Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P627
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMANDO LEANDRO
Descritores: MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
TOXICODEPENDENTE
ANTECEDENTES CRIMINAIS
REGIME DE PROVA
Nº do Documento: SJ200307020006273
Data do Acordão: 07/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 J CR SEIXAL
Processo no Tribunal Recurso: 543/00
Data: 10/11/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I.
Por douto acórdão do Tribunal Colectivo do 2º Juízo de Competência Especializada Criminal de Seixal foi condenado o arguido A, filho de ....... e de ......, natural de Lages, Praia da Vitória, nascido a 21 de Maio de 1960, solteiro, motorista e residente em Torre da Marinha (Praceta ........, n.º ...., 1º d.to), Seixal,
na pena de três anos de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204, nº 2, al. e), do C.P.
O arguido recorreu desta decisão, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«a) Na Medida Concreta de Pena não foram atendidas as circunstâncias a favor do agente, apenas foram consideradas as circunstâncias agravantes.
b) O facto do arguido já ter sido reincidente não pode concluir pela habitualidade de actividade criminosa, dado que a última infracção remonta ao ano de 1995.
c) O arguido tem revelado uma evolução positiva em relação ao seu projecto de vida.
d) Não foi dada como provada a perigosidade do arguido e que o mesmo se apresente como uma ameaça à Comunidade.
e) Foi violado o disposto nos Artigos 40 e 70, n° 2, do Código Penal, porque a Douta Sentença não atendeu a circunstâncias atenuantes em relação ao arguido pelo que a pena de prisão é elevada e viola os princípios da Reintegração social do indivíduo.
Em consequência, deverá a douta sentença ser revogada e ser aplicada ao arguido uma pena não privativa da liberdade não superior a três anos, que será suspensa durante o prazo de cinco anos ou, se assim não se entender, o arguido ser condenado a uma pena privativa da liberdade que deverá ser reduzida a dois anos.»

Na sua resposta o Exmo. Magistrado do Ministério Público defendeu a manutenção do decidido, concluindo:
«O douto acórdão recorrido não merece qualquer censura, não se verificando e pelo Tribunal Colectivo a violação de qualquer norma de âmbito penal ou processual penal, concordando-se com a pena que em concreto lhe foi aplicada.»

