Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3940
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO DE CAUÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
DECLARAÇÃO RESOLUTIVA
Nº do Documento: SJ20090212039401
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Um contrato de locação financeira, consiste num acordo pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta e que a mesma pode comprar, total ou parcialmente, num prazo convencionado, mediante um preço determinado ou determinável, nos termos do próprio contrato.

Um seguro caução visa proteger o credor contra o risco de incumprimento por parte do devedor. O contrato de seguro firmado nos autos, visou garantir as rendas derivadas do contrato de locação financeira celebrado entre a locadora (empresa financeira) e a locatária. Ou seja, a R. seguradora, nos termos do seguro-caução, garantiu à locadora o pagamento das importâncias que esta deveria receber da locatária.

O contrato de locação financeira em causa não é nulo, pese embora o art. 2º nº 2 do Dec-Lei 171/79 de 6/6, vigente à data da celebração do contrato, impusesse que a locação financeira de coisa móveis deveria respeitar sempre a bens de equipamentos. É que não se provou que a coisa em causa fosse um bem de consumo (não fosse um bem de equipamento), sendo certo do que se trata é da validade de contrato de locação financeira celebrado entre a locadora e a locatária e o art. 22º al. d) do Dec-Lei 171/79 permite ao locatário, desde que nisso consinta expressamente o locador transmitir, total ou parcialmente, o seu direito, o que sucedeu no caso, como vê do documento que titula o contrato de locação.

Uma declaração resolutiva pode fazer-se mediante declaração à outra parte, como resulta do art. 436º do C.Civil. A declaração em causa nos autos deve ser entendida como resolutiva do contrato, porque ela própria refere o intuito resolutivo, estabelecendo o motivo e condições da resolução.

A resolução do contrato por parte da Seguradora foi ilegítima, dado que, nos termos da apólice do seguro e até de harmonia com o Dec-Lei 183/88 de 24/5, não tinha razões válidas para exigir o pretendido sobreprémio porque os factos provados não apoiam o invocado agravamento do risco coberto pelo contrato.
Como foi ilícita a conduta da R. Seguradora a sua condenação com base na responsabilidade civil derivada do incumprimento da obrigação, foi correcta.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- Relatório:
1-1- No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, AA – Sociedade Portuguesa de Locação Financeira, SA, pessoa colectiva n.º 5000000000, com sede na Rua ...., Torre 0, 00.º Andar, 1000 Lisboa, propõe em 02/11/1995, esta acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra BB – Comércio de Automóveis, SA, pessoa colectiva n.º 500000000, com sede na Rua da Palmeira, n.º 20, 1200 Lisboa, Companhia de SegurosCC, SA, pessoa colectiva n.º 5000000, com sede na Rua ...., Torre 0, 00.º – A, Amoreiras, 1000 Lisboa e LM, residente na Rua ..., n.º 00, 5.º Esquerdo, 1000 Lisboa, pedindo (pedido principal):
A) Que sejam a 1ª e a 2ª RR. condenadas a pagar à A. a quantia de Esc. 581.840$00, com a seguinte discriminação:
a) Esc. 389.229$00, valor global das rendas vencidas e não pagas, e respectivo IVA, até à resolução do contrato pela A.;
b) Esc. 63.357$00, valor dos juros de mora vencidos até 30.10.95, sobre o capital em dívida mencionado na alínea anterior, a que acrescerão os vincendos, a calcular à mesma taxa, até integral pagamento;
c) Esc. 120.795$00, valor correspondente a uma renda vincenda;
d) Esc. 8.459$00, valor dos juros de mora vencidos até 30.10.95, sobre o capital em dívida mencionado na alínea anterior, a que acrescerão os vincendos até integral pagamento.
B) Que sejam a 1ª R. e o 3º R. condenados a restituir à A. o veículo locado.
E caso assim não se entenda, formulou o seguinte pedido subsidiário:
A) Que sejam a 1ª e a 2ª RR. condenadas a pagar à A. a quantia de Esc. 487.857$00, com a seguinte discriminação:
a) Esc. 389.229$00, valor global das rendas vencidas e não pagas, e respectivo IVA, até à resolução do contrato pela A.;
b) Esc. 63.357$00, valor dos juros de mora vencidos até 30.10.95, sobre o capital em dívida mencionado na alínea anterior, a que acrescerão os vincendos, a calcular à mesma taxa, até integral pagamento;
c) Esc. 32.887$00, valor da indemnização calculada nos termos do artigo 15.º, n.º 2 das "Condições Gerais" do contrato de locação financeira, que corresponde a 20% da soma das rendas vincendas e do valor residual do veículo locado;
d) Esc. 2.384$00, valor dos juros de mora vencidos até 30.10.95, sobre o capital em dívida mencionado na alínea anterior, a que acrescerão os vincendos até integral pagamento;
B) Que sejam a 1ª R. e o 3º R. condenados a restituir à A. o veículo locado;
Fundamenta estes pedidos, em síntese, dizendo que é uma instituição de crédito que tem por objecto a actividade de locação financeira, sendo que no exercício desta actividade, deu em locação financeira à 1ª R. (BB) o veículo de que identifica. Esta R. obrigou-se a pagar-lhe rendas trimestrais durante o prazo do contrato. Sucede que apesar das suas repetidas insistências, a 1.ª R. não pagou, nos respectivos vencimentos ou posteriormente, as rendas que indica. Não tendo logrado cobrar junto da 1ª R. os referidos créditos, viu-se forçada a resolver o contrato de locação financeira, mediante envio à 1.ª Ré de uma carta registada com aviso de recepção. Na carta de resolução exigiu à R. o pagamento das rendas vencidas e respectivos juros de mora e ainda a indemnização devida. Nos termos da alínea h) das "Condições Especiais" do contrato de locação financeira, a 1ª R. obrigou-se a apresentar, em simultâneo com a sua formalização, um seguro-caução cuja beneficiária seria ela, A., e válido até ao fim do período de vigência do contrato de locação financeira, tendo feito depender a celebração deste e de outros contratos de locação financeira, da prestação de uma garantia, consistindo num seguro-caução de uma companhia de seguros aceite por ela, seguro-caução que, na realidade, foi efectuado pela R. Seguradora, sendo que o beneficiário de tal seguro-caução é a A. e o tomador do seguro a R. BB. Nos termos do artigo 11º das "Condições Gerais" da apólice de seguro-caução directa, a 2ª R obrigou-se a indemnizar a A., no prazo de 45 dias a contar da data de qualquer reclamação. A A. participou o sinistro à 2ª R. em 06.06.95, por meio de carta registada com aviso de recepção, na qual também lhe comunicou que, por motivo de não pagamento por parte da 1ª R., das rendas da locação financeira do contrato, este havia sido resolvido em 05.06.95. Posteriormente a A. interpelou e reclamou da 2ª R. o pagamento da indemnização devida de Esc. 510.024$00, nos termos da apólice de seguro-caução, por meio de carta registada com aviso de recepção, datada de 16.06.95, não tendo a referida indemnização sido paga pela 2ª R. até à presente data. Na carta de resolução do contrato de locação financeira, a A. exigiu também à 1ª R. a restituição do veículo locado (da qual era proprietária), facto que até à presente data não se verificou, apesar de a isso estar contratualmente obrigada. A A. tem conhecimento de que o veículo locado se encontra na posse do 3º R. LM. A recusa da 1ª R. em lhe restituir o veículo locado levou a A. a requerer contra aquela e o 3º R. providência cautelar de Entrega Judicial e Cancelamento de Registo, já decretada.
