Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98A1099
Nº Convencional: JSTJ00035805
Relator: FERREIRA RAMOS
Descritores: MINISTÉRIO PÚBLICO
PODERES DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PRAZO JUDICIAL
PRAZO PEREMPTÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
IGUALDADE
Nº do Documento: SJ199902090010991
Data do Acordão: 02/09/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N484 ANO1999 PAG311
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 148/98
Data: 05/14/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR JUDIC - EST MAG.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 3-A ARTIGO 145 N5.
DL 323/70 DE 1970/07/11.
DL 242/85 DE 1985/07/09.
DL 92/88 DE 1988/03/17.
DL 329-A/95 DE 1995/12/12.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1979/05/15 IN BMJ N288 PAG223.
ACÓRDÃO STJ DE 1989/01/13 IN AD ANOXXVIII N329 PAG723.
ACÓRDÃO STJ DE 1989/04/27 IN BMJ N386 PAG442.
ACÓRDÃO STJ PROC80987 DE 1992/03/26.
ACÓRDÃO STJ DE 1996/07/19 IN CJSTJ ANOIV TII PAG228.
ACÓRDÃO TC 160/90 DE 1990/05/22 IN BMJ N397 PAG68.
ACÓRDÃO TC 529/94 DE 1994/09/08 IN DR IIS N292 DE 1994/12/20.
ACÓRDÃO STA DE 1988/04/22 IN BMJ N376 PAG627.
ACÓRDÃO STA DE 1995/02/22 IN AD ANOXXIV N403 PAG802.
ACÓRDÃO RL DE 1995/10/03 IN CJ ANO1995 TIV PAG103.
ACÓRDÃO RP DE 1988/06/21 IN BMJ N378 PAG779.
Sumário : O disposto no n. 5 do artigo 145 do C.P.Civil com excepção da parte relativa à multa, é aplicável ao Ministério Público, enquanto representante do Estado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
Por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa nº 129/93, instaurados na Comarca de Torres Vedras, o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, deduziu reclamação de créditos em 6.5.97.
Considerando que o prazo para a reclamação terminara em 5.5.97, o Senhor Juiz rejeitou liminarmente a reclamação por ser "manifestamente extemporânea".
Deste despacho agravou o Ministério Público, por entender, no fundamental, que ao Estado é lícita a prática de actos processuais dentro do prazo suplementar a que se refere o artigo 145º, nº 5, do CPC, sem que, para tanto, fique sujeito ao pagamento da multa correspondente.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14.5.98, negou provimento ao agravo, confirmando o despacho agravado.
Continuando inconformado, traz o Ministério Público o presente recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo alegações em que conclui:
"1. Ao Estado assiste a faculdade de praticar os actos no âmbito do mecanismo, mais vasto, p. no artigo 145º, nº 5, do CPC;
2. A tanto não obstando a circunstância de não ser passível de pagamento, a si próprio, da multa prevista;
3. Tendo, pois, sido violado o apontado preceito legal (artigo 145º, nº 5, do CPC".

