Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
686/08.8TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CÂMARA MUNICIPAL
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO PROVOCADA
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
CONHECIMENTO OFICIOSO
CASO JULGADO FORMAL
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática: PROCESSO CIVIL - LEGITIMIDADE DAS PARTES
Doutrina: - Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol 3.º, pág. 168/169.
- Lopes do Rego, Os Incidentes de Intervenção de Terceiros em Processo Civil, R.M.P., Volume 13, pág. 98.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º E 497.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 27.º, 29.º, 31.º, N.º 1, 102.º, 320.º, ALÍNEA A) E 325.º, 672.º, E 691.º .
LEI N.º 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO (E.T.A.F.): - ARTIGO 4.º/1, ALÍNEA G).
Sumário :
I - No caso de litisconsórcio voluntário (art. 27.º do CPC) deve verificar-se em relação a todos os contitulares da relação material controvertida, atento o pedido formulado, a compatibilidade processual a que alude o art. 31.º, n.º 1, do CPC, ou seja, não será admissível o litisconsórcio voluntário quando ocorra incompetência absoluta do tribunal relativamente a algum ou alguns desses contitulares.
II - O Tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção de competência em razão da matéria no que respeita a pedido deduzido contra Câmara Municipal com base em responsabilidade civil extracontratual (art. 102.º do CPC e art. 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02).
III - A acção prossegue contra os demais réus considerado o pedido contra eles deduzido relativamente aos qual o tribunal é o competente em razão da matéria.
IV - A decisão que admitiu a intervenção principal provocada da Câmara Municipal e onde não foi tomada nenhuma posição sobre a incompetência do tribunal em razão da matéria relativamente à responsabilidade pedida ao interveniente, não preclude o conhecimento ulterior da excepção de incompetência absoluta do Tribunal desde logo porque, de acordo com as regras atinentes ao regime de recursos introduzidas pelo DL n.º 303/2007, de 24-08, a decisão que admite o incidente não faz caso julgado formal, podendo ser impugnada ulteriormente no recurso que venha a ser interposto da decisão final (art. 691.º, n.º 3, do CPC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA-C... Iluminação F... S.A. demandou no dia 25-1-2008 em acção declarativa com processo ordinário BB-J... C... & J... M... Lda., CC e DD pedindo a sua condenação solidária nos seguintes termos:

- Que se condene a primeira ré a entregar à autora todas as peças objecto de contrafacção bem como fotografias - e respectivos negativos - desenhos ilustrados ou outros suportes físicos os quais contenham representações de obras/peças propriedade da autora, designadamente a alegada na petição, nos termos previstos no artigo 201.º do CDADC.

- Que se condenem solidariamente os réus a pagarem a título de sanção pecuniária compulsória a quantia de 400,00€ por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação referida no ponto anterior.

- Que se condenem solidariamente os réus a não mais utilizarem as peças objecto da presente acção em quaisquer outros serviços que venham a prestar a título oneroso ou gratuito.

- Que se condenem solidariamente os réus a pagarem à autora a indemnização de 20.000,00€ a título de danos não patrimoniais, acrescidos dos respectivos juros legais moratórios, calculados à taxa legal e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

- Que se condenem solidariamente os réus a pagarem à autora a quantia de 59.800,00€ - ou uma quantia superior se se vier a verificar a situação alegada no artigo 191.º, procedendo-se a sua devida quantificação ou ampliação do pedido ou em execução de sentença - a título de danos patrimoniais acrescida dos respectivos juros legais moratórios, calculados à taxa legal e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

2. A autora dedica-se à produção e instalação de diversas estruturas decorativas iluminadas recorrendo à representação de elementos artísticos por si criados e à combinação original de diversos elementos, criando obras originais protegidas pelas regras inerentes aos direitos de autor. Os desenhos dessas obras estão registados no INPI, beneficiando, assim, a autora também da protecção decorrente da propriedade industrial.

