales de desconto fossem afectados ao pagamento de produtos a que não se destinavam. IV - No apontado quadro, a conduta da trabalhadora prejudica de forma irremediável a relação de confiança subjacente ao exercício das suas funções de operadora de caixa e integra justa causa de despedimento. V - A perda de confiança resultante da violação do dever de lealdade não está necessariamente dependente da verificação de prejuízo significativo, ou mesmo de prejuízo para o empregador. VI - Compete ao trabalhador alegar e provar os factos reveladores da desproporcionalidade ou desigualdade de tratamento disciplinar, como meio de impedir a virtualidade extintiva do contrato de trabalho própria da sua actuação integradora de justa causa de despedimento. * * Sumário elaborado pelo Relator. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I – A autora Empresa-A pede, com a presente acção com processo comum, que se reconheça a existência de motivo justificativo para o despedimento da ré AA. Alegou, para tal, em síntese: A R. foi admitida ao seu serviço em 31/07/2005, exercendo actualmente funções de operadora de caixa registadora no seu estabelecimento de S. M. Feira. No dia 4 de Maio de 2004, a R. dirigiu-se à caixa registadora destinada ao pagamento de compras efectuadas pelos funcionários do estabelecimento e procedeu à aquisição de duas embalagens de “maltesers” que retirara dos expositores da loja, com o preço de € 3,98, com recurso a 16 vales de desconto que, como a R. sabia, se destinavam, unicamente, a ser descontados na compra dos produtos de marca “diese” indicados nas monofolhas e não na compra de maltesers. A A. tem fundadas suspeitas que R. pretendia repetir o seu comportamento, pois que nesse mesmo dia se apoderou de cerca de 35 folhetos promocionais contendo vales de desconto. A este respeito, correu o respectivo processo disciplinar, com apuramento dos referidos factos, tendo a A. motivo justificativo para proceder ao despedimento da R.. A R. contestou, invocando, em síntese: É falso que tenha sido a R. quem procedeu ao pagamento de maltesers com vales de desconto, mas sim uma sua colega de trabalho, BB. De todo o modo, sempre seria em última análise à funcionária da caixa registadora que competiria aferir da legitimidade do desconto pretendido. Não existe, pois, fundamento para qualquer sancionamento disciplinar e muito menos o pretendido despedimento, sendo que, ainda que se apurassem os factos do processo disciplinar, sempre a sanção em causa seria desproporcionada. Concluiu pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido. Saneada, instruída e julgada a causa, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e reconheceu a existência de motivo justificativo para o despedimento da Ré, tendo ainda condenado a R. na multa de 12 (doze) UCs, como litigante de má fé. Apelou a R., tendo a Relação de Coimbra confirmado a sentença. II – Novamente inconformada, a R. interpôs a presente revista, com as seguintes conclusões: 1ª. Tendo em conta que o quadro factual relevante integra, para além dos factos dados como provados na primeira instância, a matéria considerada igualmente provada pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto ora sob recurso que constitui o n.º 23 daquela relação de factos provados ("na sequência dos factos que estiveram na origem do processo disciplinar instaurado contra a Ré, a A. instaurou também processos disciplinares contra as trabalhadoras BB e CC, que findaram com a aplicação a cada uma da sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade por um período de 8 dias úteis), ter-se-á de concluir que a sanção de despedimento da R. ora recorrente é desajustada ao respectivo comportamento tendo em conta a prática disciplinar da A. em relação àquelas colegas, nomeadamente à colega CC. 2ª. Aliás, perante o circunstancialismo decorrente da matéria vertida, entre outros, nos pontos 8°, 18° e 23° da relação de factos provados, o despedimento da R. poria em causa os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento plasmados no art.º 367° e 396° do Código do Trabalho bem como o disposto no art.º 396° n.