Subidos os autos ao S.T.J., o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso.
Recebido este, procedeu-se, após vistos, à audiência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II.
Do douto acórdão recorrido consta a seguinte decisão de facto e respectiva fundamentação:
1. Enumeração dos factos provados:
O arguido, antes de 25 de Setembro de 2000, resolveu apoderar-se do dinheiro ou qualquer outro valor que B, seu vizinho, tivesse na sua residência, sita em Torre da Marinha (Praceta ......., n.º ...., rés-do-chão esquerdo).
Assim, no dia 24 de Setembro de 2000, em preparação de tal desiderato, tocou à campainha da casa daquele, a pretexto de pedir dinheiro emprestado para comprar fraldas para sua mãe, e, aproveitando o facto de o mesmo ter ido ao quarto buscar dinheiro, seguiu-o, introduzindo-se pela casa, por forma a verificar a disposição da mesma, nomeadamente o local onde estaria guardado o dinheiro ou qualquer outro valor.
No dia 25 de Setembro de 2000, entre as 8 e as 12 horas, o arguido, em execução do plano previamente elaborado, aproximou-se, pelo exterior, da janela da sala da residência de B, cuja persiana se encontrava corrida para baixo e trancada com fechos, e pegando numa chave de fendas, que, para o efeito, trazia consigo, forçou a mesma, rebentando os respectivos fechos.
De seguida levantou a persiana, até ter espaço suficiente para passar com o seu corpo e, abrindo a janela, que se encontrava destrancada, entrou, por ela, nessa residência.
Já no interior da casa de B, dirigiu-se, sem hesitar e de imediato, ao quarto de dormir, onde abriu a gaveta de uma mesa de cabeceira, da qual retirou um saco de papel contendo 3 fios, 2 pulseiras, 1 anel com um diamante e 1 crucifixo, tudo em ouro amarelo, que, acto contínuo, meteu num bolso.
De seguida, abandonou a casa de B, saindo pelo mesmo local por onde entrara.
Tais objectos tinham o valor de 500.000$00.
Posteriormente, dirigiu-se a umas barracas sitas em Quinta do Cabral, Arrentela, onde vendeu esses objectos a uma mulher de etnia cigana por 30.000$00.
Nenhum desses objectos foi recuperado.
O arguido, que agiu livre, voluntária e conscientemente e sabendo que essa sua conduta não era permitida, fê-lo com o indicado propósito de apropriação, não obstante saber que era, tudo aquilo, de outrem.
Confessou.
Era consumidor de cocaína e heroína, sentindo-se dependente, sendo que este mesmo consumo era levado a cabo desde 1976, ainda que com algumas interrupções; não consome desde 7 de Fevereiro de 2000, altura em entrou em programa de substituição opiácea (metadona); encontra-se, no entanto, em tratamento desde 5 de Julho de 1999.
Tem revelado uma evolução positiva em relação ao seu projecto de vida.
Faz biscates em diversas actividades.
Vive com os pais (reformados).
Por sentença de 17 de Junho de 1985, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de furto de uso de veículo (art. 304º, n.º 1, de C. Penal de 1982), na pena de 25 dias de multa, correspondendo cada dia à quantia de 300$00 (proc. n.º 149/85, de 6º Juízo Correccional, 2ª Secção, de Lisboa).
Por acórdão de 20 de Janeiro de 1987, foi o mesmo condenado, pela prática de crimes de furto qualificado (arts. 296º e 297º, n.º 2, als. c), d) e h), de C. Penal de 1982 ), na pena única de 22 meses de prisão ( proc. n.º 258/86, de 2º Juízo Criminal, 2ª Secção, de Lisboa).
Por acórdão de 13 de Dezembro de 1990, foi condenado, pela prática de crime de abuso de confiança ( art. 300º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), de C. Penal de 1982 ), na pena de suspensão da execução da pena de prisão (2 anos ) pelo período de 3 anos e subordinada ao cumprimento de dever; por despacho de 7 de Junho de 1994, foi declarada a revogação da suspensão (proc. n.º 3973/86, de 1ª Vara Criminal, 3ª Secção, de Lisboa ).
Por acórdão de 10 de Março de 1995, foi condenado, pela prática de crimes de furto qualificado, sob a forma de tentativa (arts. 296º, 22º, 23º, 74º e 297º, n.º 2, al. d), de C. Penal de 1982), levada a cabo em Novembro de 1994, na pena única de 2 anos de prisão (proc. n.º 1341/94.0 P, de 1º Juízo de Competência Especializada Criminal de Seixal).
Por acórdão de 6 de Junho de 1995, foi condenado, pela prática de crime de furto qualificado continuado (arts. 296º, 297º, n.º 2, al. d), 30º, n.º 2, e 78º, n.º 5, de C. Penal de 1982 ), levada a cabo a 3 de Dezembro de 1991, na pena de suspensão da execução da pena de prisão ( 3 anos ) pelo período de 4 anos; posteriormente foi declarada a revogação da suspensão (proc. n.º 2053/92, de 2º Juízo de Competência Especializada Criminal de Seixal ).
Por sentença de 2 de Maio de 1995, foi condenado, pela prática de crime de furto qualificado (arts. 296º e 297º, n.º 1, al. f), do C. Penal de 1982), levada a cabo em Abril de 1994, na pena de 14 meses de prisão; por acórdão de 4 de Julho de 1995, em "cúmulo jurídico" desta pena e da pena cominada no proc. n.º 1341/94.0 P, foi condenado na pena única de 24 meses de prisão; por acórdão de 7 de Dezembro de 1995, e em "cúmulo jurídico" desta pena e das penas aplicadas nos procs. 1341/94.0 P e 2053/92, foi condenado na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão; o arguido terminou o cumprimento desta pena a 30 de Setembro de 1998 (proc. n.º 16/95, de Praia da Vitória).

