Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
107/08.6GTBRG.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
TRÂNSITO EM JULGADO
SUCESSÃO DE CRIMES
CÚMULO POR ARRASTAMENTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
CULPA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - A interpretação do art. 78.º, n.º 1, do CP, tem de partir da consideração e da determinação do sentido de dois elementos essenciais da construção da norma: o momento de superveniência do conhecimento do concurso (art. 78.º, n.º 1, 1.ª parte), e os pressupostos de integração do concurso cujo conhecimento é superveniente (art. 78.º, n.º 1, 2.ª parte) para aplicação da pena única.
II - Ambos os elementos são de dimensão processual, mas o segundo releva também de uma natureza estruturalmente substantiva ou material; o primeiro elemento, que se apresenta contingente no tempo, é eminentemente, ou exclusivamente processual; o segundo elemento, que integra o objecto do conhecimento, é da ordem dos pressupostos materiais, e apela, por remissão, para a noção, material e específica, do concurso de crimes para efeitos de punição, constante do art. 77.º, n.º 1, do CP.
III - O momento do conhecimento superveniente tem exclusivamente a ver com o processo e com a oportunidade, rectius, com a exigência processual do conhecimento, que é contingente porque pressupõe a posterioridade (superveniência) do conhecimento; os pressupostos de integração do concurso não têm já que ver estritamente com o processo – em relação ao qual são relativamente indiferentes – mas com a definição e integração do conceito de crimes, que impõe a aplicação de uma «pena única».
IV - O limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto.
V - A pena única do concurso, formada no sistema da pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo estabelecida pelo art. 78.º do CP, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.
VI - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
VII - Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem um tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.
VIII - O modelo de fixação da pena no concurso de crimes rejeita, pois, uma visão atomística dos vários crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse pedaço de vida criminosa com a personalidade do seu agente. Por isso que, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares crimes, cabe ao tribunal, na moldura do concurso definida em função das penas parcelares, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos que determinam as penas parcelares por cada crime. Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.
IX - Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de «relações existenciais diversíssimas», a reclamar uma valoração que não se repete de caso para caso. A este conjunto – a esta «massa de ilícito que aparente uma particular unidade de relação» – corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação, isto é, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade.
X - Fundamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade. O conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes.
XI - Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
XII - Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral, e especialmente na pena do concurso os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, após audiência para determinação da pena única por concurso de crimes, o arguido AA, solteiro, nascido a 17.11.74, natural da freguesia de Matosinhos, Concelho de Matosinhos, filho de ... e de ..., residente no ..., foi condenado, em cúmulo jurídico de várias penas por que fora condenado em diversos processos, na pena única de nove anos de prisão, acrescida da pena de duzentos e dez dias de multa, à taxa fixada de cinco euros.

