Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00014489 | ||
Relator: | TEIXEIRA DO CARMO | ||
Descritores: | INDICAÇÃO DE PROVA REQUISITOS APRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA FUNCIONÁRIO PÚBLICO PRESSUPOSTOS | ||
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Nº do Documento: | SJ199406150459503 | ||
Data do Acordão: | 06/15/1994 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N438 ANO1994 PAG210 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR PROC PENAL - RECURSOS. | ||
Legislação Nacional: | CPP87 ARTIGO 127 ARTIGO 374 N2 N3 B ARTIGO 379 A ARTIGO 410 N2 N3 ARTIGO 433 ARTIGO 437 N1 N2. CONST89 ARTIGO 13 N1. CP82 ARTIGO 1 N3 ARTIGO 28 N1 ARTIGO 48 ARTIGO 72 ARTIGO 420 ARTIGO 421 ARTIGO 422 ARTIGO 423 ARTIGO 424 N1 ARTIGO 425 ARTIGO 426 ARTIGO 437. L 23/91 DE 1991/07/04. CP886 ARTIGO 327. DL 371/83 DE 1983/10/06 ARTIGO 4 N1 ARTIGO 5 N2 E. DL 287/93 DE 1993/08/20 ARTIGO 1 N1 ARTIGO 3 N1 N2 ARTIGO 4 N1 ARTIGO 5 N1 ARTIGO 10. L DE 1876/04/10. L 12/83 DE 1983/08/24. L 15/94 DE 1994/05/11 ARTIGO 12. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO STJ DE 1992/01/29 IN CJ ANOXVII TI PÁG24. ACÓRDÃO STJ DE 1991/04/18 IN CJ ANOXVI TII PÁG27. | ||
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Sumário : | I - O que promana do artigo 374, n. 2 do Código de Processo Penal é a obrigatoriedade da indicação das provas que serviram ou funcionaram de suporte à convicção do Tribunal e não a reprodução integral e casuística dessas provas. II - A indicação das provas visa não principalmente a fiscalização do Tribunal, por esta ser difícil, se não de impossível execução (salvo no que se refere a prova vinculada) em face da livre apreciação da prova conferida ao tribunal pelo artigo 127 do Código de Processo Penal, mas antes fazer incidir a atenção do Tribunal no momento de avaliar e decidir sobre as provas concretamente produzidas. III - Ao Supremo Tribunal de Justiça, nessa parte, só é permitido intervir para verificar se ocorre algum dos vícios constantes do artigo 410, ns. 2 e 3, por força do artigo 433, ambos do Código de Processo Penal. IV - Independentemente do formalismo do investimento é funcionário público, para efeitos penais, todo aquele que é chamado a desempenhar uma actividade compreendida na função pública ou que nas mesmas circunstâncias desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe, e isto mesmo que tenha sido chamado provisória ou temporariamente e ainda que não seja remunerado. V - Enquanto funcionário da Caixa Geral de Depósitos, o arguido encontra-se abrangido pelo conceito de funcionário a que se reporta o artigo 437 do Código Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Na Primeira Subsecção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça acordam os seus Juizes: Em processo comum e perante o Tribunal Colectivo do Circulo de Penafiel, foram submetidos a julgamento os arguidos: 1 - A, e, 2 - B, ambos com os sinais dos autos, os quais eram acusados pelo Ministério Público da prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documentos previsto e punido pelos artigos 228, n. 1, alínea a), e n. 3 e 229, n. 1, do Código Penal; e, de um crime de peculato previsto e punido pelo artigo 424, n. 1, do Código Penal também. Foi admitida a intervir na qualidade de assistente C, identificada nos autos. Na contestação, os arguidos pedem a absolvição. No final do julgamento, foi proferido o acórdão de folhas 212 a 216, datado de 16 de Abril de 1993, no qual se julgou a acusação parcialmente improcedente e, em consequência, foram os arguidos absolvidos da prática do crime de falsificação acima referido; e procedente a mesma acusação, tendo, em consequência, os mesmos arguidos sido condenados, como co-autores do aludido crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 424, n. 1, do Código Penal, na pena, cada um deles, de 30(trinta) meses de prisão e 45(quarenta e cinco) dias de multa à taxa diária de 400 escudos ou, em sua alternativa, prisão por