Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3805
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE PRESCRITO
Nº do Documento: SJ200712040038051
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Um cheque é título executivo cambiário quando apresentado a pagamento no prazo de oito dias a partir do dia nele indicado como data de emissão.
II. Ocorre a prescrição do cheque como título executivo cambiário se a acção executiva não vier a ser instaurada no prazo de seis meses após o termo do prazo para a sua apresentação.
III. Um cheque pode no entanto continuar a poder servir de título executivo, mas agora como mero quirógrafo, se nele se tiver feito constar a relação causal ou subjacente ou a petição executiva indicar essa relação causal.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA intentou execução para pagamento de quantia certa
contra
2. BB e CC, Lda.
- destinado à cobrança de € 20.620,45 (correspondentes a €17.600,00 de capital e €3.020,00 de juros) apresentando como título executivo, o cheque certificado a fls. 140/141.

O Executado BB deduziu oposição à execução, nos termos do artigo 813º do Código de Processo Civil (CPC), invocando ter sido rasurada no cheque pelo Exequente a data de emissão (estando emendado o último algarismo do ano, sendo que, face à sua data real - que refere ser a de 2002.12.20 ( e não 2003.12.20)- , a apresentação a pagamento em 2003.12.29 ocorreu para além do prazo do artigo 29º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque (LURC) (1) , pelo que o cheque estaria prescrito.
Acrescentou ainda que tal cheque nem como documento particular assinado pelo devedor poderia valer como título executivo, já que na petição executiva não vinha indicado o negócio causal.
Na contestação o Exequente negou ter rasurado o cheque, reafirmando “[…] que recebeu o cheque do Executado tal como dela consta, já com o último algarismo do ano emendado de 2002 para 2003, e que a obrigação exigida e constante do mesmo é a obrigação cartular” (fls. 22), acrescentando, porém, que, mesmo que assim não fosse, valeria tal cheque como documento particular, nos termos do artigo 46º, nº 1, alínea c) do CPC.

Saneado, condensado e instruído o processo seguiu ele para julgamento, vindo a ser proferida Sentença que julgou procedente os embargos, declarando extinta a execução por ausência de título executivo.
Para o efeito considerou inexequível o cheque, quer como título cambiário, quer como documento particular revestido das características indicadas no artigo 46º, nº 1, alínea c) do CPC.

Inconformado com o assim decidido, interpôs o Exequente a fls. 100 recurso de apelação (admitido a fls. 102),

Os Executados/Apelados não apresentaram contra-alegações.

A Relação de Coimbra veio a julgar improcedente a apelação, confirmando a Sentença recorrida.

O Exequente continuou inconformado, vindo a pedir Revista.

O recurso foi admitido
Apresentou alegações para este Tribunal.
Não houve contra-alegações.

………………………

II. Âmbito do recurso
Tendo em conta o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC, são as conclusões apresentadas pelo recorrente nas alegações de recurso a sede própria para o recorrente definir o âmbito do recurso, concretizando as questões que pretende ver tratadas e condensando nelas as suas razões ou argumentos.
Daí que tenha relevância especial deixar aqui transcritas tais conclusões:

1ª - Está já pacificamente aceite que o legislador, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 329-A/95 de 12/12, ao alargar o leque dos documentos que poderiam constituir títulos executivos, não pretendeu deles afastar os cheques, nem ali estabeleceu qualquer ressalva para o caso de, apresentado a pagamento um cheque para além do prazo previsto na Lei Uniforme dos Cheques, este não possa valer como título executivo - vg. Ac. da RL, de 22.04.1999, in BMJ, 486°,359; Ac. da RP, de 29.04.1999, in BMJ, 486°, 365.
2.ª O cheque dado à execução como título executivo, é documento particular, que está assinado pela devedora (ou seja, por quem legalmente a representa) e contém em si o reconhecimento de uma dívida pecuniária de montante determinado (o que também não é negado pelo Executado), daí que o cheque em questão é considerado à luz da lei título executivo.
3ª - Os únicos requisitos que a Lei exige para que um documento particular possa valer como título executivo são apenas os que constam do preceito legal em causa (46°, n.º1, al. c) do Cód. Proc. Civil) e mais nenhum - e esses, indubitavelmente (e voltando ao caso dos autos) resultam da simples emissão de um cheque - Cfr. Ac. do TRC, proc. 754/02, de 30.04.02; Ac. do STJ, proc. 0481457, de 20.05.04; Ac. do TRC, proc. 1570/04, de 22.06.04; Ac. do STJ, proc. 058270, de 03.03.05; Ac. do STJ, proc. 0484692, de 03.03.05, todos pesquisado em www.dgsi.pt
4ª - Na sua função normal de meio de pagamento (embora diferido), a emissão de um cheque configura o reconhecimento da obrigação de pagamento, que, a par da assinatura do devedor, a al. c) do art°. 46° do Cód. Proc. Civil estabelece como condição de exequibilidade dos documentos particulares - daí que os cheques que, por não observados os art°s 29° e 40° da LUC ou prescrita a acção cambiária, não possam produzir efeitos cambiários, tendo ficado sem valor enquanto títulos de crédito, possam ser invocados como quirógrafos, isto é, como títulos particulares da dívida que lhes deu origem.
5.ª Prescrita a acção cambiária correspondente, e, por conseguinte, sem a especial protecção que a Lei concede a esses títulos de crédito, nem por isso os cheques deixam de constituir quirógrafos das dívidas tituladas por esse modo, isto é, de ser documentos particulares, dotados, nos termos dos art°s 373° a 376° Cód. Civil, de valor probatório contra o seu signatário, demonstrativo da obrigação de pagamento do montante determinado dele constante - vg. Neste sentido, Ac. do ST J, de 19.12.2006.
6ª - Não há sequer necessidade, mesmo no caso do título de crédito não mencionar a causa da relação jurídica subjacente, de o exequente - ... - alegar tal causa no requerimento executivo, até porque, nos termos do art° 458° do C. Civil, o credor está dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário (a fazer pelo devedor). A eventual inexistência da obrigação causal poderá ser fundamento de oposição à execução, mas não toma, em nossa opinião, o título inexequível - Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.06.2007, no âmbito da Apelação 22/06.8 TSSVV - A C.1 da 1.ª Secção:
7ª - Não cabia ao Exequente alegar a relação subjacente à emissão dos cheques, relação essa cuja existência a simples emissão do cheque faz presumir. Ao invés, era ao Executado que cabia invocar factos que permitissem demonstrar a ausência de qualquer relação fundamental, o que este, manifestamente, não fez ... E também nada resulta dos autos, nem sequer foi alegado pelo Executado, que invalidasse ou afaste a presunção de dívida imanente ao cheque dado à execução.
8a - Ao decidir nos termos da douta Sentença em recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra violou o disposto no art°. 46°, n.º 1 al. c) do Cód. Proc. Civil, do qual fez uma incorrecta interpretação e aplicação.”

Da leitura destas conclusões vemos que há apenas uma questão a tratar:
Saber se o cheque apresentado a pagamento tem força executiva

III. Fundamentação

III-A) Os factos

Foram considerados como assentes e/ou provados nas instâncias os factos seguintes:
a) O Exequente apresentou à execução o cheque que consta de fls. 15 daqueles autos, no valor de € 17.600,00, em numerário e por extenso, à ordem do Exequente e subscrito pelo Executado, dele constando como data de emissão o dia 20 de Dezembro de 2003, sendo que este último dígito foi escrito no mesmo local onde antes constava o n.º 2.
b) Apresentado a pagamento em 2003.12.29 aquele cheque foi devolvido com a declaração de cheque revogado-extravio.
c) O cheque aludido em a) foi entregue à Exequente com a data de 2002.12.20.

III-B) Análise do recurso:

Refere-nos o art. 46.º-1-d) do CPC. que à execução podem servir de base os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
A LUC (Leio Uniforme relativa ao Cheque) atribuiu força executiva ao cheque quando este seja apresentado a pagamento no prazo de oito dias, começando a contar-se esse prazo a partir do dia indicado no cheque como data de emissão. (art. 29.º - I e IV), devendo toda a acção que venha a ser instaurada vir a ocorrer no prazo de seis meses contados do termo do prazo para a sua apresentação, sob pena de prescrição (art. 52.º)
Tendo em conta que foi considerado provado que o cheque foi emitido em 2002.12.20 e só apresentado a pagamento em 2003.12.29, dúvidas não podem restar, portanto, que estamos na presença de um cheque prescrito.
Um cheque prescrito deixa de valer como título cambiário, perdendo as características que a autonomia, abstracção e literalidade lhe conferiam..
Falece assim qualquer razão a argumentação de que possa ainda valer como título executivo ao abrigo do disposto no art. 46.º-1-d) do CPC.

E também não pode valer, in casu, a argumentação de que possa ele constituir título executivo ao abrigo do art. 46.º-1-c) do CPC, ou seja, como mero quirógrafo, documento assinado pelo devedor, que importe o reconhecimento de constituição de obrigações pecuniárias (…) porque perdendo aquelas características dos títulos cambiários – autonomia, literalidade, abstracção - nada no título indica a relação fundamental ou causal da emissão do próprio cheque (como documento), por forma que o executado possa conhecer essa causa em ordem a uma conveniente defesa, sendo certo ainda, por outro lado, que o Exequente não fez qualquer menção no pedido executivo a esse respeito.
Ora, estando-se nesta hipótese fora da relação cambiária – já que o cheque prescrito deixou de valer como tal – e entrando-se na valoração dos documentos assinados pelo devedor para valerem como títulos executivos onde esteja constituída ou reconhecida uma obrigação pecuniária, tem o apresentante do referido cheque/documento de indicar essa causa na petição, no caso de ela não constar dele, sob pena de o demandado executado correr o risco de não saber ou não poder defender-se convenientemente. (2)
Mesmo assim, será sempre necessário ter em atenção que a simples menção da causa ou fundamento na petição não é suficiente se para a respectiva validade da obrigação for exigida forma especial, isto é, se o negócio em causa tiver natureza formal, o que se compreende perfeitamente, porque a observância da forma especial é condição sine qua non da validade do negócio.

Não deixamos de reconhecer que a posição aqui sustentada é o resultado da evolução de sucessivas tomadas de posição jurisprudenciais a este respeito, após a reforma de 1995 (3).
A tese do recorrente, no entanto, corresponde ainda à posição primitiva, recolhendo hoje muito poucos adeptos, estando por isso praticamente abandonada.
Ao invés, a posição sustentada nas instâncias é a apresentada hoje pela doutrina como sendo aquela que deve seguir-se, revelando-se por isso como a mais consistente (4)
Os Acórdãos mais recentes deste Tribunal têm vindo nessa linha, confirmando essa posição como a mais sustentável face à “ratio legis” e aos interesses em conflito:
Manteve os cheques, letras, livranças e extracto de facturas como títulos executivos nos precisos termos em que as respectivas leis reguladoras lhos continuavam a permitir; e alargou-lhes a validade executiva como documento quirógrafo desde que nele invocada ou na petição executiva a relação causal, a menos que se para a relação causal fosse exigida qualquer formalidade especial ali não observada – o que de resto é uma observação também válida para os outros documentos, estando nessa situação em absoluta igualdade com os outros documentos em que se constituam ou reconheçam obrigações pecuniárias .
Em face do exposto, constatamos que foi feita correcta interpretação e aplicação do Direito, nenhuma censura tendo a dirigir ao Acórdão recorrido..
A Revista terá de ser negada.
………………………..

IV. Decisão

Na negação da Revista confirma-se o douto Acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2007

Mário Cruz (Relator)
Garcia Calejo
Faria Antunes
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(1) “O cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias”.
(2) A indicação da causa ou relação fundamental não pode ter já lugar na contestação à oposição dos embargos porque esse tipo de processo não admite mais articulados.
(3) Cfr. AC do STJ 06A736 , de 2006.04.04, onde está muito bem explicada essa evolução.(João Camilo, Fernandes Magalhães e Azevedo Ramos) .
(4) Cfr. José Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva -à luz do Cód. Rev., 2.ª ed., pg. 54; Miguel Teixeira de Sousa, “A Acção Executiva Singular”, pg. 69; Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução, 3.ª ed., revista e actualizada, pg.33, enunciados no Ac. deste Tribunal 06B163, de 2006.03.02 (Pereira da Silva, Rodrigues dos Santos e Moitinho de Almeida.).