2. Enumeração dos factos não provados:
O arguido, quando retirou o saco de papel, continha, o mesmo, 4 (e não 3 ...) fios.
Os objectos tinham o valor total de 1.500.000$00.

3. Indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal:
As provas produzidas, com este relevo, consistiram nas declarações do arguido, na prova testemunhal ( B ) e na prova documental ( fls. 74/81 - certificado de registo criminal - e fls. 84 - declaração de terapeuta).
As declarações do arguido foram no sentido do tido por assente, certo sendo que, nada se perfilando que as pudesse pôr em crise, segura, sempre, porque eivadas de patente plausibilidade, tinham de ser positivamente acolhidas ...
É certo que quanto ao número e recorte das coisas apropriadas e respectivo valor a sua posição foi mais dúbia, indecisa, mas, a final, aceitou, porque concretamente razoável, que era a acolhida a mais conforme com a realidade ...
Quanto a uma parte deste aspecto (o valor das ditas coisas e o seu número ...), o depoimento da testemunha B (seu dono ...), se quanto a este indicou o número que se deu como assente, no que se reporta àquele, inicialmente, referiu que o mesmo se postava em 1.500.000$00, ainda que sem aludir a critérios que, por serem apreensíveis, acarretariam, nesta medida, uma possibilidade de objectivação; em explicitação, provocada, foi dizendo que os deu em penhor para garantia de um empréstimo de 500.000$00, elemento que, por ser concreto, sempre, não havendo outro, era de acolher, até pela maior favorabilidade para o arguido, que, para mais, como se disse, o veio a aceitar ...
Do certificado de registo criminal colhe-se aquele acervo de referências às condenações criminais e o mais que com elas se relacionava ...
E da declaração da terapeuta vê-se a informação trazida quanto à abordagem, em termos de tratamento institucional, à situação de toxicodependência ...»

Esta decisão de facto não foi impugnada e nada indicia a verificação de quaisquer vícios ou nulidades, de conhecimento oficioso, que pudessem pô-la em causa, pelo que se considera assente a matéria de facto.

III.
As questões a decidir são as seguidamente indicadas, tal como resultam das conclusões da motivação, que, conforme entendimento pacífico, delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo da possibilidade de decisão de questões de conhecimento oficioso:
a) A pena aplicada de três anos de prisão deve ser suspensa na sua execução pelo período de cinco anos?
b) A não se decidir pela referida suspensão da execução da pena de prisão, deve esta ser reduzida para dois anos?

Apreciando:
Há desde logo a notar que o processo de determinação da pena concreta é independente da decisão sobre a suspensão da execução da pena e precede-a necessariamente, como resulta manifesto das disposições conjugadas dos arts. 40º, 71º e 50º, todos do C.P., pelo que não tem qualquer base legal a pretensão do recorrente, traduzida na questão, sintetizada sob a alínea b), de fazer depender a medida concreta da pena da decisão sobre a suspensão da execução, pena substitutiva da pena de prisão.

Conforme resulta da douta e cuidada fundamentação constante do acórdão recorrido, a medida de três anos da pena de prisão, no quadro de uma moldura abstracta de 2 a 8 anos, mostra-se ajustada à aplicação ao factualismo provado dos critérios e factores enunciados nos arts. 40º e 71º do C.P. Apresenta-se harmónica com o grau de ilicitude, assinalável mesmo dentro do pressuposto pela qualificação do crime, a intensidade do dolo (na forma de dolo directo e persistente), as anteriores condenações do arguido, que militam em seu desfavor, e as circunstâncias, favoráveis ao arguido, da confissão, da evolução positiva para superar a situação de toxicodependência e de se dedicar a alguns trabalhos. Respeita o limite máximo correspondente ao grau da culpa do arguido, que é acentuado, e mostra-se capaz de satisfazer equilibradamente as exigências concretas de prevenção geral positiva ou de integração (apesar de elevadas, atento a frequência de actos semelhantes e o acentuado sentimento de insegurança que determinam), bem como, dentro da «moldura da prevenção geral», a fixar razoavelmente entre dois anos e seis meses e quatro anos de prisão, as necessidades, reveladas no caso, de prevenção especial de socialização, sem dúvida expressivas.

