Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | FERREIRA DE ALMEIDA | ||
Descritores: | CONTRATO DE FACTORING DÍVIDA À PREVIDÊNCIA SEGURANÇA SOCIAL | ||
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Nº do Documento: | SJ200306050016102 | ||
Data do Acordão: | 06/05/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1346/02 | ||
Data: | 12/03/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | II. O contrato de "factoring" caracteriza-se pela transferência de créditos a curto prazo do seu titular (cedente, aderente) para um «factor» (cessionário), créditos esses resultantes da venda de produtos ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos) . II. Embora de natureza essencialmente comercial, assume tal contrato a natureza de uma cessão de créditos, sendo-lhe, como tal, subsidiariamente aplicável o regime jurídico contemplado nos artºs 577º e ss do C.Civil . III. Nos casos em que o devedor-cedido seja o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público, estes só poderão proceder a algum pagamento superior a 1.000.000$00, em casos de dívida às instituições de previdência e da segurança social, depois de reterem o montante em débito até ao limite máximo de 25% do total concedido - DL 411/91 . IV. Para que tal retenção não tenha lugar, torna-se necessário que, quer o aderente/cedente, quer o factor/cessionário, façam prova da regularização das dívidas à segurança social relativa aos últimos 180 dias. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. "A", veio, pelo presente processo, e com data de 31-3-97, propor acção de simples apreciação negativa com processo ordinário contra a B alegando, resumidamente o seguinte : - no exercício da sua actividade, e por escrito de 21-11-96, celebrou com a sociedade C um contrato de " factoring", nos termos do qual se tornou titular dos créditos que a aderente C detinha sobre a ora Ré em virtude dos fornecimentos a que respeitam as facturas nºs 6400, 6401, 6402, 61, 80, 81, e 82, juntas a fls 24 a 31, no montante global de 12.227.557$00; - a Ré foi notificada da referida cessão de créditos em 9-12-96, conforme docs de fls 22 e 23; - a Ré, na qualidade de pessoa colectiva de direito público, tem vindo a efectuar a retenção, no acto do pagamento, de uma importância até 25% do montante da factura de valor superior a 1.000.000$00, a coberto do disposto no artº 11º, nº 2, do DL 411/91 de 17/10, invocando que a cedente desses créditos - a C -, tem dívidas às instituições de previdência e/ou à segurança social; - a partir da altura em que os créditos foram cedidos por via do contrato de "factoring", tais créditos passaram a ser próprios da A . que age como titular desses créditos perante a Ré; - assim, tendo a A a sua situação regularizada perante a segurança social, não pode a Ré reter qualquer importância até à percentagem de 25% destinada à segurança social por dívidas da aderente . 2. Contestou a Ré alegando resumidamente que : - a A já recebeu as quantias constantes das facturas 6400 (fls 24) e 6402 (fls 26) no montante actual de 145.610$00, conforme recibo de fls 43; - do montante da factura 6401 (fls 25) no valor de 7.876.462$00 foi deduzida da percentagem de 25%, porquanto a A não apresentou declaração comprovativa da inexistência de dívidas às instituições de previdência e segurança social; - as facturas nºs 61, 80, 81 e 82 encontram-se por liquidar somente porque a A não pretende receber o seu crédito com a retenção a que a Ré está obrigada a afectuar por força do disposto no artº 11º do DL 411/91 de 17/10; - na alienação de créditos há sub-rogação das garantias e prerrogativas da segurança social, qualquer que seja o credor, ónus ou encargo que recai sobre o crédito e o acompanha em caso de transmissão; - à A. restará o direito de regresso sobre o cedente. 3. Houve réplica e tréplica nas quais as partes Ré mantiveram as suas posições de princípio. 4. Por sentença de 13-7-01, o Mmo Juiz da 12ª Vara Cível de Lisboa, julgou a acção improcedente, absolvendo, em consequência, a Ré do pedido. 5. Inconformada com tal decisão, dela veio o A. interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 2-12-03, confirmado o sentido decisório da sentença da 1ª instância . 