Contestou a R. BB, alegando, em síntese, a existência do aludido contrato de locação financeira e a falta de pagamento das rendas em causa por dificuldades financeiras. Acrescenta que o contrato foi celebrado com circunstâncias complementares e em especial a exigência por parte da A. da apresentação de uma caução que assegurasse o cumprimento da obrigação de pagamento da totalidade das rendas vencidas e não pagas pela 1ª R., bem como as vincendas, caução esta que foi efectivamente prestada mediante "seguro caução" celebrado entre a 1ª e a 2ª RR. a favor da A.. Em face desta situação, deverá a 2ª R. assumir o pagamento resultante do incumprimento dela, 1ª R.. A A. ao resolver o contrato, está em manifesto abuso de direito, dada a existência do seguro-caução, não podendo a A. vir basear o seu pedido na cláusula penal por o ter resolvido.
Contestou também a R. Seguradora, referindo, também em síntese, que foi contactada pela BB, para celebrar um seguro de caução que garantisse as prestações a pagar pelos adquirentes dos veículos em regime de ALD (que incluiria um contrato de aluguer e um de promessa de compra e venda), garantia que esta endossaria às companhias de locação financeira que entravam no negócio, o que implicaria que o seu risco estaria repartido por diversos agentes económicos e não apenas pela mesma BB. Na sequência das negociações, foram celebrados protocolos entre a CC e a BB, que a A. bem conhece, no sentido de definir as relações entre ambas no tocante à emissão dos seguros de caução destinados a garantir o pagamento a esta última, "dos veículos vendidos por esta em aluguer de longa duração", nunca tendo estado em causa a garantia das obrigações da BB para com as sociedades de leasing a quem adquiria (neste regime) os veículos. Nestas circunstâncias, conclui esta R., que o contrato entre a A. e a BB é nulo (por fraude à lei, ao permitir a celebração de contratos de leasing com particulares relativos a automóveis quando tal não era ainda admitido pela lei), e que, em momento algum, a A. ou a BB alegam o incumprimento do locatário do veículo no pagamento das rendas, devendo ser a acção, no que a ela diz respeito, considerada improcedente. Mais alega que à data da ocorrência do sinistro a apólice em causa não se encontrava em vigor por ter sido resolvido o contrato de seguro e apólice cancelada em 06.09.1994 por falta de pagamento do sobreprémio de Esc. 37.800$00 devido ao agravamento do risco resultante da anulação da apólice emitida, proposto à A. e à 1ª Ré, por carta datada de 29 de Agosto de 1994, para pagamento, no prazo de oito dias, sob condição de resolução do contrato sem mais aviso, não tendo estas pago o sobreprémio.
Conclui deduzindo reconvenção, pedindo a condenação da A. a pagar-lhe uma indemnização.
O 3º R., LM foi citado editalmente, não tendo deduzido oposição.
A A. apresentou resposta à contestação apresentada pelas RR. respondendo à questão da litigância de má fé levantada pela primeira, concluindo como na petição inicial.
Face ao pedido reconvencional deduzido pela 2ª R., foi determinado que os autos seguissem a forma ordinária.
Por despacho de fls. 357 foi a instância julgada extinta relativamente à 1ª R. BB, no que se refere aos pedidos de natureza pecuniária contra ela formulados, por inutilidade superveniente da lide, por ter sido declarada falida, tendo-se mantido o pedido de entrega da viatura automóvel.
O processo seguiu os seus regulares termos com a elaboração do despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se procedeu à audiência de discussão e julgamento, se respondeu à matéria de facto controvertida e se proferiu a sentença.
Nesta julgou-se a acção totalmente improcedente por não provada e absolveu-se os RR. dos pedidos contra eles formulados pela A..
Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo-se aí, por acórdão de 10-4-2008, julgado procedente o recurso e, consequentemente, julgou-se procedente por provada a acção e, nessa medida, condenou-se a R. Companhia de Seguros Inter Atlântico, SA no seguinte:
a) Esc. 510.024$00, valor global das rendas vencidas e não pagas, e respectivo IVA, até à resolução do contrato pela A.;
b) Juros de mora vencidos e vincendos, sobre o capital em dívida mencionado na alínea anterior, às taxas legais que se foram sucedendo no tempo, até integral pagamento.
Mais se julgou improcedente por não provado o pedido reconvencional formulado pela R. Seguradora, dele absolvendo o A..
1-2- Não se conformando com este acórdão, dele recorreu a R. Seguradora para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A questão essencial dos autos prende-se com a interpretação da cláusula sobre objecto da garantia inserta nas condições particulares do seguro de caução directa a que se refere a apólice nº 1000000000
2ª- Da cláusula consta que a garantia respeita a rendas referentes ao veiculo Honda XRV - LX-00-00 - mas as partes não caracterizaram se se trata das rendas devidas pela BB à A., por força do contrato de locação financeira, ou de rendas devidas pelo locatário final, em resultado do contrato de aluguer de longa duração.
3ª- É certo que o tribunal considerou o seguro caução garantia de todas as rendas do contrato de locação financeira.
4ª- Mas esse entendimento não tem no texto das cláusulas um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso.
5ª- A consequência do descrito condicionalismo deve ser a nulidade do negócio em sede interpretativa (Manuel Andrade, Teoria Geral, 1960, pág. 315).