tinta(30) dias; cuja suspensão da respectiva execução pelo período de 3 anos, isto no tocante à pena de prisão, for decretada. Com base no disposto no artigo 14, n. 1, alínea c) e n. 3 da Lei n. 23/91, de 4 de Julho, foi declarada perdoada metade do montante da multa e a prisão em alternativa. A taxa de justiça em que foram condenados os arguidos foi fixada em 30000 escudos e a procuradoria em 10000 escudos. Inconformados com a decisão proferida, vieram interpor recurso da mesma para este Supremo Tribunal de Justiça, os arguidos A e B, como consta de folhas 221 a 226, recurso esse motivado, sendo que nas conclusões das suas motivações, aduzem os recorrentes: 1 - A sentença não indica minimamente as provas dos seguintes factos essenciais. - quem entregou o cheque ao B; - o comum acordo e a prévia combinação entre a Isabel e o B para o depósito do cheque; - a actuação conjunta e a conjugação de esforços e a intenção de apropriação do valor do cheque; 2 - A omissão da indicação daquelas provas implica a nulidade da sentença (artigo 379, alínea a), do Código de Processo Penal). 3 - A sentença dá como suposto que a União de Bancos Portugueses e a Caixa Geral de Depósitos eram empresas públicas, mas não diz porquê e a natureza de uma empresa - pública, privada, mista, cooperativa, etc. - é matéria de direito, digo de facto sujeita a prova, não podendo dizer-se que são factos públicos ou notórios, uma vez que é sabido que a União de Bancos Portugueses não é uma empresa pública desde 1986, data em que passou a sociedade anónima (Decreto-Lei n. 351/86, de 20 de Outubro), e poderá não ser exacto e indiscutível qualificar de empresa pública a Caixa Geral de Depósitos, já que se trata de um Instituto(?) regulamentado há muitas décadas e que já sofreu alterações, estando, porém, fora de dúvida que esta Instituição , hoje nas operações estritamente bancárias, em nada difere dos outros bancos e está elaborado e há muito anunciado o seu novo estatuto de sociedade anónima sem que isso implique transformação a nível factual da sua actividade. Sendo assim, haverá, pois, insuficiência da matéria de facto para a decisão (artigo 410, n. 2, alínea a), do Código de Processo Penal), uma vez que se trata de um elemento essencial do crime em causa, porque a qualidade de "funcionário" derivará exactamente da natureza daquelas empresas. Sem este pressuposto, haveria quando muito um furto de pequena gravidade e completamente abrangido pela Lei da Amnistia (Lei n. 23/91), Mesmo que assim se não entenda 4 - Não restam dúvidas no ordenamento jurídico português de que a actividade bancária não assume a natureza de serviço público e os mesmíssimos factos imputados aos recorrentes, se praticados noutra instituição bancária isenta de dúvidas quanto à natureza privada, resultariam de igual modo num simples furto completamente apagado por aquela amnistia. Ora o crime imputado aos recorrentes não foi de modo nenhum cometido no exercício de funções públicas ou equiparadas. O artigo 437 do Código Penal dá-nos o conceito de "funcionário" para efeitos penais e assim aquele que desempenhe uma actividade compreendida na função pública ou em organismo de utilidade pública, o que não é o caso dos recorrentes, digo e assim para além de funcionário civil ou agente administrativo, é ainda funcionário aquele que desempenhe uma actividade compreendida na função pública ou em organismo de utilidade pública, o que não é o caso dos recorrentes. Se quanto à União de Bancos Portugueses não subsistem dúvidas, também quanto à Caixa Geral de Depósitos estas têm de ser removidas em relação às operações estritamente bancárias como as de qualquer outro banco. De outro modo se abarcaria com o preceito constitucional da igualdade dos cidadãos perante a Lei (n. 1 do artigo 13 da Constituição da República); 5 - E o mesmo sucederia se for invocado para o caso dos autos o artigo 5, alínea e), do Decreto-Lei n. 371/83, uma vez que além de se lhe opôr aquela mesma norma da Constituição, haveria ainda esta outra: trata-se de matéria reservada à Assembleia da República e a respectiva Lei de Autorização (Lei 12/83) não autorizou o Governo a ir tão longe, pois apenas usou, para o que ao caso possa interessar, "os delitos de concepção, tráfico de influências ou outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração". Aquela norma, se estendida ao presente caso, está ferida de inconstitucionalidade também porque ofenderia o artigo 168, n. 1, alínea c), da Constituição da República; 6 - Foram violadas as normas legais referidas e designadamente os artigos 374, n. 1, do Código de Processo Penal, 424, n. 1, e 437, do Código Penal, bem como os artigos 13, n. 1, e 168, n. 1, alínea c), da Constituição da República. Impetram os recorrentes, assim concluem, que se revogue o acórdão recorrido, a substituir por outro que absolva os recorrentes, ou, em última hipótese, que qualifique o crime de simples furto e se julgue o mesmo amnistiado. Requereram os recorrentes, no final das suas motivações, que as alegações fossem produzidas por escrito. Foi tal recurso, assim interposto pelos arguidos, admitido pelo despacho de folha 234. Respondeu o Ministério Público junto daquele círculo às motivações do recurso, fazendo-o nos termos constantes de folhas 237 e 239 e verso, batendo-se, aí, pela manutenção do acórdão recorrido, pois que, em seu entender, não violou qualquer norma legal. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça. Na vista que teve, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aí se pronunciando no sentido de nada obstar do conhecimento do recurso interposto pelos arguidos, o qual era tempestivo, dispondo os recorrentes de legitimidade, e ser adequado o efeito atribuído. Requereu, finalmente, que se fixasse prazo para as alegações por escrito. Foi proferido o despacho preliminar e aí fixado o aludido prazo. Apresentaram alegações por escrito os recorrentes, como o haviam requerido, e, bem assim, o Ministério Público, através do Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto. Os arguidos recorrentes, nas suas alegações escritas, praticamente limitam-se a reproduzir o já por si saneado para os autos através das suas motivações, insistindo na sua absolvição. O Ministério Público, por seu turno, esgrima no sentido do improvimento do recurso interposto. Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir. E, sendo assim, transportemos para aqui, a matéria fáctica dada como provada na decisão recorrida, e que é a seguinte: 1 - No dia 17 de Maio de 1989, o D, identificado nos autos, deslocou-se à filial da Caixa Geral de Depósitos em Castelo de Paiva a fim de depositar alguns cheques na sua conta n. 08259022431; 2 - Uma vez ali dirigiu-se à arguida A, funcionária da referida Instituição bancária, solicitando-lhe que lhe preenchesse uma guia depósito para depositar os cheques n. 7104550916, 5003057553, 3002850318, 1225707945, 5300458863 e 4419649588, sacados, respectivamente, sobre a União de Bancos Portugueses, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e Banco Pinto e Sotto Mayor, os quais lhe foram entregues pelo D, todos juntos e presos por um "clip", para a A ter acesso aos elementos dos cheques, indispensáveis ao preenchimento da guia de depósito, modelo 4, a qual o D se limitou a assinar, pois confiou na seriedade de A; 3 - A A apenas fez constar da guia de depósito os cinco primeiros cheques, não tendo relacionado o cheque n. 4419649588 sacado por E sobre a conta n. 0099/08/012464.0, da agência de Penafiel do Banco Pinto e Sotto Mayor, e que o D lhe entregara para crédito na sua conta; 4 - Na posse do dito cheque, a arguida A entregou-o ao seu marido, o arguido B; 5 - Este o B, de comum acordo e após prévia combinação com a A, depositou-o na instituição bancária onde exercia funções de caixa - filial da União de Bancos Portugueses em Castelo de Paiva - cativando o cheque e levantando o seu valor; 6 - Posteriormente, o arguido B entregou o montante do cheque de que se havia apoderado, ao D; 7 - A arguida, ao