º 2 do mesmo Código, dispositivos esses que desse modo se mostram violados pelas decisões judiciais quer do Tribunal da Primeira Instância quer do Tribunal da Relação do Porto de que ora se recorre. 3ª. Por outro lado, a gravidade do comportamento da R. e os reflexos do mesmo para a Recorrida não foram de molde a justificar o respectivo despedimento atendendo até à postura por esta adoptada relativamente às outras duas colegas daquela, designadamente à colega CC, e ao facto de a R. nunca ter sido antes sujeita a qualquer sanção ou processo disciplinar, tendo cumprido as suas obrigações profissionais de uma forma regular e correcta durante o tempo em que trabalhou para a A. (cfr. ponto 19° dos factos provados). 4ª. Por tudo isso, o comportamento da R., ora recorrente, não foi adequado a tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, não se justificando em consequência o respectivo despedimento. 5ª. Para além dos dispositivos legais já citados a douta sentença da 1ª instância e o douto Acórdão ora sob recurso não tiveram também em devida conta o disposto no art.º 415º nº 3 do Código do Trabalho. 6ª. Deve por isso concluir-se, face a todos os factos dados como provados e ao circunstancialismo que rodeou o comportamento da Recorrente e o das colegas acima mencionadas, pela inexistência de fundamentos suficientes para o respectivo despedimento. Pede que se revogue a sentença recorrida, concluindo-se pela inexistência de fundamentos suficientes para o despedimento da R., com todas as consequências legais. A A. contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado. No seu douto Parecer, não objecto de resposta das partes, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo pronunciou-se no sentido de ser negada a revista. III – Colhidos os vistos, cumpre decidir. O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos, que aqui se aceitam por não haver fundamento legal para os alterar: 1- A Ré foi admitida ao serviço da Autora, no dia 31 de Julho de 2001, por contrato de trabalho celebrado naquela mesma data – documento n.º 1, junto com a p.i. que aqui se dá por reproduzido; 2- Actualmente, a Ré exerce as funções de Operadora de Caixa Registadora no estabelecimento Empresa-A de Santa Maria da Feira; 3- Auferindo, como vencimento base, em contrapartida do trabalho prestado, a quantia de € 436,00 (quatrocentos e trinta e seis euros), conforme cópia de recibo de vencimento junto como documento n.º 2 com a p.i., que aqui se dá por reproduzido; 4- Em 17 de Maio de 2004, iniciou-se processo prévio de inquérito para, com base nos factos constantes da participação disciplinar de 6 de Maio, averiguar se existia fundamento para a arguição de procedimento disciplinar contra a Ré, tendo posteriormente sido convertido em procedimento disciplinar com intenção de despedimento, em 17 de Junho de 2004, conforme processo disciplinar junto como documento n.º 3 com a p.i. e aqui se dá por integralmente reproduzido; 5- Durante o período compreendido entre 23 de Abril e 5 de Maio de 2004, a Autora, no seu estabelecimento de Santa Maria da Feira, realizou uma promoção de produtos da marca “diese”; 6- De acordo com a qual os clientes, e também os funcionários da Autora, ao adquirirem determinados produtos daquela marca devidamente indicados em folhetos promocionais (monofolhas) que existiam na loja podiam proceder ao desconto, no respectivo preço daqueles produtos, de vales no montante de 25 cêntimos cada; 7- Os referidos vales de desconto estavam anexados às monofolhas que continham a indicação dos produtos da marca “diese” em promoção e os clientes e funcionários da Autora, quando adquirissem algum desses produtos, deveriam recortar pelo picotado o vale de desconto e entregá-lo à funcionária da caixa registadora, para que esta procedesse ao respectivo desconto no preço dos produtos; 8- As instruções da Autora são no sentido de que os vales de desconto apenas podem ser utilizados na compra dos produtos que lhe estão associados, neste caso os produtos da marca “diese” constantes do folheto promocional e nunca na compra de quaisquer outros produtos; 9- No dia 4 de Maio de 2004, cerca das 19h e 15 m, no seu intervalo de