Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
219/11.9JELSB-L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: RECURSO PENAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PENA SUSPENSA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Data do Acordão: 01/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / COMPETÊNCIA - RECURSOS.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA / ORGANIZAÇÃO E COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS / SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Anotação ao acórdão do STJ, de 18 de Fevereiro de 2009, proc. nº 102/09, publicada na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 20 (2010), p. 629.
- CASTANHEIRA NEVES, “Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais”, Studia Iridica, 1, pp. 108, 144.
- FERNANDO JOSÉ BRONZE, “O Problema da analogia juris. Algumas notas”, in «Analogias», Coimbra, 2012, p. 265, ss., des. P. 274.
- KARL LARENZ, “Metodologia da Ciência do Direito”, 2ª ed., pp. 473-474.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.ºS1 E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 11º, Nº 4, ALÍNEAS B) E D), 400.º, N.º1, 414.º, N.º2, 420.º, N.º 1, ALÍNEA B), 427.º, 432.º, N.º1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 53.º.
DL N° 15/93, DE 22-1, COM REFERÊNCIA À TABELA L-C, ANEXA AO MESMO DIPLOMA LEGAL: - ARTIGO 21.º.
LEI Nº 52/2008, DE 28-08: - ARTIGOS 43.º, ALÍNEA B), 44.º, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25/6/2008, PROC. 1879/2008;
-DE 23/06/2010, PROC., Nº 102/09.
Sumário :

I - O recorrente foi condenado na 1.ª instância pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53.º do CP. Sob recurso do MP, a Relação revogou a decisão de 1.ª instância, na parte em que suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao recorrente.

II - A recorribilidade para o STJ de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no art. 432.º do CPP. De uma forma directa, nas als. a), c) e d) do n.º 1; e de um modo indirecto na al. b), decorrente da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas Relações, nos termos do art. 400.º, n.º 1, e respectivas alíneas, do CPP.

III -A perspectiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o STJ, com a prevalência sistémica patente e mesmo imanente, da norma do art. 432.º, e especialmente do seu n.º 1, al. c), impõe a interpretação correctiva (ou mesmo a redução teleológica) da norma do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, de acordo com o princípio base do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, interpretação necessária à reposição do equilíbrio e da harmonia no interior da regime dos recursos para o STJ.

IV -Assim, se não é admissível recurso directo para o STJ de decisão proferida por tribunal singular, ou que aplique pena de prisão não superior a 5 anos, também por integridade da coerência que deriva do princípio da paridade ou até da maioria de razão, não poderá ser admissível recurso de segundo grau de decisão da Relação que conheça de recurso interposto nos casos da decisão do tribunal singular ou do tribunal colectivo ou do júri que aplique pena de prisão não superior a 5 anos; é esta a regra que se retira do limite fixado na al. c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP.

V - O recurso não é, assim, admissível (art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP), devendo consequentemente ser rejeitado (arts. 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.º 2, do CPP).
Decisão Texto Integral:

    Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Os arguidos: AA; BB; CC; DD; EE; FF; GG; HH; II; JJ; e LL, foram submetidos a julgamento, perante o Tribunal Colectivo da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, que por acórdão, em 18/05/20121 decidiu:

1. Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

2. Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social;

3. Condenar o arguido CC pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social;

4. Condenar o arguido DD pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;

5. Condenar a arguida EE pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social;

6. Condenar a arguida FF pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, e nos termos dos arts. 75°, n° 1, e 76°, n° 2, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão;

7. Condenar o arguido GG pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social;

8. Condenar o arguido HH:

8.1.     Pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;

8.2.     Pela prática da contra-ordenação muito grave p. e p. pelos arts. 135°, n° 1, n° 3, al. a), 136°, n° 1, 146°, al. l), e 147°, do Código da Estrada, no pagamento da coima de € 600 (seiscentos euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses;

9. Condenar o arguido II pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social;

10. Condenar o arguido JJ pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social;

11. Condenar o arguido LL pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.

II. Não se conformando com a decisão proferida, interpuseram recurso:

a) O Ministério Público, restringindo o seu recurso à condenação do arguido CC e pedindo a revogação da suspensão da execução da pena;

b) O arguido HH impugnando:

- alguns pontos da matéria de facto provada;

- a qualificação jurídica dos factos provados, pretendendo que estes integram a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. p. pelo art. 25.°, do DL 15/93, de 22/01 e que não cometeu a contra-ordenação pela qual foi condenado;

- a medida da pena aplicada ao abrigo do art. 21.°, do mesmo diploma, pugnando pela sua redução ao mínimo legal, caso se mantenha a qualificação jurídica operada pelo tribunal recorrido;

- a não suspensão da respectiva pena.