apoderar-se do cheque fazendo-o coisa sua, contra a vontade e sem autorização do legítimo titular do cheque, actuou livre e conscientemente; 8 - Posteriormente os arguidos actuaram conjuntamente e em conjugação de esforços, com intenção de fazerem sua a quantia titulada pelo cheque, como efectivamente fizeram, não ignorando que assim prejudicavam o titular do cheque; 9 - Os arguidos são de média condição social e gozam de situação económica remediada; 10 - Têm bom comportamento anterior e posterior aos factos. Não se apurou que a arguida, de comum acordo com o seu marido Fernando, assinou o cheque, escrevendo pelo seu próprio punho o nome de C, como se fosse a assinatura da mesma; que os arguidos têm dois filhos e vivem em casa arrendada. Não se apuraram os factos constantes do n. 5 de folha 124 (a partir do segundo período), remissão cómoda da n. 2 da contestação de folha 190 que permite contestação "a granel"; não se apuraram os demais factos alegados na contestação. Com respeito aos factos não apurados e constantes do n. 5 da folha 124 (a partir do segundo período), cumpre esclarecer, para uma melhor compreensão, que os arguidos, na sua contestação de folha 190 e verso, e sob o n. 2, aduzem: "Dão aqui por reproduzidos os factos que articularam nas suas defesas no âmbito dos processos disciplinares instaurados pelas suas entidades patronais, que se encontram incorporados nos presentes autos". Ora, a folhas 124 e 125, encontra-se junto o articulado da defesa apresentada pelo B no processo disciplinar que lhe moveu a União de Bancos Portugueses, SA. Aí, sob o n. 5, o arguido começa por alegar que "Relativamente aos pontos 1 e 2 da Nota de Culpa, é certo ter o arguido cativado o cheque referido (cheque n. 4419649588 do Banco Pinto e Sotto Mayor, passado ao portador por E), no montante de 25000 escudos e ter procedido ao seu pagamento" (primeiro período), depois, no mesmo n. 5, através do segundo período e sucessivos, o arguido alegou o seguinte, e que, como se viu atrás, foi dado como não apurado: "Sucedeu que estava no desempenho das suas funções de caixa, no horário de abertura durante o período de almoço, quando lhe foi apresentado o referido cheque para pagamento. Porque conhecia a portadora, Dona C, nenhuma desconfiança lhe levantava e a mesma portadora insistiu repetidamente que tinha necessidade premente de receber a importância do cheque, o arguido procedeu previamente ao seu cativo, telefonicamente, junto do Banco sacado e constatada a regularidade do mesmo, aprestou-se para obter a autorização prévia para proceder ao seu pagamento. Verificou então que o Gerente não estava visível no momento, o Sub-Gerente havia saído para almoçar e o procurador se encontrava impedido ao telefone. Como entretanto se haviam aglomerado clientes frente à única caixa em funcionamento (a sua) e no sentido de não retardar o seu atendimento, o arguido, à semelhança do que por vezes acontece, resolveu proceder ao pagamento do cheque à Dona C, com intenção de obter posteriormente a competente autorização. Porém, dada a ininterrupta afluência na sua caixa, o arguido não mais se lembrou de pedir a referida autorização". Trazem à ribalta os arguidos-recorrentes, como um dos pilares em que assenta a sua impugnação da decisão recorrida, que esta não indica minimamente as provas de determinados factos que enumera, o que, a verificar-se, seria conducente à nulidade da sentença - artigo 379, alínea a), do Código de Processo Penal. Em tal normativo e alínea preceitua-se, com efeito, que "É nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo 374, n. 2 (ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração do factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal) e 3, alínea b) - a decisão condenatória ou absolutória -. Apontando depois o fundo da causa, argumentam os recorrentes que não podem ser havidos como funcionários ou equiparados, para efeitos penais, sob pena de violação do princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei, princípio