jantar, a Ré dirigiu-se, na companhia da funcionária BB, à caixa registadora destinada ao pagamento de compras efectuadas pelos funcionários do estabelecimento e procedeu à aquisição de duas embalagens de “maltesers” que retirara dos expositores da loja, com o preço de € 3,98, com recurso a 16 dos referidos vales de desconto, sem proceder ao pagamento do respectivo preço; 10- A Ré sabia que os vales de desconto se destinavam, unicamente, a ser descontados na compra dos produtos de marca “diese” indicados nas monofolhas e não na compra de maltesers; 11- A Ré, sendo Operadora de Caixa Registadora, tinha particular consciência dos procedimentos a utilizar no desconto de vales e da relevância dos mesmos para a Autora; 12- A Autora dedica-se à venda ao público de produtos a retalho em grandes superfícies comerciais nas quais prestam serviço muitos funcionários; 13- No dia 4 de Maio, entre cerca das 19h30 e 21h30, a Ré retirou do balcão de Apoio ao Cliente cerca de pelo menos 35 dos referidos folhetos promocionais (monofolhas) e dirigiu-se ao provador da loja onde, nessa data, estava a prestar serviço; 14- Aí, a Ré recortou os vales de desconto e deitou ao lixo, já sem os respectivos vales, as monofolhas; 15- A Autora é associada do CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal e delegada sindical; 16- Embora categorizada pela A. como operadora de supermercado de 2ª, tem sido incumbida de exercer funções de operadora de caixa registadora; 17- Durante um período não apurado que abrangeu os dias 4 e 5 de Maio, a Autora esteve a desempenhar funções no provador e não na caixa registadora; 18- As instruções referidas em “8” eram do conhecimento das operadoras das caixas registadoras que se encontravam em funções nos dias 4 e 5 de Maio de 2004; 19- Durante o tempo em que a Ré trabalhou na Autora, cumpriu as suas obrigações profissionais de uma forma regular e correcta; 20- Nunca tendo sido alvo de qualquer sanção ou procedimento disciplinar; 21- E manteve sempre boas relações profissionais com companheiros de trabalho, superiores hierárquicos e clientes, a quem sempre tratou com respeito e urbanidade; 22- À data da instauração do procedimento disciplinar, a Ré estava grávida. 23- Na sequência dos factos que estiveram na origem do processo disciplinar instaurado contra a Ré, a A. instaurou também processos disciplinares contra as trabalhadoras BB e CC, que findaram com a aplicação a cada uma da sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade por um período de 8 dias úteis. IV – A sentença entendeu que os factos provados integram a justa causa de despedimento e daí que tenha julgado provada a acção. O mesmo aconteceu com o acórdão recorrido, que aderiu à fundamentação e decisão da sentença, nos termos do art.º 713º, n.º 5 do CPC. A R. continua a discordar do decidido, defendendo, em síntese, que o seu comportamento não revestiu gravidade suficiente para ditar o despedimento, acrescendo que, em qualquer caso, a aplicação dessa sanção disciplinar é desajustada tendo em conta a prática disciplinar da A., quanto às 2 colegas de trabalho da R., violando os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento. Questiona, pois, a verificação da justa causa de despedimento. É, pois, esta a questão que, levada às conclusões, constitui objecto do presente recurso (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC). Conhecendo: Há que começar por referir, como o fez a sentença, que, no caso dos autos, face ao regime aplicável, constante do disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.º 24º da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, na redacção vigente à data da infracção disciplinar imputada à R. (1) (2), “o despedimento (...) só pode ser efectuado após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo”. Dispõe, com efeito, esse art.º 24º, na parte que aqui interessa: “1. A cessação do contrato de trabalho de trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes, promovida pela entidade empregadora, carece sempre de parecer prévio da entidade que, no âmbito do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, tenha competência na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. 