Vejamos agora a questão da suspensão da execução da pena de prisão, que o douto acórdão recorrido decidiu não se justificar atendendo nomeadamente aos antecedentes criminais do arguido.
Sem dúvida que esses antecedentes impressionam negativamente.
Contudo, quando considerada a globalidade complexiva do factualismo apurado, verifica-se que os antecedentes crimes (o último praticado em 1994), todos contra a propriedade, decorrem ao longo de um período de consumo, pelo arguido, de cocaína e heroína, iniciado já em 1976 e determinante de dependência.
Situação cujas consequências na deterioração da liberdade de determinação da vontade, pela «pressão» sentida para obtenção dos produtos, são bem conhecidas.
Consequências que, embora não eliminem necessariamente a imputabilidade e a responsabilidade do toxicodependente, merecem consideração especial na busca de soluções penais concretas que, no respeito pelo espírito do sistema global, procurem conciliar tanto quanto possível as exigências de prevenção geral com a necessidade premente de se promover ou facilitar a recuperação do toxicodependente, essencial aos fins de prevenção especial e fundamental também a uma prevenção geral numa visão que ultrapasse o curto prazo.
No caso dos autos, prova-se que o arguido, para além de confessar os factos, se encontra numa fase do seu longo processo de dependência em que se sujeitou a um processo de tratamento de substituição, que está em desenvolvimento, cumprindo as prescrições, tendo o apoio dos pais e revelando «uma evolução positiva em relação ao seu projecto de vida».
Neste circunstancialismo, apresenta-se como razoável um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão, se acompanhados por um exigente regime de prova, são de molde a afastar provavelmente o arguido da prática de novos crimes, mediante um processo de efectiva reinserção, a pressupor a superação da situação de toxicodependência e um renovar exigente de um projecto de vida compatível com o respeito, que é seu dever, pelos valores cuja ofensa integra crimes, e com a possibilidade, como é seu interesse, de uma realização pessoal e comunitária positiva.
Assim, apostando-se numa oportunidade que se espera o arguido não desbarate, o que implicaria consequências provavelmente muito gravosas, antes a aproveite responsavelmente, em continuidade e reforço da atitude que o levou a seguir o referido tratamento, decide-se, nos termos dos arts. 50º e 53º do C.P., pela suspensão da pena de prisão pelo período de quatro anos, acompanhada de regime de prova, devendo o respectivo plano individual de readaptação social (cf. art. 54º do C.P.) contemplar, além do mais, o estímulo e o acompanhamento do processo de tratamento e de aquisição e reforço de competências individuais, sociais e laborais do A.

IV.
Em conformidade, julgando-se procedente o recurso, revoga-se parcialmente o aliás douto acórdão recorrido, substituindo-se, nos termos dos arts. 50º e 53º do C.P., a pena de três anos de prisão correspondente ao crime de furto qualificado, p e p pelas disposições conjugadas dos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº 2, al. e), do C.P., em que é condenado o arguido A, pela de suspensão de execução dessa pena durante o período de quatro anos, acompanhada de regime de prova, cujo respectivo plano individual de readaptação social (cf. art. 54º do C.P.) deverá contemplar, além do mais, o estímulo e o acompanhamento do processo de tratamento e de aquisição e reforço de competências individuais, sociais e laborais do A.
Não são devidas custas.
Fixam-se em 5 Ur os honorários ao Exmo. Defensor Oficioso.
Elaborado pelo relator e revisto.

Lisboa, 2 de Julho de 2003
Armando Leandro
Virgílio Oliveira
Flores Ribeiro
Soreto de Barros