este consagrado no artigo 13 da Constituição da República. No que concerne à primeira questão, diremos à partida, não assistir razão aos recorrentes, salvo o devido respeito. De facto, na decisão recorrida, acatou-se, pelo que nos é dado ver, o preceituado no artigo 374, n. 2, do Código de Processo Penal, uma vez que na "Fundamentação" (folha 213 e verso), parte integrante da mesma decisão, foram indicadas as provas em que o tribunal "a quo" fez assentar ou apoiar a sua convicção relativa à matéria fáctica. Falam os recorrentes em que teriam sido dados como provados alguns factos sem concretização das correspondentes provas. Tal exigência, porém, extravasa da economia do estatuído no n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal, na parte em que aí se alude ou prescreve, além do mais, a "indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal". Tal exigência, seguindo de perto e acolhendo mesmo certa Jurisprudência que se vai afirmando preponderantemente neste Alto Tribunal, não vai ao ponto de reclamar a reprodução integral e casuística de todas as provas produzidas e relativas a cada um dos factos provados. O que promana do citado normativo, conforme vem sendo entendido, é a obrigatoriedade da indicação das provas que serviram ou funcionaram de suporte à convicção do Tribunal e não a reprodução integral e casuística dessas provas. Como doutamento salienta o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, a imposição da parte final do n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal, funda-se "na necessidade de garantir que foi seguido um correcto percurso cognoscitivo pelo Tribunal e que as provas produzidas fundaram a decisão de facto". A razão de ser da lei não reside no facto de permitir o controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da prova produzida em audiência, tarefa esta que está fora ou escapa aos seus poderes de cognição, o que promana do disposto nos artigos 433 e 410, ambos do Código de Processo Penal. Como se contem se escreveu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 29 de Janeiro de 1992 no Recurso n. 42111 (v. Colect. Jur., ano XVII, tomo I, páginas 24 e seguintes), "A indicação das provas visa não principalmente a fiscalização do Tribunal, por esta ser difícil, se não (de) impossível execução (salvo no que se refere a prova vinculada) em face da livre apreciação da prova conferida ao Tribunal pelo artigo 127 (do Código de Processo Penal), mas antes fazer incidir a atenção do Tribunal no momento de avaliar e decidir sobre as provas concretamente produzidas". E mais se escreveu em tal aresto: "Ao Supremo Tribunal de Justiça nessa parte só é permitido intervir para verificar se ocorre algum dos vícios constantes do artigo 410, ns. 2 e 3, por força do artigo 433 (disposições estas do Código de Processo Penal), vícios que hão-de resultar apenas do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Em conclusão, o dever de indicar as provas que serviram para formar a convicção do Tribunal foi devidamente cumprido e, como salienta o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, "em medida superior ao que habitualmente é feito, uma vez que se particulariza o essencial da razão de ciência das testemunhas". Não ocorreu, deste modo, qualquer violação do disposto no artigo 374, n. 2, do Código de Processo Penal, estando excluída, pois, a hipótese da nulidade da sentença referenciada ou prevista na alínea a) do artigo 379, do mesmo Diploma. Sucumbe nesta parte, para já, o recurso interposto. Insurgem-se os recorrentes, depois, quanto a terem sido considerados funcionários e, como tal ou nessa perspectiva, terem sido condenados como co-autores de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 424, n. 1, do Código Penal. Quando muito, excluindo, como se impõe, o mencionado pressuposto ou qualidade de "funcionário" seriamos confrontados com a comissão de um crime de furto, quiçá abrangido pela Lei da Amnistia n. 23/91, de 4 de Julho, sustentam. O