2. O despedimento de trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes presume-se feito sem justa causa. (...) 4. Se o parecer referido no n.º 1 for desfavorável ao despedimento, este só pode ser efectuado após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo (...)”. Ora, no caso, encontrando-se a R. grávida aquando da instauração do processo disciplinar, a A. solicitou a emissão do aludido parecer à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, tendo esta entidade emitido parecer desfavorável ao despedimento, nos termos de fls. 90 e segs., julgando ser excessiva a pena expulsiva, que “(…) poderia traduzir-se numa discriminação em função do sexo na medida em que se trata de uma trabalhadora grávida”. Assim sendo, é ao Tribunal que cabe determinar se existe ou não motivo justificativo (justa causa) para que a A. possa proceder ao despedimento da R., analisando se os factos que lhe foram imputados no processo disciplinar estão ou não apurados e se são suficientes para o efeito. A sentença fez acertadas considerações sobre a figura da “justa causa de despedimento”, sua noção e requisitos e respectivos critérios de apreciação e valoração, para as quais remetemos. Lembraremos apenas, em jeito de síntese, os seguintes aspectos: Como foi entendido nas instâncias, sem discordância das partes, ao caso dos autos, é aplicável o regime constante do Código do Trabalho (CT), aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, atenta a data da infracção disciplinar imputada à R. (4 de Maio de 2004), ulterior à entrada em vigor desse Código (3 ) . Segundo o disposto no art. 396º, nº 1, do Código do Trabalho, “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral constitui justa causa de despedimento.” Daí que, tal como era defendido no anterior regime, perante idêntica norma (4) , se continue a entender que a noção de justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de 2 requisitos: - um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador de deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, grave em si mesmo e nas suas consequências; - que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral. Como se deixou consignado na sentença, existe a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral Nas palavras de Monteiro Fernandes (5), “não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença - fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo (...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”. Ou como refere noutro passo, “a cessação do contrato, imputada a falta disciplinar, só é legítima quando tal falta gere uma situação de impossibilidade de subsistência da relação laboral, ou seja, quando a crise disciplinar determine uma crise contratual irremediável, não havendo espaço para o uso de providência de índole conservatória” (6). Refira-se ainda que, no n.º 3 do referido art.º 396º, se indicam, exemplificativamente, comportamentos susceptíveis de justificar o despedimento. É de ter ainda presente que, na apreciação da gravidade da culpa e das suas consequências, deve recorrer-se ao entendimento do “bonus pater familias”, de um “empregador razoável”, segundo critérios objectivos e razoáveis, em face do circunstancialismo concreto, devendo atender-se, “no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”, como estabelece o n.º 2 do art.º 396º. É ainda de lembrar que, não obstante não haver, no Código do Trabalho, norma idêntica à da parte final do n.º 4 do art.º 12º da revogada LCCT, segundo a qual cabia à entidade empregadora, na acção de impugnação judicial do despedimento, a prova dos factos constantes da decisão de despedimento , isto é, integradores da respectiva justa causa (7), entendemos que é de manter o mesmo entendimento, face à estrutura e princípios basicamente idênticos que regem os termos do processo disciplinar e a dita acção de impugnação, no CT, e aos princípios gerais do ónus da prova, constantes do Código Civil. Lembremos, designadamente, que cabe ao empregador a imputação dos factos integrantes da justa causa de despedimento, a descrever na nota de culpa e a dar como assentes na decisão final do processo disciplinar (art.