O tribunal da Relação julgou parcialmente procedente o recurso do arguido HH, e alterou alguns pontos da matéria de facto provada e não provada, absolveu o arguido da contra-ordenação às regras do Código da Estrada, e reduziu a pena de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes - art. 21.°, n.° 1, do DL 15/93, de 22/01 - para 4 anos e 8 meses de prisão;

Julgou procedente o recurso do Ministério Público, revogando a decisão recorrida na parte em que suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao arguido CC; e

Confirmou, quanto ao mais, a decisão recorrida.

III. Não se conformando, o arguido HH recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, com os fundamentos constantes da motivação que apresenta, e que termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. O Tribunal da Relação revogou a decisão recorrida na parte em que suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao Recorrente.

2. Decidiu o Tribunal a quo que a efectiva pena de prisão “num caso como o dos autos (...) mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias”

3. Mais, que: “Perante a matéria de facto provada relativa ás suas condições pessoais, respectiva situação económica, conduta anterior aos factos e circunstancias do cometimento do crime, não é possível formular um juízo de prognose favorável ( ...) não se mostrando, por isso, preenchidos os pressupostos enunciados no artigo 50°, n° l, do CP., afastando a possibilidade de a execução da respectiva pena de prisão ser suspensa”

4. Não pode o Recorrente conformar-se com tal decisão, já que decidiu bem, o Tribunal da 1ª Instancia, que não só valorou convenientemente todas as circunstâncias que integram os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, como também aplicou correctamente os comandos legais pretensamente violados.

5. O Tribunal de 1ª Instância no Acórdão a fls. 194 (verso) decidiu que: “também o arguido CC actuou com culpa elevada e dolo intenso (...). Expressou, no entanto, em julgamento, arrependimento pelos mesmos, e apresenta como antecedentes criminais uma condenação pela prática de idêntico crime, cujo trânsito em julgado ocorreu há mais de três anos, encontrando-se extinta a pena de prisão suspensa na sua execução que, então, lhe foi aplicada.”

6. Mais, a fls. 198 o Tribunal de Ia Instancia decidiu que: “ Encontram-se nessa situação - de prognose favorável á ressocialização em liberdade e á adopção de comportamentos lícitos, perante a ameaça do cumprimento de pena de prisão - os arguidos BB, CC, EE, GG. II e JJ.”

7. O Recorrente não se conforma por ser o único arguido num universo de onze arguidos dos quais o Tribunal de 1ª Instância entendeu e bem aplicar a seis arguidos penas de prisão suspensa na sua execução.

8. Acresce que o Tribunal de 1ª Instância decidiu ainda que : “tendo em conta a auto-censura que o arguido exerceu quanto ao ilícito em cuja prática incorreu, e face ao tempo decorrido desde o trânsito em julgado da anterior condenação que apresenta, afigura-se que, é ainda possível que a censura exercida pela ordem jurídica, através da aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução, seja suficiente para não mais o convencer a delinquir.”

9. O arguido Recorrente, tem 59 anos de idade, tendo permanecido cerca de 9 meses sujeito á medida de coacção mais gravosa, ou seja em prisão preventiva. A prisão já sofrida, onde já sentida a censura na “pele”, e ao longo das sessões de julgamento, foi bastante para o recorrente incorporar a ilicitude do crime pelo qual foi julgado e condenado, estando assim realizadas de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

10. Não obstante, a pena privativa da liberdade possa corresponder a uma expectativa geral da sociedade, como meio de retribuir o mal causado à comunidade, o sistema legal não pode esquecer que a este anseio colectivo tem sempre de sobrepor a necessidade de ressocializar o infractor.

11. Acresce que os juízes do julgamento tiveram, em virtude da oralidade e da imediação, uma percepção própria do material probatório - contacto vivo e imediato com o arguido, os co-arguidos e as testemunhas.

12. Neste sentido vaio próprio Tribunal objecto de recurso, que referiu que: “O Juiz de julgamento tem, em virtude da oralidade e da imediação, uma percepção do material probatório diversa e muito mais próxima da realidade do que o tribunal de recurso, ao estar este limitado á analise das provas mediante a audição da respectiva gravação.”