problema é encarado ou tratado expressamente no acórdão recorrido. Sabido que o conceito de "funcionário" vem definido no artigo 437 do Código Penal, isto para efeitos penais como é óbvio, temos que o mesmo, embora delimitado, é bastante amplo, procurando evitar lacunas, abrangendo o funcionário militar e qualquer que "desempenhe funções em organismos de utilidade pública" (o Estado é uma pessoa colectiva de direito público), "ou nelas participe", sem curar da natureza do vincúlo, que só interessa no âmbito disciplinar (cfr. Prof. Figueiredo Dias, "Direito Penal 2", 1988, páginas 187 e seguintes; Sá Pereira, "Código Penal", 1988, página 462 ...). É o que resulta, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1991, no recurso n. 41722 - v. Col. Jur. ano XVI, tomo II, páginas 27 e seguintes -, da interpretação declarativa do referido artigo 437, mas se tal interpretação não fosse a suficiente, então a referida amplitude surgiria na sua interpretação extensiva (autorizada presentemente pelo artigo 1, n. 3, do Código Penal). "Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma formula restrita. A "mem legis" está na necessidade de evitar subterfúgios na defesa penal da coisa pública - como bem observa Maia Gonçalves em anotações ao artigo 327 do Código Penal de 1886". Não parece que grandes alterações se tenham introduzido com o artigo 437 do Código Penal Vigente, isto no tocante ao conceito já perfilhado pelo artigo 327 citado. Foi mesmo aquele normativo inspirado neste último. Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma formula restrita, que excluísse do conceito de funcionaria designadamente aqueles a quem são cometidas funções em serviços públicos sem permanência bastante para que, em Direito Administrativo, possam considerar-se funcionários públicos. E daí terem sido, com frequência, considerados funcionários públicos, para efeitos penais, outros indivíduos desempenhando funções, não obstante poderem ser livremente nomeados ou exonerados. Independentemente do formalismo do investimento de que cura o direito Administrativo, é funcionário público para efeitos penais todo aquele que é chamado a desempenhar uma actividade compreendida na função pública ou nelas participe, digo ou que, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe, e isto mesmo que tenha sido chamado provisório ou temporariamente, e ainda que não seja remunerado. Tudo isto que vimos de escrever, se pode ler em Código Penal anotado, 1984, segunda edição, a página 523, de Maia Gonçalves. Não se está perante o conceito de funcionário próprio da Administração Pública, mas da "elencagem de situações" - como se exprime o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto - em que está presente um dever especial de "facere" ou de "non facere" comum àqueles funcionários (em sentido estrito) e a outras categorias de pessoas que estão, desse ponto de vista, em situações equiparadas e que geram os mesmos deveres especiais. A forma como a empresa pública se estrutura não é, deste ponto de vista, acrescenta o mesmo Excelentíssimo Magistrado, significativa. O Decreto-Lei n. 371/83, de 6 de Outubro, no seu n. 1 do artigo 4 é expresso: "Para efeitos do presente diploma, a expressão funcionário tem o alcance fixado pelo n. 1 do artigo 437 do Código Penal". E logo no n. 2 do mesmo artigo preceitua-se que "Para os mesmos efeitos, e ainda para os efeitos dos artigos 420 e 423 do Código Penal, são equiparados a funcionários os titulares dos órgãos e os funcionários da administração autárquica regional e local ou de institutos públicos e os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, e ainda de empresas concessionarias de serviços públicos". E o artigo 5 do mesmo Diploma preceitua que "A equiparação prevista no n. 2 do artigo antecedente faz igualmente incorrer os equiparados: ...e) - dos crimes de peculato, previstos e punidos pelos artigos 424, 425 e 426 do Código Penal". Era a arguida A, ao tempo dos factos, funcionária na filial da Caixa Geral de