ºs 411º, n.º 1 e 415º, n.ºs 2 e 3 do CT), e que, nos termos do n.º 3 do seu art.º 435º, “na acção de impugnação do despedimento, o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador”. Neste quadro, pode afirmar-se que os factos integradores da justa causa são constitutivos do direito do empregador ao despedimento do trabalhador ou, na perspectiva processual da dita acção de impugnação, impeditivos do direito à reintegração ou ao direito indemnizatório que o trabalhador nela acciona, com base numa alegada ilicitude do despedimento, e como tal a provar por ele empregador (art.º 342º, n.º 1 do CC) (8). E, atenta a especial configuração e finalidade da presente acção, acima salientada, em que o empregador é autor e pede o reconhecimento de que os factos invocados no processo disciplinar integram justa causa de despedimento a fim de poder efectivar o despedimento (ver n.º 4 do referido art.º 24º da Lei n.º 4/84, na citada redacção), tais factos assumem aqui, claramente, a natureza de factos constitutivos do direito accionado, sempre a alegar e provar pelo empregador (art.º 342º, n.º 1 do CC). Refira-se, a terminar a abordagem desta questão, que as asserções acima tiradas se harmonizam inteiramente com o grande princípio norteador neste domínio, segundo o qual, em regra, existe uma correspondência entre o ónus alegatório e o ónus probatório, sendo, por isso, que, em princípio, a parte que retira vantagem da alegação de um determinado facto, por efeito da sua subsunção a norma jurídica que lhe atribui um efeito favorável, é quem tem o dever de o alegar e provar (Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, págs. 199-200). Feitas estas considerações, vejamos o caso dos autos. Vêm provados os seguintes factos relevantes que a A. imputou à R. para promover o seu despedimento: No dia 4 de Maio de 2004, cerca das 19h e 15 m, no seu intervalo de jantar, a Ré dirigiu-se, na companhia da funcionária BB, à caixa registadora destinada ao pagamento de compras efectuadas pelos funcionários do estabelecimento e procedeu à aquisição de duas embalagens de maltesers que retirara dos expositores da loja, com o preço de € 3,98, com recurso a 16 vales de desconto da marca diese. Os clientes e também os funcionários da Autora apenas ao adquirirem determinados produtos desta marca devidamente indicados em folhetos promocionais (monofolhas) que existiam na loja podiam proceder ao desconto, no respectivo preço daqueles produtos, de vales no montante de 25 cêntimos cada. Ora, a Ré adquiriu as duas embalagens de maltesers sem proceder ao pagamento do respectivo preço, sendo que sabia que aqueles vales de desconto se destinavam, unicamente, a ser descontados na compra dos produtos de marca diese indicados nas monofolhas e não na compra de maltesers, tendo particular consciência dos procedimentos a utilizar no desconto de vales e da relevância dos mesmos para a Autora por ser operadora de caixa registadora. A actuação da R. (ao apropriar-se, sem as pagar, das duas embalagens de “maltesers”, utilizando para tal um meio que sabia ser-lhe vedado – a utilização, fora das condições permitidas, dos vales de desconto) constitui infracção disciplinar – nem ela, aliás, o nega, na revista. Essa sua actuação traduz, como bem salientaram as instâncias, a violação dos deveres de obediência, fidelidade e lealdade, previstos no art.º 121º, n.ºs 1, als. d) e e), e 2 do Código do Trabalho. E esse ilícito disciplinar assumiu, no caso concreto, acentuada gravidade. Foi cometido de forma intencional, dolosa. E traduziu uma actuação que a R. tinha o dever especial de não levar a cabo, já que respeitou a um domínio em que tinha particulares responsabilidades, por via das suas funções habituais de operadora de caixa registadora (embora, não as estivesse a desempenhar no momento da sua actuação, já que, em período não apurado que abrangeu os dias 4 e 5 de Maio de 2004, esteve a exercer funções no provador). Na verdade, cabia às operadoras das caixas registadoras a particular e específica obrigação de, no cumprimento das ordens e instruções emanadas da A., impedirem