3. Sucede que a ré, na sequência de concurso em que lhe foi adjudicada pela Câmara Municipal de B... a prestação de serviços de iluminação de Natal durante as épocas natalícias de 2006 e 2007, ao proceder a essas ornamentações, utilizou abusivamente peças da autora como se fossem da sua lavra.

4. Os legais representantes da ré sociedade são igualmente responsáveis pelos danos causados a terceiros no exercício das funções de órgãos de administração.

5. A indemnização reclamada tem em vista os seguintes pontos: o custo do valor de exploração das peças referenciadas e os danos morais decorrentes da actuação ilícita dos réus.

6. Na contestação os réu alegaram que efectivamente procederam às ornamentações de Natal dos anos de 2006 e 2007 por adjudicação do dono da obra, a Câmara Municipal de B....

7. A ré procedeu à execução das peças de ornamentação de rua alusivas ao Natal em conformidade com o estipulado no concurso de adjudicação da obra que estipulava, na cláusula terceira, que “ as iluminações deverão ser concebidas de acordo com as imagens recriadas nas fichas técnicas em anexo”, ou seja, a ré limitou-se a reproduzir as peças de ornamentação de acordo com os desenhos e imagens entregues pela Câmara Municipal de B..., ou seja, a ré foi contratada única e exclusivamente para realizar as ornamentações e não para proceder à criação das mesmas, até porque a ré sociedade não poderia realizar tal tarefa criativa já que não possui, nem nunca possuiu, técnicos de design.

8. A ré , e bem assim os respectivos gerentes, executaram as ornamentações a partir dos desenhos ou modelos fornecidos pela Câmara e nunca foram informados de que tais desenhos eram propriedade da autora ou que esta não consentira na sua utilização.

9. Contestaram ainda os réus outros pontos da petição que agora não importa aqui tratar.

10. Face à contestação, a autora requereu a intervenção principal da Câmara Municipal de B... para que contra ela corra também seus termos a presente acção, como associada do réu, nos termos do artigo 325.º e seguintes, do C.P.C.

11. Tal pedido resultou, segundo a autora, do facto de, face à contestação, a ser verdade o que a ré alega, então a Câmara Municipal de Braga seria também ela titular passivo da relação controvertida, já que o direito que a autora reclama nos presentes autos é um direito que se impõe erga omnes, quer sejam entidades públicas, quer sejam entidades privadas.

12. O incidente foi admitido sem oposição e a ré Câmara Municipal de B..., uma vez citada, deduziu contestação.

13. O Tribunal, oficiosamente, suscitou, admitido o referido incidente, a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria.

14. E, decidindo, absolveu os réus da instância por incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria visto que, sendo da competência dos tribunais administrativos, as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4.º/1, alínea g) da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), a decisão da causa implica apurar e apreciar da existência ( ou não) da responsabilidade civil extracontratual dessa entidade pública, no desempenho de actividade compreendida no âmbito das sua funções”; a circunstância de terem sido demandados, como réus, além da pessoa colectiva de direito público, pessoas singulares e colectivas privadas, a apreciação dessa questão implica forçosamente a apreciação da existência de responsabilidade civil extracontratual da referida pessoa colectiva de direito público e, assim sendo, a apreciação unitária da questão relativa à responsabilidade civil das rés (seja ela isolada ou solidária) […] só pode ser apreciada no âmbito da jurisdição administrativa.

15. Recorreu a autora para o Tribunal da Relação que deu provimento à apelação, revogando o despacho sob recurso, declarando o tribunal competente em razão da matéria.

16. No acórdão salientou-se que não se ignora que significativa corrente doutrinal e jurisprudencial aponta no mesmo sentido do despacho sob recurso, ou seja, independentemente de saber se a responsabilidade emerge de acto de gestão pública ou privada, é à jurisdição administrativa que compete apreciar todas as questões de responsabilidade extracontratual da Administração Pública (Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Reforma do Contencioso Administrativo, pág. 34 a 36), entendimento que tem merecido reservas, parecendo mais ajustado o entendimento que reserva para a jurisdição administrativa a tarefa de dirimir os litígios sobre as relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, residindo, aliás, na especificidade do quadro legal implicado na dilucidação de tais litígios a verdadeira razão de ser da própria jurisdição especial.

