Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P515
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200302270005155
Data do Acordão: 02/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 2912/02
Data: 10/16/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - Não é admissível recurso, além do mais, «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa» - art. 400º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal.
II - Assim, não se tratando de decisão final proferida pela relação em recurso, mas de decisão interlocutória, isto é, decisão que não ponha termo ao processo, seja com que fundamento for, não é admissível novo recurso dessa decisão.
III - «Pôr termo à causa», significa que a questão substantiva que é objecto do processo fica definitivamente decidida, que o processo não prosseguirá para a sua apreciação, e não que o processo no seu todo fica definitivamente julgado.»
IV - Consequentemente, como este Supremo Tribunal vem decidindo «na parte em que a motivação se volta a debruçar sobre as questões que foram objecto das decisões intercalares e dos correspondentes recursos para o Tribunal da Relação, o recurso para o STJ não é admissível por força do disposto no artigo 400º, n.º 1, al. c), do CPP.»
V - Se não se enjeita que entre os factos apurados pelas instâncias, possam, por vezes, figurar conceitos normativos sem que tal convivência implique, necessariamente, a nulidade da sentença, importa sobremaneira que os factos adquiridos, extirpados desses juízos de valor ou conceitos normativos, sejam bastantes, para, de per si, suportarem a decisão de direito, sob pena de a sentença enfermar do vício de insuficiência.
VI - Por isso mesmo é que constitui requisito essencial da acusação e da sentença a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos de facto constitutivos do crime, não bastando a mera enunciação de juízos de valor ou conceitos normativos.
VII - Se para efeitos da agravação pela alínea c) do artigo 24º do Dec.- Lei n.º 15/93, o conceito de «elevada remuneração económica», despido de outras referências de facto, é de ter como mero conceito normativo ou conceito de direito, há que indagar se os factos provados e as regras da experiência e da vida, porventura com auxílio de factos notórios (que não necessitam de alegação e de prova), permitem sustentar essa conclusão, sem esquecer que as próprias ilações de facto que as instâncias extraem dos factos provados, constituem, elas próprias, matéria de facto.
VIII - Tendo-se apurado que os arguidos pretenderam dedicar-se ao «negócio» de haxixe; o produto era destinado a revenda; que, mesmo antes de receberem a «mercadoria» os arguidos sabiam que se tratava «na verdade, de uma quantidade assinalável daquele produto, destinado à revenda, algures no Norte de Portugal e/ou em outros países europeu», sabendo-se ainda que «no Fiat Ducato foram então encontrados 28 fardos de haxixe, com o peso bruto de 808 kg» e que «tinham todos eles plena consciência de que o haxixe por eles transportado (...) ia ser "distribuído" e consumido por um grande número de pessoas; que, pelo menos, parte dele tinha por destino final outros países da Europa» e sendo das regras da experiência - e mesmo facto notório, a dispensar alegação e prova - que no tráfico de droga os preços de revenda são «lucrativos» para todos os elos da cadeia traficante, não é destituída de fundamentação fáctica a conclusão das instâncias de que os arguidos visavam alcançar com a revenda dos apontados 808 quilogramas de haxixe «elevada remuneração económica».
IX - Nem se pretenda que uma tal conclusão se fica por uma qualquer «ausência de parâmetros» jurisprudenciais nem que o Tribunal fique «dispensado de explicitar o valor ou valores concretos que permitem considerar uma determinada remuneração como avultada», pois, se é certo que não ficam referências sobre o concreto montante dos preços de aquisição e venda a retalho que iriam ser praticados, aquela conclusão fica indelevelmente associada a um dado objectivo inultrapassável, qual seja a avultada quantidade do produto a transaccionar - 808 quilos de haxixe.
X - Aliás, os arguidos sabiam que o produto ia ser consumido e distribuído «por um grande número de pessoas», circunstância também ela não desprezível, já que, em certos casos, é ela própria qualificativa do tráfico, tal como emerge do citado artigo 24º, b), do citado D.L. n.º 15/93.
XI - Porque assim, não colhe, a alegação de que, em tais circunstâncias, tenha sido feita uma interpretação «ostensivamente inconstitucional da al. c) do art. 24º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, porque violadora do princípio da tipicidade do direito penal e, portanto, do n.º 1 do art. 29º CRP», uma vez que, ao invés do que defendem os arguidos, há parâmetros objectivos e concretos para aferição in casu do conceito típico em causa.
XII - Para efeitos de reincidência, a lei - art. 75º, n.º 3, do Código Penal - apenas se refere às «condenações proferidas por tribunais estrangeiros», não registando qualquer outra exigência que não seja a de que tais condenações digam respeito a facto que também constitua crime seguindo a lei portuguesa, não exigindo, nomeadamente, que tais condenações constem do respectivo certificado de registo criminal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em processo comum colectivo do Tribunal Judicial da comarca da Mealhada, e depois de longo e penoso percurso processual, foi enfim proferido acórdão que absolveu os arguidos PMGP, JAM, FMMF e RPF, todos devidamente identificados, de um crime de associação criminosa, tendo-os condenado:
A - O PMGP:
a) Como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado, na pena de 9 anos de prisão;
b) Como autor de um crime de detenção ilegal de arma na pena de 5 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena de 9 anos e 2 meses de prisão;
B - O JAM:
a) Como autor de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 6 anos de prisão;
b) Como autor de um crime de detenção ilegal de arma na pena de 4 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena de 6 anos e 1 mês de prisão;
C - O FMMF, como autor e reincidente de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado, na pena de 11 anos de prisão;
D - O RPF, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado, na pena de 10 anos de prisão (1).
Inconformados, dele interpuseram recurso para a Relação de Coimbra os arguidos PMGP, FMMF e RPF, recursos visando a matéria de facto e de direito, na sequência dos quais foi decidido alterar pontualmente a matéria de facto provada e negar, no mais, provimento aos recursos.
De novo irresignados, recorrem agora ao Supremo Tribunal de Justiça os arguidos PMGP, por um lado, e, em peça conjunta, FMMF e RPF, por outro, culminando terminando as respectivas motivações do seguinte modo:

A) O primeiro
1. A decisão proferida pelo Mmo. Juiz da primeira instância, que indeferiu o pedido de inquirição duma testemunha arrolada por um co-arguido, não integra uma nulidade, mas, diferentemente, um erro de julgamento.
2. A situação processual em avaliação não se reconduz a simples omissão duma diligência reputada essencial ao esclarecimento da verdade, antes preenche um quadro totalmente distinto, de recusa explícita de execução da diligência .
3. O Tribunal tomou uma decisão expressa sobre a necessidade da diligência, recusando-a por ponderar que não tinha interesse para a descoberta da verdade. Decidiu mal, mas decidiu.
4. Neste contexto, não faria qualquer sentido invocar a nulidade (que só poderia ser da decisão) e colocar o Tribunal perante a hipotética situação de contradizer uma decisão que acabava de ser tomada.
5. A partir do momento em que o Tribunal decidiu que a diligência não tinha interesse para a descoberta da verdade, o problema deslocou-se imediatamente do campo das nulidades para o do julgamento.
6. A decisão proferida pode, por isso, ser impugnada pela via do recurso.
7. A entender-se, não obstante, que a questão se situa, no singelo domínio das nulidades, não pode deixar de considerar-se que ao requerer a inquirição da testemunha como diligência essencial para o esclarecimento da verdade, o Recorrente estava, por definição, a arguir a nulidade da respectiva omissão.
8. E, visto de outro ângulo, a decisão que indeferiu a diligência estava, por seu turno, a indeferir a arguição da nulidade.