Depósitos em Castelo de Paiva. No exercício das suas funções, apoderou-se do cheque n. 4419649588, sacado por E sobre a conta n.0099/08/012464.0, da agência de Penafiel do Banco Pinto & Sotto Mayor, e que o D lhe entregara para crédito na sua conta, fazendo-o coisa sua. Na posse do cheque, a mesma entregou-o ao marido, ou seja, o arguido e recorrente B, o qual, de comum acordo e após prévia combinação com a mulher A, depositou o mesmo na instituição bancária onde exercia funções de caixa - filial da União de Bancos Portugueses em Castelo de Paiva -, cativando o dito cheque e levantando o seu valor. Actuaram os arguidos conjuntamente e em conjugação de esforços, com intenção de fazerem sua a quantia titulada pelo cheque, como efectivamente fizeram, não ignorando que assim prejudicavam o titular do cheque, ou seja, o D. Sendo o preâmbulo do Decreto-Lei n. 287/93, de 20 de Agosto, aí se colhe que a Caixa Geral de Depósitos, criada pela Carta de Lei de 10 de Abril de 1876, nasceu com uma sanção exclusivamente centrada no âmbito do Estado, tendo como função principal a recolha e a administração dos depósitos efectuados por imposição da lei ou dos tribunais; cresceu como um banco ligado, digo banco de poupança e investimento ligado à política económica, continuando a recolher os depósitos públicos ou determinados pelo Estado, bem como a poupança privada, e chegou aos nossos dias com uma posição de grande destaque no conjunto das instituições de crédito portuguesas, já não dependendo dos depósitos públicos, actuando como um banco universal e sendo a matriz do maior grupo financeiro português. O enquadramento normativo da actividade da Caixa revela, continua a lêr-se no mesmo preâmbulo, um conjunto de particularidades relativamente ao das empresas privadas do sector como por exemplo, o recurso às execuções fiscais para cobrança dos seus créditos e a representação em juízo pelo Ministério Público. Por outro lado, a Caixa beneficiava de uma isenção geral de impostos e taxas, sendo equiparada pela lei ao Estado, para este efeito, situação que se extinguiu com a reforma fiscal entrada em vigor em 1989. Presentemente, por força do mencionado Decreto-Lei n. 287/93, entrado em vigor no dia 1 de Setembro de 1993 (artigo 10), a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência constitui uma Sociedade anónima de Capitais exclusivamente públicos, passando a denominar-se Caixa Geral de Depósitos, S.A. ...(n. 1 do artigo 1). Nos termos do n. 1 do artigo 3 do referido Diploma, "A Caixa tem por objecto o exercício da actividade bancária nos termos definidos nos seus estatutos e dentro dos limites estabelecidos na legislação aplicável", acrescentando-se no n. 2 do mesmo artigo que "No exercício da sua actividade, a Caixa deverá promover a formação e a captação da poupança e contribuir, designadamente através das suas operações de financiamento, para o desenvolvimento económico e social do País". No n. 1 do artigo 4 do Diploma citado, "A Caixa tem o capital social de 275000000 de contos, totalmente subscrito pelo Estado...". Nos respectivos Estatutos, ambos do Decreto-Lei n. 287/93 (v. artigo 5, n. 1), novamente se contem que "A sociedade tem a natureza de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e a denominação de Caixa Geral de Depósitos, S.A." (artigo 1 dos Estatutos) e que "O capital social é representado por 275000000 de acções com o valor nominal de 1000 escudos cada uma" (n. 1 do artigo 6 dos Estatutos) e "As acções representativas do capital social só poderão pertencer ao estado" (n. 2 do mesmo artigo 6). Não vindo ou não sendo contrariada pelos recorrentes a natureza de empresa pública da Caixa Geral de Depósitos, o que é certo é que não podemos olvidar hoje o mencionado Decreto-Lei n. 287/93, de 20 de Agosto e Estatutos anexos. É hoje a Caixa Geral de Depósitos uma sociedade anónima mas de capitais exclusivamente públicos, em que o único detentor do capital é o Estado. Ora, tanto basta, em nosso entender que, com respeito a