17. No entanto, o Tribunal da Relação entendeu que a questão devia ser considerada à luz da petição inicial (face à qual se aferem os pressupostos processuais) e, quanto a esta, constata-se que “ nada tem a ver com qualquer ente público: teria sido a sociedade ré quem levou a efeito a contrafacção das peças, ainda que tendo em vista o cumprimento de uma empreitada que lhe fora adjudicada pelo Município de Braga […]. Tal como a autora referia na fundamentação do pedido de chamamento, a comprovar-se ter sido o chamado a promover a contrafacção no âmbito do concurso, a acção improcederia relativamente aos réus na parte atinente à iluminação executada na cidade de Braga. Ora, se assim é, o chamamento do município nunca poderia ter a virtualidade de conduzir à condenação solidária ou conjunta dos réus e do chamado quanto a esse segmento do pedido, pois a responsabilidade deste exclui a daqueles […]. O incidente de intervenção não serve para substituir o primitivo réu por outro, ou seja, para fazer valer o pedido contra o Município de Braga em vez dos réus demandados.
Repare-se que a responsabilidade atribuída aos réus não emerge apenas da contrafacção das peças utilizadas na iluminação natalícia da cidade de Braga, mas também da sua utilização na decoração de um hipermercado em Santa Maria da Feira, sendo evidente que não pode ser assacada ao chamado qualquer responsabilidade decorrente desse facto.
À autora estava vedado demandar conjuntamente os réus por tal utilização específica e o Município de Braga por ter promovido a reprodução ilícita dos desenhos da autora, atento o disposto no artigo 31.º do C.P.C.
O foro administrativo não é o competente para conhecer sobre o pedido relativo à alegada violação do direito da autora pela utilização indevida dos seus desenhos na iluminação do hipermercado, o que vale por dizer que tanto bastava para que o tribunal comum não se devesse declarar incompetente em razão da matéria […].
De qualquer modo, reitera-se, a aferição sobre a competência - ou demais pressupostos de validade da instância - é feita em função do desenho da relação material controvertida invocada pelo autor e não de qualquer outra relação esgrimida pelos réus em impugnação dos factos constitutivos do direito em litígio.
E assim, se a autora lograr demonstrar a ilícita violação do seu direito por parte da ré nas situações que descreve, a acção procede, mas nenhuma responsabilidade cabe ao município chamado; todavia, se vier a demonstrar-se que a iluminação de Natal foi executada em conformidade com as fichas técnicas fornecidas pelo Município de Braga, a acção procede apenas em parte (quanto à iluminação do hipermercado) , naufragando quanto à parte restante, uma vez indemonstrada a actuação ilícita dos réus, pois só no foro administrativo poderá obter tutela.