9. Ao decidir, como decidiu, de modo contrário, o douto acórdão em mérito fez errada interpretação e aplicação do disposto na al. d) do nº 2 e na al. a) do nº 3 do art. 120º
10. Até porque a invocação da al. a) do nº 3 daquele preceito - que impõe a arguição da nulidade "antes que o acto esteja terminado", se o interessado a ele estiver presente - pressupõe que, no caso em apreço, estaríamos perante uma nulidade da audiência, o que não pode aceitar-se.
11. Do que se trata, nessa hipótese, é de uma nulidade do processo, enquanto conjunto de actos pré-ordenados, no seu todo, à justa decisão do caso, não da nulidade do simples acto da audiência de julgamento.
12. Terminada a audiência de discussão e julgamento, "o presidente declara encerrada a discussão, pelo que estava esgotada a possibilidade de a nulidade ser arguida perante o próprio tribunal.
13. Daí que, salvo melhor opinião, não faça qualquer sentido trazer à colação o disposto no art. 105º, n.º 1, demais a mais esquecendo, como se verifica no douto acórdão em mérito, o disposto no artigo 150º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Sem prescindir:
14. A afirmação de que o Arguido pretendia auferir uma avultada compensação remuneratória, sem que se tenha apurado minimamente o respectivo valor, integra um mero juízo de valor, portanto, matéria de direito, que não podia constar do elenco dos factos provados, pois contraria o nº 2 do art. 374º (que se reporta apenas a factos) e, por essa via, integra o vício da al. a) do nº 1 do art. 379º ou, no mínimo, da al. a) do nº 1 do art. 380º .
15. O douto acórdão impugnado considerou, no entanto, que "a nulidade da sentença prevista na al. a) do n.º 1, do art. 379º, verifica-se, exclusivamente quando aquela não contém as menções referidas no art. 374º, nos 2 e 3, al. b), pelo que não constitui aquela nulidade a inclusão na sentença, designadamente na decisão de facto, de matéria conclusiva ou consubstanciadora de um juízo de valor", pois "o que constitui nulidade (...) é a omissão ou - insuficiência de fundamentação (...) e não a inclusão na fundamentação de matéria conclusiva ou juízos de valor",
16. além do que "no foro criminal, ao contrário do que sucede no foro civil, ao tribunal compete apurar da verificação dos elementos constitutivos do crime - de todos os elementos - dando-os como provados ou não provados, pelo que lhe compete investigar da ocorrência de elementos não puramente factuais, mas também da ocorrência de elementos normativos, os quais, atenta a sua complexidade e dificuldade ou impossibilidade de tradução em puros factos, acarretam as mais das vezes a formulação de juízos, com as correspondentes conclusões, juízos e conclusões que o tribunal não pode deixar de incluir na decisão" .
17. O Recorrente não se conforma com esta decisão, porque nela se confundem dois planos que podem e devem ser rigorosamente separados: o plano da decisão de facto e o plano da aplicação do direito.
18. Os factos consubstanciam-se em ocorrências individuais e concretas; as normas ou juízos, em quadros gerais e abstractos.
19. Os juízos ou conclusões assentam sempre sobre premissas, que são precisamente os factos.
20. O elemento da factualidade típica agora em questão ("avultada compensação remuneratória") tem um inegável conteúdo normativo.
21. O legislador decidiu não tipificar os parâmetros que permitem qualificar uma determinada compensação remuneratória como "avultada", remetendo a decisão para o prudente arbítrio dos Tribunais.
22. Mas não pode aceitar-se o entendimento subjacente ao douto acórdão de que, além de não tipificar os parâmetros daquele conceito, o legislador prescindiu totalmente desses parâmetros, ficando o Tribunal dispensado de explicitar o valor ou valores concretos que permitem considerar uma determinada remuneração como avultada.
23. Aquele - e qualquer outro elemento normativo do tipo assenta e só pode assentar em factos concretos que se reconduzem, na circunstância, a valores concretos.
24. A falta de enunciação desses valores concretos que, no caso vertente, é completa - consubstancia, além do mais, o vício da al. a) do nº 2 do art. 410.º e, como o Recorrente sustentou e sustenta, ofende o art. 374º, nº 2, e importa a nulidade da al. a) do nº 1 do art. 379º.
25. Mais importante do que isso: prescindir desses valores implica uma interpretação ostensivamente inconstitucional da al. c) do art. 24º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, porque violadora do princípio da tipicidade do direito penal e, portanto, do n.º 1 do art. 29º CRP .
Termos em que, revogando o douto acórdão impugnado, farão Vossas Excelências a habitual Justiça!

B) Os segundos:
Por seu turno concluem os recorrentes FMMF e RPF:
1 - O acórdão recorrido é nulo por ter omitido pronúncia sobre a impugnação da matéria de facto vertida nas conclusões 3 a 8 do recurso interposto para a Segunda Instância.
2 - E é nulo visto o disposto no artigo 379º, n.º 1, al. c) do CPP .
3- Face à matéria apurada, não pode ser imputada aos recorrentes a autoria de um crime p. e p. pelos artigos 210º e 24º, al. c) do DL 15/93, e o recorrente FMMF não pode ser considerado reincidente. Na verdade,
4 - E no que à alínea c) concerne, a materialidade apurada é rigorosamente o teor da norma. Não foram aduzidos factos que possam integrar-se na mesma.
5 - O recorrente FMMF foi condenado como reincidente invocando-se para o efeito decisão proferida em país estrangeiro, que, no entanto, não consta do CRC.
6 - Assim, não pode ser condenado como tal.
7 - Vistos os critérios do artigo 71º do CP, bem como a moldura penal abstracta, adequa-se aos recorrentes a pena de cinco anos de prisão.
8 - Ao ter decidido de outra forma, violou a decisão recorrida os normativos citados em 3,4 e 7.
9 - Assim, impõe-se a sua revogação, nos termos reclamados, com o que se fará Justiça.
Respondeu o MP junto do tribunal recorrido defendendo em suma:
1. Por força do disposto nos artigos 432º, b), e 400º, n.º 1, al. c), do CPPenal, não é de conhecer o recurso de PMGP interposto do despacho que indeferiu a inquirição de uma testemunha durante a audiência de julgamento.
2. Não existe a pretensa nulidade do acórdão recorrido, pois este pronunciou-se sobre a matéria de facto impugnada e justificadamente considerou legítima a inclusão na mesma do facto de os arguidos terem agido com a intenção de obterem elevada compensação remuneratória (art. 379º, n.º 1, als. a) e c), do CPPenal).
3. Por força do disposto no artigo 75º, n.º 3, do CPenal, é de atribuir relevo jurídico à condenação de 8 anos de prisão sofrida pelo arguido FMMF em 1996 em Espanha, pela prática de um crime de tráfico de droga, pelo que não merece reparo a sua condenação como reincidente.
Assim, negando provimento aos recursos, farão V. Ex.as inteira Justiça.
Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nada requereu.
As questões a decidir são essencialmente estas:
1. A questão prévia da alegada inadmissibilidade do recurso intercalar do arguido PMGP, suscitada na resposta do MP junto do tribunal recorrido.
2. Alegada nulidade do acórdão recorrido por insuficiência da matéria de facto, já que seria sem suporte fáctico a expressão normativa «avultada remuneração económica» em que se fundou a condenação agravada de todos os recorrentes.
3. Em consequência, surgiria pretensa violação do princípio da tipicidade - art. 29º, n.º 1, da Constituição.
4. Alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.
5. Alegada ilegalidade na condenação do recorrente FMMF como reincidente, já que a condenação por tribunal estrangeiro não consta do respectivo certificado de registo criminal.
