Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4127
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: FIANÇA OMNIBUS
FIANÇA GERAL
Nº do Documento: SJ200612190041271
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1) A determinabilidade do objecto negocial afere-se no apurar se o mesmo pode ser concretizado inicial ou posteriormente, com apelo a critérios negociais ou legais, sendo que é nulo o negócio jurídico absolutamente indeterminado e indeterminável.
2) O "distinguo" entre fiança geral e fiança "omnibus", ou genérica, está em que aquela é prestada para todas as obrigações do devedor principal, decorrentes de qualquer causa ou qualquer titulo, enquanto a fiança genérica, ou "omnibus", garante as obrigações futuras resultantes de certa ou certas relações negociais.
3) A fiança "omnibus" será válida se, à data da sua prestação, e em relação aos débitos não constituídos, existem elementos que permitam inferir, com segurança, a origem, o prazo, os possíveis montantes e as relações entre os outorgantes, permissivas do enquadramento do crédito na fiança prestada.
4) A presunção de vontade de redução da parte final do artigo 292º do Código Civil deve ser ilidida por quem pretende a nulidade total do negócio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


A "Empresa-A" intentou execução contra "Empresa-B", AA, BB e CC.

Os executados BB e CC opuseram-se invocando, nuclearmente, a nulidade da fiança que prestaram.

Na Comarca de Albergaria-a-velha os embargos procederam sendo julgada extinta a execução quanto aos embargantes.

Apelou a exequente, tendo a Relação de Coimbra dado provimento ao recurso e determinando o prosseguimento da execução contra os oponentes.

Pedem revista os recorridos, assim concluindo a sua alegação:

- Ao contrário do que se diz no Acórdão recorrido, a indeterminabilidade da fiança não tem a ver com a falta de um limite temporal - aspecto que nem os oponentes aduziram na oposição, nem a sentença da 1ª instância apreciou, nem a exequente invocou na sua apelação - e, por isso, o Tribunal tomou conhecimento de uma questão totalmente fora das alegações das partes e da sentença recorrida.

- O acórdão recorrido dá por assente que os contratos de abertura de crédito e de fiança foram assinados no mesmo momento, mas isso não foi alegado pelas partes, é desmentido pela falta de sequência das contas e, sobretudo, não consta do elenco dos factos provados.

- O acórdão dá por assente que o contrato de abertura de crédito e o contrato de fiança constituem um mesmo documento, o que não é verdade, contraditado pelo enunciado do requerimento executivo apresentado pela exequente, e por nem sequer constar do elenco dos factos provados.

- O acórdão recorrido considerou (em nota de roda pé) que o objecto da fiança era determinável com base nesses dois pretensos factos (simultaneidade da sua assinatura com a abertura de crédito e constituição de um único documento), que nem foram alegados pelas partes, nem constam da (incontestada) resenha factual.

- Ao contrário do decidido no acórdão recorrido, e como bem julgou a 1ª instância, a fiança subscrita pelos oponentes, cujo texto não contém a menção expressa da origem e natureza das responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito permitida, é nula, porque o seu objecto é indeterminável.

- No acórdão recorrido violou-se o disposto nos artigos 660ºnº2, 668ºnº1 d), 712ºnº1 e 716ºnº1 do CPC, e, em oposição à jurisprudência uniforme, o disposto no artigo 280ºnº1 CC.

Contra alegou a Empresa-A em defesa do julgado.

Releva para a decisão a seguinte matéria:

- É titulo executivo um contrato intitulado de "contrato de abertura de crédito em conta corrente", datado de 2 de Junho de 1997 onde figuram como 1º outorgante "Empresa-B" como 2º outorgante a Empresa-A.

- O contrato foi assinado por AA, por si e como representante legal dos seus filhos menores DD e EE, únicos sócios da sociedade "Empresa-B".