6. De novo irresignada, desta feita com tal aresto, dele veio a mesma A. recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões : 1ª- Nos termos dos nºs 1 e 2 do artº 11º do DL 411/91 de 17/10, o Estado e as outras pessoas colectivas de direito público só podem proceder a algum pagamento superior a 1.00.000$00 a contribuintes do regime geral de segurança social com empregados por conta de outrem, mediante a apresentação de declaração comprovativa da situação contributiva destas perante as instituições de previdência ou de segurança social que as abranjam; 2ª- É no momento do pagamento, na data em que vai efectuar o pagamento, que o Estado ou qualquer outra pessoa colectiva de direito público deve exigir, de quem se apresenta a receber, a declaração comprovativa da situação contributiva desse "recebedor", desse contribuinte do regime geral que se apresenta a receber; 3ª- A lei não quer saber, despreza totalmente a origem ou causa do crédito, se há cessão se não há; 4ª- Sendo as sociedades que se dedicam ao "factoring" instituições de crédito especializadas ou mesmo bancos, se o legislador quisesse acautelar especialmente o caso das "cessões financeiras" (ainda que se trate de operações de curto prazo que ele exclui do regime do diploma legal em causa) teria inserido uma norma semelhante à do nº 2 do artº 11º do citado DL 411/91 ou outra e equivalente; 5ª- A declaração comprovativa da situação contributiva perante a segurança social que os credores do Estado e das pessoas colectivas de direito público devem apresentar quando vão cobrar os créditos de que são titulares só aos próprios é passada, não sendo permitido ao "factor" pedir uma dessas declarações referente aos seus aderentes; 6ª- A interpretação feita pelas instâncias da norma do nº 1 do artº 11º do referido diploma acaba por consagrar - no receio das fraudes e das "fugas ao fisco" impensáveis em relação a instituições de crédito autorizadas pelo próprio Estado e sujeitas à disciplina do Banco de Portugal - um caso de autêntica "substituição tributária" que a lei não prevê, nem pode admitir-se através da simples interpretação extensiva de um preceito legal ou a pretexto da integração de uma lacuna da lei; 7ª- As instâncias fazem uma errada interpretação e aplicação dos nºs 1 e 2 do artº 11º e o artº 14º do DL 411/91 de 17/10; 8ª- Na hipótese de existir um contrato de factoring, tendo o factor adquirido, por cessão, créditos sobre o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público, só o próprio factor e não também o aderente, que já não é titular dos créditos, terá de fazer a prova da regularidade da sua situação contributiva perante a segurança social, na data em que se apresenta a cobrar e receber o crédito . 7. A Ré não contra-alegou . 8. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir. 9. Em matéria de facto relevante, remete-se para os pontos já elencados pela Relação, o que se faz ao abrigo do disposto no nº 6 do artº 713º, aplicável "ex-vi" do artº 726º, ambos do CPC. Passemos ao direito aplicável. 10. Convém salientar que segundo o nº 1 do artº 2º do DL 171/95 de 18/7 " a actividade de factoring ou cessão financeira consiste na aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços nos mercados interno ou externo". O contrato de "factoring" caracteriza-se, pois, pela transferência de créditos a curto prazo do seu titular (cedente, aderente ao factor) para um factor (cessionário), créditos esses resultantes da venda de produtos ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos). Embora de natureza essencialmente comercial, assume a natureza de uma cessão de créditos, sendo-lhe, como tal, aplicável o regime jurídico contemplado nos artºs 577º e ss do C.Civil, de resto, neste domínio subsidiariamente aplicável "ex-vi" do artº 3º do CCOM 888 - conf., neste sentido, o Ac do STJ de 1-6-00, in CJSTJ, ano VIII, Tomo II, pág 87. O "factoring" assume - segundo Calvão da Silva, in "Direito Bancário", Almedina - Coimbra, 2001, pág 430, três funções essenciais : - uma função de financiamento : o «factor» antecipa à empresa cedente os (ou grande parte) dos valores dos créditos, assim a financiando (artº 8º, nº 2 do DL 171/95); - uma função administrativa : o «factor» administra e cobra os créditos adquiridos, assim facilitando aos aderentes (cedentes) a correspondente mobilização e alívio da sobrecarga administrativa para o efeito necessária; o «factor» pode fazer estudos do risco de crédito e dar apoio jurídico, comercial e contabilístico à boa gestão dos serviços