6ª- Por outro lado, estabeleceu-se um contrato-quadro (protocolos juntos aos autos) que os seguros de caução se destinavam a garantir o pagamento das rendas das rendas do contrato de aluguer de longa duração, ou seja, as devidas pelos locatários finais à BB, em consequência dos contratos de ALD.
7ª- Ora, em caso de lacuna no contrato de aplicação (apólice de seguro), a mesma deverá ser preenchida com o recurso às normas constantes do contrato-quadro (no caso concreto, o protocolo em vigor à data da emissão da apólice).
8ª- Para além do que o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro, pelo que ao beneficiário apenas aproveita aquilo que foi contratado entre outorgantes do contrato de seguro, ou seja, entre a seguradora e o tomador do seguro.
9ª- Também a carta-proposta de seguro de caução e a proposta de adesão demonstram com clareza qual a garantia prestada pela Seguradora.
10ª- Não se mostra, pois, que a apólice de seguro dos autos tivesse garantido quaisquer obrigações da BB para com a A., emergentes do contrato de locação financeira.
11ª- Acresce que o impropriamente chamado “aluguer de longa duração” não tem consagração ou base legal, nem corresponde a um modelo contratual específico, revestindo de autonomia prática e jurídica face a outros contratos, designadamente o de locação financeira.
12ª- Sucedeu sim, que a BB funcionava como intermediária entre a AA e os particulares interessados na aquisição de veículos automóveis para uso próprio.
13ª- A A. e a BB, ambas conluiadas, contornaram as normas legais que proibiam a locação financeira de coisas móveis para usos não afectos a actividades empresariais.
14ª- Houve, pois, interposição real da BB no negócio em causa.
15ª- Para prosseguir um objectivo ilícito, em fraude à lei.
16ª- Logo, o contrato de locação financeira celebrado entre a A. e a BB é nulo, quer por ter objecto contrário à lei (art. 280º do C.Civil), quer pela circunstância de o seu fim, comum à A. e à BB, ser também contrário à lei e à ordem pública (art. 281º).
17ª- Ora a fiança não é válida se o não for a obrigação principal (art. 632º nº do C.Civil), o que obviamente se aplica ao caso do seguro da caução (consoante, aliás, o art. 8º nº 2 das condições gerais da apólice).
18ª- A questão da nulidade do contrato de locação financeira e consequente invalidade da apólice de seguro de caução dos autos, é do conhecimento oficioso pelo tribunal, operando, aliás, ipso iure ou ipsa vi legis.
19ª- Por tudo o exposto, a R. Seguradora deve ser absolvida do pedido, dado que apólice emitida não garante as quantias reclamadas na presente acção.
20ª- E, em todo o caso, nunca poderia responder por rendas ou qualquer indemnização decorrente da resolução do contrato e respectivos juros, por tais obrigações não estarem incluídas no objecto seguro.
21ª- Sem conceder, refira-se que a condenação da ora recorrente em juros à taxa supletiva legal enferma de ilegalidade, dado que a taxa de juros peticionada pela A. é a que está prevista no art. 11º nº 6 da “condições gerais da apólice de seguro caução (art. 22º da p.i.) e não a taxa supletiva legal (conforme se infere do douto acórdão recorrido).
22ª- Na data da participação do sinistro -6-6-1995- não se encontrava já em vigor a apólice em causa, pelo que a recorrente jamais poderia ser responsável pelo pagamento de qualquer montante de rendas devidas à A. (dado que a resolução contratual já tinha operado em momento anterior ao vencimento da primeira renda putativamente devida).
23ª- Finalmente o seguro caução dos autos não é uma garantia “on first demand”, como se verifica pelo texto da respectiva apólice.
24ª- O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 646º nº 4 e 659º do C.P.C., 238º, 236º, 280, 281º, 364º, 393º, 562º, 563º, 564º, 566º, 632º nº 1, 762º e 798º do C.Civil, 426º do C. Comercial, 8º do Dec-Lei 183/88, 19º e 12º do Dec-Lei 446/85, 1º, 2º e 6º do Dec-Lei 171/79 (redacção vigente no tempo da conclusão do contrato de locação financeira dos autos) e Dec-Lei 103/86 de 19 de Maio.
Os recorridos BB e Banco BPI contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3, ex vi do disposto no art. 726º do C.P.Civil).
Nesta conformidade serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Objecto da garantia do seguro-caução.
- Nulidade do contrato de locação financeira.
- Âmbito da garantia do seguro-caução.
- Anulação do contrato de seguro por falta de pagamento do sobreprémio.
- Natureza do contrato de seguro-caução e sua relevância para o presente caso.
2-2- Das instâncias, vem fixada a seguinte matéria de facto:
1 - A 26 de Agosto de 1992, por documento escrito, a A. e a R. BB celebraram acordo pelo qual aquela adquiriria o veículo marca Honda, modelo XRU 750, de matrícula LX-00-00, veículo esse escolhido pela R. BB, e cederia a esta o gozo de tal veículo, pelo prazo de 36 meses, mediante a renda trimestral no valor de Esc. 103.244$00, acrescido de IVA, sendo a primeira renda devida na data da recepção do veículo pela R. BB e as seguintes no dia 10, caso a recepção ocorra entre o dia 1 e o dia 15, ou no dia 15, caso a recepção ocorra depois do dia 15, tendo sido fixado o valor residual em Esc. 61.193$00, acrescido de IVA;
2 - Conforme estipulado, o "contrato poderá ser resolvido por iniciativa do locador, sem qualquer outra formalidade, oito dias após a comunicação ao locatário, por carta registada e com aviso de recepção, no caso de o locatário não pagar qualquer das rendas", ficando o locatário obrigado a: "restituir o equipamento...; pagar as rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos juros de mora"; e, "a título de indemnização por perdas e danos sofridos pelo locador, pagar uma importância igual a 20% do resultado da adição das rendas ainda não vencidas, na data da resolução, com o valor residual, acrescida dos juros de mora";
3 - Do documento referido em A) consta a seguinte cláusula: "o locatário obriga-se a apresentar em simultâneo com a formalização deste contrato... seguro de caução a favor da AA, S.A., até ao montante de Esc. 957.890$00... e válida até ao fim do período de vigência do contrato";
4 - Do documento referido em A) consta que "o locador aceita... que os bens objecto do... contrato possam a vir a ser sublocados pelo locatário";
5 - Por documento escrito, A. e R. BB celebraram acordo com efeitos até 31 de Dezembro de 1992, do qual consta que, "por cada contrato a realizar, a BB dará como garantia um seguro caução de uma companhia de seguros aceite pela AA que será beneficiária", o qual deverá obedecer a determinadas condições, entre as quais as seguintes: "o beneficiário do seguro caução é sempre a AA e o tomador do seguro a BB"; "o objecto do seguro caução será o pagamento de todas as obrigações emergentes do contrato de locação"; e "a indemnização a pagar pela Companhia de Seguros corresponderá em cada momento ao valor das rendas vencidas em dívida, bem como às vincendas não pagas, tendo como limite o capital seguro indicado na apólice";
6 - Do documento referido em E) consta também que "a AA pagará ao fornecedor das viaturas após a recepção de", entre outros documentos, "fax da companhia de seguros em que atesta a emissão do seguro caução nas condições exigidas";
7 - Pela apólice n.º 10000000, emitida a 31 de Agosto de 1992, a R.CC garantiu "ao beneficiário..., até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que devia receber do tomador de seguro, em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida", pelo prazo de 36 meses, com início a 28 de Agosto de 1992, constando da apólice, como tomador de seguro, a R. BB; como objecto da garantia, "pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de Esc. 1.461.360$00, referentes ao veículo Honda XRV – LX-00-00", como capital, Esc. 1.461.360$00 e, como beneficiário, a Autora;
8 - Das condições gerais da apólice referida em G) consta, entre outras condições, as seguintes:
- "O direito à indemnização nasce quando, após a verificação do sinistro, o tomador do seguro, interpelado para satisfazer a obrigação, se recusar injustificadamente a fazê-lo";
- "Ocorrendo o direito à indemnização,..., o beneficiário tem o direito de ser devidamente indemnizado pela CC no prazo de 45 dias a contar da data da reclamação";
- "A CC dispõe de 8 dias para recusar o risco agravado ou propor novas condições";
- "A CC poderá resolver o contrato, dando conhecimento do facto ao beneficiário, quando, face a um agravamento do risco..., o tomador do seguro não aceitar o sobreprémio correspondente";
- "A resolução do contrato não afectará as responsabilidades garantidas pelaCC ao beneficiário que resultarem de sinistros anteriores a essa resolução";
- "O tomador do seguro e/ou o beneficiário devem, sob pena de responderem por perdas e danos, comunicar àCC, no prazo máximo de 48... horas, a contar da ocorrência ou da data em que tiveram conhecimento de qualquer indício, acto ou facto que sejam susceptíveis de poder conduzir ao incumprimento da obrigação garantida";
- "O beneficiário obriga-se, sob pena de responder por perdas e danos: a participar à CC a ocorrência do sinistro o mais rapidamente possível, mas em prazo nunca superior a 8... dias, a contar da verificação do sinistro ou da data em que dele teve conhecimento", "a tomar as medidas ao seu alcance para evitar ou limitar os prejuízos,... e proteger o direito de regresso da CC";
- "ACC fica sub-rogada nos direitos do beneficiário, sobre o tomador do seguro ou contra terceiros, emergentes do presente contrato, até à concorrência da indemnização paga, obrigando-se o beneficiário a abster-se de praticar quaisquer actos ou omissões que possam prejudicar a sub-rogação, sob pena de responder por perdas e danos";
9 - A 7 de Abril de 1992, por documento escrito, a R. BB e a R.CC celebraram protocolo que, segundo o que dele consta, "tem por finalidade definir as relações entre as empresas, no tocante à emissão de seguros de caução destinados a garantir o pagamento à BB dos veículos vendidos por esta em aluguer de longa duração";
10 - O veículo identificado em A) foi entregue à R. BB em data não concretamente apurada;
11 - A R. BB não pagou à A. a renda vencida a 10 de Setembro de 1994 e as seguintes;
12 - A 7 de Junho de 1995, por carta registada com A/R, a A. comunicou à R. BB a resolução do contrato;
13 - Na carta referida em 12, a A. exigiu à R. BB o pagamento das rendas vencidas, dos juros de mora e da indemnização;
14 - A 8 de Junho de 1995, a A. comunicou à R.CC o não pagamento das rendas por parte da R. BB;
15 - A 19 de Junho de 1995, a A. reclamou da R.CC o pagamento da indemnização;
16 - A vontade da R. BB e da R.CC era que o objecto da garantia prestada fosse as prestações devidas àquela pelo seu cliente;
17 - A apólice referida em 7 foi emitida no âmbito do protocolo mencionado em 9;
18 - A 29 de Agosto de 1994, por carta, a R.CC propôs à R. BB o pagamento de um sobreprémio de Esc. 37.800$00 pelo agravamento do risco resultante da anulação da apólice que garantia a responsabilidade emergente da circulação do veículo LX;
19 - Dessa carta constava que, "na falta de acordo de V. Exas. a este sobreprémio, no prazo de 8 dias a contar da presente data,...resolveremos os contratos, sem necessidade de novo aviso";
20 - A 29 de Agosto de 1994, por carta, a R.CC comunicou à A. a proposta do sobreprémio enviada à R. BB e a consequência da resolução no caso de não aceitação da proposta;
21 - A R. BB e a A. não aceitaram o sobreprémio.------------------
2-3- Os factos provados demonstram que a A. AA e a R. BB celebraram um contrato de locação financeira em relação ao veículo Honda acima referenciado. Com efeito, estabelece o art. 1º do Dec-Lei 171/79 de 6/6 (aplicável ao caso dada a data em que o contrato foi celebrado) que “locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta e que a mesma pode comprar, total ou parcialmente, num prazo convencionado, mediante um preço determinado ou determinável, nos termos do próprio contrato”. Esta disposição evidencia “a existência uma relação económica trilateral ou triangular, pela interposição de uma terceira pessoa independente - uma sociedade de locação financeira entre o produtor ou comerciante fornecedor do bem e o locatário (in Estudos de Direito Comercial, João Calvão da Silva, pág. 13).
Para o que aqui importa, interessa-nos a relação entre a empresa de locação financeira (a A.) e a locatária, a R. BB. E relativamente a esta relação, a recorrente, Seguradora, não contesta que essas entidades celebraram um contrato de locação financeira. A questão surge depois e diz respeito ao contrato de seguro celebrado entre a R. BB e a R.CC, tendo como beneficiária a A..
Defende a recorrente que o seguro tinha por objecto a garantia, não do pagamento das rendas devidas pela R. BB à A., mas sim o pagamento das rendas referentes ao aluguer de longa duração do veículo feito pela R. BB ao R. LM, ou seja, as rendas devidas pelo locatário final à BB, por força do aluguer de longa duração.