18. Deste acórdão recorrem os réus para o Supremo Tribunal de Justiça concluindo a sua minuta nos seguintes termos:

I- Por despacho datado de 1 de Abril de 2009, o Tribunal de 1ª instância declarou-se incompetente, em razão da matéria, uma vez que, e na qualidade de interveniente principal, passou a figurar nos autos o município de Braga.
II- Nos autos, a causa de pedir alicerça-se numa alegada responsabilidade civil extracontratual.
III- Nos termos do disposto no artigo 4.º do ETAF só os Tribunais administrativos são competentes para julgar qualquer pessoa, órgão ou agente da administração pública, seja essa administração ao nível de actos de gestão pública ou privada
IV- O mesmo acontece quando essa administração seja efectuada por uma pessoa colectiva de direito privado, mas desde que exerça funções que tenham que ver com a prossecução do interesse público, tal como resulta do disposto no artigo 4.º/1, alínea i) do ETAF
V- Relativamente à incompetência do tribunal de jurisdição comum relativamente à relação com o Município de Braga pode ainda ler-se, no acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos em 23-1-2008, no processo 017/07 que “ com a entrada em vigor do actual ETAF, de acordo com a regra geral do artigo 4.º/1g) e salvo as excepções substantivas contidas no n.º3 do mesmo preceito legal, passou a ser da competência do juiz administrativo apreciar todas as questões da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer relativas a relações jurídicas administrativas, quer referentes a relações extra-administrativas, independentemente de serem regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Ou dito de outro modo, nas palavras de Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, pág. 714 do ETAF ‘ privilegiou um factor de incidência subjectiva independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade , esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos’.
VI- Sempre que numa acção intervenha uma pessoa colectiva de direito público a título principal, essa acção deve, obrigatoriamente, ser julgada pelos tribunais de jurisdição administrativa, pois existe disposição legal que atribui tal competência aos tribunais de competência especializada administrativa.
VII- Entre a Câmara Municipal de B... e os recorrentes foi celebrado o contrato de fornecimento de aquisição de serviços , tendo-se, assim, constituído uma relação jurídica administrativa.
VIII- O contrato celebrado entre os recorrentes e o Município de Braga consubstancia-se num contrato administrativo, tal como os previstos nos artigos 178.º e segs do CPA, nas redacções anteriores à sua revogação pelo Decreto-lei n.º 18/2008, de 28 de Janeiro.
IX- Existindo essa relação jurídico-administrativa, à alegada relação de responsabilidade civil extracontratual será aplicável , no caso em apreço, as regras relativas à responsabilidade civil de entes públicos.
X- Mas sendo as normas relativas à arrazoada contrafacção normas de direito privado, as mesmas devem ser vistas tendo em conta essa relação jurídico-administrativa.
XI- Tal relação de responsabilidade extracontratual fica enquadrada no disposto no artigo 4./1, alínea i) do ETAF e, por tal razão, o tribunal competente será sempre o tribunal de jurisdição administrativa.
XII- O artigo 4.º/1, alínea i) remete o julgamento de tal relação para os Tribunais Administrativos uma vez que a alegada responsabilidade é emergente do exercício de uma actividade administrativa ( execução do contrato administrativo) estando os recorridos sujeitos a disposições e aos princípios de direito administrativo.

Apreciando:

19. A A. demandou os réus visando ressarcir-se dos prejuízos de ordem material e moral resultantes do facto de os réus se terem apropriado de obra da autora, protegida nos termos do Código dos Direito de Autor e da Propriedade Industrial.

20. Os réus, na contestação, alegaram que se limitaram a executar trabalhos realizados em conformidade com o estipulado no contrato de adjudicação que impôs que as iluminações fossem concebidas de acordo com as imagens recriadas nas fichas técnicas em anexo.

21. A autora, face à contestação, requereu a intervenção principal provocada da Câmara Municipal de B... nos termos dos artigos 320.º, alínea a) e 325.º do C.P.C. a fim de ser também ressarcida por esta entidade de acordo com o pedido deduzido contra os demais réus.

22. A intervenção principal da Câmara Municipal foi admitida, sem oposição prévia dos demais réus; uma vez citada, contestou sem suscitar nenhuma excepção.

23. Foi o Tribunal que suscitou ulteriormente a excepção de incompetência em razão da matéria considerando que o pedido dirigido contra a Câmara Municipal de B... tem por base a responsabilidade civil extracontratual desta entidade no desempenho de actividade compreendida no âmbito das suas funções ( ver artigo 4.ª/1, alínea g) do E.T.A.F. que prescreve competir aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa).

24. Assim, a responsabilidade dos réus demandados na petição funda-se no facto de terem , sem autorização, procedido à reprodução de obra alheia, auferindo proveito em detrimento do criador da obra; a responsabilidade da Câmara Municipal de B... advém de ter ajustado com os réus a realização de tais trabalhos, incluindo os respectivos desenhos nas fichas técnicas anexas ao contrato, possibilitando aos réus a sua execução.