13. Assim, têm defendido os Tribunais superiores que os princípios do processo penal, a imediação e a oralidade, implicam que deve ser dada prevalência às decisões da primeira instância.

14. Acresce que tem defendido o STJ que a suspensão da execução da pena é uma medida não institucional que, não determinando a perda da liberdade física, importa sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que não pode ser vista como forma de clemência legislativa, pois constituem autenticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar resposta a problemas específicos.

15. O tribunal de Ia Instancia decidiu que no caso concreto, não obstante o arguido Recorrente ter antecedentes criminais: “é ainda possível que a censura exercida pela ordem jurídica, através da aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução, seja suficiente para não mais o convencer a delinquir.”

16. A pena imposta quanto ao crime de tráfico de estupefacientes não o pode ser apenas por razões de prevenção geral, como decidiu o douto Tribunal a quo.

17. O Arguido agiu em condições de extrema necessidade, o que concorreu para a prática do ilícito, designadamente a sua difícil situação económica e clinica da esposa, como se afere do seu Relatório Social junto aos autos.

18. De acordo com o estabelecido no artigo 40°, n° 1, do Código Penal, a pena tem uma vertente ressocializadora, visando a reintegração do recorrente na Sociedade.

19. De salientar que o grau da ilicitude mostra-se atenuado tendo em conta a qualidade do produto apreendido: pois o haxixe é considerado pela Organização Mundial de Saúde, droga leve, não provocando a danosidade que as restantes provocam.

20. Acresce que a gravidade das consequências do caso concreto foi nula já que todo o produto foi apreendido, pelo que não causou malefícios.

21. Salvo o devido respeito pelo douto acórdão recorrido, julgamos que neste caso concreto deveria ter sido mantida a pena aplicada pelo Tribunal de 1ª Instancia: prisão suspensa na sua execução, com regime de prova.

22. A suspensão da execução da pena constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pêlos valores ao direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.

23. A suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, como resulta dos termos de imposição do artigo 50.° n.° 1, do CP («o tribunal suspende»), do exercido de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

24. As circunstâncias pessoais relativas ao recorrente, especialmente a integração familiar, já que o ora recorrente tem a seu cargo a esposa, com problemas de saúde, encontra-se integrado profissionalmente, exercendo a actividade de motorista de táxi, sendo o suporte da sua família, permitem formular a previsão de que a simples ameaça da pena será suficiente para prevenir a reincidência, realizando a finalidade de prevenção especial.

25. Neste sentido de salientar o Relatório Social do ora Recorrente, a fls.: 5 que refere que o arguido detém um papel significativo no enquadramento e apoio á companheira e ao seu irmão, e que a trajectória de vida do ora Recorrente surge associada a vários factores de risco, não obstante até recentemente ter mantido hábitos regulares de trabalho e um padrão comportamental aparentemente isento de problemas judiciais.

26. É em vista do disposto no art. 71.°, do CP, que há-de fazer-se a pertinente ponderação.

27. Por outro lado, o decretamento da pena de substituição consistente na suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.°, do CP) decorre, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido.

28. Tal juízo de prognose favorável foi formulado pelo Tribunal de 1ª Instância, único Tribunal que teve o contacto directo com o arguido Recorrente, o mesmo sucedendo quanto aos outros cinco arguidos, num total de onze arguidos, em que o tribunal formulou um juízo de prognose favorável, aos quais a execução da respectiva pena foi suspensa e não tendo sido no entanto nenhuma das decisões postas em crise.

Considera que em relação ao recorrente, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 40°, 50°, 70° e 71°, todos do Código Penal.

Termina pedindo o provimento do recurso, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo a decisão da 1ª Instância, sendo aplicada a suspensão da pena nos termos e para os efeitos do artigo 50° do C. P.

A magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, concluindo:

O presente recurso foi interposto do Acórdão de 18/9/2012, que revogou a suspensão da pena que foi imposta ao recorrente CC na 1ª Instância, dando assim provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, sendo a pena agora recorrida de 4 anos e 4 meses de prisão efectiva por prática de crime de tráfico de estupefacientes.

A ponderação da aplicação de uma pena de substituição é efectivamente feita no momento da prolação da sentença.

A pena suspensa tem como pressuposto material o prognóstico favorável quanto ao comportamento do delinquente que em determinadas circunstâncias torna crível a possibilidade de se afastar do crime.

Este juízo reporta-se sempre ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, nem a qualquer outro momento.

Porém se o tribunal fizer um prognóstico favorável à luz das condições relativas à prevenção especial de socialização, tal suspensão não deve concretizar-se se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.

Neste caso concreto a capacidade de auto-censura do arguido, o ter confessado parcialmente os factos e o ter revelado arrependimento não se pode sobrepor à ineficácia da primeira condenação que sofreu com pena suspensa.

Afigura-se que, considerando-se as fortes necessidades de prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes e as graves consequências, a pena efectiva será a adequada resposta.                              

Em conformidade deverá o Acórdão recorrido ser mantido, negando-se provimento ao recurso.

IV. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP, suscitando a questão da inadmissibilidade do recurso. que uma considerável jurisprudência do STJ afasta fundamentadamente (além do douto acórdão atrás já citado também os proferidos em 16/10/2010 p. nº 152/06.6GAPNC.C2.S1, 3ª sec, em 24/2/2011, p. 23/08.1PECTB.C1.S1, 5ª sec e 18/5/2011, p.37/094PBVCD, 3ª sec.). 

Por tudo isto, entende que o recurso do arguido CC deverá ser rejeitado por ser inadmissível, (artº 432º nº 1 al. c), 427º e 420º nº 1 al. b) do CPP).

Notificado, o recorrente nada disse.

V. Colhidos os vistos, o processo foi à Conferência, cumprido decidir:

VI. Questão prévia sobre a admissibilidade do recurso:

O recorrente foi condenado na 1ª instância por de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-C, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova, nos termos do disposto no art. 53° do Código Penal, o qual assentará num plano de reinserção social a executar, com vigilância e apoio, e durante o referido período, pelos serviços de reinserção social:

Sob recurso do Ministério Público, a relação revogou a decisão de 1ª instância, parte em que suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao recorrente.

VII. A recorribilidade para o STJ de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432º do CPP. De uma forma directa, nas alíneas a), c) e d) do nº 1; e de um modo indirecto na alínea b), decorrente da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, nos termos do artigo 400º, nº 1 e respectivas alíneas, do CPP.

No regime definido pelo conjunto das referidas normas há, porém, elementos que, embora aparentemente descoordenados, não podem deixar de ser harmonizados, salvo risco e efeito de uma séria contradição intra-sistemática; o regime e a coordenação das diversas normas que definem a admissibilidade dos recursos para o STJ impõem uma adequada tarefa de interpretação

A referência essencial para a leitura integrada do regime dos recursos para o STJ – porque constitui a norma que define directamente as condições de admissibilidade do recurso para o STJ – não pode deixar de ser o artigo 432º do CPP, e as alínea b) e c) do nº 1, que fixam uma condição e um limiar material mínimo de recorribilidade – acórdãos finais, proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, que apliquem pena de prisão superior a cinco anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Não sendo interposto de decisão do tribunal colectivo, ou sendo interposto recurso de decisão do tribunal colectivo ou do tribunal do júri que não aplique pena de prisão superior a cinco anos, o recurso, mesmo versando exclusivamente o reexame da matéria de direito, deve seguir a regra geral do artigo 427º do CPP que determina que seja obrigatoriamente dirigido ao tribunal da relação; esta norma não constitui, no rigor, uma norma material de competência em razão da hierarquia, mas um norma processual de delimitação das condições do recurso, e regra geral sobre os pressupostos (processuais) de recorribilidade.

A repartição da admissibilidade dos recursos pelas instâncias de recurso está, assim, delimitada por uma regra-base que parte da confluência de uma dupla ordem de pressupostos – a natureza e a categoria do tribunal a quo e a gravidade da pena efectivamente aplicada.

A coerência interna do regime de recursos para o STJ em matéria penal supõe, deste modo, que uma decisão relativamente à qual se não verifique a referida dupla de pressupostos não deva ser (não possa ser) recorrível para o STJ. Com efeito, se não é admissível recurso directo de decisão proferida por tribunal singular, ou que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, também por integridade da coerência que deriva do princípio da paridade ou até da maioria de razão, não poderá ser admissível recurso de segundo grau de decisão da relação que conheça de recurso interposto nos casos de decisão do tribunal singular ou do tribunal colectivo ou do júri que aplique pena de prisão não superior a cinco anos; é esta a regra que se retira do limite fixado na alínea c) do nº 1 do artigo 432º do CPP.