ela, Caixa, continue a ter plena validade o disposto nos artigos 4 e 5 do Decreto-Lei n. 371/83, de 6 de Outubro. Assim, como defende o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância, na sua resposta às motivações do recurso interposto pelos arguidos, a arguida A, enquanto trabalhadora da Caixa Geral de Depósitos, encontrava-se e encontra-se abrangida pelo conceito de funcionário a que se reporta o artigo 437 do Código Penal, qualidade que se transmitiu ao arguido seu marido, como se verá. Dispõe-se no n. 1 do artigo 28 do Código Penal que "Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora". Não se verificando, no caso, a ressalva apontada no normativo que vimos de transcrever, a qual contempla os casos dos chamados "delitos de mão própria", ou seja, aqueles que requerem a própria intervenção corporal do autor no facto, por exemplo, no abandono de sinistrado, na condução sob o efeito do álcool, no incesto, etc., etc., bem andou o tribunal "a quo" ao considerar, assim decidindo, que a apurada conduta dos arguidos-recorrentes preenche a previsão do artigo 424, n. 1, do Código Penal, com referência aos artigos 28 e 437 do Código Penal também e artigos 4 e 5 do Decreto-Lei n. 371/83, de 6 de Outubro, constituindo-se, pois, os aqui recorrentes A e Fernando Silva co-autores do aludido crime de peculato previsto e punido por aquele primeiro preceito. Os recorrentes acenam com vícios de inconstitucionalidade às normas do Decreto-Lei n. 371/83, nomeadamente ao artigo 5, alínea e), mais invocando que o Governo, em tal Diploma, ultrapassou a respectiva Lei de Autorização (Lei n. 12/83, de 24 de Agosto) mais concretamente, no que aqui interessa, foi posto em causa o disposto no n. 1 do artigo 13 da Constituição da República Portuguesa, invocam os recorrentes. Sobre tal, cumpre dizer, que os recorrentes, no apontar desses vícios de inconstitucionalidade, não invocam fundamento bastante, pois não se antolha, através da análise das normas visadas, que o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei não foi acatada ou existe a possibilidade do seu desrespeito, e que o Governo tenha ido, com tal Diploma, no que respeita concretamente à previsão contida no citado artigo 5, alínea e), para além da autorização legislativa. Adiante-se, servindo nos das palavras do Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto nas suas doutas alegações, que "o princípio constitucional da igualdade" significa, em síntese, que deve ser tratado igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual, toda a vez que a igualdade de que se trata é uma igualdade de "resultado" e não uma igualdade "à partida". Também aqui, neste domínio ou nesta temática, e salvo o devido respeito, não assiste razão aos recorrentes, carecendo de suporte jurídico o seu recurso, assim o entendemos. No mais decidido, incluindo a dosimetria penal feita, a suspensão da execução da pena decretada - isto relativamente à pena de prisão imposta a cada um dos arguidos -, perdão decorrente da Lei n. 23/91, de 4 de Julho, e tributação estabelecida, nada se vê a merecer aqui censura a destacar. Os artigos 72 e 48, ambos do Código Penal, não se mostram postergados, deixando a decisão recorrida e aqui em apreciação ver a preocupação nela havida da fundamentação, no campo do direito e face aos factos provados, das posições nela assumidas e que se apresentam correctas. Nestes termos, face a tudo o que vem de ser exposto, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos A e B, confirmando-se, sim, a decisão recorrida. Oportunamente, deverá ter-se em conta o disposto no artigo 12 da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, isto na primeira instância. Pelo decaimento são os recorrentes condenados, cada um deles, em 4 UC'S de taxa de justiça, fixando-se a procuradoria em 1/3. Lisboa, 15 de Junho de 1994. Teixeira do Carmo; Amado Gomes; Ferreira Dias; Ferreira Vidigal. Decisão impugnada: Acórdão de 16 de Abril de 1993 do Tribunal do Círculo de Penafiel - 4 Secção -. |