25. Por força do incidente de intervenção principal provocado o pedido passou a ser dirigido contra outro réu, a Câmara Municipal de B.... Estamos diante de uma situação litisconsorcial voluntária (artigo 27.º do C.P.C.) pois a A. pretende ressarcir-se junto de todos os réus demandados pelos danos sofridos com base em alegado facto ilícito que lhes é imputável ( artigo 483.º do Código Civil) e pelo qual respondem solidariamente (artigo 497.º/1 do Código Civil).

26. À primeira vista afigurar-se-ia que , contrariamente ao que sucede na coligação (artigo 31.º/1 do C.P.C.), nenhuma compatibilidade processual se exigiria, pois, tratando-se no litisconsórcio de um mesmo pedido fundado numa mesma relação material, tal questão não seria suscitável. No entanto, a mesma relação material pode implicar responsabilidades diversas ( v.g. o mesmo acidente pode ser simultaneamente de viação e de trabalho). Por isso, como salienta Lopes do Rego, parece indispensável introduzir uma limitação ao entendimento de que a “ remissão feita pelo artigo 351.º, alínea a) do C.P.C [ actual artigo 320.º, alínea a)] não exige os requisitos de compatibilidade processual dos pedidos, resultantes do disposto no artigo 31.º do C.P.C”. E, assim sendo, “ não será admissível o litisconsórcio voluntário quando exista o obstáculo da incompetência absoluta do tribunal para conhecer de todos os pedidos formulados por ou contra os contitulares da relação material controvertida” (“ Os Incidentes de Intervenção de Terceiros em Processo Civil”, R.M.P., Vol 13º e segs, pág. 98).

27. No entanto, porque o incidente de intervenção principal da Câmara foi admitido, sem oposição, tendo a Câmara Municipal deduzido contestação, suscita-se a questão de saber se, a partir do momento em que é admitida a intervenção principal da Câmara Municipal visando a sua condenação no pagamento de indemnização por ter incorrido em responsabilidade civil extracontratual, pode o Tribunal pronunciar-se sobre a questão da competência do tribunal em razão da matéria considerado o pedido deduzido na sequência de incidente de intervenção principal.

28. É sabido que a competência em razão da matéria deve ser considerada à luz da petição nos termos em que esta foi apresentada pelos autores e, por isso, é inegável que não pode deixar de ser reconhecida a competência do tribunal judicial para a causa no que respeita ao pedido de indemnização deduzido na petição inicial contra os réus, ora recorrentes. Por isso, uma vez admitida a intervenção principal da Câmara Municipal, seguramente não podia o Tribunal, a aceitar que o pedido, quanto a esta entidade não estava abrangido pela competência material dos tribunais judiciais, absolver todos os réus da instância; a solução há-de ser outra: ou se admite a Câmara Municipal a responder em tribunal judicial por matéria que, quanto a ela, seria da competência dos tribunais administrativos visto que, face aos termos constantes da petição, a competência material já está estabelecida quanto aos demais réus ou apenas se aceita o prosseguimento da acção em tribunal judicial quanto aos demais réus.

29. Importa salientar que no litisconsórcio voluntário há uma simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes (artigo 29.º do C.P.C.) e, por isso, à luz deste preceito não suscitará qualquer inconveniente que o pedido deduzido contra a Câmara Municipal tenha de ser apreciado separadamente uma vez que a autora optou por demandar apenas os demais réus em tribunal judicial; ou seja, o prosseguimento dos autos contra a Câmara Municipal em tribunal judicial apenas se compreenderia por força da irreversibilidade da decisão que admitiu a Câmara a intervir.

30. Afigura-se-nos que, não tendo havido decisão sobre a questão da competência do tribunal em razão da matéria quando se tratou de admitir a intervenção principal da Câmara, não se formou caso julgado formal ( artigo 672.º do C.P.C.); e isto não apenas porque não se deve aceitar o caso julgado implícito, como também porque esta questão da incompetência podia ser sempre suscitada pela Câmara Municipal a partir do momento em que a citada passou a intervir nos autos.