6. A medida das penas adequadas aos recorrentes FMMF e RPF é de cinco anos de prisão.
2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
Vejamos os factos provados:
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. os arguidos PMGP, FMMF e RPF são conhecidos uns dos outros, tendo estabelecido entre si relações de amizade, encontravam-se e telefonavam variadíssimas vezes uns aos outros;
2. em data não apurada do primeiro semestre do ano de 1999, combinaram os três actuar de forma organizada e concertada num "negócio" de haxixe.
3. os arguidos tomaram tal decisão com o propósito de obterem elevadas compensações remuneratórias, que todos sabiam ser o "resultado natural" da posterior venda de tal produto estupefaciente;
4. levando por diante tal acordo e por se mostrar ainda necessária a colaboração de mais um elemento para a concretização do plano entre os três delineado, coube ao arguido PMGP tarefa de contactar com o arguido JAM, seu conhecido, também residente nas imediações de Montalegre, e levá-lo a fazer parte do plano, mediante o pagamento de uma contrapartida financeira;
5. desde logo o arguido JAM soube que havia que proceder ao transporte de determinados fardos de Haxixe que se encontravam algures no Sul do país e que tinham por destino imediato a zona de Chaves, para depois serem levados para outras localidade;
6. tratava-se, na verdade, de uma quantidade assinalável daquele produto, destinado à revenda, algures no Norte de Portugal e/ou em outros países europeus;
7. com proveniência não inteiramente apurada (mas que provavelmente terá sido algures no Norte de África, eventualmente Marrocos) aquele produto estupefaciente tinha entrado em Portugal por um dos portos da zona centro/sul, isto é, por Setúbal, Peniche ou mesmo pelo Algarve;
8. no seguimento do acordo estabelecido entre os 4 arguidos e em conformidade com as informações prestadas pelos fornecedores do produto estupefaciente, de identidade e nacionalidade não apuradas, foi fixada a data de 14 de Setembro de 1999 para a entrega aos arguidos do haxixe por estes adquirido;
9. para este efeito e no cumprimento das tarefas fixadas para cada um dos quatro, o a arguido JAM procedeu ao aluguer, em seu nome, de uma viatura da marca Fiat, modelo Ducato (carrinha/furgão), no dia 10 de Setembro de 1999, na firma "... - Rent a Car", em Braga (no que - ida ao estabelecimento para alugar a viatura - foi acompanhado pelo arguido PMGP);
10. depois, também conforme o combinado entre os 4, no dia 14 de Setembro de 1999, o arguido JAM viajou até Torres Vedras, conduzindo a Fiat Ducato, de matrícula GZ.
11. no veículo da marca Mercedes Benz, com a matrícula MH, registado em nome de LJGP, seu filho, mas por si conduzido, também o arguido PMGP se deslocou naquele dia até Torres Vedras;
12. ambos - JAM e PMGP - chegaram a esta cidade ao final da manhã e de imediato foram ao encontro do arguido FMMF, que já ali se encontrava e os aguardava;
13. enquanto o PMGP se encarregava da finalização da transacção pretendida, escolhido que estava o sítio onde lhes iria ser entregue o produto, os arguidos JAM e FMMF trataram das operações de vigilância, em especial sobre possíveis e eventuais elementos policiais que viessem a aproximar-se daquele local;
14. para o efeito, utilizando o Mercedes Benz do PMGP, que passou a ser conduzido pelo JAM, circularam durante algumas horas pela cidade e zonas limítrofes;
15. por volta das 18.15 horas daquele dia -14/09/99 - a carrinha Fiat Ducato, matricula GZ, dirigiu-se ao Posto de Abastecimento da ..., sito em Torres Vedras, local onde já se encontrava o Mercedes Benz de matrícula MB e junto ao qual a carrinha foi estacionada pelo seu condutor, que não foi possível identificar por ter saído de imediato do local, seguindo a pé para o centro da cidade;
16. sem demoras, porque já ali aguardava pela sua chegada, o arguido JAM colocou-se ao volante do Fiat Ducato, pô-la a trabalhar e abandonou de seguida Torres Vedras, dirigindo-se para a auto estrada A8, no sentido Lisboa, saiu na "saída", entrou de novo na auto estrada A8, agora no sentido das Caldas da Rainha;
17. como ele bem sabia, a Fiat Ducato transportava já vários fardos de Haxixe;
18. para evitarem paragens nas portagens da auto estrada, acautelando assim qualquer "encontro" com as autoridades policiais que por ali estivessem, na Fiat Ducato fora entretanto colocado o identificador de Via Verde associado ao veículo "Peugeot 405" de matricula FR, conduzido pelo arguido FMMF.
19. essa operação fora feita no seguimento do plano preparado pelos 4 arguidos no sentido de, sem percalços, levarem a bom termo aquela viagem a Torres Vedras, que tinha como único propósito o recebimento e posterior transporte do Haxixe que haviam adquirido e que fora para ali levado depois de dar entrada em território português;
20. conhecedor desses factos e seguindo o que havia sido combinado entre os 4 arguidos, no intuito de despistar qualquer veículo policial que eventualmente o seguisse, o JAM conduzia a carrinha acelerando e reduzindo a velocidade de forma não justificada, entrando e saindo da auto estrada, circulando por estradas secundárias e fazendo paragens frequentes junto às bermas, para o que recebia orientações do arguido PMGP que, conduzindo o Mercedes Benz, seguia atrás efectuando idêntico trajecto ao da carrinha Fiat Ducato;
21. conduzindo o "Peugeot 405", matrícula FR, também o arguido FMMF seguia atrás daqueles dois outros veículos - Fiat Ducato e Mercedes Benz - e a distância suficiente para identificar qualquer viatura "suspeita";
22. era também o FMMF que, acompanhando de perto aqueles dois veículos (no cumprimento do previamente acordado entre os 4 e da função que lhe fora atribuída) e em contacto permanente com o arguido PMGP, lhe ia transmitindo informações quanto ao percurso a seguir e manobras de vigilância a efectuar, recebendo por sua vez indicações quanto ao que se passava à sua frente;
23. também o arguido RPF, que então estava no Algarve, acompanhou desde o início toda a operação de transporte do Haxixe;
24. era o arguido RPF, como já fizera na preparação da "operação", que dava instruções ao FMMF e ao PMGP, quanto aos cuidados a terem para que o furgão prosseguisse uma marcha sem levantar quaisquer suspeitas e para que não fosse interceptado por agentes policiais e também de forma a dificultar o seguimento de possíveis "perseguidores";
25. fazia-o em contactos telefónicos estabelecidos com aqueles, via telemóvel, sendo que, embora à distância, seguia "passo a passo" toda a viagem do Fiat Ducato e dos dois veículos que o "escoltavam", cujos condutores sabiam que era ele também que lhes daria orientações caso fosse necessário intervir para confundirem os "perseguidores" e darem protecção ao arguido JAM e principalmente ao veículo por este conduzido;
26. essa tarefa ficara reservada para o arguido RPF, face aos seus conhecimentos de carácter técnico-profissional, adquiridos no âmbito da sua actividade profissional, enquanto agente da Polícia Judiciária;
27. em determinada altura, a Fiat Ducato deixou a auto estrada e passou a circular pela Estrada Nacional nº 1, sempre em direcção ao Norte do país; 28. por volta das 21.30 horas, quando o Mercedes Benz e a Fiat Ducato seguiam num troço da estrada com obras de reparação, a cerca de 300 metros do cruzamento que dá acesso às instalações da Brigada de Trânsito, área da freguesia de Ceira, concelho e comarca de Coimbra, os respectivos condutores foram abordados por elementos da Polícia Judiciária que os vinham seguindo desde Torres Vedras;
29. ao aperceber-se da detenção dos condutores dos veículos que acompanhava, o arguido FMMF seguiu viagem, dirigindo-se para o Norte do país, área da sua residência;
30. por já não serem necessárias, também o arguido RPF deixou de transmitir as orientações que vinha dando;
31. no Fiat Ducato foram então encontrados 28 fardos de haxixe, com o peso bruto de 808 kg;
32. no interior dos veículos, para além de documentos diversos, foram encontrados vários telemóveis - três no Mercedes e um na carrinha Fiat Ducato - que vinham sendo utilizados pelos respectivos condutores para transmitir e receber orientações quanto ao percurso e cautelas a seguir;
33. na bolsa situada na traseira do banco dianteiro do lado direito do Mercedes Benz e pertencente ao arguido PMGP, estava ainda uma pistola semi-automática de calibre 7,65 mm Browning, da marca Pietro Beretta, modelo 70, com o nº L 24172, de origem italiana, cano com o comprimento de 90 mm, munida do respectivo carregador, que continha 7 munições do mesmo calibre, de marca GFL/FIOCC, igualmente de origem italiana;
34. no Fiat Ducato e pertencente ao arguido JAM, estava uma pistola semi-automática de calibre 6,35 mm Browning, com as referências "TITAN cal. 25 auto, Made in Italy-Pat", munida de um carregador e sete munições do mesmo calibre, de marca Winchester, de origem norte-americana, tendo o seu cano o comprimento aproximado de 63 mm;
35. os arguidos PMGP e JAM não eram portadores de licença para uso e porte de arma e as pistolas que traziam não se encontravam manifestadas ou registadas;
36. os arguidos agiram livre e voluntariamente;
37. todos eles conheciam e conhecem as características do haxixe, sabendo perfeitamente que se trata de uma substância estupefaciente, cuja compra, venda, detenção e transporte não são permitidos por lei;
38. tinham todos eles plena consciência de que o haxixe por eles transportado desde Torres Vedras ia ser "distribuído" e consumido por um grande número de pessoas que, pelo menos parte dele tinha por destino final outros países da Europa;
39. agiram os arguidos PMGP, FMMF e RPF com o propósito de obterem avultada compensação remuneratória que, face à elevada quantidade do haxixe comprado e transportado, sabiam conseguir;
40. os arguidos PMGP e JAM tinham plena consciência de que a detenção das armas que lhes foram encontradas depende de licenciamento e bem assim de manifesto das mesmas e que a sua detenção fora desses parâmetros constitui crime;
41. o arguido PMGP tinha por actividade profissional a exploração de um posto de abastecimento de combustíveis "..." e estação de serviço anexa, sitos na localidade de Penedones - Montalegre;
42. o arguido PMGP tinha adquirido uma embarcação do tipo "lancha rápida", marca "Fletcher" com 5,92 metros de comprimento, 220 HP, e lotação para 7 pessoas, que utilizava nas barragens próximas da sua residência e que veio a ser apreendida no decurso da busca efectuada à garagem anexa à sua residência, sita em Penedones, Chã, Montalegre;
43. o arguido FMMF tinha sido condenado em Espanha - Audiência Provincial de Zamora - no ano de 1996, pela prática de crime de tráfico de droga, numa pena de prisão de 8 anos, que não cumpriu por se ter evadido, tendo-se deslocado ao Brasil, Venezuela e Colômbia nos anos de 1998 e 1999;
44. o arguido RPF, agente da Polícia judiciária da Directoria do Porto transmitia àqueles a forma de actuação dos agentes investigadores, no departamento do combate ao tráfico de estupefacientes, seus colegas de profissão;
45. os arguidos PMGP e JAM confessaram os crimes de detenção ilegal de arma e o primeiro a sua intenção de adquirir o haxixe; quanto ao mais negaram todos os arguidos os crimes que lhe são imputados, invocando o arguido JAM, detido a efectuar o transporte do haxixe, que estava convencido de que se tratava de hormonas para animais, afirmando os arguidos FMMF e RPF serem completamente alheios aos factos;
46. o arguido JAM recebe uma reforma de cerca de 100.000$00 dos EUA, onde trabalhou e de onde regressou há pouco mais de 2 anos;
47. o arguido RPF foi agente da PJ durante mais de 20 anos, assim contribuindo para o sustento do seu agregado familiar;
48. o arguido FMMF tem dois filhos, utiliza há 3 anos a carrinha Peugeot 405, matrícula FR, carrinha cujo registo se encontra em nome do sogro;
49. dos registos criminais dos arguidos JAM, PMGP e RPF não consta qualquer condenação;
50. do registo criminal do arguido FMMF, para além da condenação supra referida que lhe foi aplicada em Zamora/Espanha, constam uma condenação, por violação de selos, em multa, uma condenação, por emissão de cheque sem provisão, em prisão e uma condenação, em 01.03.1990, por tráfico de estupefacientes ocorrido nos princípio de 1987, em 12 anos de prisão pena de que saiu em liberdade condicional em 20.08.1993;
51. por decisão de 23.11.1999, do Senhor Ministro da Justiça, foi o arguido RPF punido com e pena de demissão das suas funções de agente da PJ punição que, em síntese, se baseou no seguinte: o arguido, no exercício das suas funções numa Brigada da PJ do Porto dedicada à investigação de furtos, requisitou para ouvir como testemunha, no dia 13.12.1996, um recluso do EP de Paços de Ferreira (recluso a cumprir 6 anos e 6 meses de prisão por tráfico de estupefacientes); não informou qualquer superior de tal requisição e não era verdadeira a razão invocada para a requisição do recluso; recebeu o recluso no início da manhã de 13.12.1996 e transportou-o, no seu próprio veículo, a uma clínica médica da Póvoa do Varzim (em que o sogro do recluso estava internado), local de onde o recluso se terá evadido, facto de que o aqui arguido deu conhecimento aos seus superiores passados 3 dias, isto é, no dia 16.12.1996;
52. os arguido gozam de consideração e estão inseridos no meio social em que vivem; 53. a viatura matrícula MH constava de fichas internas da PJ antes de Setembro de 1999;
54. em 15 de Setembro de 1999, o arguido FMMF telefonou por duas vezes para a Brisa» .