- Do contrato consta o seguinte: "A Empresa-A concede ao 1º contratante uma operação sob a forma de abertura de crédito em conta corrente, de que o mesmo se confessa devedor, e que será regulada pelas seguintes condições que as partes declaram aceitar: (...)
- Nº da proposta 0175/000197/682/0019
- Montante: Até ao limite de 6.000.000$00
- Finalidade: Apoio temporário à tesouraria
- Prazo: 6 meses com inicio na data em que a Empresa-A aceitar todos os documentos contratuais da operação.
O prazo referido será automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos, a menos que a Empresa-A ou o contratante, denuncie o contrato por escrito, e com, pelo menos 30 dias de antecedência em relação ao termo do prazo que estiver em curso.
(...)
Movimento da Conta Corrente (cláusula exclusiva para contas correntes de movimentação condicionada baseada em conta de empréstimo):
A conta corrente será movimentada:
- A débito, por crédito da conta de depósito à ordem nº 0175002997030, constituída em nome dos mutuários na Agência da Empresa-A em Branca, mediante pedido escrito do mesmo; ou, sempre que, após apresentação de documentos que determinem débitos na referida conta de depósitos à ordem, se verifique que a mesma não tem provisão suficiente.
- A crédito, por débito da dita conta de depósitos à ordem, mediante pedido escrito da empresa ou ainda nos termos do artigo 14º (liquidação de juros e amortização de capital).
- Os movimentos a débito e a crédito anteriormente mencionados terão necessariamente como valor mínimo 500 contos.
(...)
- Extracto de conta corrente - considera-se que o extracto da conta corrente é documento suficiente de prova da existência e de liquidação do crédito que dela resultar, para fins de exigência ou reclamação do referido crédito, em qualquer processo.
(...)
Garantias: para segurança de todas as garantias que vierem a ser devidas à Empresa-A no âmbito do presente contrato (...), fixam-se ainda as seguintes garantias:
- Fiança dos Srs. AA (...) e de BB e esposa CC, para garantia de todas as responsabilidades, prestada em documento de 02/06/97."

- Está ainda em execução documento intitulado como "Fiança para todas as responsabilidades", datado de 02/06/97 onde figuravam como 1ºs contratantes AA, BB e CC como fiadores e a Empresa-A.

- De tal documento consta:
"Entre as referidas partes fica convencionado o seguinte:
a) Os contratantes declaram constituir-se, por este instrumentos, fiadores solidários e principais pagadores de todas e quaisquer obrigações pecuniárias decorrentes de mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, fianças, avales e empréstimo obrigacionistas, concedidas ou a conceder pela Empresa-A a "Empresa-B".
b) Os documentos que representam os créditos da Empresa-A constituirão título referidos a este instrumento e dele fazem parte integrante para fins de execução, se for caso disso.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Fiança - objecto.
2- Indeterminabilidade.
3- Conclusões.

1- Fiança - objecto.