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
A questão a dilucidar no presente recurso - tal como a equacionou, e bem, o acórdão recorrido - traduz-se tão-só em saber se a possibilidade de prática do acto dentro dos primeiros dias úteis que se seguem ao termo do processo é aplicável ao Ministério Público, enquanto representante do Estado.
Esta é, com efeito, o núcleo essencial da questão a enfrentar, sabido ser pacífica a jurisprudência no sentido de o Ministério Público estar isento do pagamento da multa prevista na norma em causa, já que carece de suporte legal a responsabilidade por tal pagamento (quanto a este aspecto do pagamento da multa - escreveu-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº 59/91, Processo nº 288/90, de 7.3.91, in Acórdãos do TC, 18º vol., 1991, p.391 - reconhece-se que, "qualquer desigualdade de tratamento que porventura exista entre as diferentes situações das partes processuais e do Ministério Público, é manifestamente fundada: o Ministério Público é o representante do Estado, encarregado de, nos termos da lei, defender a legalidade democrática, exercer a acção penal e promover a realização do interesse social").
A decisão recorrida respondeu negativamente, desenvolvendo argumentação de algum relevo, mas que, em nosso entender, e salvo o devido respeito, não colhe.
Ora, importa, antes do mais, sublinhar que o acórdão recorrido (aliás, tirado com um voto de vencido) perfilhou entendimento que vai ao arrepio da jurisprudência quase unânime (o único acórdão do Supremo que se pesquisou nesse sentido foi o de 26.3.92, Proc. nº 80987, também com um voto de vencido), tanto do Supremo Tribunal de Justiça, como do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, como também das Relações (no mesmo sentido, o Despacho do Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 25.1.84, CJ, 1984, tomo I, p. 198).
É o que resulta dos seguintes acórdãos:
- do Supremo Tribunal de Justiça: de 15.5.79, BMJ, nº 287-223, de 13.1.89, ADSTA, ano XXVIII, Maio de 1989, nº 329-723, de 19.7.96, CJ, ano IV, tomo II-1996, p. 228, e de 4.3.97, Proc. nº 859/96;
- do Tribunal Constitucional: nº 160/90, Proc. nº 323/88, de 22.5.90, BMJ, nº 397-68 (em cuja anotação se diz que tal decisão "corresponde à prática corrente e pacífica do Tribunal"), e nº 59/91, já citado;
- do Supremo Tribunal Administrativo: de 26.4.88 (Tribunal Pleno), BMJ, nº 376-627, e de 22.2.95, ADSTA, ano XXXIV, nº 403, p. 802;
- da Relação de Lisboa: de 12.12.73, BMJ, nº 232-164, de 15.1.82, CJ, 1982, tomo 1-152, e 2.7.91, BMJ, nº 409-863. De 26.6.93, BMJ, nº 428-669, de 23.9.93, BMJ, nº 429-867, de 3.10.95, CJ, 1995, tomo IV, p. 103;
- da Relação do Porto: de 21.6.88, BMJ, nº 378-779;
- da Relação de Évora: de 14.11.91, CJ, 1191, tomo V, p. 245.
Nem se diga que os citados acórdãos "deram como demonstrado o que importa demonstrar".
Com efeito, sendo certo que alguns desses arestos apenas se ocuparam em particular e ex professo da questão da isenção da multa, só tacitamente aceitando que o Ministério Público também goza do direito ou faculdade outorgado pela norma em apreço - melhor se dirá que cuidaram tão-só da questão da multa, porquanto esse direito ou faculdade por ninguém foi posto em causa, por todos considerado como assente e indiscutível -, outros há (nomeadamente do STJ, do TC e do STA que expressamente reconheceram que o Ministério Público também se pode valer dessa possibilidade).
III
Posto isto, e no reconhecimento de que a resposta à questão envolve, necessariamente, um problema de interpretação de leis, recordem-se alguns tópicos nesta temática ( com guarida no artigo 9º do Código Civil).
1. Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", págs. 21 a 26).
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, "Noções Fundamentais do Direito Civil", vol. 2º, 5ª edição, pág. 130).
Quer dizer, o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.

2. A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, pp. 187 e ss., uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Ou, como diz Oliveira Ascensão "O Direito, Introdução e Teoria Geral", Lisboa, 1978, pág. 350, "a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito".

3. Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios:
"Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo" (Francesco Ferrara, "Interpretação e Aplicação das Leis", tradução de Manuel de Andrade, 3ª edição, Coimbra, 1978, págs. 127 e segs. e 138 e segs.).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
Socorrendo-se dos elementos ou subsídios interpretativos acabados de referir, o intérprete acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades essenciais de interpretação: interpretação declarativa, extensiva ou restritiva.
IV
Munidos com os elementos acabados de recensear, avancemos para a interpretação da norma aqui em causa.
1. O decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto.
Proclamada esta regra, tanto o CPC de 1939, como o de 1961 (na sua primitiva redacção), apenas excepcionavam "o caso de justo impedimento".
Foi a modificação do artigo 145º introduzida pelo DL nº 323/70, de 11 de Julho, ao aditar um nº 5, que tornou "possível a prática de actos no primeiro dia útil seguinte ao termo do respectivo prazo, sem necessidade da prova - que nem sempre é fácil - do justo impedimento" (do respectivo preâmbulo).
2. Esta possibilidade de o acto processual, sujeito a prazo peremptório, ser praticado, mediante o pagamento de multa, no primeiro dia útil subsequente ao termo do prazo, independentemente da existência de justo impedimento, foi posteriormente alargada a três dias pelo DL nº 242/85, de 9 de Julho, e mantida quer pelo DL nº 92/88, de 17 de Março, quer pela Reforma de 1995/96.