A Relação de Coimbra, confrontada com as objecções dos recorrentes, reapreciou tal matéria de facto e acabou por fixá-la deste modo:
«1. os arguidos PMGP, FMMF e RPF são conhecidos uns dos outros;
2. em data não apurada, combinaram os três actuar de forma organizada e concertada num "negocio" de haxixe;
3. mantém-se integralmente
4. mantém-se integralmente
5. mantém-se integralmente
6. mantém-se integralmente
7. mantém-se integralmente
8. mantém-se integralmente
9. mantém-se integralmente
10. mantém-se integralmente
11. mantém-se integralmente
12 mantém-se integralmente
13. mantém-se integralmente
14. mantém-se integralmente
15. mantém-se integralmente
16. mantém-se integralmente
17. mantém-se integralmente
18. mantém-se integralmente
19. mantém-se integralmente
20. mantém-se integralmente
21. mantém-se integralmente
22. mantém-se integralmente
23. mantém-se integralmente
24. mantém-se integralmente
25. mantém-se integralmente
26. mantém-se integralmente
27; mantém-se integralmente
28. mantém-se integralmente
29. mantém-se integralmente
30. mantém-se integralmente
31. mantém-se integralmente
32. mantém-se integralmente
33. mantém-se integralmente
34. mantém-se integralmente
35. mantém-se integralmente
36. mantém-se integralmente
37. mantém-se integralmente
38. mantém-se integralmente
39. mantém-se integralmente
40. mantém-se integralmente
41. mantém-se integralmente
42. mantém-se integralmente
43. mantém-se integralmente
44. mantém-se integralmente
45. os arguidos PMGP e JAM confessaram os crimes de detenção ilegal de arma, quanto ao mais negaram todos os arguidos os crimes que lhe são imputados, invocando o arguido JAM, detido a efectuar o transporte do haxixe, que estava convencido de que se tratava de hormonas para animais, afirmando os arguidos FMMF e RPF serem completamente alheios aos factos;
46. mantém-se integralmente
47. mantém-se integralmente
48. mantém-se integralmente
49. mantém-se integralmente
50. do registo criminal do arguido FMMF consta uma condenação em multa por violação de selos, uma condenação em prisão por emissão de cheque sem provisão e uma condenação em 12 anos de prisão, proferida em 01.03.90, por tráfico de estupefacientes (factos ocorridos em 1987), pena de que saiu em liberdade condicional e 20.08.93;
51 mantém-se integralmente
52. mantém-se integralmente
53. mantém-se integralmente
54. mantém-se integralmente.»
Preliminarmente, cumpre tomar posição quanto à falada questão prévia da inadmissibilidade do recurso intercalar do 1.º arguido PMGP, suscitada na resposta do MP junto do tribunal recorrido.
Como emerge dos autos, aquele arguido interpôs recurso intercalar do despacho que, em audiência de 1.ª instância, indeferiu o requerimento por si apresentado para inquirir uma testemunha indicada pelo defensor de outro co-arguido.
Tal recurso, interposto a fls. 3320, foi admitido com subida diferida e decidido pela Relação - com confirmação do despacho recorrido - juntamente com o interposto da decisão final.
Ora, esta questão há-de, com efeito, haver-se por definitivamente decidida, uma vez que do assim decidido em 2.ª instância não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Com efeito, não é admissível recurso, além do mais, «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa» - art. 400.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal.
«Não se tratando de decisão final proferida pela relação em recurso, mas de decisão interlocutória, isto é, decisão que não ponha termo ao processo, seja com que fundamento for, não é admissível novo recurso dessa decisão.
Pôr termo à causa, significa que a questão substantiva que é objecto do processo fica definitivamente decidida, que o processo não prosseguirá para a sua apreciação, e não que o processo no seu todo fica definitivamente julgado.» (2).
E como este Supremo Tribunal vem decidindo (3) «na parte em que a motivação se volta a debruçar sobre as questões que foram objecto das decisões intercalares e dos correspondentes recursos para o Tribunal da Relação, o recurso para o STJ não é admissível por força do disposto no artigo 400º, n.º 1, al. c), do CPP.»
É o caso dos autos.
A questão foi objecto de recurso intercalar e conhecida em recurso pela Relação.
A circunstância de esse conhecimento ter acontecido a par do recurso da decisão final em nada altera o regime respectivo, já que, nesta matéria, a forma não pode sobrepor-se ao conteúdo, isto é, in casu, ao regime legal de admissibilidade dos recursos. Até porque, se assim não tivesse acontecido e o recurso tivesse sido conhecido em separado, ninguém poria em causa a irrecorribilidade de tal decisão.
Procede assim, sem mais delongas a aludida questão prévia pelo que, por irrecorribilidade, não se conhecerá da matéria atinente ao recurso do acórdão da Relação, no segmento em que aquele versou sobre o mencionado despacho de indeferimento de audição da testemunha.
Aqui chegados, há que avançar.
Antes de mais, por uma questão de precedência lógica, cumpre apreciar da valia da matéria de facto apurada, alvo de ataque de todos os recorrentes.
Neste capítulo, há que dizê-lo já, o Supremo Tribunal de Justiça, tem capacidade de intervenção assaz limitada.
Com efeito (4), em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação» (art. 427º do Código de Processo Penal).
E só excepcionalmente (5) - em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» - é que é possível recorrer directamente para o STJ (arts. 432º, d), e 434º).
Ora, como resulta do exposto, os actuais recursos - provenientes da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo), mormente o do arguido PMGP - visam, ao menos incidentalmente, reexame de matéria de facto
De qualquer modo, não visam, exclusivamente, o reexame da matéria de direito (art.º 434º do CPP).
Aliás, o reexame pelo Supremo Tribunal exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados.
E, no caso, a Relação manteve-o, definitivamente, no rol dos «factos provados».
De resto, a revista alargada prevista no art. 410º, n.ºs 2, e 3 do Código de Processo Penal, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (arts. 427º e 428º n.º 1).
Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: - se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça (6) (7); - ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação (8), caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432º b).
Só que, nesta hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
E é só aqui - com este âmbito restrito - que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto.
O que significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação.
Pois bem.
Como resulta das conclusões respectivas, os três recorrentes insurgem-se contra a inclusão no elenco dos factos, do conceito de «elevada compensação remuneratória», nomeadamente, o primeiro, para quem «o propósito de obterem elevadas compensações remuneratórias», se tem como conceito de direito, pelo que, assim, «a falta de enunciação desses valores concretos que, no caso vertente, é completa - consubstancia, além do mais, o vício da al. a) do nº 2 do art. 410º e, como o Recorrente sustentou e sustenta, ofende o art. 374º, nº 2, e importa a nulidade da al. a) do nº 1 do art. 379º».
Já para os outros dois recorrentes, «a materialidade apurada é rigorosamente o teor da norma», pelo que o acórdão recorrido é nulo no termos do artigo 379º, n.º 1, c), do CPP, até porque «não foram aduzidos factos que possam integrar-se na mesma [norma incriminatória]».
O acórdão recorrido discorreu assim sobre este concreto ponto:
«(...)
Nulidade do acórdão
Alega o arguido PMGP que o acórdão impugnado é nulo, porquanto na decisão proferida sobre a matéria de facto não se incluíram apenas factos, tal como impõe o n.º 2, do art. 374º, mas também um juízo de valor, qual seja o de que agiram os arguidos PMGP, FMMF e RPF com o propósito de obterem avultada compensação remuneratória, portanto, matéria de direito, pelo que enferma da nulidade prevista na al. a), do n.º 1, do art. 379º.
Decidindo, começar-se-á por assinalar que a nulidade da sentença prevista na al. a), do n.º 1, do art. 379º, verifica-se, exclusivamente, quando aquela não contém as menções referidas no art. 374º, n.ºs 2 e 3, al. b), pelo que não constitui aquela nulidade a inclusão na sentença, designadamente na decisão de facto, de matéria conclusiva ou consubstanciadora de um juízo de valor .
Explicitando. O que constitui nulidade, como claramente decorre da letra da lei, é a omissão ou a insuficiência de fundamentação, isto é, é a não enumeração dos factos provados e não provados, a não exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão e a não indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (para além, obviamente, da omissão da decisão condenatória ou absolutória), e não a inclusão na fundamentação de matéria conclusiva ou de juízos de valor.