2. Não se conformando, recorre para o Supremo Tribunal, nos termos da fundamentação constante da motivação que apresentou, e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1)- A maior discordância do arguido reside no facto de o tribunal ter considerado que todos os mencionados crimes não se encontram entre si em relação de concurso, prevista no art. 78º, para se proceder ao respectivo cúmulo jurídico, no sentido de aplicar uma pena unitária ao arguido aqui recorrente, incluindo as penas dos seguintes processos:
a - Nos presentes autos, o arguido foi condenado, por decisão datado de 23.01.2009 e transitada a 18.02.2009, reportada a factos ocorridos em 21,10.2007, na pena de duzentos e dez dias de multa, à taxa diária de cinco euros, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n° 1 e 2, do DL nº 2/98, de 3/1;
b - No processo n° 35/05.7PEBRG, do 1 ° Juízo Criminal de Braga, por decisão datada de 21.06.2006, transitado em julgado em 06.07.2006, reportada a factos ocorridos em 03.05.2005, foi condenado na pena de vinte e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, pelo prática de um crime de trafico de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25°, al. a), do DL n° 15/93, de 22.01;
Nesse processo, foi proferida decisão a revogar a concedida suspensão, estando o arguido a cumprir essa pena.
c - No processo n° 2743/07.9PBBRG, desta Vara de Competência Mista, foi condenado por decisão datada de 14.05.2008, transitado em 06.10.2008, nas penas de dezoito meses de prisão, dezoito meses de prisão, quatro anos e três meses de prisão, quatro anos e três meses de prisão, pela prática respectivamente de um crime de roubo simples, previsto e punido pelo art. 210º nº 1, do Código Penal, um crime de roubo simples, previsto e punido pelo art. 210°, n° 1, do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210° nº 2. al. b) do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210º, nº2, a1. b) do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210°, nº 2, al. b), do Código Penal.
Em cúmulo jurídico foi-lhe, então, fixada a pena unitária de oito anos.
d. No processo n° 981/07.3PCBRG, desta Vara de Competência Misto, por decisão datada de 30.04.2008, transitada em 25.03.2009, reportada a factos ocorridos em 18.10.2007, foi condenado na pena de dois anos de prisão, pela prática de um crime de roubo simples previsto e punido pelo art. 210°, nº1, do Código Penal.
2)- O cúmulo final a efectuar deve abranger, todas as seguintes penas identificadas da alínea a) a d), após transitarem em julgado.
3) – Dever-se-á considerar que relativamente aos crimes referidos, uma vez que se encontram entre si na relação de concurso previsto no art. 78° CP, deverá proceder-se ao respectivo cúmulo jurídico, nomeadamente:
4) O que argui são factos, realidades constam nos autos, que não podem ser omitidos nem menosprezados como factor determinante adequado e equilibrada a pena aplicar uma única pena ao arguido recorrente, incluindo as penas acima identificadas, da alínea a) a d) num cumulo jurídico único.
B) O Tribunal deverá ter em conta determinados aspectos relevantes para a medida da pena.
1- O artigo 71º do C.P. manda atender às circunstâncias que deponham o favor do agente, nomeadamente as suas condições pessoais e a sua situação económica. Nos termos deste artigo, a determinação da medida da pena aplicável tem como critérios: a culpa do agente e as exigências de prevenção, com as funções definidas segundo a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico.
2 - A maior discordância do arguido reside no facto de o tribunal ter ignorado o facto de o mesmo ser jovem idade.
3 - O arguido desenvolveu se num agregado familiar onde existia conflitualidade entre os seus membros, hábitos de consumo excessivo de álcool pelo progenitor, que protagonizava maus-tratos físicos e verbais à família.
4- É oriundo de um agregado familiar de fracos recursos sócio económico e disfuncional.
5 - Teve um percurso escolar marcado pelo insucesso e absentismo, tendo sido colocado numa instituição de reeducação, onde permaneceu dos 8 aos 16 anos, local onde completou o 6º ano de escolaridade.
6 - Dado o seu percurso de vida, verificou se um gradual afastamento da família de origem.
7- Foi durante vários anos, tóxico dependente
5- Até ser preso, vivia com a sua companheira e com os seus dois filhos do casal encontrando se laboralmente inactivo, na sequência de uma recaída no consumo de estupefacientes, que conduziram á criminalidade.
6- Começou a necessitar de praticar crimes para obter dinheiro para comprar produtos de estupefacientes.
7 - Tal como se pode verificar nos presentes autos, são bens de diminuto valor, daria para a sua dose diária.
8-Não cometeu qualquer destes crimes para extravagâncias mas por questão de ser toxicodependente.
9-Tem dois filhos de menores.
10- Presentemente, o arguido manifesta um comportamento mais equilibrado e responsável consigo próprio e com a família.
11- Tem procurado manter-se ocupado, tendo exercício inicialmente as funções de faxina da escola e actualmente colabora na organização do sector desportivo, onde é referenciado como responsável pelas tarefas que lhe são atribuídos
12- O arguido refere estar actualmente abstinente do consumo de drogas sem haver recorrido a qualquer tratamento, que desvaloriza, sendo certo que mantém acompanhamento em consultas de psicologia que favorecem a sua situação de abstinência.
13- Relativamente, ao impacto jurídico-penal, o arguido manifestou alguma preocupação com as consequências deste cúmulo jurídico.
14 - O arguido é peremptório em afirmar que tem actualmente a sua vida organizada, com suporte familiar, mais responsável
15- A base dos seus projectos será não voltar a ser toxicodependente.
16- Perante o registo de mudança de atitude e de comportamento, mais crítico sobre o anterior modo de vida, é um factor positivo para o sucesso de reintegração social.
17- E de referir que o arguido, a veio a ser preso preventivamente.
18- Beneficia do apoio incondicional da companheira actual que o visita semanalmente no Estabelecimento Prisional e quando for restituído á liberdade será ao agregado familiar que regressará.
19-A experiência de detenção vivido abalou fisicamente e psicologicamente, e sempre demonstrou, um propósito firme de evitar novos comportamentos desviantes que o levassem a repetição do mesmo.
20-Não se compreende, sendo mesmo inaceitável, que o arguido RUI, sendo um jovem, venha o cumprir uma pena desajustada e desproporcional.
21-O que se acaba de arguir, são factos, realidades, constam dos autos e constituem, que não podem ser omitidos nem menosprezados como factor determinante à adequada e equilibrada sanção a aplicar ao recorrente.
Termina, pedindo a procedência do recurso.
O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, considerando que «a moldura penal da pena do cúmulo – quatro anos e três meses a vinte e dois anos de prisão - e ponderando estas circunstâncias examinadas na sua globalidade», entende «que não se pode questionar a adequação e proporcionalidade da pena única fixada no acórdão recorrido», afigurando-se-lhe «ser ajustada à culpa do arguido e satisfazer plenamente as exigências reclamadas pela prevenção especial, que se prende com a capacidade do arguido se deixar influenciar pela pena que lhe é imposta, e pela prevenção geral positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada».
Entendendo que «não deverá ser fixada a pena em medida inferior a nove anos de prisão», pronuncia-se pela improcedência do recurso.

3. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP.
Manifesta opinião no sentido de que «a pena única de nove anos de prisão, acrescida da pena de duzentos e dez dias de multa aplicada ao arguido/recorrente AA acha-se correctamente determinada, tendo o labor da sua determinação ponderado os factores ligados à prática dos vários factos criminosos do agente, em análise, bem com todos os factores pessoais ligados à pessoa do agente, como v.g. o relatório social do mesmo, devendo, consequentemente, negar-se qualquer provimento ao recurso».
Notificado, o recorrente nada disse.

4. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.
O tribunal considerou provados os factos seguintes:
A. Neste processo, o arguido foi condenado, por decisão datada de 23.01.2009 e transitada a 18.02.2009 [no acórdão de fls. consta que o trânsito ocorreu a 15 de Fevereiro de 2009], reportada a factos ocorridos em 21.10.2007, na pena de duzentos e dez dias de multa, à taxa diária de cinco euros, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3º, nº1 e 2, do D.L. nº 2/98, de 3/1;
B. No processo nº 35/05.7PEBRG, do 1º Juízo Criminal de Braga, por decisão datada de 21.06.2006, transitada em julgado em 06.07.2006, reportada a factos ocorridos em 03.05.2005, foi condenado na pena de vinte e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25º, al.a), do D.L. nº 15/93, de 22.01:
No âmbito desses autos foi proferida decisão a revogar a concedida suspensão, estando o arguido a cumprir essa pena.
C. No processo nº 2743/07.9PBBRG, desta Vara de Competência Mista, foi condenado por decisão datada de 14.05.2008, transitada em 06.10.2008, nas pernas de dezoito meses de prisão, dezoito meses de prisão, quatro anos e três meses de prisão, quatro anos e três meses de prisão, quatro anos e três meses de prisão e quatro anos e três meses de prisão, pela prática, respectivamente de um crime de roubo simples, previsto e punido pelo art. 210º, nº1, do Código Penal, um crime de roubo simples, previsto e punido pelo art. 210º, nº1, do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210º, nº2, al.b), do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210º, nº2, al.b), do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210º, nº2, al.b), do Código Penal, um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelo art. 210º, nº2, al.b), do Código Penal.
Em cúmulo jurídico foi-lhe, então, fixada a pena unitária de oito anos.
D. No processo nº 981/07.3PCBRG, desta Vara de Competência Mista, por decisão datada de 30.04.2008, transitada em 25.03.2009, reportada a factos ocorridos em 18.10.2007, foi condenado na pena de dois anos de prisão, pela prática de um crime de roubo simples, previsto e punido pelo art. 210º, nº1, do Código Penal.
E. Por factos anteriores à condenação elencada em B) e que tiveram origem em 1992, o arguido foi condenado pela prática de crimes de furto qualificado (vários), introdução em lugar vedado ao público, furto de uso de veículo (vários), furto simples (vários), condução ilegal (vários), posse de arma proibida e dano qualificado.
F. Em 14.06.1995, foi-lhe concedida liberdade condicional, que viria a ser revogada por decisão de 17.04.96.
G. O arguido desenvolveu-se num agregado familiar onde existia conflitualidade entre os seus membros, hábitos de consumo excessivo de álcool pelo progenitor, que protagonizava maus tratos físicos e verbais à família.
H. Teve um percurso escolar marcado pelo insucesso e absentismo, tendo sido colocado numa instituição de reeducação, onde permaneceu dos 8 aos 16 anos, local onde completou o 6º ano de escolaridade.
I. Quando regressou à família de origem, após um período de tempo de comportamento adequado às regras, começou a manifestar instabilidade laboral, iniciando a prática de condutas ilícitas que conduziram à sua condenação penal quando ainda tinha 17 anos.
J. Desde então, o seu percurso não sofreu alterações, mantendo o mesmo estilo de vida, o que conduziu a períodos de reclusão intercalados com períodos de liberdade.
K. Dado o seu percurso de vida, verificou-se um gradual afastamento da família de origem, não mantendo, actualmente, contactos com a mãe e irmãos.
L. Foi, durante vários anos, tóxico-dependente para o que nunca realizou qualquer tratamento.
M. No período que antecedeu a actual reclusão, vivia com uma companheira e com os dois filhos do casal, encontrando-se laboralmente inactivo, na sequência de uma recaída no consumo de estupefacientes, que o conduziram à voltar à criminalidade.
N. Desde 14 de Julho de 2008 que o arguido foi transferido para o EP de Paços de Ferreira, local onde registou já duas infracções disciplinares e por tal sancionado, sendo a última em Agosto de 2009, data a partir da qual passou a cumprir as regras impostas no contexto.
O. Tem procurado manter-se ocupado, tendo exercido inicialmente as funções de faxina da escola e actualmente colabora na organização do sector desportivo, onde é referenciado como responsável pelas tarefas que lhe são atribuídas.
P. Refere estar actualmente abstinente do consumo de drogas sem haver recorrido a qualquer tratamento, que desvaloriza, sendo que mantém acompanhamento em consultas de psicologia que favorecem a sua situação de abstinência.

5. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Nas conclusões, submete ao Supremo Tribunal o conhecimento de duas questões:
(i) – Determinação da relação entre os crimes, considerando que todos os crimes cometidos devem ser objecto de aplicação de uma pena única.
(ii) – Medida da pena única fixada, que considera excessiva.


6. Primeira questão:
O regime legal de punição do concurso de crimes vem fixado no artigo 77º, nº 1, do Código Penal: quando alguém tiver praticado vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, tendo em conta na determinação da medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido.
Quando, porém, o conhecimento do concurso não for contemporâneo da condenação «por qualquer» dos crimes, sendo, por isso, superveniente, aplicam-se igualmente as regras da punição do concurso de crimes, nos termos determinados pelo artigo 78º do Código Penal: «se depois de uma condenação transitada em julgado se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes», são aplicáveis, por remissão do artigo 78º, nº1, as regras do artigo 77º, sendo que estas regras só são aplicáveis relativamente aos crimes cujas condenações transitaram em julgado - artigo 78º, nº 2.

Deste modo, com o sentido que impõe a noção de concurso de crimes para efeitos de aplicação de uma pena única, constante das referidas disposições, só existe concurso quando tenham sido praticados vários crimes antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles – artigo 78º, nº 1, do Código Penal.

Divergências de sentido que têm sido encontradas impõem, porém, um trabalho de interpretação da norma expressa nesta disposição: alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal procedeu, com efeito, a uma interpretação total da referida norma, no que ficou conhecido por cúmulo “por arrastamento”: «a condenação por crimes cometidos antes e depois de condenações entretanto proferidas, implica a efectivação de um cúmulo jurídico, por arrastamento, das penas aplicadas e a aplicar a todos esses crimes» (cfr. os acórdãos de 26 de Outubro de 1988, CJ, Ano XIII, tomo IV, pág. 18; de 5 de Fevereiro de 1997, proc. nº 992/96; e de 20 e Fevereiro de 1997, proc. 983/96).