A questão a decidir é, apenas, a validade da fiança prestada pelos recorrentes a qual, na óptica da 1ª Instância, seria nula por falta de concretização do seu objecto.
Tendo na sua origem um negócio jurídico, a fiança depende dos respectivos requisitos de validade e também da validade da obrigação garantida - artigo 632º nº1 do Código Civil - atenta a sua natureza acessória.
Trata-se, enfim, da garantia dada por um terceiro de colocar o seu património à disposição do credor de outrem, assim se obrigando pessoalmente. (cf. v.g, Doutor Henriques Mesquita - CJ - 1986 - IV - 25- e M. J. Costa Gomes - "Estrutura Negocial da Fiança e jurisprudência Recente" in "Estudos em Memória do Prof. Doutor Castro Mendes", I, 323).
A responsabilidade do fiador coincide, em regra, com a do devedor principal, abrangendo tudo a que este se obrigou, incluindo a prestação, a reparação de incumprimento culposo e, até, se estabelecida, a cláusula penal.
A lei admite, expressamente, que a fiança possa garantir obrigações futuras - artigo 654 CC.
A questão que, nestes casos, se coloca é, então, a determinação do objecto e o disposto nos artigos 280º e 400º da lei civil.
Vejamos.
O artigo 280º do diploma citado fulmina de nulidade o negócio jurídico que, entre a falta de outros requisitos, seja indeterminável.
A determinabilidade do objecto negocial afere-se no verificar se a determinação "está contida potencialmente na referência a um acontecimento futuro, ou a critérios objectivos de determinação, ou, inclusive, à determinação realizada por um terceiro". (Cons. Rodrigues Bastos, in "Das Relações Jurídicas", II, 1968, 187).
No caso de prestação de coisas ("dare", "facere" ou "prestare"), na modalidade de obrigação de garantia, o conteúdo deve ficar inicialmente determinado ou, no limite, sê-lo posteriormente segundo um critério negocial ou legal.
Sem prejuízo das obrigações genéricas (artigos 539º ss CC) ou alternativas (artigos 543º ss CC) a indeterminação será superada pela via da equidade ou, em situações de extemporaneidade, pelo Tribunal.
Daí a conclusão de que negócio jurídico absolutamente indeterminado, e indeterminável, seja nulo.
Porém se, embora indeterminado, puder ser determinável, não é ferido de nulidade, lançando-se mão dos critérios de determinação constantes do artigo 400º do Código Civil.
É perante estes critérios que têm de colocar-se a fiança em que o fiador garante todas as dívidas da responsabilidade do afiançado no decurso de certa relação negocial, ou seja a chamada fiança "omnibus".
Esta, também apodada de fiança genérica, garante os financiamentos e outros movimentos de capital de um Banco aos seus clientes.
A propósito, decidiu o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 30 de Setembro de 1999 - 99B436 - que "se à data da fiança, há já débitos constituídas, eles estão, automaticamente determinados e a fiança é válida quanto a eles. Contudo, e em relação a débitos futuros do afiançado, ainda não constituídos, a fiança só será válida se, à da em que foi outorgada, se fixou e se concretizou um critério objectivo que permita a identificação e a individualização dos débitos que hão de surgir; individualização e identificação que deverão emergir de parâmetros objectivados que não coloque o fiador à mercê da vontade subjectiva do credor ou de terceiro (está é, aliás, a jurisprudência dominante expressa em vários arestos: CJ XIX, I, 220; CJ/STJ I, I, 71 e I-II, 98; Sumários Acórdãos STJ, 30, p. 37; 28 p. 63; 27 p. 27; 24,p.20)."
Como acima se acenou, a fiança "omnibus" é a que "se estende ás obrigações decorridas ou a decorrer de certa ou certas relações de negócios" a qual se contrapõe a fiança geral "prestada para todas as obrigações do devedor principal, resultantes de um qualquer titulo ou causa, de operações económicas de qualquer género ou espécie, inclusive ilícito." (cf. Prof. Calvão da Silva, in "Estudos de Direito Comercial", 332, nota 2).
Ali há determinabilidade, ainda que prestada para todas as obrigações actuais ou futuras do devedor principal, resultantes de determinado tipo de actividades por ele desenvolvidas; na fiança geral há um conteúdo muito amplo e de determinabilidade difusa, por vincular o fiador de forma quase ilimitada.
Esta é de duvidosa validade (cf. o Acórdão do STJ de 25 de Novembro de 1997 - Pº 260/97-1ª - " a lei não admite que alguém, sem quaisquer limites, se possa declarar fiador de todos os débitos que um terceiro tenha ou possa vir a ter, equivalente a alguém se obrigar a pagar a outrem o que este queria, sem limite algum."), e deve ser analisada casuisticamente.
Daí que se adira à jurisprudência do citado Acórdão de 30/9/99, também acompanhando o Prof. Vaz Serra (RLJ - 107-255) ao defender que a determinabilidade deve existir no momento da constituição da fiança, no documento em que é estipulada.
Este entendimento é o que resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2001 de 23 de Janeiro de 2001 - DR I A nº57 de 8.3.2001.