Por outro lado, há que referir que no foro criminal, ao contrário do que sucede no foro civil, ao tribunal compete apurar da verificação dos elementos constitutivos do crime de todos os elementos dando-os como provados ou não provados, pelo que lhe compete investigar da ocorrência de elementos não puramente factuais, mas também da ocorrência de elementos normativos, os quais atenta a sua complexidade e dificuldade ou impossibilidade de tradução em puros factos, acarretam as mais das vezes a formulação de juízos, com as correspondentes conclusões, juízos e conclusões que o tribunal não pode deixar de incluir na decisão. Destarte, a consignação em sentença, designadamente na fundamentação, de juízos de valor e de matéria conclusiva, posto que ali exarados no enquadra- mento atrás referido, não constitui, obviamente, violação ou inobservância da lei.
Nesta conformidade, certo é que o acórdão impugnado não enferma da nulidade arguida.»
Adianta-se já, que também o Supremo Tribunal de Justiça não pode avalizar esta doutrina em toda a sua aparente extensão, já que, interpretada à letra, pode ter-se como comportando um inaceitável alcance.
Com efeito, a ser como dela aparentemente decorre, a interpretação recorrida implicaria clara violação do princípio acusatório, consagrado além do mais, no artigo 32º, n.º 5, da Constituição, e mesmo das garantias de defesa imperativamente asseguradas pelo processo criminal - n.º 1, do mesmo artigo.
Não se enjeita, é certo, que para alcançar a matéria de facto decisiva para o desfecho de direito, por vezes haja necessidade de lançar mão de elementos normativos. Até porque, em muitos casos, se torna difícil, se não impossível, a distinção entre o puro facto e os conceitos de direito, tantas vezes associados em simbiose inextricável. Só que aqueles elementos normativos não podem ocupar o lugar dos factos, substituindo-se-lhes.
E não se enjeita, também, que entre os factos relevantes para a decisão da causa possam surgir tais conceitos normativos sem que tal convivência implique necessariamente a nulidade da sentença. Ponto é que os factos adquiridos, extirpados desses juízos de valor normativos, sejam bastantes, para, de per si, suportarem a decisão de direito.
A ser de outro modo, a posição expressa pela Relação, no limite das suas implicações literais, aportaria a inaceitável conclusão de que a decisão de mérito poderia prescindir de factos e bastar-se-ia ou poderia bastar-se com a mera enumeração de juízos de valor.
Tal orientação não pode, com efeito, ser sufragada com aquela aparente amplitude.
Por isso mesmo é que constitui requisito essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. E são estes que constituem o objecto do processo daí em diante e serão eles que serão objecto do julgamento, não podendo, em regra, e salvo casos especiais previstos na lei, ser alterados.
A lei manda por isso descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Em consonância, a sentença há-de conter a devida fundamentação, onde avultam os factos provados.
Descendo então ao caso, importa averiguar se se configura ou não a alegada nulidade do acórdão recorrido.
Há que adianta, não obstante o exposto, que a resposta é negativa.
Com efeito, mesmo admitindo que «elevada remuneração económica» é, no contexto verificado, um mero conceito de direito, importa indagar se subsistem factos que suportem a decisão de direito, pois o que se exige no artigo 379º, n.º 1, a), e 374º, n.º 2, é que a sentença contenha, nomeadamente, «a fundamentação, que consta dos factos provados e não provados», independentemente, de entre eles, existir porventura uma ou outra excrescência, quiçá, matéria de direito. É o resultado do princípio do aproveitamento dos actos úteis: utile per inutile non vitiatur.
E, convém não esquecer, não obstante, que as instâncias tem pleno direito para, a partir dos factos conhecidos, extraírem as pertinentes ilações fácticas, e por fim nelas assentarem as pertinentes conclusões jurídicas.
É que, como é jurisprudência pacífica do STJ, as conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, salvo se as instâncias ao extraírem aquelas conclusões ou ilações não se limitam a desenvolver a matéria de facto provada, e a alteraram (9).
Ora, mesmo desprezando entre os factos aquela expressão, «avultada remuneração económica» ainda continua a saber-se que os arguidos pretenderam dedicar-se ao «negócio» de haxixe - facto 2 - que implica a conclusão de que visavam obter proveitos ou remuneração económica, até porque, como consta do facto 6, o produto era destinado à revenda.
Sabe-se também que, mesmo antes de receberem a «mercadoria» os arguidos sabiam que se tratava «na verdade, de uma quantidade assinalável daquele produto, destinado à revenda, algures no Norte de Portugal e/ou em outros países europeu» - facto 6.
Sabe-se ainda que «no Fiat Ducato foram então encontrados 28 fardos de haxixe, com o peso bruto de 808 kg» - facto 34.
Sabe-se, mais, que «tinham todos eles plena consciência de que o haxixe por eles transportado desde Torres Vedras ia ser "distribuído" e consumido por um grande número de pessoas que, pelo menos parte dele tinha por destino final outros países da Europa» - facto 38.
É das regras da experiência que no tráfico de droga não se «negoceia a feijões», para usar uma conhecida expressão popular.
Tanto assim que, como é conhecido, cada ínfima dose do «produto» é transaccionada no mercado subterrâneo a preços, no mínimo economicamente «atractivos» para todos os elos da cadeia traficante, do importador ao dealer de rua, e na proporção do envolvimento de cada qual.
É mesmo facto notório, conhecido em geral - a dispensar, até, alegação e prova - que o tráfico de grandes quantidades de droga como a mencionada nos autos, almeja e, em regra alcança, remuneração económica apetecível, sendo actividade altamente lucrativa, a ponto de os traficantes se disporem, por ela, a correr riscos elevados não apenas de capital, como, se necessário, de ordem pessoal, como o caso ilustra.
Não é pois destituída de fundamentação fáctica a conclusão das instâncias de que os arguidos visavam alcançar com a revenda dos 808 quilogramas de haxixe «elevada remuneração económica».
Nem se pretenda que as coisas se ficam por uma qualquer «ausência de parâmetros» jurisprudenciais nem que o Tribunal fique «dispensado de explicitar o valor ou valores concretos que permitem considerar uma determinada remuneração como avultada».
É que se é certo que não ficam referências sobre o concreto montante dos preços de aquisição e dos que iriam ser praticados, mormente na «venda a retalho», a conclusão fica indelevelmente associada a um dado objectivo inultrapassável, qual seja a avultada quantidade do «produto» que se visava transaccionar - 808 quilos - o que, convenhamos, aliado às regras da experiência e da vida, não é elemento de somenos.
Aliás, como se viu, os arguidos sabiam que tal «produto» ia ser consumido e distribuído «por um grande número de pessoas», circunstância também ela não desprezível, já que, em certos casos, qualificativa do tráfico, tal como emerge do citado artigo 24º, b), do D.L. n.º 15/93.
E, porque assim, não colhe, pelo já exposto, que tenha sido feita uma interpretação «ostensivamente inconstitucional da al. c) do art. 24º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, porque violadora do princípio da tipicidade do direito penal e, portanto, do n.º 1 do art. 29º CRP», uma vez que há parâmetros objectivos e concretos para aferição in casu do conceito típico de que se falou.
Deste modo, pese embora se aceite que a expressão em causa possa conter, no contexto dos factos apurados, implicações normativas, a conclusão pela existência de «avultada remuneração económica» tem suporte de facto bastante pelo que não se verifica a invocada nulidade.
Assim sendo, e porque outros se não vislumbram, pode afoitamente concluir-se pela inexistência de vícios da matéria de facto, mormente os do artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mormente o de insuficiência aludido na alínea a) daquele n.º 2.
Temo-la, pois, como definitivamente adquirida.
Sustentam os recorrentes FMMF e RPF que o acórdão recorrido é nulo por não ter contemplado as conclusões 3 a 8 do seu recurso para a 2.ª instância.