É, pois, neste círculo hermenêutico que tem de ser interpretada a dimensão normativa complexa resultante da conjugação dos artigos 432º, alíneas b) e c), e 400º, nº 1, alínea e), do CPP, que determinam a irrecorribilidade (e, por antonímia, a recorribilidade) das decisões proferidas, em recurso, pelo tribunal da relação.

Mas interpretação da norma aplicável; a questão da interpretação não é essencialmente hermenêutica, mas jurídica.

                     Por outro lado, «o objecto de interpretação é a norma enquanto norma, e não o texto enquanto expressão da norma»; importa a dimensão prático-jurídica, sendo o texto apenas um elemento – necessário, mas insuficiente – da concreta realização jurídica (cf., CASTANHEIRA NEVES, “Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais”, Studia Iridica, 1, p. 144).

A interpretação de cada norma susceptível de aplicação não pode, pois, ser autónoma e isolada; a norma a aplicar resulta da conjugação (dimensão normativa) do artigo 432º, alíneas b), c) e d), e do artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP; a norma aplicável (a dimensão normativa concretizada aplicável no caso) constitui uma norma complexa que, partindo das normas abstractamente susceptíveis de aplicação, ganha alguma autonomia na construção específica própria ao caso.

                     A norma do artigo 432º, alíneas b), c) e d) constitui uma unidade, com segmentos complementares que lhe conferem coerência e sentido; responde e realiza uma intenção, apenas apreensível e sistematicamente coerente na coordenação unitária das sub-hipóteses que contempla.

Na unidade da norma do artigo 432º do CPP, as sub-hipóteses que contem não podem ter, contextualmente, leituras isoladas, autónomas e separadas; a delimitação da alínea c) do nº 1 e os critérios processuais objectivos que define não podem ser lidos - e interpretados – de modo não coordenado ou conflituante, de forma a revelar uma irritação intra-normativa que os critérios metodológicos de interpretação necessariamente repelem.

Por seu lado, a norma da alínea e) do nº 1 do artigo 400º prevê a irrecorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pela relação que apliquem pena não privativa de liberdade.

A norma do artigo 400º do CPP – e as suas diversas espécies (recte, as alíneas d) a f) do nº 1) – constitui norma de integração e de complemento da conjugação entre as alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 432º do CPP, não podendo valer autonomamente, por si mesma; é uma norma que não tem sentido se não for conjugada e integrada com outras normas, na construção estrutural do sistema de recursos, constitui sistematicamente o complemento da norma do artigo 432º do CPP.

As condições, os pressupostos e os critérios da recorribilidade dos acórdãos da Relação não prevêem categorias autónomas, só tendo sentido se forem coordenadas com a norma do artigo 432º do CPP, que em primeira linha dispõem sobre a recorribilidade para o STJ; a irrecorribilidade só tem sentido e substância para permitir, por exclusão, o critério de recorribilidade para o STJ que está definida por via principal no artigo 432º do CPP.

A formulação da norma da alínea e) do nº 1 do artigo 400º CPP constava da Proposta de Lei nº 109/X (DAR, II série, nº 31, de 23/Dez/06) em termos diversos («são irrecorríveis» os acórdãos proferidos, em recurso, pela relação, «que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos»), adaptando, por comparação com a anterior formulação e para os casos aí previstos, o critério da “pena aplicada” em lugar da “pena aplicável ao crime” (Os Projectos de Lei nº 237/X, DAR, II série, nº 100, de 6/Abril/06; 368/X, 369/X e 370/X, DAR, II série, nº 52, de 9/Março/07 não previam qualquer alteração para a alínea e) do nº 1 do artigo 400º).

 A redacção final foi votada, após proposta oral do PS (com a abstenção dos restantes Partidos), em última leitura no Grupo de Trabalho da Comissão Parlamentar, ficando a expressão constante da redacção fixada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto - «que apliquem pena não privativa de liberdade».

O Relatório dos trabalhos preparatórios, de 18 de Julho de 2007, fixando a alteração na sequência da «proposta oral», não deixa qualquer traço de fundamentação que justifique o (aparente) desvio em relação ao primeiro texto proposto e a consequente «descontinuidade metodológica».

E, assim, também não deixa massa crítica nos procedimentos que permita obter deduções, com o peso de probabilidade necessário, sobre a vontade ou a intenção de legislador.

Isto é, não parece possível determinar se a formulação final e votada da norma constitui um «acidente» na metodologia da formação normativa, ou uma expressão concreta, firme e pensada da vontade do legislador.

A conclusão que poderá ser extraída de todo o processo legislativo, tal como deixou traço, será a de que se não manifesta nem revela uma intenção, segura, de alteração do paradigma que vem já da revisão do processo penal de 1998 – limite da pena de cinco anos de prisão, antes da revisão de 2007, aplicável, e após, concretamente aplicada: o STJ reservado para os casos mais graves e de maior relevância, determinados pela natureza do tribunal de que se recorre, e pela gravidade dos crimes aferida pelo critério da pena aplicável. É que, no essencial, esta modelação mantém-se no artigo 432º do CPP, e se modificação existe, vai ainda no sentido da restrição: o critério da pena aplicada conduz, por comparação com o regime antecedente, a uma restrição no acesso ao STJ; a unidade e a leitura (e a leitura é, nas perspectivas semântica e metodológica, o resultado significante de expressões verbais usadas no texto e no contexto) não permitem afastar o critério «cinco anos» na identificação da recorribilidade e das condições de acesso ao STJ.

De qualquer modo, não sendo razoavelmente possível, pelos elementos objectivos que o processo legislativo revela, identificar a vontade do legislador no sentido de permitir a conclusão de que na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do CPP disse mais do que quereria, é, apesar de tudo, metodologicamente possível operar uma interpretação que reconduza a dimensão normativa à coerência e à quietude sistemática.

É que esta norma, levada isoladamente ao pé da letra, sem enquadramento sistémico, acolheria solução que é directamente afastada pelo artigo 432º, nº 1, alínea c), produzindo uma contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar.

Basta pensar que, em leitura isolada, sem conjugação verbal integrada efectuada na unidade da dimensão normativa, um acórdão proferido em recurso pela relação, que aplicasse uma pena de trinta dias de prisão, não confirmando a decisão de um tribunal de Pequena Instância, seria recorrível para o STJ, contrariando de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição dos limites e das conduções de recorribilidade para o STJ definidas na regra-base do artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP.

A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intra-sistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável semelhante sentido.

Houve que proceder, por isso, um acrescido esforço de interpretação.

Com efeito, numa formulação normativa, o texto enquanto expressão da norma pode afastar-se da teleologia imanente à lei, exigindo então uma limitação que se afaste do «positivismo hermenêutico», mas que, ainda contida na expressão do texto, embora que imperfeitamente, seja coordenada em conformidade com o sentido da «norma enquanto norma».

Pode suceder, em tal situação, que uma norma, lida «demasiado amplamente segundo o seu sentido literal», tenha de ser reconduzida e deva ser «reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei», procedendo às «diferenciações requeridas pela valoração» e «exigidas pelo sentido e finalidade da própria norma», e pela finalidade ou sentido «sempre que seja prevalecente» de outra norma, que de outro modo seria seriamente afectada, seja pela “natureza das coisas” ou «por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos» (cfr., KARL LARENZ, “Metodologia da Ciência do Direito”, 2ª ed., p. 473-474).

Nestes casos, deverá o intérprete proceder à “interpretação correctiva” ou à “redução teleológica” da norma.

Na acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpretação enriqueceram-se de outros tipos de grande relevo prático, e que têm de comum aceitarem já a redução ou a correcção do texto a favor do cumprimento efectivo dada intenção prático-normativa da norma; é o que se verifica com a interpretação correctiva, geralmente aceite, em que se admite que o intérprete sacrifique (corrija) o texto da lei para realizar a intenção prática da norma.

Num plano de proximidade estão os instrumentos metodológicos ou «modos interpretativos» que se designam por “redução teleológica”: trata-se de reduzir ou de excluir do campo de aplicação de uma norma, com fundamento na teleologia imanente à norma, casos aparentemente abrangidos pela expressão estritamente linguística da sua letra (cf. a exposição enunciativa em CASTANHEIRA NEVES, “Metodologia”, cit., p. 108).

Mas, sublinhe-se a clara expressão na dogmática dos conceitos na doutrina mais autorizada: «modos interpretativos» ou «instrumentos metodológicos» da interpretação.

A redução ou correcção respeitará também o princípio da proporcionalidade e serve o interesse preponderante da segurança jurídica.

 VIII. A perspectiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o STJ, com a prevalência sistémica, patente e mesmo imanente, da norma do artigo 432º, e especialmente do seu nº 1, alínea c), impõe, por isso, em conformidade, a interpretação correctiva (ou mesmo a redução teleológica) da norma do artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base do artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP, interpretação necessária à reposição do equilíbrio e da harmonia no interior da regime dos recursos para o STJ.

Em síntese:

O resultado a que se chegou – discuta-se ou não o resultado, e tendo presente a prevenção de DWORKIN de que podendo co-existir várias interpretações de uma norma, apenas uma será a interpretação correcta – foi obtido através de um procedimento metodológico, seguido de acordo com os cânones de interpretação comummente sedimentados, com refracção normativa no artigo 9º, nºs 1 e 2 do Código Civil.

O procedimento iniciou-se pela identificação do quadro complexo-normativo aplicável, em abstracto, à situação processual de caso carecido de resolução (as regras e os critérios processuais de recorribilidade para o STJ, com constam do artigo 432º, nº 1, alíneas b( e c) do CPP) e num segundo momento, a especificação, nesse regime, da relação de admissibilidade entre as Relações e o STJ.

E para encontrar no percurso interpretativo a dimensão normativa aplicável (uma norma, complexa, de agregação de diversas normas que interagem e mutuamente se complementam), o método considerou a letra, a coordenação do sentido comum das expressões literais das normas de base e de complemento ou integração, as normas relativas aos critérios de recorribilidade e da estrutura repartida dos critérios de cognição – e nesta medida, o conteúdo e o sentido possível das expressões verbais; a inserção sistemática, os traços documentais da manifestação da intenção legislativa; e a leitura coerente e proporcional da intenção na unidade sistemática, ou, mais precisamente, intra-sistemática.

Na conjugação das normas das alíneas b) e c) do artigo 432º do CPP (que constitui a norma base relativamente às condições e critérios de recorribilidade para o STJ), revela-se essencial – verdadeiro núcleo da construção do sistema – a referência-limite de recorribilidade constituída pelo elemento «pena superior a cinco anos de prisão»; esta expressão (elemento literal) constitui, no caso, a partida e a chegada do processo interpretativo: a interpretação parte da letra, mas a letra poder ser também elemento de controlo, desde que a solução encontrada tenha na norma ou na dimensão normativa, «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa».

O «mínimo de correspondência verbal» está, como se salientou, no limite objectivo de «cinco anos», que constitui, na dimensão normativa concreta que se retira da conjugação das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 432º do CPP, um critério simultaneamente de recorribilidade e de integração de um limite mínimo de recorribilidade para o STJ.

A letra, a intenção, a unidade e a coerência sistemática, consideradas na perspectiva normativa recolhida das determinações do artigo 9º, nºs 1 e 2 ao Código Civil, permitiram, assim, a identificação e a precisão da dimensão normativa aplicável no caso, resultante da conjugação dos artigos 432º, nº 1, alíneas b) e c) do CPP (normas base) e 400º, nº 1, alínea e), do CPP (norma de complemento e de integração).

Perante um procedimento metodológico tão cingido – e, por passos sequentes, justificado - não poderá dizer-se que a conclusão não é, ou não é já, interpretação; certa ou susceptível de crítica, e mesmo que perspectivas divergentes considerem, ou possam considerar, outro sentido para o julgamento nos casos de disfunções de previsão, tudo ainda se situa metodologicamente no estrito campo da interpretação.

No caso, não foi utilizado ou conjugado na interpretação qualquer elemento ou juízo analógico, nem foi identificada qualquer lacuna que fosse necessário integrar; não pode, por isso, e muito menos por este motivo, ser aceite a crítica endereçada à solução na anotação ao acórdão do STJ, de 18 de Fevereiro de 2009, proc. nº 102/09, publicada na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 20 (2010), p. 629, s.

É que o pensamento analógico, como agregador, cimento de assimilação e factor de recompreensão de categorias dogmáticas, que há-de ter como referentes os critérios materiais da analogia como método de análise e tópicos de argumentação, não seria metodologicamente assimilável ou identificável com a analogia enquanto fundamento decisório sem lei (lacuna) ou para além da lei; o pensamento analógico, enquanto «argumento retórico», convive - e constitui mesmo pressuposto de inteligibilidade e elemento essencial na interpretação da norma: correspondência ou semelhança de situações no espaço das correlações sistemáticas pressupostas em qualquer interpretação normativa.

O «argumento por semelhança», próprio do same level reasoning, se for ou quando seja utilizado na interpretação, constitui apenas uma inferência retórica de carácter estritamente argumentativo, e, por isso, próprio do caminho metódico da interpretação (cf., FERNANDO JOSÉ BRONZE, “O Problema da analogia juris. Algumas notas”, in «Analogias», Coimbra, 2012, p. 265, ss., des. P. 274).

Deste modo, não podem restar dúvidas nem equívocos que, como ficou bem saliente e deve ser repetidamente sublinhado, a norma do artigo 432º não é, na base e estruturalmente, uma norma de repartição de competências em razão da hierarquia: as normas de competência do STJ em razão da hierarquia são as normas orgânicas que constam da Lei Orgânica (artigos 43º, alínea b), e 44º, alínea a), da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto), concretizadas no artigo 11º, nº 4, alíneas b) e d) do CPP; o artigo 432º, nº 1, alíneas b) e c) refere-se às condições e critérios e admissibilidade dos recursos, sendo norma processual de delimitação dos recursos admissíveis; apenas no ponto em que estabelece um limite mínimo de recorribilidade, se aproxima também concomitante e marginalmente de uma norma de competência.

Mas, de qualquer modo, a natureza da norma – seja estritamente processual ou ainda marginalmente assimilada à competência – não introduz qualquer elemento que tenha consequências no método e no caminho da interpretação.

Por isso, a noção de «delimitação de competência recursória» (cf. anotação cit.), constitui uma expressão significante equívoca e conceptualmente pouco prestável. A competência para o julgamento no âmbito material da competência em razão da hierarquia está fixada no quadro material e legal da competência; a «competência recursória», no contexto do artigo 432º do CPP, diversamente, é processual e não material, não sendo mais do que a fixação de critérios e condições para a admissibilidade dos recursos.

A solução a que se chegou, no sentido da convergência necessária com os limites verdadeiramente definidores da recorribilidade para o STJ, permite desenhar a solução.

Como se refere, v. g., no acórdão do STJ (de 25 de Junho de 2008, proc. 1879/2008), «desde que não haja condenação em pena não superior a cinco anos de prisão, não incumbe ao STJ, por não se circunscrever no âmbito dos seus poderes de cognição, apreciar e julgar recurso interposto de decisão final do tribunal colectivo o do júri, que condene em pena não superior a cinco anos de prisão»; o legislador, não prevendo a recorribilidade para o STJ de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade, «quis implicitamente significar, de harmonia com o artigo 9º do Código Civil, na teleologia e unidade do sistema quanto a penas privativas de liberdade, que […] apenas é admissível recurso de acórdão da relação para o Supremo quando a relação julgar recurso de decisão do tribunal colectivo ou do júri, em que estes tivessem aplicado pena superior a cinco anos de prisão» (cf., também, proc, nº 102/09, de no acórdão de 23 de Junho de 2010).

A identificação e a interpretação da dimensão normativa aplicada, obtida com o auxílio dos cânones hermenêuticos, sedimentados e contextualmente acolhidos na formulação – embora historicamente datada – do artigo 9º do Código Civil, partindo da escolha do método, que é já interpretação, e também da posição e função, pré-ordenada ou pós-ordenada, dos diversos elementos considerados, podem suscitar, é certo, divergências; mas até que exista outra (eventual) intervenção do legislador é esta a interpretação jurídico-normativamente vinculante no âmbito do processo. Sendo o resultado de um processo interpretativo, não permitirá manipulações conceptuais e (re)interpretativas para qualificar diversamente, sob outro nomen, o caminho de determinação do sentido normativo-concreto da dimensão normativa aplicada no caso; a escolha do método, o percurso metodológico sob cânones interpretativos e o resultado obtido na determinação do sentido da norma constituem interpretação, cabendo exclusivamente – e definitivamente – na jurisdição do STJ.

E, sendo interpretação e determinação do sentido da lei, não poderá constituir violação do princípio da legalidade.

IX. O recurso não é, assim, admissível (artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP), devendo consequentemente ser rejeitado (artigos 420º, nº 1, alínea b) e 414º, nº 2 do CPP).

Nestes termos, rejeita-se o recurso.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2013              

Henriques Gaspar (Relator)
Armindo Monteiro