Em relação a esta questão, provou-se que pela apólice n.º 150104101726, emitida a 31 de Agosto de 1992, a R.CC garantiu "ao beneficiário..., até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que devia receber do tomador de seguro, em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida", pelo prazo de 36 meses, com início a 28 de Agosto de 1992, constando da apólice, como tomador de seguro, a R. BB; como objecto da garantia, "pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de Esc. 1.461.360$00, referentes ao veículo Honda XRV – LX-00-00", como capital, Esc. 1.461.360$00 e, como beneficiário, a A. (facto provado sob o nº 7).
O art. 6º do Dec-Lei 183/88 de 24/5 no que respeita ao seguro caução estabelece que “o seguro caução cobre directa ou indirectamente, o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval”.
Visa, pois, o seguro caução proteger o credor contra o risco de incumprimento por parte do devedor.
Não interessa para aqui dissecar a natureza jurídica deste contrato (se tem a natureza autónoma, automática ou se tem natureza semelhante à fiança – vide a este propósito acórdão deste Supremo Tribunal de 13-3-2008 in www.dgsi/jstj.pt), mas sim saber-se se a obrigação que o seguro caução dos autos protege e assegura, é a decorrente do incumprimento da R. BB ou se é a atinente às rendas devidas pelo locatário final à BB, por força do aluguer de longa duração.
O douto acórdão recorrido respondeu à questão dizendo que o contrato visou garantir as rendas relativas ao contrato de locação financeira firmado entre a A. e a BB.
E parece-nos ser certa esta posição, pois o teor da apólice acima referido indica, sem dúvida, ser correcta a interpretação a que se chegou.
A este respeito convém sublinhar que ao Supremo Tribunal como Tribunal de revista, não compete conhecer da matéria de facto (art. 722º do C.P.Civil). Entende-se, porém, ser matéria de direito e portanto já sindicável pelo STJ, determinar se na interpretação das declarações negociais foram observados os preceitos legais impostos pelos arts. 236º e 238º do C.Civil. Nesta conformidade, é tarefa do Supremo, como tribunal de revista, exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando-se da situação prevista no art. 236º nº 1 do C.Civil11 (1).
, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal pudesse deduzir do comportamento do declarante ou, tratando-se da situação prevista no art. 238º nº 1 do mesmo diploma, não apresente um mínimo de correspondência, ainda que imperfeito, do texto do documento (neste sentido, entre muitos, o Acórdão deste STJ de 1-3-2007 - in www.dgsi/jstj.pt).
Ora, sem dúvida de maior, parece-nos que um declarante normal, com as características indicadas na nota de rodapé (nº 1) não poderia deixar de concluir que o contrato foi firmado para garantir as rendas derivadas do contrato de locação financeira celebrado entre a A. e a R. BB. Com efeito, expressamente se refere na apólice que R.CC garante “ao beneficiário… o pagamento da importância que devia receber do tomador de seguro, em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida”, sendo que, como se esclarece na mesma apólice, o tomador do seguro é a R. BB e a beneficiária, a A.. Ou seja, trocando os vocábulos “beneficiário” e “tomador” pelas entidades indicadas, concluiu-se que a R.CC, nos termos do seguro-caução, garantiu à A. AA o pagamento das importâncias que esta deveria receber da R. BB. Ainda neste sentido e no que toca às obrigações garantidas (que a recorrente questiona) provou-se (facto nº 5 acima referido) que "o objecto do seguro caução será o pagamento de todas as obrigações emergentes do contrato de locação". De resto, a nosso ver, o objecto da garantia só poderia dizer respeito ao contrato de locação financeira celebrado entre os indicados, tomador e beneficiário, pois em relação ao outro contrato invocado pela recorrente (ALD), o beneficiário, a A., é alheio.
Note-se que o contrato de seguro, como resulta do art. 426º do C. Comercial, deve ser reduzido a escrito num instrumento que constituirá a apólice de seguro, estabelecendo o § único da disposição que a apólice deve ser datada e assinada pelo segurador e enunciar os diversos elementos referenciados aí. Por outro lado, o contrato de seguro rege-se pelas estipulações da apólice, não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, subsidiariamente, pelas disposições do Código Comercial, atento o preceituado pelo artigo 427º, deste diploma legal.
Estabelece o art. 1º al. j) do Dec-Lei 176/95 de 26/7 que «apólice» é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver e particulares acordadas. Em virtude destes condicionalismos a doutrina tem vindo a entender unanimemente que a forma do contrato de seguro deve ser considerada como forma ad substantiam e que, por isso, o contrato de seguro é um contrato formal (2).
Quer dizer, é através da apólice que se determinará o conteúdo e alcance do seguro, razão por que nos parece despiciendo para o caso, a invocação pela recorrente de protocolos diversos que terão sido firmados pela BB e pela R.CC, para definir as relações entre as empresas. Pela mesma razão se nos afigura incorrecta a interpretação que a recorrente faz sobre o alcance do seguro-caução, dado que essa acepção não tem qualquer apoio no texto expresso na apólice.
Assim sendo, parece-nos ter sido correcta a posição assumida na Relação de que o seguro caução visou garantir as rendas derivadas do contrato de locação financeira celebrado entre a A. e a R. BB(3).
2-4- Sustenta depois a recorrente que o contrato de locação financeira é nulo em virtude de as normas legais vigentes ao tempo do contrato apenas permitiam a sociedade de leasing, o exercício da locação financeira de coisas móveis e quanto a bens de equipamento. Assim, mesmo que o objecto do seguro tivesse sido a garantia das prestações devidas pela BB à A. AA, em função do contrato de locação financeira, tal garantia não teria validade, dada a nulidade da obrigação principal e face ao princípio geral consignado no art. 652º nº 1 do C.Civil.
Esta questão já havia sido levantada pela recorrente na Relação, tendo-lhe respondido o acórdão recorrido, dizendo que não ocorre a irregularidade invocada dado que “a viatura automóvel locada financeiramente e depois alugada, atenta a actividade comercial desenvolvida pela BB, deve ser encarada como um bem de equipamento …, sendo certo que a Ré Companhia de Seguros não demonstrou, como lhe competia, de acordo com as regras do ónus da prova previstas nos artigos 341º e seguintes do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil, o destino meramente particular do veículo alugado ao Réu ausente, nada obstando a que o mesmo lhe pudesse dar destino comercial ou profissional”.