que os vales de desconto fossem indevidamente utilizados, isto é, afectados ao pagamento de produtos a que não se destinavam, assim impedindo os inerentes prejuízos para a A. e também para as empresas cujos produtos se destinavam a ser promovidos com os vales, evitando também a má imagem que, da indevida afectação, certamente resultava para a A.. Ou seja, a R., em cujas funções se inseria a tarefa de impedir tal situação, foi quem acabou por, em seu proveito e de caso pensado, dar execução a uma violação da dita proibição, levando os produtos sem os pagar, através do indevido desconto dos vales. Nesse quadro, é natural, legítimo, que a A. perdesse, de forma irremediável, a confiança na R., sendo aceitável entender, em termos de apreciação objectiva e razoável de um empregador “normal”, colocado na situação concreta do presente caso, a suspeita de que a R., como operadora de caixa registadora, negligenciasse, de futuro, o controlo da boa afectação dos vales, isto sem falar na também legítima suposição de que a R. pudesse vir a usar indevidamente, em proveito próprio, outros vales, nomeadamente que pudesse fazê-lo com os restantes 19 vales de que apoderara (apoderou-se de 35 e usou 16 deles no “pagamento” das embalagens de “maltesers” – ver factos 9 e 13). Neste quadro, a R. “minou”, de forma imediata e irremediável, a confiança que a A. nela pudesse ter. E, assim sendo, a sua actuação assumiu natureza gravosa, em si mesma, não obstante serem de diminuto valor as embalagens de “maltesers” que “pagou” com os vales (3,98 €). Diga-se que, neste domínio das infidelidades patrimoniais ou dos crimes patrimoniais (v.g. furtos), ainda que meramente tentados, a jurisprudência desta 4ª Secção do STJ tem desvalorizado o facto de os bens de que o trabalhador se apropriou ou quis apropriar-se serem de diminuto valor e de o prejuízo patrimonial para o empregador ser diminuto ou não ter chegado a verificar-se. Neste âmbito, tem entendido que a perda da confiança resultante da violação do dever de lealdade não está necessariamente dependente do valor dos bens ou da verificação de prejuízo significativo ou mesmo de prejuízo para a entidade empregadora (9) . Refira-se ainda, na linha da sentença, que não se verificam factos com valor atenuativo da conduta da R, sendo certo até que esta não a assumiu no processo disciplinar nem na contestação da presente acção, tendo negado a sua prática e atribuído a autoria dos factos à sua colega BB. No quadro apontado, e também na linha das instâncias, face à gravidade da actuação da R., não tem a virtualidade de afastar a justa causa de despedimento o facto, provado, de, durante o tempo em que trabalhou para a A. – tempo que, diga-se, não se mostra significativo, já que entrou ao serviço da A., em 31 de Julho de 2001 –, a R. ter cumprido as suas obrigações de uma forma regular e correcta, nunca tendo sido alvo de qualquer sanção ou procedimento disciplinar e de ter mantido sempre boas relações profissionais com companheiros de trabalho, superiores hierárquicos e clientes, a quem sempre tratou com respeito e urbanidade. Resta apreciar a invocação feita pela recorrente ao desajustamento ou desproporcionalidade da sanção de despedimento, atenta a prática disciplinar da A.. Como tem sido entendido, a entidade empregadora está vinculada ao chamado princípio da coerência disciplinar ou da igualdade de tratamento em matéria disciplinar, princípio que visa evitar que infracções idênticas sejam disciplinarmente censuradas de forma diversa quando não haja razões para essa discriminação (10). Antecipando, diremos, com as instâncias, que a R. não tem razão, por os factos provados serem manifestamente insuficientes para o efeito. Na verdade, a esse respeito, apenas se sabe que: A R., aquando da sua actuação ora em causa, se dirigiu, na companhia da colega BB, à caixa registadora destinada ao pagamento de compras efectuadas pelos funcionários de estabelecimentos e procedeu à aquisição das 2 embalagens de “maltesers” com recurso a 16 vales de desconto, sem proceder ao pagamento do respectivo preço. As operadoras das caixas registadoras que se encontravam em funções nos