2- Indeterminabilidade.

Aqui chegados, e assentes os princípios basilares da validade da fiança "omnibus" resta a situação "in casu".
A leitura do documento acima transcrito, onde os recorrentes se vincularam, impõe algumas reflexões prévias.
Trata-se de uma relação contratual em que é devedora uma sociedade por quotas, tendo por fiadores um dos seus sócios e os recorrentes que se crê serem seus pais (ao que é afirmado pela recorrida, ressalta dos apelidos e não é negado pelos recorrentes).
O contrato (titulo executivo) fixou o limite do crédito em 6.000.000$00 e foi afiançado pelos recorrentes, com a data de 2 de Junho de 1997.

Foi dado a execução outro documento, com a mesma data, com os mesmos fiadores que se afirmam responsáveis pelo pagamento "de todos e quaisquer obrigação pecuniárias decorrentes de mútuos, aberturas de crédito, de qualquer natureza, descobertas em contas à ordem, letras livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, fiança, avales e empréstimos accionistas concedidos ou a conceder" pela exequente à executada.
Sem mais, tal integraria uma fiança geral, de objecto indeterminável e, em consequência, nula "ex vi" do artigo 280º do Código Civil.
Só que, a possibilidade de determinação tem de ser vista no contexto, isto é se existe algum negócio jurídico contemporâneo a garantir, se a origem, o prazo, os montantes e as relações entre os outorgantes, permitem inferir, com segurança, se há possibilidade, ou não, de enquadrar esses créditos futuros na fiança prestada.
Na ponderação destes pressupostos, é indubitável a validade da fiança quanto ao crédito ("contrato de abertura de crédito em conta corrente") até ao limite de 6.000.000$00 e todas as responsabilidades dele resultante.
Já a fiança constante do segundo documento ("fiança para todas as responsabilidades") é nula, por indeterminada e indeterminável.
E nem se diga que se trata de uma única fiança - que não é - já que, ainda que o fosse (o que só por mero exercício de raciocínio se admite) valeria o preceituado no artigo 292º do Código Civil, segundo o qual a nulidade parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se demonstre que ele não teria sido concluído sem a parte viciada, o que não ocorreu. (cf., v.g Prof. Vaz Serra, RLJ - 108-292 e o Acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 1999 - Pº 1167/99-2ª - onde se julgou que "existindo presunção de vontade de redução é à parte que pretende a nulidade total do negócio que cabe o ónus de provar que este não teria sido concluído sem a parte viciada.")

3- Conclusões.

Resta concluir que:

a) A determinabilidade do objecto negocial afere-se no apurar se o mesmo pode ser concretizado inicial ou posteriormente, com apelo a critérios negociais ou legais, sendo que é nulo o negócio jurídico absolutamente indeterminado e indeterminável.
b) O "distinguo" entre fiança geral e fiança "omnibus", ou genérica, está em que aquela é prestada para todas as obrigações do devedor principal, decorrentes de qualquer causa ou qualquer titulo, enquanto
a fiança genérica, ou "omnibus", garante as obrigações futuras resultantes de certa ou certas relações negociais.
c) A fiança "omnibus" será válida se, à data da sua prestação, e em relação aos débitos não constituídos, existem elementos que permitam inferir, com segurança, a origem, o prazo, os possíveis montantes e as relações entre os outorgantes, permissivas do enquadramento do crédito na fiança prestada.
d) A presunção de vontade de redução da parte final do artigo 292º do Código Civil deve ser ilidida por quem pretende a nulidade total do negócio.

Nos termos expostos, acordam conceder parcialmente a revista prosseguindo a execução contra os recorrentes na parte referente ao primeiro documento executivo (fiança quanto ao crédito até ao limite de 6.000.000$00 e responsabilidades inerentes).

Custas pelos recorrentes (2/3) e recorrida (1/3).

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho