Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SALVADOR DA COSTA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL OMISSÃO CASO FORTUITO CASO DE FORÇA MAIOR CULPA INDEMNIZAÇÃO JUROS | ||
Nº do Documento: | SJ200511290036787 | ||
Data do Acordão: | 11/29/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 4374/05 | ||
Data: | 06/09/2005 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Sumário : | 1. Quem no seu interesse de qualquer natureza organiza um evento desportivo a que o público assista obriga-se a garantir-lhes a segurança por via de adequadas medidas de precaução. 2. O facto de os regulamentos da modalidade desportiva de hóquei em patins não exigirem a colocação de redes de protecção fora da zona de enfiamento das balizas não dispensa o organizador do evento desportivo de tomar as precauções necessárias para evitar que as bolas movimentadas no ring pelos jogadores atinjam as pessoas nas bancadas. 3. Com idênticos efeitos jurídicos, o caso fortuito é caracterizado como o evento não previsível mas evitável se tivesse sido previsto, e o caso de força como não previsível e inevitável se previsto tivesse sido. 4. O facto de uma bola - com 155 gramas e circunferência de 23 centímetros - impulsionada pelo stick de um jogador na direcção da baliza adversária haver embatido na trave ou no poste e tomado a direcção de uma bancada e atingido lá uma pessoa não é caso fortuito porque a lesão podia ter sido evitada pela existência no respectivo enfiamento de meios materiais adequados de barragem. 5. O clube organizador do evento desportivo e responsável pelo funcionamento do pavilhão de jogos é obrigado a indemnizar a pessoa lesada nos termos gerais da responsabilidade civil. 6. Não obstante a culpa leve dos seus titulares, não provada a carência económica que invocou no recurso, à luz do artigo 494º do Código Civil, queda injustificada a redução do montante indemnizatório apurado em proporção superior a três quintos. 7. Confirmada pela Relação a sentença onde consta, por declaração expressa, ter a indemnização sido fixada por referência à data da citação do réu, e tendo em conta o acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio, inexiste fundamento legal para fixar o início da contagem dos juros moratórios no momento do encerramento da decisão da matéria de facto ou da sentença. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I "A" intentou, no dia 8 de Outubro de 1994, contra B, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 6.920.000$00 e o que viesse a liquidar-se em execução de sentença quanto a despesas médico-medicamentosas e hospitalares e as verbas a reembolsar à segurança social, sob o fundamento de, no dia 20 de Outubro de 1990, quando assistia a um jogo de hóquei em patins, no campo de jogo do réu, sem redes de protecção, haver sido atingida, na bancada, por uma bola num olho e sofrido por isso lesões. O réu contestou, afirmando desconhecer o valor dos danos invocado pela autora ter o campo de jogos as necessárias condições de segurança, ter a lesão daquela resultado de um caso fortuito provocado por um jogador da equipa adversária, e, por isso, negou a sua responsabilidade. Foi deferido o requerimento do réu de chamamento à autoria de C e da Associação Académica da Amadora, esta chamou à autoria a Federação Portuguesa de Patinagem e a Associação de Patinagem de Lisboa, chamamento que foi admitido, mas elas não aceitaram o chamamento. "C" foi citado editalmente, não deduzir oposição, tal como a não deduziu o Ministério Público em sua representação. Na contestação, a Associação Académica da Amadora afirmou não ter responsabilidade no cumprimento das normas relativas ao funcionamento do recinto de jogos e, por isso, não ter legitimidade ad causam, e a autora pronunciou-se no sentido da improcedência da defesa por ela formulada. Na fase da condensação, foi concedido à autora o apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e de custas e decidido que a Associação Académica da Amadora era parte legítima. Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 4 de Junho de 2004, por via da qual o réu foi condenado a pagar à autora 3.547.878$00 e juros de mora à taxa legal desde a citação, da qual o último apelou, e a Relação, por acórdão proferido no dia 9 de Junho de 2005, negou provimento ao recurso. O apelante interpôs recurso de revista do referido acórdão, formulando, em síntese, as seguintes conclusões: - o acidente ocorreu devido a facto imprevisível, fortuito, sem a ilicitude que é pressuposto da responsabilidade civil subjectiva; - o recinto desportivo tinha redes de protecção ao longo de duas tabelas ao fundo da pista, de acordo com os regulamentos da altura; - não pode ser condenado com base Portaria nº 371/91, de 30 de Abril, publicada posteriormente aos factos; - de contrário, deve a indemnização ser reduzida nos termos do artigo 494º do Código Civil, devido à sua carência económica; - os juros são devidos desde a data da sentença, quer os relativos aos danos patrimoniais devido à actualização, quer os relativos aos danos não patrimoniais. II É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido: 1. No dia 20 de Outubro de 1990, ocorreu um jogo de hóquei em patins no pavilhão gimnodesportivo do B, disputado entre este e a Associação Académica da Amadora. 2. As bancadas do campo estavam situadas ao longo dele, e não as havia por detrás das tabelas de fundo da pista, e o campo tinha redes de protecção ao longo das duas tabelas do fundo da pista. 3. Cerca das 23.00 horas daquele dia, um jogador da Associação Académica da Amadora rematou a bola, com o peso de 155 gramas e circunferência de 23 centímetros, à baliza adversária, ela embateu na trave ou no poste da baliza, após o que tomou a direcção da bancada do pavilhão, onde a autora estava a assistir ao jogo, e foi atingida por ela no rosto. 4. A referida bola provocou, de imediato, à autora, derramamento de sangue no olho direito e dores fortes, foi transportada para o Hospital de Cascais pelos Bombeiros Voluntários da Parede, onde lhe foram prestados os primeiros socorros e, devido à gravidade dos ferimentos, foi transportada para o Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa. 5. Ela sofreu o rebentamento do globo ocular do olho direito, com catarata traumática, e fractura do malar direito, foi operada no dia 21 de Outubro de 1990, tendo-lhe sido feita sotura da referia córnea, e depois foi transferida para o Hospital Egas Moniz, onde foi assistida, e sofreu uma recaída no dia 27 de Outubro de 1990, em razão do que teve de ser sujeita a mais exames e tratamentos. 6. No dia 11 de Dezembro de 1990, a autora subscreveu perante a segurança social um questionário no qual indicou os motivos da sua situação de baixa, descrevendo o acidente sofrido e onde declarou comprometer-se a devolver os subsídios de doença que recebesse no caso de vir a reconhecer-se que o acidente ficou a dever-se a acto de terceiro pelo qual fosse indemnizada. 7. Foi sujeita a cirurgia ao olho direito, que consistiu em transplante da córnea, no dia 28 de Maio de 1991, ocorreu rejeição do enxerto e a autora ficou sem visão no olho direito, e apenas com uma percepção luminosa, e foi submetida a terceira cirurgia ao olho direito no dia 16 de Março de 1992, com novo transplante de córnea, existindo sempre a hipótese de nova rejeição. 8. Foi sujeita a anestesia nas referidas operações, estas situações e a perda de visão e risco futuro causam-lhe estados de nervosismo, ficou com um orifício pupilar deformado, situação e sequelas que lhe causam grande desgosto, sofreu dores nas cirurgias a que foi sujeita e sentiu-se e sente-se profundamente triste com a perda de visão. 9. Teve de se deslocar com frequência aos hospitais de São Francisco Xavier, Egas Moniz e Santo António dos Capuchos, em Lisboa, para ser sujeita a exames médicos. 10. Recuperou 60% da sua acuidade visual considerada normal do olho direito, inexistem garantias de que não volte a perdê-la, e ficou com uma incapacidade permanente de 9,75%, correspondente à perda parcial da acuidade visual do olho direito, dificuldade na visão de perto e fotofobia. 11. Durante o período anterior à estabilização da sua situação, a autora não pôde exercer qualquer actividade profissional em que tivesse de aplicar a vista, e durante o mesmo período deixou de poder fazer esforços físicos, bem como a lide doméstica e dar apoio aos seus dois filhos, de quatro e seis anos. 12. Teve de contratar uma mulher a dias para fazer esses trabalhos, o que lhe provocou um acréscimo de despesas de cerca de 40.000$00 mensais no primeiro e no segundo anos, e, nos últimos meses do período de baixa por doença, pagou à empregada doméstica 45.000$00 mensais. 13. Fez despesas com medicamentos, operações, internamentos, exames, consultas e tratamentos, despesas essas que, à data da propositura da acção, ainda não haviam terminado. 14. A autora fez despesas médicas e medicamentosas no valor de 174.011$50 e 307.176$00, respectivamente, esteve de baixa por doença entre 22 de Dezembro de 1990 e 7 de Maio de 1993, e recebeu da segurança social subsídios e, ao tempo do evento, recebia o ordenado ilíquido de cerca de 70.000$00 mensais. III A questão essência decidenda é a de saber a recorrida tem ou não o direito de exigir do recorrente o pagamento da quantia de € 17.696,74 e juros à taxa legal desde a data da sua citação. Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente, sem prejuízo de a solução de uma questão prejudicar a solução de outra ou de outras, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática: - lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos; - delimitação do objecto do recurso; - pressupostos da obrigação de indemnizar; - está ou não o recorrente sujeito à obrigação de indemnizar a recorrida? - deve ou não ser reduzida a indemnização lato sensu fixada à recorrida? - os juros de mora apenas são devidos pelo recorrente desde a data da sentença? - síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei. Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões. 1. Comecemos, dada a sucessão de leis no tempo durante a pendência da causa, pela determinação da lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos. Considerando que a presente acção foi intentada no dia 8 de Outubro de 1992, são-lhe aplicáveis as normas adjectivas anteriores às do Código de Processo Civil Revisto, que iniciou a sua vigência no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigo 16º do Decreto-Lei º 329-A/95, de 12 de Dezembro). Como a sentença foi proferida no tribunal da 1ª instância no dia 4 de Junho de 2004, aos recursos são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto (artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei º 329-A/95, de 12 de Dezembro). 2. Tendo em conta as conclusões de alegação do recorrente, importa delimitar negativamente o objecto do recurso. Com efeito, o âmbito da decisão do recurso é limitado pelas questões colocadas nas respectivas conclusões (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil). O recorrente só põe em causa no recurso a sua obrigação de indemnizar a recorrida, o excesso do montante da indemnização que à última foi fixada e o momento da contagem dos juros de mora. Não está, por isso, em causa no recurso, por um lado, o quadro das lesões e sequelas sofridas pela recorrida ou o nexo de causalidade adequada entre a acção de quem movimentou a bola que foi parar às bancadas e a omissão de quem não criou as condições para evitar esse resultado e aquelas lesões. E, por outro, também não está em causa no recurso o cálculo da indemnização por referência aos danos patrimoniais ou da compensação por referência aos danos não patrimoniais sofridos pela recorrida. Não nos pronunciaremos, por isso, sobre os referidos pressupostos da obrigação de indemnização. 3. Atentemos agora, em tanto quanto releva no caso vertente, os pressupostos da obrigação de indemnizar no quadro da responsabilidade civil extracontratual. A responsabilidade civil é uma modalidade da obrigação de indemnizar, ou seja, de eliminar o dano ou prejuízo reparável, que pode ser patrimonial ou não patrimonial, no primeiro caso se atinente a interesses avaliáveis em dinheiro e, no segundo, se referente a interesses não avaliáveis em dinheiro, como é o caso do corpo, da vida, da honra, da saúde e da beleza. Em regra, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual são o facto voluntário ilícito, a culpa lato sensu do seu autor, a afectação prejudicial da esfera jurídica de outrem e o nexo de causalidade adequada entre a última e o primeiro (artigos 483º, nº 1, 562º e 563º do Código Civil). O artigo 483º, n.º 1, do Código Civil utiliza os conceitos de ilicitude e de culpa com significado e função diversa, no último caso com a envolvência da censura ético-jurídica relativa à acção ou à omissão em causa, e, no primeiro, com o sentido de acção ou omissão consciente e livre, proibida pelo direito. Assim, o facto ilícito é o contrário ao direito, mas a antijuridicidade não é exclusivamente estruturada no plano objectivo, isto é, como acção ou omissão meramente contrária às normas jurídicas, mas também no plano subjectivo, ou seja, quando a acção ou omissão resulta de acto humano consciente e livre. Em suma, o facto ilícito é o comportamento de uma pessoa, por acção ou omissão, controlável pela vontade, consubstanciado na violação de um direito de outrem, designadamente um direito absoluto, por exemplo o direito à integridade física. A culpa lato sensu abrange as vertente do dolo e da culpa stricto sensu, traduzindo-se a primeira na intenção de realizar o comportamento ilícito que o agente do comportamento configurou, e a segunda na mera intenção de querer a causa do facto ilícito. A culpa stricto sensu ou censura ético-jurídica exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente lesante que, em face das circunstâncias especiais do caso, devia e podia agir de outro modo, ou seja, na omissão da diligência que, na espécie, lhe era exigível. Distingue-se no plano da culpa stricto sensu entre a culpa consciente, por um lado, em que o agente prevê a produção do facto ilícito, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar, e a culpa inconsciente, por outro, em que o agente não chega, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade da produção do evento danoso, mas podendo e devendo prevê-lo se usasse da diligência devida. No nosso ordenamento jurídico, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, isto é, de uma pessoa normal, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil), A expressão bom pai de família refere-se ao homem de diligência normal, e a expressão circunstâncias de cada caso tem a ver com o que ele faria no quadro da situação circunstancial envolvente. A existência de prejuízos reparáveis, entre os quais se demarcam os patrimoniais e os não patrimoniais, a que acima já se fez referência, constitui o terceiro pressuposto da referida obrigação de indemnizar. No que concerne aos danos patrimoniais distingue-se entre o dano emergente e o lucro cessante, o primeiro como diminuição efectiva do património, e o segundo como o seu não aumento em razão da frustração de um ganho. Não releva para a referida classificação o momento em que o prejuízo ocorre, porque o dano emergente é susceptível de se configurar como futuro e o lucro cessante é configurável como actual, certo que o último pressupõe ser o lesado, ao tempo da lesão, titular de uma situação jurídica que, a manter-se, lhe daria direito a determinado ganho. Finalmente, a obrigação de indemnização depende de que entre o acto ilícito ou antijurídico e o prejuízo ocorra um nexo de causalidade adequada (artigos 562º e 563º do Código Civil). Decorre, assim, dos referidos normativos que a obrigação de indemnizar só abrange os danos que, tendo resultado da lesão, dela teriam resultado em termos de um juízo de probabilidade ex post. 4. Vejamos agora se o recorrente é ou não sujeito da obrigação de indemnizar a recorrida. Numa das jogadas de um elemento da equipa adversária do recorrente, a bola movimentada pelo respectivo stick, em ricochete, seguiu para a bancada e lesionou a recorrida no olho direito. Com a referida acção, o referido jogador originou à recorrida lesão grave que a obrigou a internamento hospitalar, a intervenções cirúrgicas, a interrupção laboral e a sujeitou a dores, sofrimento e incapacidade permanente. A Constituição estabelece, além do mais que aqui não releva, ser a integridade física e moral das pessoas inviolável (artigo 25º, nº 1). Em conformidade com o referido normativo constitucional, a lei ordinária reconhece e consagra a existência de um direito geral de personalidade, que inclui o direito à inviolabilidade física (artigo 70º, n.º 1, do Código Civil). No caso vertente, estamos aparentemente perante um comportamento do referido jogador envolvido de ilicitude formal e material, por se traduzir na infracção do artigo 70º, n.º 1, do Código Civil e na afectação negativa do direito legalmente protegido de integridade física da recorrida. Importa agora estabelecer a conexão entre a acção do mencionado jogador de hóquei patins e acção e ou omissão do recorrente, como pessoa colectiva, ou seja, dos seus órgãos. O campo de jogos, ou seja o ringue de patinagem em que ocorria o jogo entre o recorrente e a Associação Académica da Amadora, era da titularidade do primeiro, que o utilizava em jogos da modalidade de hóquei em patins com outras equipas. Quem no seu interesse, de natureza económica ou outra, organiza algum evento, designadamente desportivo, em que as pessoas assistem, fica naturalmente obrigado a garantir-lhes a necessária segurança, devendo, para o efeito, tomar as medidas de precaução adequadas, segundo o circunstancialismo envolvente. A referida obrigação de segurança recai, no caso espécie, sobre o recorrente, porque, como clube visitado, foi ele o organizador directo do jogo. E se omitisse as referidas precauções, que devesse implementar, sujeitava-se à obrigação de reparar os danos ou lesões de outrem que dessa omissão tivessem resultado (artigo 486º do Código Civil). É certo que os regulamentos desportivos da modalidade, que estavam estabelecidos na altura do jogo de hóquei em patins em causa pela Federação Portuguesa de Patinagem só exigia a colocação de uma rede protectora com a altura de quatro metros ao longo de duas tabelas de fundo da pista, e não em toda a linha das bancadas. Com efeito, embora à data dos factos já estivesse publicado o Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, que tornava obrigatória a vedação nos recintos desportivos em termos a regulamentar, ainda não havia então sido publicado o conexo regulamento, o que só viria a acontecer por via da Portaria nº 371/91, de 30 de Abril, ou seja, seis meses e dez dias depois do evento em análise. Em consequência, independentemente de a referida Portaria visar ou não a protecção de quem assiste aos jogos das bancadas das bolas que ressaltem dos campos de jogos, o regime que dela decorre é inaplicável ao caso em análise (artigo 12º, nº 1, do Código Civil). Mas isso não significa que ao recorrente não fosse exigida mais segurança do que aquela que era pressuposta pelo aludido regulamento se fosse previsível que ela não era suficiente para garantir a segurança das pessoas que aos jogos assistiam das bancadas. Sabe-se que o jogo de hóquei patins era desenvolvido com uma bola com o peso de 155 gramas e circunferência de 23 centímetros e que os sticks usados pelos jogadores eram de madeira, plástico ou material semelhante, e que as bolas atingem elevadas velocidades. Consequentemente, era razoavelmente previsível para os órgãos do recorrente que as bolas impulsionadas pelos jogadores, por exemplo as dirigidas às balizas de ambos os lados do ringue, por efeito do choque com algum obstáculo, por exemplo as traves das balizas, e do subsequente ricochete, poderiam seguir a trajectória lateral e atingir as bancadas por virtude de no seu enfiamento inexistirem redes de protecção. Por isso, era razoavelmente previsível para os órgãos do recorrente que, sem a protecção com rede da própria zona das bancadas, as bolas podiam seguir na direcção delas e atingir as pessoas que assistiam aos jogos. Conforme resulta do exposto, a responsabilidade civil extracontratual resulta da prática de um acto ilícito ou seja, da violação de um dever de origem diversa da obrigação. Mas há casos de impossibilidade de cumprimento do referido dever, a qual é susceptível de derivar de caso fortuito ou de força maior. A doutrina tem considerado que o caso fortuito é, grosso modo, o evento não previsível, que poderia ter sido evitado se tivesse sido previsto, e que o caso de força é o evento não previsível e que, se fosse previsto, não poderia ser evitado. A lei refere-se, por exemplo, por um lado, em matéria de responsabilidade civil por acidentes de viação, à exclusão da responsabilidade pelo risco, além do mais, quando eles resultem de caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505º do Código Civil). E, por outro, a propósito dos danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás, caso em que a lei exclui a reparação de danos devidos a causa de força maior, que define como a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa (artigo 509º, nº 2, do Código Civil). E a ideia que ressalta das referidas normas no que concerne à causa de força maior é a de que deve ser externa ao funcionamento ou utilização da coisa que desencadeou a lesão lato sensu. Nessa linha, no plano da responsabilidade civil, o caso fortuito não pode apenas ser visionado em si mesmo, porque o deve também ser na perspectiva dos seus efeitos, no confronto do dever de diligência do obrigado a evitar a lesão ou dano de outrem. Assim, não se pode considerar caso fortuito para o efeito de desresponsabilização do obrigado o evento que por ele podia ser evitado num quadro de previsão e diligência normal. Ora, tendo em conta o referido circunstancialismo, a conclusão é no sentido de que a lesão ocular da recorrida não resultou de caso fortuito, mas de omissão de medidas de segurança por parte dos órgãos do recorrente, em termos de culpa inconsciente. O recorrente está, por isso, constituída e na obrigação de indemnizar a recorrida (artigos 483º, nº 1, 486º do Código Civil). 5. Atentemos agora se deve ou não ser reduzida a indemnização e a compensação fixadas à recorrida. A este propósito, para a hipótese de se não considerar a exclusão da sua responsabilidade civil indemnizatória, o recorrente limitou-se a afirmar a benevolência das instâncias na fixação da indemnização, mas que não obstante ainda ser elevada, e que devia baixar-se de harmonia com o disposto no artigo 494º do Código Civil, por não ter fonte de rendimentos, subsistir de pequenas cotizações e de dádivas de alguns sócios, acrescentando que o seu pagamento implicaria o encerramento do clube. Quanto a este ponto, expressa a lei que, quando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (artigo 494º do Código Civil). No que concerne à culpa, atento o circunstancialismo da omissão de medidas de segurança dos órgãos do recorrente, é de considerar que ela é leve. Quanto à situação económica do recorrente, os factos provados não a revelam, pelo que não releva neste ponto a argumentação que ele desenvolveu neste ponto. Tendo em conta os factos provados, e a redução do valor indemnizatório que corresponderia aos factos provados na proporção de três quintos, a conclusão é no sentido de que as instâncias cumpriram o disposto no artigo 494º do Código Civil, além do mais no que concerne à utilização de juízos de equidade. Por isso, inexiste fundamento legal para a redução do montante indemnizatório e compensatório que as instâncias fixaram para o caso vertente. 6. Vejamos, ora, se os juros de mora apenas são devidos pelo recorrente apenas desde a data da sentença. Afirmou o recorrente que os juros de mora devem ser calculados desde a data da sentença proferida no tribunal da 1ª instância, porque a indemnização e a compensação foram calculadas na data mais recente que podia ser atendida pelo tribunal. Todavia, na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, confirmada pelo tribunal da Relação, ficou expresso que os valores eram fixados com referência à data da citação do réu, e, com base no acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio, não serem os juros de mora cumuláveis com a actualização decorrente da perda do valor da moeda. Como na sentença proferida no tribunal da 1ª instância se invocou o mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência em abono do decidido, importa que se analise o seu conteúdo na parte que releva no caso em análise. No recurso de revista ampliada em foi preferido o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, na sequência de no acórdão da Relação se haver fixado a compensação por danos não patrimoniais actualizada à data da sentença, os recorrentes alegaram que sobre o montante global da indemnização devia incidir a actualização em função dos valores da inflação entre a data do acidente e a da propositura da acção e que, a partir da data da citação e até ao pagamento, deviam incidir juros moratórios sobre o montante global da indemnização. Nesse quadro de argumentação é que foi votado maioritariamente o referido acórdão de uniformização de jurisprudência, segundo o qual, sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tenha sido objecto de cálculo, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3, interpretado restritivamente, e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação. Resulta do referido acórdão de uniformização de jurisprudência, tendo em conta o seu conteúdo e as alegações de recurso sobre as quais se pronunciou, a ideia de uma decisão actualizadora da indemnização em razão da inflação no período compreendido entre ela e o momento do evento causador do dano, sob a invocação do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, que consagra o critério derivado do confronto da efectiva situação patrimonial do lesado na data mais recente atendível pelo tribunal e a que teria nessa data se não tivesse ocorrido o dano. A prolação dessa decisão actualizadora, tendo em conta a motivação do referido acórdão de uniformização de jurisprudência, tem que ter alguma expressão nesse sentido, designadamente a referência à utilização no cálculo do critério chamado da diferença na esfera jurídico-patrimonial constante no artigo 566º, n.º 2, do Código Civil e a consideração no cômputo da indemnização ou da compensação da desvalorização do valor da moeda. A motivação expressa no mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência, que não temos aqui de sindicar, comporta, pois, a solução de condenação do responsável no pagamento de juros de mora desde a data da citação no caso de a indemnização ou a compensação haver sido fixada por referência a esse momento. Tendo em linha que na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, confirmada pela Relação, se declarou que os valores eram fixados com referência à data da citação do recorrente, não pode este Tribunal pôr em causa essa declaração. Consequentemente, tendo em conta o conteúdo do referido acórdão de uniformização de jurisprudência e o conteúdo neste ponto da sentença recorrida, confirmado pela Relação, também não ocorre fundamento legal para alterar neste ponto o acórdão recorrido. 7. Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei. Não ocorre, na espécie, o caso fortuito invocado pelo recorrente e ele está sujeito à obrigação de indemnizar a recorrida relativamente aos danos patrimoniais e não patrimonial por ela sofridos. Face aos factos provados, não obstante a culpa leve dos órgãos do recorrente, inexiste fundamento legal para a redução, com base na equidade, da indemnização lato sensu abaixo dos dois quintos fixados pelas instâncias. Tendo em conta que a Relação confirmou a declaração da 1ª instância no sentido de haver fixado a indemnização lato sensu por referência ao momento da citação do recorrente e o conteúdo do acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio, deve manter-se o segmento decisório que fixa o débito de juros moratórios desde aquele momento. Vencido no recurso, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). IV Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas. Lisboa, 29 de Novembro de 2005. Salvador da Costa, Ferreira de Sousa, Armindo Luís. |