31. No caso vertente a Câmara Municipal quando deduziu contestação não suscitou a excepção de incompetência em razão da matéria, mas isso não significa que o Tribunal não o pudesse fazer visto estarmos diante de matéria que é do conhecimento oficioso (artigo 102.º do C.P.C.).

32. Refira-se ainda que a questão da admissibilidade do incidente nem sequer implica caso julgado formal (artigo 672.º do C. P.C.) à luz das regras atinentes ao novo regime de recursos, aplicáveis aos presentes autos, pois estamos face a uma decisão de que não se pode apelar (artigo 691.º/2), o que significa que seria sempre impugnável com a decisão final ( artigo 691.º/4 do C.P.C) - e, por isso, o tribunal nem sequer estava impedido de suscitar em momento anterior esta excepção.

33. Ora se o tribunal pode conhecer oficiosamente desta excepção, se no litisconsórcio voluntário há uma simples acumulação de acções e se estamos face a uma situação em que à intervenção litisconsorcial se aplicam regras de compatibilidade processual que a lei contempla para os casos de cumulação, então, tal como referiu Alberto dos Reis, a circunstância de se cumularem pedidos com infracção dos requisitos relativos à forma do processo e à competência do tribunal dá em resultado ficar sem efeito [ ver artigo 193.º/4 do C.P.C.] um ou algum dos pedidos. Qual ou quais?
Naturalmente aquele ou aqueles a respeito dos quais a forma de processo empregada é imprópria ou o tribunal é incompetente em razão da matéria ou da hierarquia. Se é a incompetência ou o erro da forma que faz cair o pedido, para que o efeito esteja em correlação com a causa tem necessariamente de admitir-se que o pedido posto fora de campo é precisamente aquele a que não se ajusta a forma de processo adoptada ou de que o tribunal não pode conhecer em razão da matéria ou da hierarquia […] se, quanto a um dos pedidos, o tribunal é incompetente em razão da matéria ou da hierarquia, verifica-se, quanto a esse pedido, a incompetência absoluta do tribunal. Está, portanto, indicado que […] o réu […] deduza a excepção de incompetência, exactamente como em qualquer outro caso em que ocorra ou uma nulidade de forma ou uma incompetência em juízo” (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol 3.º, pág. 168/169).

Concluindo:

I- No caso de litisconsórcio voluntário (artigo 27.º do C.P.C.) deve verificar-se em relação a todos os contitulares da relação material controvertida, atento o pedido formulado, a compatibilidade processual a que alude o artigo 31.º/1 do C.P.C., ou seja, não será admissível o litisconsórcio voluntário quando ocorra incompetência absoluta do tribunal relativamente a algum ou alguns desses contitulares.
II- O Tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção de competência em razão da matéria no que respeita a pedido deduzido contra Câmara Municipal com base em responsabilidade civil extracontratual (artigo 102.º do C.P.C. e artigo 4.º/1, alínea g) do E.T.A.F. aprovado pela lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro).
III- A acção prossegue contra os demais réus considerado o pedido contra eles deduzido relativamente aos qual o tribunal é o competente em razão da matéria.
IV- A decisão que admitiu a intervenção principal provocada da Câmara Municipal e onde não foi tomada nenhuma posição sobre a incompetência do tribunal em razão da matéria relativamente à responsabilidade pedida ao interveniente, não preclude o conhecimento ulterior da excepção de incompetência absoluta do Tribunal desde logo porque, de acordo com as regras atinentes ao regime de recursos introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, a decisão que admite o incidente não faz caso julgado formal, podendo ser impugnada ulteriormente no recurso que venha a ser interposto da decisão final ( artigo 691.º/3 do C.P.C.)

Decisão: concede-se revista parcial, absolvendo-se da instância a ré Câmara Municipal B..., mantendo-se, quanto ao mais, a decisão proferida.

Custas pelos recorrentes

Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 17-6-2010.

Salazar Casanova (Relator)

Azevedo Ramos

Silva Salazar