A actual redacção do artigo 145º, na parte que aqui nos interessa, é a seguinte:
"5. Independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa de montante igual a um oitavo da taxa de justiça que seria devida a final pelo processo, ou parte do processo, se o acto for praticado no primeiro dia, de um quarto da taxa de justiça, se o acto for praticado no segundo dia, ou de metade da taxa de justiça, se o acto for praticado no terceiro dia, não podendo, em qualquer dos casos, a multa exceder 5 UC.
7. O juiz pode determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado".

3. Sublinhe-se, pelo seu significado - para além da diminuição do montante da multa prevista no nº 5, em cotejo com a redacção antecedente, resultante do DL nº 92/88 - o aditamento deste nº 7 pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e recorde-se o pertinente passo preambular deste diploma:
"Revê-se o regime vigente relativo ao direito de praticar o acto processual nos três dias subsequentes ao termo de um prazo peremptório, no sentido de assegurar plenamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade substancial das partes, facultando ao juiz a concreta adequação da sanção patrimonial correspondente ao grau de negligência da parte ou à eventual situação de carência económica do beneficiário do exercício de tal direito".

1.1. Volvendo á inovação introduzida pelo citado DL nº 323/70, dir-se-á, acompanhando Antunes Varela, RLJ, ano 116º-31 e 32, que na sua base se encontra um propósito louvável - traduzido no primado da justiça material sobre a pura legalidade formal - e o reconhecimento de uma velha pecha da nossa maneira colectiva de agir; ou seja, o espírito dessa nova solução é não permitir que a omissão do acto processual dentro do prazo legalmente fixado determine a perda imediata e irremediável do direito material com ele correlacionado (já antes, este mesmo Professor escrevera que a solução legal assenta em razões de possível descuido, esquecimento ou negligência do interessado ou em dificuldades de prova do justo impedimento - RLJ, ano 103º, p. 301).

3. Como é bom de ver, a letra do transcrito nº 5 do artigo 145º do CPC não define de forma expressa o âmbito pessoal da sua aplicação, ou seja, não indica os seus destinatários.
O legislador optou por pôr o acento tónico da sua previsão no acto a praticar ("pode o acto ser praticado" - nº 5; "praticado o acto" nº 6), que não na "parte" que o pode praticar; é aquela, na sua óptica, a parte mais nobre e valiosa da estatuição normativa.
Mas se isto é assim, não pode, por outro lado, olvidar-se que a lei, ao não distinguir entre "aqueles" (as "partes") que podem praticar o acto, abarca na sua previsão, natural e logicamente, todos eles (elas), sob pena de se estar a acolher um interpretação restritiva, só legítima quando o intérprete alcança a certeza de que o legislador disse mais do que queria, isto é, quando chegar à conclusão de que o texto atraiçoou o pensamento do legislador.
O que não é manifestamente o caso, cumprindo salientar, a propósito, que a norma interpretanda reveste a natureza de uma disposição de carácter geral em matéria de prazos dos actos processuais (Antunes Varela, RLJ, ano 116º-32), abrangendo todos os prazos peremptórios (acórdão do STJ de 14.1.93, CJ, ano I, tomo I, p. 54).

4. Ao invés, cumpre reconhecer que aquele sentido que logo emerge das "palavras" da lei, é antes corroborado pelo elemento histórico (que compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios), bem assim pelo elemento racional ou teleológico (traduzido na razão de ser da norma, no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar).
Desde logo, o elemento teleológico, sabido que a ratio legis da inovação introduzida em 1970 se traduziu na preocupação de fazer primar a justiça material sobre a legalidade formal (Antunes Varela, RLJ, ano 116º-31), acrescentando-se, com propósito, que o que o sistema legal deseja é a definição real dos direitos substantivos (acórdão do STJ de 27.4.89, BMJ, nº 386-442).
Mas não só.
Também o elemento histórico confirma claramente a interpretação que se perfilha, como já resultava do que, oportunamente, se considerou a seu propósito, mas também, e decisivamente, face às considerações que se seguem.

5. O legislador da Revisão de 1995/96 não podia ignorar, por um lado, que a questão existia e se punha e, por outro, qual o sentido quase unânime da jurisprudência.
Assim sendo, se quisesse consagrar diferente solução da que vinha sendo defendida nos vários Tribunais superiores e nas instâncias, teria por certo legislado nesse outro sentido.
O que não fez, a que acresce o ter procedido à revisão do regime vigente na matéria "no sentido de assegurar plenamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade substancial das partes" (cfr. citado passo do preâmbulo do DL nº 329-A/95).
Revisão que se limitou a reduzir o montante da multa prevista no nº 5 e a aditar o transcrito nº 7.
Com tanto se bastou a "revisão" operada, suficiente, no entender do legislador, para assegurar plenamente o princípio da igualdade substancial das partes.
Donde, ser legítimo concluir que o legislador assentou e arrancou do entendimento de que a previsão normativa abrange também o Ministério Público.
Argumento que resulta potenciado se tivermos presente que foram mais fundas e significativas outras alterações introduzidas pela Reforma, em domínios onde se debatiam questões próximas ou similares da aqui analisada (queremos referir-nos às modificações dos artigos 485º, alínea b) - cominação da confissão dos factos alegados pelo autor -, 486º, nºs 4 e 5 - prorrogação do prazo da contestação - e 490º, nº 4 - ónus de impugnação).
Ponto em que não será despiciendo transcrever o seguinte trecho de José Lebre de Freitas, "Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, p. 106, nota (34): "Na nossa legislação processual civil, existiam algumas desigualdades entre o Ministério Público e a parte particular a que a recente revisão do Código pôs cobro....Subsiste ainda a do artigo 681-4".
Com efeito, os sublinhados, de nossa autoria, consentem concluir, de algum modo, que o Autor entende que, após a revisão de 1995/96, já não existem ("existiam") desigualdades, para além da contida na norma que cita; ou seja, a norma do nº 5 do artigo 145º, na actual redacção, não implica desigualdade para a parte particular (conclusão reforçada face à consideração de que o mesmo Autor, escrevendo antes dessa Reforma, apontava a norma do artigo 145º como uma daquelas que consagrava situação de desigualdade entre as partes - "A Igualdade Armas no Direito Processual Civil Português", in "O Direito", ano 124º, 1992-IV, p. 625).
V
Alcançada a conclusão de que o nº 5 do artigo 145º do CPC é aplicável ao Ministério Público, enquanto representante do Estado - conclusão que todos os elementos de interpretação justificam e impõem -, interessa indagar, num segundo momento, da conformidade constitucional de tal solução legislativa.
Neste plano, chamam-se a terreiro o direito a um processo equitativo (ínsito no direito de acesso aos tribunais, proclamado pelo artigo 20º, nº 1, da Constituição), de que é elemento incindível o princípio da igualdade de armas, manifestação do princípio mais geral da igualdade das partes.
Princípio não expressamente formulado na Constituição para o processo civil, mas que não pode deixar de ser exigência constitucional, pois tal decorre da própria ideia de Estado de direito.