Trata-se em suma de conclusões relativas à apreciação da prova que o tribunal recorrido apreciou e, até, com abordagem reveladora de aprofundamento pouco comum a nível do Tribunal da Relação ao pronunciar-se sobre reapreciação da prova.
Ilustra o que se afirma esta passagem do acórdão recorrido, justamente sob a epígrafe:
«Incorrecta Valoração e Apreciação da Prova», com a seguinte fundamentação:
«Alega o arguido PMGP que da prova constante do processo não é admissível a conclusão da existência de qualquer acordo prévio entre si e os coarguidos FMMF e RPF no sentido de actuarem de forma organizada e concertada num negócio de haxixe, com o propósito de obterem elevadas compensações que sabiam ser o resultado natural da posterior venda de tal produto estupefaciente, bem como da execução desse acordo, posto que, na realidade, apenas se provou ter o recorrente participado numa operação de transporte de droga.
Mais invoca que, ao contrário do considerado provado, jamais confessou a sua intenção de adquirir haxixe
Por sua vez, os arguidos FMMF e RPF alegam, também, apenas se haver provado a ocorrência de um transporte de haxixe, sendo que em transporte, como da prova resulta, não tomaram parte na sua execução, quer por si quer por outrem, sendo que a sua intervenção no mesmo se limitou a mero auxílio.
Mais invocam que do certificado de registo criminal do FMMF não consta a condenação que lhe foi aplicada em Espanha.
Examinando e analisando todas as provas existentes nos autos, quer as produzidas no contraditório quer as recolhidas nas anteriores fases processuais (10), dir- se-á desde já não nos merecer qualquer censura, genericamente, a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, designadamente na parte em que considerou provada a execução conjunta e concertada (pelos quatro arguidos) do transporte do haxixe, bem como na parte em que considerou a ocorrência de acordo prévio entre os arguidos PMGP, FMMF e RPF no sentido de actuarem de forma organizada e concertada num negócio de haxixe, com o propósito de obterem elevadas compensações que sabiam ser o resultado natural da posterior venda de tal produto.
Com efeito, ao contrário do alegado pelos arguidos FMMF e RPF, é clara a prova de que os mesmos comparticiparam directamente na execução do transporte de haxixe, em conjunto com os arguidos PMGP e JAM, sendo também clara a prova de que entre os arguidos FMMF, RPF e PMGP se estabeleceu um prévio acordo tendo em vista a obtenção do haxixe e a sua posterior utilização, achando-se subjacente a esse acordo a obtenção de elevada compensação remuneratória.
Vejamos.
O PMGP contactou com o JAM, seu conhecido, no sentido de este colaborar no transporte de haxixe, mediante o pagamento de contra- partida monetária.
Na sequência desse contacto foi alugada no dia 10 de Setembro de 1999, pelo JAM, à firma "... Rent a Car", sita em Braga, uma carrinha/furgão Fiat Ducato, sendo que então encontrava-se aquele acompanhado pelo PMGP.
JAM e PMGP foram detidos no dia 14 de Setembro de 1999 pela Polícia Judiciária, o primeiro a conduzir a carrinha Fiat, que continha 808 quilogramas de haxixe, o segundo a conduzir veículo da marca Mercedes Benz, registado em nome do filho, sendo que este arguido vinha desde Torres Vedras a seguir, de perto, o JAM.
O FMMF foi visto naquele referido dia em Torres Vedras, no interior daquele veículo Mercedes Benz, pelos Inspectores da Polícia Judiciária NB e AR, sendo que na ocasião tal viatura era conduzida pelo JAM.
Foi colocado um dispositivo identificador na carrinha Fiat Ducato que transportava o haxixe, o qual se destinava à passagem nas portagens da autoestrada pela via verde, sendo que de acordo com informações fornecidas pela concessionária Brisa, mostrava-se aquele dispositivo associado, à data, ao veículo FR conduzido pelo FMMF.
Ao FMMF foi apreendido um telemóvel, no momento em que foi detido, com o número 0936, a partir do qual, de acordo com informações prestada pelo respectivos operadores, foram recebidas, no dia 14 de Setembro de 1999, mais precisamente durante o período em que se processou a viagem da carrinha transportadora do haxixe, 11 chamadas, chamadas estas feitas de um dos telemóveis apreendidos ao PMGP.
Neste telemóvel, por sua vez, foram recebidas, no mesmo período de tempo, 10 chamadas provenientes do telemóvel apreendido ao FMMF.
Aquando da detenção do arguido PMGP, que ocorreu no decurso do transporte do haxixe, foi-lhe apreendido um bloco de papel (fls.190 dos autos), bloco de que se pretendeu desfazer sem que os elementos policiais vissem, do qual constam, na parte superior, dois números de telefone - 0936 e 0931 - encontrando-se o último número riscado e entre os dois números a palavra "bófia", sendo este último número o do telefone que o arguido RPF possuía à época em que ainda exercia funções na Polícia Judiciária, e o primeiro o número do telefone ao mesmo pertencente à data da sua detenção.
Durante o transporte do haxixe, segundo informações fornecidas pelos respectivos operadores, certo é que o número de telefone atrás referido (0936), foi contactado múltiplas vezes pelos telemóveis apreendidos ao arguido PMGP, telefones estes que, por sua vez, foram também, durante aquele referido transporte, contactados diversas vezes pelo telemóvel 0936.
Já depois da detenção dos arguidos JAM e PMGP, segundo informações dos respectivos operadores, entre as 21.30 horas e as 22.30 horas, o portador do telefone 0936, telefone este apreendido ao arguido FMMF, deixou de contactar com os números de telefone objecto de apreensão ao arguido PMGP, tendo passado a contactar com frenesi (oito vezes durante aquele período de tempo), com o telefone número 0936 - telefone do arguido RPF -, telefone de onde foram feitos, também, com idêntico frenesi oito contactos para o telefone 0936.
Como é sabido, prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º).
As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação de alicerçam, mas para além dos quais têm validade.
Por outro lado, a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (...).
Em suma, aprova deve ser apreciada pelo julgador livremente, de acordo com o bom senso, a lógica e a experiência de vida, temperados pela capacidade de distanciamento dada pela experiência de julgar .
Ora, de acordo com o bom senso, a lógica e a experiência de vida, bem se vê que a partir dos factos atrás consignados, factos que resultam da prova constante do processo, há que concluir não só que os arguidos FMMF e RPF, tal como os arguidos PMGP e JAM, tomaram parte directa no frustrado transporte do haxixe, agindo todos em conjugação de esforços, formar a convicção do tribunal (para além, obviamente, da omissão da decisão condenatória ou absolutória), e não a inclusão na fundamentação de matéria conclusiva ou de juízos de valor.»
É claro que o acórdão recorrido não respondeu individualizadamente a cada uma daquelas conclusões, mas não necessitava de o fazer.
Sob pena de cair em meros exercícios literários, o que o tribunal tem é de dar resposta, ainda que implícita, às questões que lhe são colocadas.
E no caso tal aconteceu com a exuberância que supra ficou demonstrada.
Implicitamente, a tese que dava corpo às ditas conclusões 3 a 8 foi rebatida, porque se deram por provados factos com ela incompatíveis. E isso basta.
O recorrente FMMF alega que foi condenado como reincidente «invocando-se para o efeito decisão proferida em país estrangeiro, que, no entanto, não consta do CRC».
Assim, não poderia ser condenado como tal.
O tribunal recorrido, pronunciou-se muito claramente sobre tal ponto da forma que segue:
«Impossibilidade de Censura do Arguido FMMF como Reincidente»
«Alega o arguido FMMF que a sua condenação como reincidente teve por base decisão proferida em país estrangeiro, sendo certo que a mesma não tem eficácia em Portugal sem estar revista e confirmada - art. 1094º, do Código de Processo Civil -, pelo que deve ser revogada.