transaccionados; - uma função de seguro de crédito : o «factor» assume o risco dos créditos cedidos, o risco da insolvência do devedor ( «crédito pro soluto») . A questão essencial a decidir no presente processo prende-se com a obrigatoriedade ou não obrigatoriedade, nos contratos de "factoring", da prova de regularização da situação contributiva do cedente/aderente para com a segurança social, ou se, pelo contrário, essa obrigação impende apenas sobre o cessionário («factor») como via para obter (do «debitor cessus») o pagamento dos créditos por aquele cedidos e que sejam superiores a 1.000.000$00, ou mesmo se tal obrigação impende sobre ambos os contraentes simultaneamente . Insiste a recorrente - cessionária que apenas ela é obrigada a demonstrar a inexistência (da sua parte) de dívidas à segurança social para que possa obter o total pagamento (pelos devedores públicos) desses créditos (do cedente) a si cedidos . Quid juris, pois ? Os créditos das entidades públicas devedoras e sua cobrança encontram-se sujeitos à disciplina jurídica do DL 411/91 de 17/10, diploma que veio reforçar os mecanismos de regularização e pagamento das dívidas à segurança social . No nº 1 do artº 11º, veio esse DL determinar que o Estado e as outras pessoas colectivas de direito público só podem proceder a algum pagamento superior a 1.000.000$00 a contribuintes do regime geral da segurança social de inscrição obrigatória, com empregados por conta de outrem, mediante a apresentação de declaração comprovativa da situação contributiva . E, no seu nº 2, que " no caso de resultar da declaração referida a existência de dívida às instituições de previdência e da segurança social, deve ser retido o montante em débito, até ao limite máximo de 25% do total concedido". As importâncias retidas são, de resto, imediatamente depositadas na Caixa Geral de Depósitos à ordem do Instituto Financeiro da Segurança Social - nº 5 do mesmo preceito legal . Ora, contra o que entende a recorrente - e na esteira do que decidiram as instâncias - a necessidade da prova da regularização das dívidas à segurança social é uma exigência que impende quer sobre o cedente quer sobre o cessionário; isto é, para que o crédito cedido pelo aderente-cedente ao factor-cessionário possa ser cobrado a um devedor público («debitor cessus»), torna-se necessário que, quer um quer outro desse contraentes, nada devam à segurança social nos últimos 6 meses e que isso mesmo seja comprovado perante a entidade pública devedora (cedida); isto sob pena de esta última entidade se ver obrigada a deduzir ou melhor a "reter" (na fonte) a aludida percentagem de até 25% do valor total da dívida a pagar (por cada factura) se de montante superior a 1.000.000$00 . De contrário, o contrato de "factoring" poderia servir apenas ou fundamentalmente para torpedear (quiçá de modo definitivo) a cobrança dessas dívidas de carácter tributário, através de uma cedência liberatória do crédito orientada para o "branqueamento" da relapsidão contributiva do cedente, em clara fraude à lei e em manifesto arrepio do espírito do citado DL 411/91 : prevenir e combater a fraude e a evasão ao pagamento das obrigações contributivas em dívida à segurança social . De resto, tal dever da entidade pública devedora/pagadora assume natureza vinculada, pois que directamente imposto por lei, podendo mesmo qualificar-se como um facto impeditivo/modificativo do direito de crédito perante si invocado, uma verdadeira excepção inominada ou atípica de direito material . E, tal como postula o artº 585º do C. Civil para a generalidade das cessões de crédito, "o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão "; tudo sendo sabido que, face ao disposto no nº 1 do artº 583º do mesmo diploma " a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ou desde que ele a aceite." Na hipótese vertente, a aludida cessão foi notificada pela cedente C à entidade pública Ré (devedora) em 9-12-96; seria, pois, esta, em princípio, a data relevante para a aferição da regularização da situação contributiva da cedente, só sendo abstractamente inoponível à A . (cessionária) a situação contributiva posterior a essa mesma data . Impenderia, por isso, sobre a cessionária o ónus de exigir da cedente a obtenção prévia da competente declaração (certidão negativa) emitida pelo Instituto Financeiro da Segurança Social comprovativa da regularização da respectiva situação contributiva nessa mesma data, a fim de posteriormente a poder exibir perante a entidade pública devedora nos termos impostos pelo artº 11º, nº 2, do citado DL 411/91. De resto, sobre a cedente recairia sempre o dever de informar previamente a cessionária sobre os eventuais ónus tributários co-relacionados com a subsistência da integridade dos créditos cedidos, até pelas repercussões que logicamente surtiria na onerosidade/valor das correspondentes prestações . É verdade que a A . pretendeu apresentar perante a Ré uma certidão comprovativa de que a cedente " C " possuía a sua situação contributiva regularizada em 10-7-96, e que tal certidão era válida por 180 dias; mas daí não se segue que essa situação se encontrasse regularizada em data ulterior, v.g à data da celebração do contrato de factoring (21-11-96) ou à data da sua notificação à Ré devedora (9-12-96) . Nem se diga - contra o que sugere a recorrente - que um tal entendimento poderia tornar a posição do factor-cessionário excessivamente agravada, sendo, ademais ilegítimo que o cessionário, tendo pago a aquisição do crédito (cedido a título oneroso), se visse ulteriormente compelido a suportar a degradada situação contributiva do cedente. A tal objecção poder-se-á, todavia, retorquir que as sociedades (cessionárias) de "factoring" poderão prevenir-se atempada e premonitoriamente, exigindo (elas próprias) do cedente, exibição de certidão negativa de dívidas à segurança social ou mesmo informando-se convenientemente junto da entidade liquidadora ou cobradora dessa contribuições, com a devida antecedência, nos casos em que existam créditos a cobrar de devedores públicos, invocando, para tal, a legitimidade advinda dos preliminares do contrato a celebrar . E se se torna evidente que o "factor", muitas vezes uma entidade financeira ou bancária suficientemente poderosa, terá normalmente (e muito naturalmente), a sua situação contributiva perfeitamente regularizada, o mesmo poderá não acontecer com os aderentes/cedentes, não raras vezes recorrendo ao "factoring" como via de realização de fundos a curto prazo, a fim de reverterem uma situação económica difícil . Se tais cautelas o «factor» não tomar em devido tempo, terá que assumir esses riscos próprios do negócio celebrado . Torna-se mister não olvidar que " o crédito em que o cessionário fica investido é o mesmo que pertencia ao cedente; por isso se não transmitem para o cessionário (neste caso o «factor») apenas os acessórios e as garantias que robustecem a consistência prática do direito, mas também as vicissitudes da relação creditória que podem enfraquecer ou destruir o crédito (as excepções oponíveis ao cedente) " - conf., neste sentido, Antunes Varela, in " Das Obrigações Em Geral ", vol II, 7ª ed. pág 327 . O cedente garante ao cessionário não só a existência, como também a exigibilidade do crédito ao tempo da cessão - conf. artº 587º, nº 1, do C. Civil . Se, porém, o cessionário arcar com o pagamento das dívidas à segurança social da responsabilidade do cedente sempre ficará sub-rogado nos direitos da entidade liquidadora, desde que provado o seu interesse legítimo - conf. artº 41º da LGT. De ter ainda em atenção que a falada "declaração comprovativa da situação contributiva não constitui «a se» um instrumento de quitação de contribuições ou juros correlativos, nem prejudica ulteriores liquidações adicionais - conf. nº 3 do artº 14º do citado DL . Esta a interpretação da lei que decorre dos cânones plasmados no artº 9º do C. Civil, designadamente as circunstâncias em que a lei foi elaborada, as condições específicas do tempo em que é aplicada e a presunção de que foi essa a solução querida pelo legislador, e a única, de resto, que pode conferir plena eficácia aos objectivos da considerada providência legislativa . Deste modo, hemos de concluir que a retenção pela Ré B da sobredira percentagem de 25% sobre o valor das facturas 6401 e 80 se confinou dentro dos parâmetros legais aplicáveis, não enfermando, por conseguinte, de qualquer ilegalidade . 11. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão recorrido qualquer censura . 12. Decisão: Em face do exposto, decidem: - negar a revista; - confirmar em consequência o acórdão revidendo. Custas pela recorrente. Lisboa, 5 de Junho de 2003 Ferreira de Almeida Vasconcelos Carvalho Duarte Soares |