Nos termos do art. 2º nº 2 do Dec-Lei 171/79 de 6/6 “a locação financeira de coisa móveis respeita sempre a bens de equipamentos (4) . Para defender a sua tese a recorrente parte do pressuposto que a coisa em causa é um bem de consumo que se destinava ao uso pessoal da pessoa a quem a BB deu o veículo em contrato de aluguer de longa duração. Segundo a recorrente, o contrato celebrado entre a A. e a R. BB teve o intuito de defraudar a proibição legal que impedia a A., como sociedade locadora, de outorgar directamente com particulares, bens de consumo.
Do que se trata aqui é da validade de contrato de locação financeira celebrado entre a A. e a R. BB. Os factos provados demonstram que esta R. procurou financiamento junto da A., para adquirir o gozo temporário do veículo, sendo que posteriormente a R. cedeu o respectivo gozo a terceiro, ao R. LM (5). Como deriva da circunstância factual acima mencionada sob o nº 4, do documento que titula o contrato de locação financeira celebrado entre a A. e a R. BB, resulta que o locador aceita que o bem objecto do contrato possa a vir a ser sublocado pelo locatário, sendo também certo que, como resulta do art. 22º al. d) do Dec-Lei 171/79, ao locatário, desde que nisso consinta expressamente o locador, é possível transmitir, total ou parcialmente, o seu direito (6). Não está provado que o bem não fosse um bem de equipamento, sendo certo que caberia à ora recorrente alegar e provar, face ao disposto no art. 342 nº 2 do C.Civil, essa circunstância. De resto, a considerar-se o acto de cedência do gozo do veículo a terceiro como resultante da actividade comercial desenvolvida pela BB, então o bem deve ser entendido como de equipamento (já que a cedência prosseguirá o fim social/actividade empresarial da sociedade).
Nesta conformidade, não se vê que a posterior transmissão do veículo da locatária para um terceiro possa ter tornado irregular o contrato em causa. Não se verifica, assim, ocorrer a nulidade do contrato de locação financeira invocada pela recorrente.
2-5- Defende depois a recorrente que nunca ela, Seguradora, poderia responder por rendas ou qualquer indemnização decorrente da resolução do contrato e respectivos juros, por tais obrigações não estarem incluídas no objecto seguro. Efectivamente, após a resolução do contrato de locação financeira não há quaisquer rendas mais a pagar, mas apenas a indemnização da cláusula 15ª. Na apólice apenas foi garantido o pagamento de rendas e não qualquer indemnização por incumprimento.
No douto acórdão recorrido condenou-se a R. Seguradora no pagamento de Esc. 510.024$00 relativo ao valor global das rendas vencidas e não pagas, e respectivo IVA, até à resolução do contrato pela A. e ainda nos juros de mora vencidos e vincendos, sobre o capital em dívida mencionado, às taxas legais que se foram sucedendo no tempo, até integral pagamento.
Segundo cremos a recorrente, aceita a sua condenação naquela quantia de 510.024$00 (por ser referente a valor das rendas vencidas), mas já não em qualquer indemnização por incumprimento.
Todavia, como iremos ver à frente, a condenação da recorrente deriva da responsabilidade civil pelo incumprimento da obrigação (a R. Seguradora resolveu o contrato de seguro-caução ilicitamente) e, consequentemente, dos prejuízos que da sua conduta resultou para a A.
Não se desconhece que no acórdão recorrido foi referido que a A. pediu o pagamento (também) de uma renda vincenda, podendo, segundo o aresto, questionar-se a bondade da pretensão. Todavia, pelas razões invocadas (designadamente pela posição que sobre o assunto assumiu o acórdão deste STJ de 28-10-2004), acabou por se entender que a renda reclamada se reconduz, afinal, a uma outra renda vencida à data em que o contrato de locação financeira produz efeitos. Não existiu, face ao acórdão, recorrido (como, aliás, se salientou na sua parte decisória) qualquer condenação em rendas vincendas, mas sim nas vencidas, colocando nestas a pedida como vincenda, integrando-se todas, todavia, no montante de indemnização fixada.
Entende também a recorrente que não deve ser condenada a pagar os juros moratórios, nos termos do art. 15º nº 2 das “condições gerais” do contrato de locação financeira, pois não é parte do acordo resultante do contrato de locação financeira.
É certo que o estipulado no art. 15º das “condições gerais” do contrato de locação financeira, não deve ser aplicado à ora recorrente, porque alheia a esse contrato.
Todavia a sua condenação neste âmbito deve ser encontrada no seu atraso pelo pagamento, como resulta do acórdão, em acompanhamento ao referenciado acórdão deste Supremo de 20-11-2003. Isto é, os juros moratórios devem ser respaldados no disposto nos arts. 804º e segs., principalmente no que refere o art. 806º, todos do C.Civil e também no que sobre isso pediu a A., como iremos ver.
Sustenta ainda o recorrente que a sua condenação em juros à taxa supletiva legal enferma de ilegalidade, dado que a taxa de juros peticionada pela A. é a que está prevista no art. 11º nº 6 das “condições gerais” da apólice de seguro caução (art. 22º da p.i.) e não a taxa de juro supletiva legal, conforme decidiu o acórdão recorrido.
Conforme se estipula em tal cláusula “se a indemnização não for paga, por causa imputável àCC no prazo estipulado deste artigo, a indemnização em dívida incrementar-se-á automaticamente à razão da taxa de desconto do Banco de Portugal”. Isto é, segundo esta cláusula, as partes convencionaram juros pelo retardamento da prestação, fixando-os em razão da taxa de desconto do Banco de Portugal.
Sucede, porém, que, como iremos ver à frente, o contrato de seguro deve ter-se como resolvido pela R. Seguradora, razão por que tal cláusula, dado que constante do respectivo clausulado, será irrelevante. A condenação da R. Seguradora deriva da responsabilidade civil pelo incumprimento da obrigação.
Todavia, uma vez que a própria A. é a esses juros a que se refere e que peticiona, como se verifica compulsando a petição inicial, designadamente o art. 22º desse articulado, serão estes os juros a considerar (sob pena de se proferir condenação ultra petitum).
Nesta (pequena) parte o acórdão recorrido será revogado.