Estabelece o art. 1094º, do Código de Processo Civil que:
« 1. Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.
2. Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa» .
Primeira observação a fazer é a de que a lei adjectiva civil apenas impõe a revisão e a confirmação de decisão proferida por tribunal estrangeiro, quando a decisão incide sobre direitos privados, o que não é, obviamente, o caso dos autos.
Segunda observação a fazer é a de que alei adjectiva civil, mesmo no caso de decisões sobre direitos privados, não exige a revisão e a confirmação quando a decisão seja invocada em processo pendente, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, o que sucede no caso ora em apreciação. De acordo com alei adjectiva penal - art. 468º, al. c) - e a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal - Lei nº 44/99, de 31 de Agosto - arts. 95º e segs. -, certo é que a revisão e a confirmação de sentença penal estrangeira só é exigível quando se pretenda executá-la e inexista tratado que as dispense.
Por outro lado, segundo o n.º 3, do art. 75º, do Código Penal, certo é que as condenações proferidas por tribunal estrangeiro contam para a reincidência nos termos dos números anteriores, isto é, nos termos gerais, desde que o facto constitua crime segundo a lei portuguesa.
Deste modo, consabido não ser exigível in casu revisão e confirmação da decisão espanhola que condenou o arguido FMMF e tendo por certo que o facto pelo qual o mesmo foi condenado - tráfico de estupefacientes - constitui crime segundo a lei nacional, dúvidas não restam de que o recurso interposto por aquele arguido terá de improceder, também nesta parte.
Termos em que se acorda negar provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes - arguido PMGP 4 UCs de taxa de justiça para o recurso intercalar e 10 UCs de taxa de justiça para o recurso da decisão final; arguido FMMF 10 Ucs. de taxa de justiça; arguido RPF 5 UCs. de taxa de justiça.»
Estas considerações, porque juridicamente pertinentes não merecem qualquer censura.
Ademais, o recorrente labora em erro quando deixa intuir que entende a condenação por tribunal estrangeiro para relevar em termos de reincidência necessita de estar registada no certificado de registo criminal respectivo.
Não tem razão.
A lei - art. 75º, n.º 3, do Código Penal - apenas se refere às «condenações proferidas por tribunais estrangeiros», não registando qualquer outra exigência que não seja a de que tais condenações digam respeito a facto que também constitua crime seguindo a lei portuguesa.
Como acontece in casu.
Finalmente, alegam os dois últimos recorrentes, que «vistos os critérios do artigo 71º do CP, bem como a moldura penal abstracta, adequa-se aos recorrentes a pena de cinco anos de prisão».
Pois bem.
Em sede de fixação da medida concreta da pena a intervenção do Supremo Tribunal tem campo de actuação limitado.
Com efeito, como aqui tem sido sucessivamente entendido (11), "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (12).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (13).
Como resulta dos factos provados, as penas aplicadas, atendendo aos critérios de dosimetria do artigo 71º do Código Penal, mostram-se talhadas, conforme o exigido pelo citado dispositivo, nos limites admitidos pela culpa do agente, conjugada com as finalidades da pena, proporcionada à gravidade da ilicitude dos factos, mormente esta, e proferidas com sentido de justiça.
Culpa que, como escreve a Doutora Anabela Miranda Rodrigues, (14) não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo desta, que, em caso algum, pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.
E se, como escreve a mesma autora (15), o limite mínimo da pena é «o absolutamente imprescindível para se realizar a finalidade de prevenção geral», sob a forma de defesa da ordem jurídica, (16) não se vê que as pena aplicadas estejam de algum modo feridas de ilegalidade ou sejam desproporcionadas às circunstâncias do acaso.
Em suma: não se demonstrando que o tribunal recorrido tenha efectuado qualquer procedimento ilegal, por acção ou omissão, na determinação da medida da pena, nem que a mesma se mostre fixada em violação das regras da experiência, ou desproporcionada na sua quantificação, a última pretensão dos recorrentes também improcede.
3. Pelo exposto, deliberam:
a) Rejeitar o recurso intercalar do arguido PMGP;
b) Negar provimento ao recurso do mesmo arguido interposto da decisão final da Relação, e nessa medida confirmar a decisão recorrida.
c) Negar provimento aos recursos dos arguidos FMMF e RPF, e nessa medida, igualmente confirmar a decisão recorrida;
d) Condenar o arguido PMGP nas custas do recurso intercalar, fixando a taxa de justiça respectiva em 4 Uc a que se soma outro tanto de sanção processual nos termos do disposto no artigo 420º, n.º 4, do CPP.
e) Condenar o arguido PMGP nas custas do restante recurso, com taxa de justiça fixada em 10 Uc.
f) Condenar individualmente cada um dos recorrentes FMMF e RPF, em 10 Uc de taxa de justiça
Honorários de tabela à Exma. Defensora Oficiosa aqui nomeada.

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Fevereiro 2003
Pereira Madeira
Simas Santos
Abranches Martins
Oliveira Guimarães
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(1) No acórdão da 1.ª instância - parte do dispositivo - condenou-se o arguido RPF como «autor e reincidente, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, agravado...», no entanto, a referência feita à reincidência «constitui um erro ou lapso de escrita, manifesto, atentas as considerações produzidas a propósito do enquadramento jurídico dos factos provados e da determinação da medida da respectiva pena, pelo que na Relação se procedeu à correcção da decisão, ao abrigo do disposto no art. 380º, n.ºs 1, al. b) e 2, do Código de Processo Penal, eliminando-se do seu texto a referência à reincidência», conforme decidiu a Relação ora recorrida.
(2) Cfr., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, 2.ª edição, Verbo 2000, págs. 323.
(3) Cfr., Ac. do STJ, de 01.10.17, proc. n.º 2530/01-3, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 5.ª edição, 2002, págs. 39.
(4) A fundamentação que segue imediatamente é parcialmente coincidente, porque concordante, com a expendida no acórdão deste Supremo Tribunal proferido no recurso n.º 1292/01-5 relatado pelo Ex.mo Conselheiro Carmona da Mota e subscrito pelo ora relator como 1.º adjunto, de resto seguida em muitos outros posteriores que versam o tema em causa e que seria ocioso enumerar aqui.
(5) «Exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça»
(6) Caso em que o recurso, pois que de revista alargada se trata, poderá ter como fundamentos «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada» (art.º 410º n.º 3) e, «desde que o vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) erro notório na apreciação da prova» (art. 410º n.º 2).
(7) E há mesmo quem advogue, mesmo a nível da jurisprudência do Supremo, que o pode fazer também para Relação, optando por um dos dois.
(8) «As relações conhecem de facto e de direito» - art. 428º n.º 1.
(9) Cfr. entre outros, os Acs de 30.11.00, proc. n.º 2808/00, de 22.2.01, proc. n.º 4129/00, de 5.4.01, proc. n.º 961/01, de 11.10.01, proc. n.º 2363/01, de 18.10.01, proc. n.º 2147/01, de 16.5.02, proc. n.º 1384/02 e de 2.5.02, proc. n.º 357/02 e de 12.12.02, proferido no recurso n.º 3772/02, disponível em www.verbojurídico.net
(10) Em negrito agora.
(11) Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram.
(12) Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255
(13) Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.
(14) Cfr., Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, pág. 182
(15) Ibidem.
(16) Que não se confunde com o limiar mínimo da moldura penal abstracta.