O elemento base de toda a interpretação, simultaneamente ponto de partida e limite da interpretação, é a letra, o texto da norma.

A apreensão literal do texto é já interpretação, mas a interpretação não fica ainda completa; será sempre necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal.

Na tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos - de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma a interpretar, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o ‘lugar sistemático’ que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito, a evolução do instituto e do tratamento normativo-material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que teve em vista e que pretende realizar (cfr., v. g., KARL LARENZ, “Metodologia da Ciência do Direito”, trad. da 5ª ed., ed. Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 385, segs.;. J. BAPTISTA MACHADO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1985, págs. 181 e seg.).

Estes princípios são válidos também para a interpretação do direito penal. O marco fundamental deve ser delimitado pelo sentido literal possível na linguagem corrente do texto da lei, mas o juiz, dentro deste limite, deve interpretar a norma considerando o significado literal mais próximo, a concepção histórica do legislador, o contexo normativo-sistemático e o fim da lei (cfr., v. g., CLAUS ROXIN, “Derecho Penal- Parte General”, ed, Civitas, 1997, págs 148-149).

A interpretação do artigo 78º, nº 1, do Código Penal tem de partir da consideração e da determinação do sentido de dois elementos essenciais da construção da norma: o momento de superveniência do conhecimento do concurso (artigo 78º, nº 1, 1ª parte), e os pressupostos de integração do concurso cujo conhecimento é superveniente (artigo 78º, nº 1, 2ª parte) para aplicação da pena única.

Ambos os elementos são de dimensão processual, mas o segundo releva também de uma natureza estruturalmente substantiva ou material; o primeiro elemento, que se apresenta contingente no tempo, é eminentemente, ou exclusivamente processual; o segundo elemento, que integra o objecto do conhecimento, é da ordem dos pressupostos materiais, e apela, por remissão, para a noção, material e específica, do concurso de crimes para efeitos de punição, constante do artigo 77º, nº 1, do Código Penal.

O momento do conhecimento superveniente tem exclusivamente a ver com o processo e com a oportunidade, rectius, com a exigência processual do conhecimento, que é contingente porque pressupõe a posterioridade (superveniência) do conhecimento; os pressupostos de integração do concurso não têm já que ver estritamente com o processo - em relação ao qual são relativamente indiferentes - mas com a definição e integração do conceito de concurso de crimes, que impõe a aplicação de uma «única pena».

Há, pois, que decompor a norma do artigo 77º, nº 1, 1ª parte, do Código Penal, para a determinação do sentido dos respectivos elementos integrantes, partindo das fórmulas de linguagem utilizadas: «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles».

A punição do concurso de crimes com uma «única pena» pressupõe, pois, a existência de uma pluralidade de crimes praticados pelo mesmo agente que tenham de comum um determinado período de tempo, delimitado por um ponto de referência ad quem estabelecido na norma - o trânsito em julgado da condenação por qualquer deles; todos os crimes praticados antes de transitar em julgado a condenação por um deles devem determinar a aplicação de uma pena única, independentemente do momento em que seja conhecida a situação de concurso, que poderá só ocorrer supervenientemente por facto de contingências processuais várias.

O segmento «por qualquer deles», usado na descrição da norma, requer, por sua vez, um acrescido esforço de interpretação, já que a simples enunciação verbal pode deixar em aberto significações plurais. «Qualquer deles» pode traduzir, com efeito, uma indiferenciação, no sentido de aleatoriedade do pressuposto, da ordem de factores arbitrária, em aproximação semântica a «qualquer um». Mas também pode significar, no imediato plano literal, a primeira ocorrência: o trânsito em julgado da condenação por «qualquer deles» pode significar que este momento relevante (o trânsito da condenação) se verifica logo que haja uma condenação transitada por um dos crimes - o que supõe sempre uma pluralidade antecedente, que apenas o é na medida em que, transitada uma condenação, se verifique que anteriormente a esse momento foi praticado pelo agente um outro ou mais crimes.

Neste sentido, não haveria lugar à aplicação de uma «única pena» sempre que se verificasse que, após o trânsito de uma condenação, o agente praticara outros crimes pelos quais foi, também, posteriormente condenado.

A pluralidade de sentidos que o texto permite impõe que se façam intervir outros instrumentos metodológicos de interpretação para captar o sentido em que a norma deve ser interpretada, nomeadamente elementos de sistema e a razão de ser e finalidade da instituição do regime da pena única.

Os artigos 77º e 78º do Código Penal não são normas de incidência, dir-se-ia dogmática, aferente à teoria do facto ou à doutrina do crime, mas antes, na projecção sistemática que apresentam, são exclusivamente atinentes à punição e à determinação da medida da pena, e aplicáveis nos casos, que definem, de fixação de uma pena única.

Por isso, têm de ser interpretadas de acordo com as correlações conceptuais, lógicas e operativas perante outros institutos igualmente referentes à punição e à determinação da medida da pena, de modo a que se não produzam contradições ou desvios de sentido intra-sistemáticos.

Nesta coordenação interna ao sistema, os pressupostos estabelecidos na lei para a intervenção do instituto da reincidência hão-de contribuir para definir também o espaço de intervenção das regras de fixação da pena do concurso: onde a lei determinar que se verifica a reincidência (o pressuposto objectivo da reincidência) não pode, salvo contradição de sistema, haver pena única.

O artigo 75º, nº 1, do Código Penal dispõe, com efeito, para o que releva, que a punição como reincidente ocorrerá quando alguém cometer um crime de determinada natureza depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado por outro crime com certas condições de gravidade. Verificada a reincidência, não pode haver lugar para a pena única, e o limite de exclusão, ou de separação, é o trânsito em julgado de uma condenação, que não pode também, por isso, ser senão aquele termo que delimita o espaço temporal ad quem da prática dos crimes que impõem a fixação de uma pena única.

Mas se é assim, como exigência primeira de coerência sistémica dos institutos no caso de reincidência (conceptualmente delimitada), também tem de ser, pelas mesmas razões, nos casos em que se verifique simples sucessão de crimes, enquanto prática de um crime após o trânsito em julgado de uma condenação.

Por isso, o trânsito da condenação «por qualquer» dos crimes, referido no artigo 77º, nº 1, do Código Penal, não pode ser o trânsito da condenação por qualquer um dos crimes - que relevaria do simples acaso, do arbítrio, ou da pura contingência da cronologia e dos tempos processuais - mas o trânsito da primeira condenação relevante em cada caso para fixar os limites temporais para o passado.

Os elementos da interpretação, racional e teleológico, confortam também, por seu lado, esta conclusão.

As regras da punição do concurso, estabelecidas nos referidos artigos 77º, nº 1, e 78º, nº 1, não se destinam a modelar os termos de uma qualquer espécie de liquidação ou quitação de responsabilidade, reaberta em cada momento sequente em que haja que decidir da responsabilidade penal de um certo agente, mas têm como finalidade permitir apenas que em determinado momento se possa conhecer da responsabilidade quanto a factos do passado, no sentido em que, em termos processuais, todos os factos poderiam ter sido, se fossem conhecidos ou tivesse existido contemporaneidade processual, apreciados e avaliados, em conjunto, num dado momento. Na realização desta finalidade, o momento determinante só pode ser, no critério objectivado da lei, referido à primeira condenação que ocorrer, e que seja (quando seja) definitiva, valendo, por isso, por certeza de objectividade, o trânsito em julgado.

A posterioridade do conhecimento «do concurso», que é a circunstância que introduz as dúvidas, não pode ter a virtualidade de modificar a natureza dos pressupostos da pena única, que são, como se referiu, de ordem substancial.

O conhecimento posterior (artigo 78º, nº 1) apenas define o momento de apreciação, processual e contingente. A superveniência do conhecimento não pode, no âmbito material, produzir uma decisão que não pudesse ter sido proferida no momento da primeira apreciação da responsabilidade penal do agente (cfr., neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 293-294).

Há, assim, para a determinação da pena única, como que uma ficção de contemporaneidade. A decisão proferida na sequência do conhecimento superveniente do concurso, deve sê-lo nos mesmos termos e com os mesmos pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta, para a formação da pena única, os crimes anteriormente praticados; a decisão posterior projecta-se no passado, como se fosse tomada a esse tempo, relativamente a um crime que poderia ser trazido à colação no primeiro processo para a determinação da pena única, se o tribunal tivesse tido, nesse momento, conhecimento da prática desse crime (cfr., a propósito do regime análogo [“pena global”] do § 55 do Strafgesetzbuch, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, trad. da 5ª edição, pág. 787).

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem também interpretado neste sentido a conjunção das referidas disposições relativas à punição do concurso.

No acórdão de 7 de Fevereiro de 2002 (proc. 118/02-5ª), v. g., decidiu-se «que resulta directa e claramente» dos artigos 77.° e 78.° do Código Penal de 1995 que «para a verificação de uma situação de concurso de infracções a punir por uma única pena, se exige, desde logo, que as várias infracções tenham, todas elas, sido cometidas antes de ter transitado em julgado a condenação imposta por qualquer uma delas, isto é, o trânsito em julgado da condenação imposta por uma dada infracção obsta a que, com essa infracções ou com outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito. O trânsito em julgado de uma condenação penal é um limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois».

Com efeito – refere o acórdão de 28/05/1998, proc.112/98 - «o disposto no art. 78.°, n.° l, do CP de 1995, não pode ser interpretado cindido do que se estabelece no respectivo art. 77.°, do mesmo modo que não se deve ignorar que há uma substancial diferença entre os casos em que o agente apesar de já te recebido uma solene advertência por via de uma condenação transitada em julgado, prossegue na sua actividade delituosa (situação que determina uma sucessão de penas), e os casos em que o agente comete diversos crimes antes de ser condenado por qualquer deles (situação de concurso de penas)».

Esta interpretação tem, assim, sido expressa, «sem discrepância», na jurisprudência deste Supremo Tribunal desde 1997 (cfr., v. g., os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 11/10/2001, proc. 1934/01; de 17/01/2002, proc. 2739/01; de 23/01/2002, proc. 4410/02; de 29/04/2003, proc. 358/03, de 17 de Março de 2004, proc. 4431/03 e de proc. 606/09-3ª).

Resumindo: o limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto.

Foram estes os princípios aplicados na decisão recorrida.

Tal como decidiu, estão numa relação de concurso os crimes por que o recorrente foi condenado nos processos referidos em A, C e D da indicação da matéria de facto.

Com efeito, o crime praticado em 3 de Maio de 2005, cuja condenação transitou em julgado em 6 de Julho de 2006, não está numa relação de concurso com os crimes praticados posteriormente a esta data.

Por outro lado, a condenação transitada em julgado em 6 de Outubro de 2008 constitui o outro marco para determinar que crimes estão numa relação de concurso por terem sido praticados anteriormente a esta data, mas após o trânsito em julgado de qualquer condenação anterior.

Deste modo, as penas pelos crimes praticados em 26 de Setembro, 9, 11, 18, 20 e 21 de Outubro e 5 de Novembro de 2007, devem ser consideradas na aplicação da pena única do concurso.

A pena de multa aplicada pelo crime de condução sem habilitação legal, por seu lado, não obstante o crime integrar o concurso (factos de 21 de Outubro de 2007), mantém a sua autonomia por ser de natureza diferente das restantes penas.


7. Determinação da medida da pena única:
Nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal, o agente do concurso de crimes («quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles») é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
A pena única do concurso, formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo estabelecido pelo artigo 78º do Código Penal, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.
O modelo de fixação da pena no concurso de crimes rejeita, pois, uma visão atomística dos vários crimes e obriga a olhar para o conjunto - para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse pedaço de vida criminosa com a personalidade do seu agente. Por isso que, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares crimes, cabe ao tribunal, na moldura do concurso definida em função das penas parcelares, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos que determinam as penas parcelares por cada crime. Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido».
Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de «relações existenciais diversíssimas», a reclamar uma valoração que não se repete de caso para caso. A este conjunto – a esta «massa de ilícito que aparente uma particular unidade de relação» - corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação, isto é, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade.
Fundamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade. «Como referem Maurach, Gossel e Zipf a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da personalidade do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos (Schonke-Schrôder-Stree)», «a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também o receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa».
«Também Jeschek pensa no mesmo registo referindo que a pena global se determina como acto autónomo de determinação penal com referência a princípios valorativos próprios. Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve reflectir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si» (cfr., v. g., acórdão do STJ, proc. nº 333/07, de 28 de Março de 2007, e Cristina Líbano Monteiro, anotação ao acórdão do STJ de 12 de Julho de 2005, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16º, p. 155 ss.).
Assim, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluri-ocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral, e especialmente na pena do concurso os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
O primeiro critério é, pois, como se salientou, a consideração do conjunto dos factos, isto é, da medida e da gravidade do «ilícito global».
Os factos que determinaram as condenações parcelares são, em resume essencial, os seguintes, tal como resulta da descrição das decisões condenatórias.
Dia 26 de Setembro de 2007, encostar o ofendido a uma parede e revista, retirando-lhe do bolso das calças um telemóvel de marca Nokia, modelo 6680, no valor de €300,00,
Dia 9 de Outubro de 2007, apontando uma navalha ao pescoço do ofendido, exigindo a entrega do telemóvel - um telemóvel Nokia 5300, no valor de €140,00 - bem como a carteira, que continha documentos pessoais e a quantia de €20,00 em numerário.
No dia 11 de Outubro de 2007, empunhando um objecto que aparentava tratar-se de uma navalha, agarrando o ofendido por um braço, e retirando-lhe um leitor de MP3, no valor de €220,00.
No dia 15 de Outubro de 2007, o arguido e co-autores rodearam o ofendido, exigiram-lhe a entrega do dinheiro e do telemóvel Nokia, de valor não apurado, que trazia e da quantia de 9€ em dinheiro.
No dia 20 de Outubro de 2007, apontando uma navalha ao peito do ofendido, exigindo a entrega de todo o pinheiro que trazia, e retirando-lhe um telemóvel de marca Nokia, modelo 62880, no valor de €210,00, e um telemóvel de marca Nokia, modelo N70, no valor de €230,00.
No dia 21 de Outubro de 2007, agarrando o ofendido por um ombro, segurando-o por um braço e apontando-lhe uma navalha aberta ao pescoço, com revista e a subtracção do bolso das calças da carteira, que continha €40,00, e de um telemóvel de marca Nokia, no valor de €70,00.
No dia 5 de Novembro de 2007, cercando o ofendido e barrando-lhe a trajectória de fuga, a subtracção um telemóvel de marca Motorolla, modelo VI050, no valor de €275,00, as chaves do veículo automóvel e a carteira; o arguido e co-agentes após retirarem da carteira a quantia de €5,00, devolveram-na, juntamente com as chaves, e puseram-se em fuga.
Nesta perspectiva, a natureza e a percepção exterior dos factos revela uma saliente uniformidade – sete roubos, geralmente de noite, em co-autoria, num período temporal curto, sempre com uso da violência ou constrangimento, em alguns casos menos intensa e em outros já com utilização de instrumento cortante em ameaça, com subtracção de bens sempre da mesma natureza (telemóveis) e de pequenas quantias em dinheiro.
E revela também uma quase unidade de registo subjectivo próximo exteriormente reflectida na sequência e contiguidade temporal, sem salientes soluções de continuidade entre os diversos episódios.
Vistas as coisas na continuidade, o conhecimento superveniente que está em causa – o episódio de 15 de Outubro de 2007, que não foi considerado na anterior decisão de aplicação de pena única - foi meramente decorrente de contingências processuais, não acrescentando, no conjunto, dimensão à natureza do ilícito global.
As características da personalidade não exigem avaliação diferente e a densidade do ilícito global não fica tocada quando se considero o conjunto dos factos com a adição da acção de 15 de Outubro.
Nesta perspectiva de fixação da pena única, poder-se-á dizer que o episódio de 15 de Outubro, se fosse considerado no processo em que foi já fixada uma pena única, não teria, por si mesmo e no conjunto, peso bastante para que fosse fixada a pena diversa da que foi então fixada.
Fixa-se, assim, pelos crimes em que o recorrente foi condenado no processo nº 2743/07.9PBBRG, por decisão datada de 14.05.2008, transitada em 06.10.2008, da Vara de Competência Mista de Braga, e no processo nº 981/07.3PCBRG, por decisão datada de 30.04.2008, transitada em 25.03.2009, da mesma Vara, reportada a factos ocorridos em 15.10.2007, a pena única de oito anos de prisão.

8. N estes temos, na procedência parcial do recurso, fixa-se a pena única de oito anos de prisão, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Outubro de 2010

Henriques Gaspar (relator)
Armindo Monteiro