2-6- Sustenta depois a recorrente que segundo consta do ponto 18º da factualidade assente, a 29 de Agosto de 1994, por carta, a R.CC propôs à R. BB o pagamento de um sobreprémio de Esc. 37.800$00 pelo agravamento do risco resultante da anulação da apólice que garantia a responsabilidade emergente da circulação do veículo LX. Dessa carta constava que, "na falta de acordo de V. Exas. a este sobreprémio, no prazo de 8 dias a contar da presente data,...resolveremos os contratos, sem necessidade de novo aviso" (ponto 19º da factualidade assente). A 29 de Agosto de 1994, por carta, a R.CC comunicou à A. a proposta do sobreprémio enviada à R. BB e a consequência da resolução no caso de não aceitação da proposta “no sentido de permitir a V.Exas (AA), se assim o entenderem, substituírem-se ao tomador do seguro no pagamento do agravamento” (ponto 20º da factualidade assente). Ora, nem a R. BB e nem a A. aceitaram o sobreprémio ou efectuaram o respectivo pagamento (sendo certo que a prova do pagamento a elas incumbia), pelo que o contrato ficou resolvido e a respectiva apólice cancelada, em 6-9-94, nos termos atrás referidos (ponto 21º da factualidade assente). Assim sendo, continua a recorrente, na participação do sinistro, 6-6-1995, não se encontrava já em vigor a apólice em causa, pelo que o recorrente jamais poderia ser responsável pelo pagamento de qualquer montante de rendas devidas à R..
Remete-se para os factos assentes sob os nºs 18º a 21.
Na declaração que a ora recorrente enviou à A. e à R. BB (ponto nº 19 dos factos assentes) constava que, "na falta de acordo de V. Exas. a este sobreprémio, no prazo de 8 dias a contar da presente data,...resolveremos os contratos, sem necessidade de novo aviso".
A questão que se coloca será a de saber se esta declaração deve ser entendida como suficiente para determinar, por si só, a resolução do contrato em causa.
O acórdão recorrido debruçou-se sobre a questão dizendo resultarem dúvidas em relação a essa resolução “não só pela forma como está redigida a mesma, pois que parece apontar para uma actuação futura (“…resolveremos os contratos”) e não para uma mera, automática e inevitável consequência da não aceitação do aludido sobreprémio (faça-se notar que a referência final à desnecessidade de novo aviso não contradiz necessariamente essa ideia, pois “avisar” não se confunde com “actuar”) como ainda pelo que a nossa doutrina refere quanto ao instituto jurídico em questão”. Depois de se mencionar o que a doutrina diz sobre a resolução, disse-se que “não existe qualquer documento nos autos nem nenhum facto dado como assente na sentença impugnada que comprove que a mencionada declaração resolutiva foi efectivamente concretizada, quer por escrito, quer em termos meramente verbais, sendo certo que essa prova competia à Ré Seguradora, nos termos dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil”, do que se concluiu que “não se mostrando demonstrada essa declaração resolutória, o dito contrato de seguro caução ter-se-ia mantido válido e eficaz”. Acrescentou-se depois que mesmo que se aceitasse a resolução, atendendo aos termos do contrato de seguro, verifica-se que não ocorre o agravamento do risco do contrato, razão por que não tinha a R. legitimidade para impor à R. BB e ao A. o pretendido sobreprémio e para depois, face à sua recusa, em provocar a resolução, constituindo tal atitude unilateral e injustificada uma clara violação do acordado pelas partes e do que os arts. 405º, 406º, 762º e 763º estatuem. Não assistia, assim, à Seguradora o direito de alterar unilateralmente um dos elementos essenciais do contrato, exigindo tal pagamento, quer por efeito do disposto no nº 1 do art. 406º do Código Civil, quer, indirectamente, do disposto no nº 3 do art. 13º do DL n.º 183/88, de 24 de Maio. Nestas condições, não podia deixar de se considerar como continuando válido o contrato seguro caução dos autos. Concluiu-se, assim, dizendo-se que “ainda que a Ré Seguradora tenha promovido a resolução do aludido contrato de seguro, essa declaração, embora juridicamente eficaz, conforme os autores acima citados e diversa jurisprudência dos nossos tribunais superiores…, por ser infundada e ilegítima, traduz-se, no fundo, numa declaração de não querer cumprir o contrato e constitui a parte emitente da mesma na obrigação de indemnizar a outra …”. Em consequência, o aresto recorrido condenou a R. em sede de responsabilidade civil.
Não se duvida que uma declaração resolutiva pode fazer-se mediante declaração à outra parte, como resulta do art. 436º. Trata-se de declaração (receptícia) que se torna eficaz logo que chega ao destinatário, ou é dele conhecida (art. 224º nº1, ambos do C.Civil)(7). O problema coloca-se, porém, a montante desta situação, que é a de saber, se a declaração em causa pode ser entendida como resolutiva do contrato.
E a nosso ver, a declaração, dado o seu teor, deve ser considerada como resolutiva do contrato, porque ela própria refere o intuito resolutivo, estabelecendo o motivo e condições da resolução. Segundo o escrito esta resolução concretizou-se no prazo de 8 dias a contar da recepção da missiva, dado, segundo refere, não ter havido acordo dos visados no pagamento do reivindicado sobreprémio, dispensando-se novo aviso de resolução.
Mas a resolução do contrato foi ilegítima.
A razão da resolução foi, como já vimos, a recusa pela R. BB e pela A. do pagamento do sobreprémio exigido pela Seguradora. Ora, esta nos termos da apólice do seguro e até de harmonia com o Dec-Lei 183/88 de 24/5 não tinha razões válidas para exigir esse sobreprémio, visto que os factos provados não apoiam um qualquer agravamento do risco coberto pelo contrato.
De harmonia com o art. 8º nº 5 da apólice de seguro, a Seguradora poderá resolver o contrato, dando conhecimento do facto ao beneficiário quando, face a um agravamento do risco a que se refere o nº 1 do art. 5º, o tomador do seguro não aceitar o sobreprémio correspondente. Esta disposição faz, pois, depender o pagamento do sobreprémio, do agravamento do risco a que alude o art. 5º nº 1. Por sua vez esta disposição refere que o tomador do seguro e o beneficiário devem comunicar, no prazo de 8 dias, qualquer alteração verificada na caução garantida, capaz de produzir um agravamento de risco. A Seguradora dispõe de 8 dias para recusar o risco agravado ou propor novas condições. Isto é, perante esta disposição verifica-se que caberá ao tomador do seguro e ao beneficiário, a comunicação à Seguradora, de elementos determinantes do agravamento do risco, circunstância que não se indicia ocorrer no caso presente.
Por outro lado, o disposto no art. 13º nº 3 do Dec-Lei 183/88, só permite à Seguradora alterar o quantitativo do prémio quando, durante a vigência do contrato de seguro, se verifique a alteração normal e substancial das circunstâncias que fundamentam a sua celebração, com efectivo agravamento do risco.