1. Nos litígios sobre interesses privados, a igualdade de armas implica a obrigação de oferecer a cada parte a possibilidade de apresentar a sua causa, incluindo as suas provas, em condições que a não coloquem em situação de nítida desvantagem em relação ao seu adversário" (Ireneu Cabral Barreto, "A Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Aequitas, 1995, p. 95).
Segundo José Lebre de Freitas ("Introdução ao Processo Civil" - Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, pp. 105-106), o princípio da igualdade de armas impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a diversidade das posições das partes impossibilita, exige, porém, a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticas, sempre que a sua posição perante o processo é equiparável, e um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigualdade objectiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte meios processuais não atribuíveis à outra.
Hoje, a igualdade das partes está consagrada no artigo 3º-A do CPC.
Mas como logo adverte Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", LEX, 1997, pp. 42-44, um primeiro problema suscitado é o de que nem sempre é viável assegurar a igualdade substancial entre as partes, não sendo possível, nuns casos, ultrapassar certas diferenças substanciais na posição processual das partes, e noutras hipóteses afastar certas igualdades formais impostas pela lei - assim, a igualdade das partes, com expressão legal no citado artigo 3º-A, não pode postergar os vários regimes imperativos definidos na lei, que originam desigualdades substanciais ou que se bastam com igualdades formais.
2. Revertendo ao plano constitucional, a questão resume-se em saber se a norma sub specie estabelece de modo injustificado, intolerável, irrazoável e arbitrário um regime discriminatório para uma das partes da acção, de molde a tornar a posição processual de uma desvantajosa em relação à outra no tocante ao gozo dos meios adjectivos postos à sua disposição.
Por outras palavras: o que releva é determinar se a posição processual do Ministério Público, quando represente uma "parte" processual - no caso, o Estado - deve, concretamente, ser visualizada em termos exactamente idênticos ao do representante processual de outra qualquer "parte", e, também, se se podem postar em identidade de circunstâncias uma "parte" particular e o Estado (acórdão do Tribunal Constitucional nº 529/94, Processo nº 173/93, de 28.9.94, no DR, II série, nº 292, de 20.12.94).
Este acórdão do Tribunal Constitucional apreciou a questão com profundidade, desenvolvendo argumentação que, no essencial, é transponível e válida para a situação que aqui nos ocupa.
Por isso que se justifique a sua enunciação, ainda que sucintamente:
- deve reconhecer-se ao legislador ampla liberdade conformativa na definição das regras de direito processual civil, matéria na qual a Constituição não faz qualquer elenco ou catálogo de princípios a que o mesmo se deverá subordinar;
- o princípio da igualdade exige a dação de tratamento igual àquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções (ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias);
- dever-se-á atentar que o Ministério Público não pode ser entendido como um representante ou mandatário livremente escolhido, com as inerentes desvantagens que isso acarreta para a "parte" que ele está processualmente a representar, de entre elas avultando a inexistência de um nexo de confiança pessoal que "poderá dificultar a narração espontânea e completa dos exactos termos do litígio, criando eventuais afastamentos ou dificuldades de contacto entre a parte e o seu representante ou mandatário oficioso";
- mister é também não olvidar ser o Ministério Público uma magistratura sobre a qual impendem, constitucionalmente, várias funções, e que está dotado de um estatuto onde imperam especiais deveres de objectividade e verdade, que muitas vezes se não coadunam com uma maleabilidade que deve ser reconhecida aos mandatários judiciais;
- a igualdade das "partes" não pode ser perspectivada tão-só no desenrolar do próprio processo, não se devendo, ao invés, perder de vista a situação pré-processual, sendo que, neste ponto, há que reconhecer que a pessoa colectiva de direito público representada pelo Ministério Público é estruturada com base em procedimentos burocráticos desenvolvidos através de variados processos de formação da vontade orgânica precedidos de diversas fases tutelares que tornam as mais das vezes acentuadamente difícil descortinar a realidade fáctica existente;
- o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada a que não são alheios critérios de uniformização de procedimento, o que torna menos fácil a movimentação processual comparativamente aos demais mandatários judiciais.

3. Fundamentalmente, foi com base nestes elementos que o citado acórdão do TC nº 529/94 concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 490º do CPC - ónus da impugnação especificada -, situação que, há que convir, se configura como mais "gravosa" e "desigual" do que aquela com que estamos confrontados no presente recurso.
Especificamente no que concerne a norma do nº 5 do artigo 145º, o citado acórdão do TC nº 59/91 considerou que "a desigualdade de tratamento que porventura decorra do facto de, para a utilização daquele benefício, as partes no processo ou o terceiro com direito a intervir nele terem de pagar a multa, enquanto o Ministério Público está isento de tal pagamento, não viola o princípio da igualdade ou da identidade de armas, porquanto tal desigualdade é materialmente fundada" (do respectivo sumário).

4. O exposto permite, pois, concluir que a diferenciação que o nº 5 do artigo 145º implica - traduzida tão só no não pagamento da multa -, não coloca a outra parte, arbitrária e injustificadamente, numa posição de concreta quebra ou rompimento de paridade processual, que acarrete uma intolerável "desigualdade de armas".
Ao invés, essa diferenciação tem justificação material bastante, com suporte no conjunto de razões que deixamos enunciadas, não importando um injustificável privilégio.
Não conferir ao Ministério Público o direito conferido pelo citado nº 5, apenas porque não pode, legalmente, satisfazer o pagamento da multa - multa que, recorde-se, não só foi diminuída no seu montante, como também pode ser reduzida ou dispensada, conforme se dispõe no nº 7 -, é que poderia, porventura, suscitar ofensa do princípio da igualdade.
E sempre significaria dar prevalência à legalidade formal, em detrimento da justiça material, contrariando-se o fim visado pelo legislador.
A finalizar, interessará recordar que o princípio da igualdade de armas não implica uma identidade formal absoluta de todos os meios, e que a exigência que ela postula pressupõe uma posição equiparável das partes perante o processo (José Lebre de Freitas, "Introdução....", cit., pp. 105-106), o que não é o caso, conforme se demonstrou; ou, como diz Miguel Teixeira de Sousa (loc. cit.), nem sempre se pode assegurar uma igualdade substancial entre as partes, pois, em certos casos, não é possível ultrapassar certas diferenças substanciais na posição processual as partes.

Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando o acórdão recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999.
Ferreira Ramos,
Lemos Triunfante.
José Saraiva.