dias 4 e 5 de Maio de 2004 conheciam as instruções da A. sobre a utilização dos vales de desconto (referidas no facto 8). Na sequência dos factos que estiveram na origem do processo disciplinar instaurado contra a R., a A. instaurou também processos disciplinares contra as trabalhadoras BB e CC, que findaram com a aplicação a cada uma da sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade por um período de 8 dias úteis. Ou seja, não vem provado nos presentes autos que concretas actuações a BB e a CC (esta talvez a operadora da caixa registadora onde a R. descontou os vales) terão assumido na prática dos factos. Não se sabe também que actuações das referidas BB e CC foram dadas como assentes nos respectivos processos disciplinares – de que não foram juntas à presente acção quaisquer peças – e ditaram a aplicação às mesmas das referidas sanções disciplinares, nem se elas aí beneficiaram ou não de atenuantes e quais. Como nada se sabe sobre qual o critério disciplinar da A. noutros casos que tivessem ocorrido, designadamente em eventuais hipótese similares à da actuação da R., ora em causa. Ora, face a tal manifesta insuficiência de factos, não podemos dizer que a sanção de despedimento aplicada à R. foi excessiva, face à prática disciplinar da A. noutros casos, v.g. nos processos disciplinares instaurados à BB e à CC. Faltam os necessários termos de comparação, sendo que era à R. que cabia alegar e provar os factos reveladores dessa desproporcionalidade ou desigualdade de tratamento disciplinar, como meio de impedir a virtualidade extintiva do contrato de trabalho própria da acima verificada justa causa de despedimento integrada pela actuação da R. (art.º 342º, n.º 2 do CC) (11). Não há, pois, a este título, motivo para entender inadequada, por excessiva, a sanção de despedimento aplicada à R.. V – Assim, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido. Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido. Lisboa, 18 de Abril de 2007 Mário Pereira (Relator) Maria Laura Leonardo Sousa Peixoto ------------------------------------------------- (1) - Redacção que consta do anexo ao DL n.º 70/2000, de 4.5, o qual insere as alterações introduzidas pelas Leis n.º 17/95, de 9.6, n.º 102/97, de 13.9, n.º 18/98, de 28.4, n.º 118/99, de 11.8, n.º 142/99, de 31.08, e ainda pelo próprio DL n.º 70/2000, que também renumerou os artigos em função das mencionadas alterações. (2) - Tal regime mantinha-se vigente à data da infracção imputada à R., por, nos termos do art.º 21º, n.º 2, d) da Lei n.º 99/2003, de 27.08, que aprovou o Código do Trabalho, a referida Lei n.º 4/84 só ter sido revogada com a entrada em vigor das normas regulamentares desse Código, constantes da Lei n.º 35/2004, de 29.7, o que aconteceu 30 dias após a sua publicação. Diga-se que o regime actualmente em vigor, no ponto que nos ocupa, consta do art.º 51º do Código do Trabalho e do art.º 98º da referida Lei n.º 35/2004. (3) - Vejam-se os art.ºs 3º, n.º 1, 8º, n.º 1 e 9º, c) da Lei n.º 99/2003. (4) - A constante do art.º 9º, n.º 1 da LCCT, aprovada pelo DL n.º 64-A/89, de 27.02. (5) - In “Manual do Direito do Trabalho”, 12ª ed., pág. 557. (6) - Ob. cit., pág. 575. (7) - Preceituava esse n.º 4: “Na acção de impugnação judicial do despedimento, a entidade empregadora apenas pode invocar factos constantes da decisão referida nos n.ºs 8 a 10 do artigo 10º, competindo-lhe a prova dos mesmos” (o sublinhado é nosso). (8) - Veja-se, neste sentido, entre outros, o acórdão deste STJ, 4ª Secção, de 16.11.2005, na Revista n.º 255/05. (9) - Vejam-se, nesse sentido, entre outros, os acórdãos de 1.4.1998, na Rev. n.º 30/98, de 10.2.1999, na Rev. n.º 289/98, de 31.10.2000, na Rev. n.º 20/00, de 20.12.2000, na Rev. n.º 64/00, de 12.12.2001, na Rev. n.º 4017/00, e de 2.10.2002, na Rev. n.º 4282/01, de 15.01.2003, na CJ/STJ, T.1-245, e de 20.04.2005, no Rec. n.º 3879/03. (10) - Vejam-se, nesse sentido, entre outros, os acórdãos deste Supremo, 4ª Secção, de 24.06.2003, Rec. 3495/02, de 4.05.2005, Rec. 1377/04, e de 9.11.2005, Rec. 1697/05. (11) - Veja-se, nesse sentido, o ac. deste Supremo, 4ª Secção, de 3.5.2006, no Rec. n.º 141/06. |