Evidentemente que a retirada de (outros) seguros automóveis da Seguradora R. e a sua colocação noutra Companhia de Seguros não afecta o seguro dos autos em termos de agravamento de riscos. Poderá, quando muito, influenciar os proventos de índole comercial da R., mas isto, não se confunde, como é claro, com um aumento de riscos do seguro para a R..
Nesta conformidade, como se diz correctamente no acórdão recorrido, não ocorrendo esse agravamento do risco por parte do contrato dos autos, não tinha a R. Seguradora legitimidade para impor à R. BB e ao A. o pretendido sobreprémio e para depois, face à sua recusa, provocar a resolução do mesmo.
Foi ilícita a conduta da R., razão por que se nos afigura certa a condenação que o aresto recorrido lhe acabou por infligir, com base na responsabilidade civil derivada do incumprimento da obrigação.
A posição da recorrente é, pois, insubsistente.
2-7- Sustenta depois a recorrente que no caso presente, a R. Seguradora não assumiu uma garantia autónoma, visto que se obrigou a pagar uma dívida de outrem. É o que resulta claramente do texto das condições particulares da apólice, onde se diz que o objecto da garantia consiste no pagamento de rendas referentes ao veículo em causa. No caso de garantia autónoma o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado. De qualquer modo, mesmo na garantia autónoma “on first demand”, o garante não está impedido de invocar os meios de defesa que se prendam directamente com o próprio contrato de garantia. Pode recusar, por exemplo, o pagamento, alegando que o objecto da garantia é diverso do pretendido pelo beneficiário, como acontece no caso em que as partes divergem quanto ao entendimento daquilo que foi garantido pelo seguro de caução. O que o garante não pode invocar, na garantia autónoma, são as excepções derivadas da obrigação principal, os meios de defesa que competem ao devedor. Por outras palavras, na garantia autónoma não existe dependência funcional, que é um dos elementos de acessoriedade. Finalmente a existência de uma garantia, mesmo que revestida de autonomia e invocável à primeira interpelação, não faz só por si extinguir a obrigação principal. O credor não está impedido de accionar em conjunto o devedor principal e o garante e, inclusivamente, de demandar apenas o devedor principal, deixando de fora o subscritor da garantia. Isto porque esta é estabelecida em benefício do credor e não em benefício do devedor principal. A existência da garantia não provoca a extinção da obrigação principal.
Somos em crer que a discussão sobre a natureza jurídica do seguro caução, para além da polémica teórica que suscita (8), tem, no caso vertente, um cabimento prático muito restrito, porque qualquer que seja a natureza jurídica de tal negócio, a R. terá (sempre) que pagar a indemnização que foi pedida, sendo indiferente, para aqui e agora, saber-se se a tomadora do seguro (a R. BB) é igualmente responsável perante a A. pela pagamento da dívida (9).
. Sublinhe-se que a recorrente, na argumentação usada a este propósito, nunca enjeitou a sua responsabilidade perante a A.. O que disse de positivo para o presente caso, é que como garante, não está impedida de invocar os meios de defesa que se prendam directamente com o próprio contrato de garantia, podendo recusar, por exemplo, o pagamento, alegando que o objecto da garantia é diverso do pretendido pelo beneficiário, como acontece no caso em que as partes divergem quanto ao entendimento daquilo que foi garantido pelo seguro de caução.
Ainda que se admita à R. Seguradora a possibilidade de invocar o dito meio de defesa, o certo é que essa invocação redunda, no caso, em evidente insucesso porque, como já vimos, a interpretação que a recorrente faz em relação à abrangência do seguro caução não é de aceitar, já que o contrato foi firmado para garantir as rendas derivadas do contrato de locação financeira celebrado entre a A. e a R. BB e não, como sustenta a R. Seguradora, que o seguro tinha por objecto a garantia do pagamento das rendas referentes ao aluguer de longa duração do veículo feito pela R. BB ao R. LM. Por outras palavras, mesmo que se pudesse aceitar juridicamente a possibilidade de a R. invocar o dito meio de defesa, no caso vertente e dada a interpretação que se fez do contrato de seguro, a invocação realizada seria infundada.
Por isso nos parece destituída de sentido prático a posição que sobre o assunto assume a recorrente.
Salvo a (pequena) parte relativa aos juros moratórios, o recurso é improcedente.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, excepto no tocante ao montante dos juros, nega-se a revista.
Condena-se a R. Seguradora no pagamento de juros moratórios à taxa de desconto do Banco de Portugal, nesta parte se revogando o aresto recorrido.
No mais confirma-se o douto acórdão impugnado.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2009

Garcia Calejo (relator)
Helder Roque
Sebastião Póvoas

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(1) Esta disposição, como é comummente reconhecido, consagra a chamada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário medianamente sagaz, diligente e prudente a interpretaria, colocado na posição concreta do declaratário.
(2) Neste sentido, entre outros, Moitinho de Almeida (contrato de seguro, pág. 38), Adriano Antero (Comentário I, pág. 136) Pinheiro Torres (Ensaio sobre o contrato de seguro, pág. 46).
(3) Em caso idêntico tomou posição igual o acórdão deste STJ de 27-5-2004 (in www.dgsi/jstj.pt).
(4) Esta restrição foi subtraída pelo Dec-Lei 149/95 de 24/6 que estabeleceu no seu art. 2º que “a locação financeira tem como objecto quaisquer bens susceptíveis de serem dados em locação”.
(5) Esta circunstância apesar de não constar do acervo dos factos provados, deve ter-se como assente, dada a posição concordante das partes sobre o assunto – art. 646º nº 4 do C.P.Civil -.
(6) O art. 22º al. d) do Dec-Lei 171/79 refere expressamente que “em relação à coisa locada, pode o locatário, em especial, transmitir ou onerar, com autorização expressa do locador, total ou parcialmente, o seu direito”.
(7) Vide sobre o assunto Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pág. 108.
(8) Sobre a natureza jurídica do seguro caução, vide o Acórdão deste STJ de 23-9-2008 acessível www.dgsi/jstj.pt e também o já indicado acima.
(9) Note-se a este propósito que, como se assinalou no relatório deste acórdão, por despacho de fls. 357 foi a instância julgada extinta relativamente à R. Tracção, no que se refere aos pedidos de natureza pecuniária contra ela formulados, por inutilidade superveniente da lide, por ter sido declarada falida.